terça-feira, 22 de dezembro de 2015

O Fantasma Baterista de Tedworth


O Fantasma Baterista de Tedworth foi um caso de suspeita de atividade poltergeist. No início da década de 1660 John Mompesson, de Wiltshire, começou a ouvir barulhos estranhos em sua casa. Havia sons de batidas de tambor, bem como arranhões e ofegantes ruídos. Objetos pareciam se mover por conta própria na casa, e às vezes um cheiro sulfuroso estranho pairava no ar.

Mompesson acreditava que um homem que ele tinha ajudado a mandar para a cadeia, um baterista chamado William Drury, tinha, por alguma forma de feitiçaria, causado a invasão de um espírito malévolo em sua casa. O caso atraiu o interesse em toda a Inglaterra, e muitas pessoas vieram para testemunhar o espírito por si mesmos. No entanto, quando o rei enviou dois representantes para investigar o assombro, eles não encontraram nenhuma evidência de atividade sobrenatural.

Os céticos, dos quais havia muitos, rejeitaram a coisa toda. Eles sugeriram que o próprio Mompesson tivesse armado essa farsa, tanto para lucrar com aqueles que vieram para ver o espírito, ou para diminuir o valor da casa (que era alugada).

Outros possíveis culpados eram os servos de Mompesson, que pareciam bastante satisfeitos com as agruras de seu mestre, e que muitas vezes zombavam dele, apontando que ele nunca poderia demiti-los porque ninguém mais concordaria em trabalhar para ele em tais condições.


Fonte: The Ghostly Drummer of Tedworth

Os Fantasmas de Versalhes


Duas professoras em uma excursão a Paris e ao interior da França passaram por uma experiência digna de um filme de Steven Spielberg. No Palácio de Versalhes elas foram protagonistas de um fenômeno extraordinário de distorção temporal, um evento que mudou a vida das duas para sempre.

No feriado da Páscoa em 1901, duas professoras secundaristas de meia-idade, Anne Moberley e Eleanor Jourdain, juntaram-se a uma excursão a Paris e ao interior da França. Foi durante uma visita ao palácio de Versalhes que as duas mulheres passaram por uma experiência de que jamais se esqueceriam. Após conhecer as de­pendências principais do palácio e sua área externa, as senhoritas Moberley e Jourdain percorreram os mundialmente famosos jar­dins que levam ao Petit Trianon, a residência favorita de Maria Antonieta.

Anne Moberley
Entretanto, como não possuíam um mapa detalhado do local, as duas mulheres se perderam e, encontrando por acaso dois homens trajando vestes típicas do século XVIII, os quais elas pensaram ser moradores do local, pediram a eles informações sobre o país. Em vez de ajudar, os homens encararam-nas de forma estra­nha e cumprimentaram-nas precipitadamente. Mais adiante, passaram pelas inglesas uma mulher jovem e uma garota, também vestidas à moda antiga, embora suas roupas fossem de má qualidade. Todavia, as professoras não suspeitaram que algo de estranho estivesse acontecendo até que chegaram ao pavilhão do Temple D’Amour, ocupado por muitos outros indivíduos vestidos como antigamente e falando um dialeto do francês desconhecido para elas.

Eleanor Jourdain
Ao se aproximarem do Temple D’Amour, ficou claro para elas que algum detalhe de sua aparência chocava aquelas pessoas. Apesar disso, um dos homens mostrou-se cordial e, por meio de gestos, conduziu-as até o Petit Trianon. Chegaram lá depois de atravessar uma ponte de madeira cruzando uma pequena vala. Ainda que tivessem atingido finalmente seu destino, as duas mulheres deram pouca atenção à construção em si, concentrando-se na figura de uma pessoa que, sentada, desenhava um esboço do bosque próximo. Muito atraente, trajando uma peruca imponente característica e um vestido longo típico da aristocracia do século XVIII, a mulher parecia mais o motivo para um quadro do que uma artista.

Elas foram se aproximando da figura aristocrática até que ela se virou bruscamente para ambas. Elas saudaram-na com sorrisos, mas ela simplesmente encarou-as com uma expressão de temor e perplexidade. Foi então que as duas inglesas por fim perceberam que, de algum modo, regrediram no tempo. Recordando-se de suas sensações, a senhorita Moberley referiu-se ao ambiente em que estava como de certa forma sobrenatural. Escreveu posteriormente: “Até mesmo as árvores pareceram adquirir um aspecto bidimensional e sem vida. Não havia efeitos de luz e sombra... as árvores não farfalhavam ao vento. ” Então, como se elas tivessem despertado de um sonho, a misteriosa quietude cessou e a ambiência e as cores voltaram ao normal. Em um piscar de olhos, a artista aristocrata desaparecera e, em seu lugar, surgira um guia de turismo contemporâneo, acompanhado de muitas senhoras em uma excursão ao Petit Trianon.

Após pesquisarem intensivamente a história do palácio de Versalhes, as professoras chegaram bastante tempo depois à conclusão de que, de fato, se deslocaram ao passado através de uma espécie de distorção do tempo ou de um portal invisível interdimensional. Em sua opinião, o ano a que elas retornaram foi provavelmente o de 1789. Para as autoras, os jardineiros que não as compreenderam eram aparentemente os guardas suíços que notoriamente estiveram na corte de Luís XVI, e a mulher acompanhada de uma garota, ambas vestidas em farrapos, deviam ser camponesas que moravam nas cercanias dos jardins do palácio. A senhora aristocrática que fazia um esboço do bosque devia ser com certeza a própria Maria Antonieta.

Os Céticos

Os céticos — em grande número — ridicularizaram essa história e insistiram que as professoras a inventaram simplesmente para ganhar dinheiro. Tais críticos apontaram de imediato para o fato de que não havia na história detalhe algum que não pudesse ser pesquisado anteriormente. Além do mais, como não existe qualquer menção a uma suposta ponte de madeira cruzando uma pequena vala em nenhum dos registros que documentam o palácio no século XVIII, esse exato aspecto da história mostrava-se incoerente com os fatos conhecidos.

A Prova

Quanto a essa última objeção, contudo, logo depois emergiu uma prova crucial que conferiu credibilidade às significativas lembranças das professoras. Na década de 1920, uma cópia lacrada das plantas originais do palácio foi descoberta em uma chaminé de um prédio antigo em uma cidade vizinha.

Escondidas lá há muito tempo, possivelmente com a intenção de um arquivamento seguro, elas foram privadas da observação humana por mais de um século. Fato intrigante: as plantas do arquiteto faziam referência à ponte de madeira sobre uma vala que as mulheres afirmavam ter atravessado. Naturalmente, as autoras britânicas reclamaram o reconhecimento da autenticidade de sua história e, muito embora tal fato não constituísse uma prova irrefutável de que elas realmente houvessem voltado ao passado, tornou-se muito mais difícil desprezar o incidente.

A despeito de o fenômeno de Versalhes permanecer talvez como o mais famoso exemplo de uma pessoa do século XX que visita o passado, ele não é o único desse gênero.


Fontes: Viagem no Tempo - Versalhes; The Ghosts of Versailles

O Julgamento das Bruxas de Zugarramurdi


Na fronteira com a França, rodeada por um vasto pasto verde onde as vacas pastam calmamente, fica a aldeia de Zugarramurdi. Localizada na região de Navarra de Xareta esta pequena vila tem atualmente apenas 250 habitantes e, apesar de ser conhecida por seus magníficos pinheiros e castanheiras, bem como para a exploração de uma caverna impressionante esculpida pela água, Zugarramurdi deve a sua fama aos eventos tristes e escuros, em sua maioria concluídos pelos seus residentes, no século XVII.

Alguns desses eventos levaram o Tribunal da Inquisição a sentenciar punições para cinquenta pessoas por prática de bruxaria.

Em 1608 os senhores da Urtubi-Alzate e Sant Per pediram ajuda urgente ao rei Henrique IV da França devido a problemas com bruxas no país Labourd. Em seguida, uma mulher de Zugarramurdi disse que sonhou que alguns aldeões participaram de uma reunião na caverna local. Seu sonho fez com que o abade de Urdax fosse procurar auxílio junto ao Tribunal da Santa Inquisição em Logroño, de onde partiu o inquisidor Juan Alvarado Valle para realizar investigações na área.

O inquisidor, depois de ouvir vários comentários e reclamações, indiciou, inicialmente, mais de três centenas de pessoas. Os mais suspeitos, cerca de quarenta dos acusados, foram transferidos para a prisão de Logroño e mais tarde foram julgados no "Processo de Logroño" (um processo que alcançou fama internacional, cruzando as fronteiras espanholas e francesas). Em junho de 1610 o tribunal declarou 29 dos acusados culpados.

Bruxa vestindo um sambenito e chapéu
pontudo, ouvindo o veredicto do inquisidor
- Caprice No. 23 por Francisco de Goya.
No "Auto de Fé", realizada em Logroño, em 7 e 8 de novembro de 1610, dezoito pessoas foram perdoadas porque elas confessaram os seus pecados e um apelo à misericórdia do tribunal, seis outros resistiram e foram queimados vivos. Cinco estatuetas foram queimadas representando mais cinco pessoas, uma vez que já tinham morrido na prisão. Cerca de 30.000 pessoas participaram do Auto de Fé no domingo de 7 de novembro de 1610, muitos dos quais eram da França.

O cortejo começava com uma procissão composta de milhares de pessoas, incluindo: famílias dos acusados, comissários, notários da Inquisição e membros de várias ordens religiosas. Mais para trás na fila havia vinte penitentes carregando uma vela na mão, seis dos quais usavam uma corda em volta do pescoço, o que indicava que eles deviam ser açoitados. Após estes, o “perdoado” andava com um sambenito (uma peça de vestuário semelhante a um escapulário) e um grande chapéu pontudo.

Em seguida, cinco pessoas apareciam carregando as estátuas dos cinco presos que haviam morrido na prisão, acompanhados dos caixões correspondentes contendo seus restos mortais. Seguiam mais quatro mulheres e dois homens, também vestindo sambenito, mas de cor negra, que significava que eles seriam queimados vivos por sua heresia.

E completando a procissão vinham quatro secretários da Inquisição e três inquisidores da corte de Logroño montados em cavalos e um burro carregando o caixão que continha os veredictos.


Fonte: The Zugarramurdi Witch Trials: Welcome to the Spanish Salem

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Cadeia da Vida


A alma de Roberto vagava sem descanso na dimensão dos mortos. Não havia mais dor. A morte fora-lhe um alívio, pois a doença que o consumira durante anos tornara sua vida um verdadeiro inferno.

Roberto não alcançara, entretanto, a paz. Voltava aos lugares que conhecia, procurava os amigos, tentava se comunicar. Não havia como. Do outro lado, vê-se o mundo dos vivos, mas o inverso não ocorre, a não ser em situações muito especiais.

Observando as pessoas morrendo, via o instante do desligamento entre corpo e alma. Novos espíritos, a princípios cegos, juntavam-se a ele. Logo, enxergavam a nova dimensão. Muitos, rapidamente se afastavam, atraídos por uma força maior, outros ficavam perambulando pela vastidão sem fim, como que procurando uma porta de volta ao reino dos vivos. Era o caso de Roberto.

Olhando seus filhos crescerem na sua ausência, chorava com saudades. Sua filha casara-se e ele não a levara pela mão. Agora, ela esperava um filho, o neto que ele nunca teria no colo. Aquelas cenas, como se fosse um cinema contínuo, apesar de alegres, causavam nele melancolia, ao ver inacessíveis seus desejos mais simples.

De repente, Roberto sente dor, como nunca em vida sentira. Sente-se despedaçado e, em desespero, teme que exista morte também para o espírito. É puxado para um turbilhão cósmico e sugado para a escuridão.

Suas lembranças começam a se dissipar e o último som que ouve é um choro de criança, o seu choro. Roberto era agora seu próprio neto, seguindo a cadeia interminável da morte e da vida.


Fonte: "Crônicas de terror de Zé do caixão" - Editora Associação Beneficente e Cultural Zé do Caixão, SP, Brasil, 1993.

A Curva dos Neves


Chovia muito. A família Almeida seguia pela estrada, sinuosa e enlameada. Antônio guiava, preocupado; a mulher e os dois filhos procuravam ajudá-lo, olhando pelos vidros, procurando por alguma indicação. Lá fora a escuridão total, de uma via pouco cuidada, onde o mato cobria as poucas placas que ainda restavam.

Um carro veio buzinando pela outra mão, e fez com que Antônio parasse. Pelas janelas, as duas famílias conversavam. Os Neves, que vinham do outro lado, disseram que uma barreira havia caído, logo depois da curva próxima a eles. Aconselharam a Antônio que desse meia volta e rumasse com sua família até uma cidadezinha próxima, até que a tempestade passasse.

Antônio agradeceu e fez como lhe foi dito. Antes, porém, aproximou-se cautelosamente da curva e observou, apesar da dificuldade de visão, a enorme cratera aberta na pista. Realmente, na velocidade em que se encontrava antes do aviso, talvez não tivesse tido tempo de desviar-se. Poderia ter caído barranco abaixo. Aquela advertência havia salvo a sua vida, e a da sua família.

Ao chegar a cidadezinha sugerida, parou num pequeno hotel, logo na estrada, talvez o único daquele lugar. Encontrou mais duas famílias, esperando por hospedagem naquela noite. Coincidentemente, estavam ali nas mesmas circunstâncias: haviam sido avisados pelos Neves sobre a queda da barreira.

Antônio contou, então, o que vira na estrada, fazendo com que todos se conscientizassem da extensão do perigo que haviam se livrado graças ao aviso em tempo. Outro motorista disse que seguiu atrás do carro que o alertou até a entrada da cidade, perdendo-o de vista, então. Provavelmente aquela gente seria habitante do lugar.

Todos ficaram curiosos, e ao mesmo tempo desejosos de agradecer pessoalmente àquelas pessoas que haviam se dado ao trabalho de parar cada um daqueles carros, sob forte chuva, para alertá-los de um provável acidente.

Como o dono do hotel chegara para atendê-los, perguntaram sobre a família Neves, descrevendo com alguns detalhes o carro em que estavam e a aparência das pessoas dentro dele.

O hoteleiro riu. Só poderiam estar brincando, ele disse. Os Neves realmente haviam morado ali, mas não existiam mais. A família havia morria 5 anos antes, soterrada num desbarrancamento, perto dali, numa noite de chuva como aquela.


Fonte: "Crônicas de terror de Zé do caixão" - Editora Associação Beneficente e Cultural Zé do Caixão, SP, Brasil, 1993.

O Político


Ele era um político de sucesso. Sua energia e disposição fizera com que, cargo a cargo, atingisse tal poder que decidia sobre destinos como se escolhesse a cor da camisa que usaria.

Na sua subida, corrompeu-se de tal forma que já não recusava qualquer trato. Desviava verbas, favorecia hipócritas e demagogos, cercava-se de abutres. O poder o cegava.

Afinal, havia chegado o dia de realizar o negócio de sua vida. Havia tanto envolvido, que sua força seria inigualável. Poderia comprar tudo e todos, nada mais o deteria. Chegaria ao topo, nada mais poderia detê-lo.

Havia escondido de todos aquele negócio. Não poderia confiar tamanho segredo a ninguém. Foi, então, sozinho, ao encontro decisivo. Estranho encontro aquele, à noite, num cemitério. Mas como ele mesmo dizia, as paredes tinham ouvidos. Seus parceiros tinham razão.

Não encontrou, porém, as pessoas que esperava.

Logo, corpos, cadáveres, zumbis, o rodeavam. E um deles falou, até onde permitia a boca, já carcomida pelos vermes.

Aquela gente havia morrido de fome, pela comida que não viera, morrido de frio, pelo agasalho trocado por ouro. Havia morrido por doenças que simples remédios curariam.

De todas aquelas mortes ele era acusado.

O político então notou, em cima de uma tumba, uma urna. Seria uma eleição onde os mortos votariam o seu destino. A última eleição.


Fonte: "Crônicas de terror de Zé do caixão" - Editora Associação Beneficente e Cultural Zé do Caixão, SP, Brasil, 1993.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O Compromisso


A paixão que existia entre Carla e Armando era tanta que os amantes não mais se contentavam em jurar amor apenas por toda vida. Prometiam fidelidade para além da morte. Se um deles morresse, viria buscar o outro, para ficarem juntos pela eternidade.

O destino quis que Armando se fosse primeiro. Uma doença rara, em poucos meses, acabara com sua vida.

A princípio, Carla pensou em suicídio, mas logo percebeu que seu amor pela vida era ainda maior que sua dedicação pelo marido.

A promessa feita, contudo, não a deixava em paz. Passou a ouvir ruídos, distinguir passos. Tinha pesadelos com o cadáver do ex-marido perseguindo-a, puxando-a para debaixo da terra.

Uma noite, despertou sentindo um hálito quente na nuca, uma língua áspera a lamber-lhe o rosto. Gritou o mais alto que seus pulmões permitiam. O gato, seu bichinho de estimação, pulou da cama, saindo correndo do quarto. Fora apenas um susto.

Carla percebeu então, que seus nervos estavam, realmente, em estado deplorável. Não poderia mais ficar sozinha naquela casa, em que cada objeto parecia lembrar-lhe as juras feitas. Arrumou rapidamente uma pequena mala, decidida a voltar, pelo menos por um tempo, para a casa dos pais.

Retirou o carro da garagem, acelerou fundo e partiu. Repentinamente, sentiu um forte puxão no seu braço. Não conseguiu mais controlar o carro, que se despedaçou contra uma árvore, numa curva que conhecia muito.

Morrendo percebeu que, sob aquela árvore, ela e Armando haviam trocado seu primeiro beijo.


Fonte: "Crônicas de terror de Zé do caixão" - Editora Associação Beneficente e Cultural Zé do Caixão, SP, Brasil, 1993.

O Engano


Cíntia andava rapidamente. Já ia entardecendo e não havia sinal de pessoas as quais pudesse pedir por socorro. Ouvia o barulho das folhas secas sendo pisadas, como se estivesse sendo seguida. Receosa, começa a correr, ao que os passos também se apressam. O pânico toma conta da moça, que corre desorientada.

À sua frente, surgindo de trás de uma árvore, um homem. Assemelhava-se a um zumbi, a pele escura e enrugada, os olhos sem vida, um verdadeiro cadáver ambulante. Ela retorna, em fuga, mas de todas as direções aquelas figuras vão aparecendo, cercando-a. Parecia um filme de terror, como dezenas que já havia assistido. Os mortos se levantavam e iriam levá-la.

Paralisada, Cíntia olha aqueles seres que se aproximam. As roupas em retalhos, lábios, orelhas e narizes meio comidos pelos vermes. Pedaços de carne pendurados àqueles corpos, imensas crateras nos rostos, eles a queriam.

Apontam para ela, mas, estranhamente, não pareciam inamistosos. Mantêm distância, como que respeitando seu pavor. Ela percebe, então, que eles têm algo a dizer.

Somente então ela percebe. Há sangue em sua roupa.

Tomada por repentina consciência, leva as mãos à cabeça: seu crânio, estourado, deixava escapar um líquido viscoso, que vazava do seu cérebro. Ela havia sofrido um acidente, seu carro caíra num barranco.

Aqueles cadáveres não iriam fazer-lhe mal. Ao contrário, davam-lhe as boas-vindas ao reino dos mortos.


Fonte: "Crônicas de terror de Zé do caixão" - Editora Associação Beneficiente e Cultural Zé do Caixão, SP, Brasil, 1993.

A Iniciação da Bruxa

Ensayos - Los Caprichos, 1799 - Goya
O antropólogo espanhol Carmelo Lisón Tolosana cita o caso das "Bruxas de Zugarramurdi" como um exemplo para explicar a iniciação à bruxaria, seguindo a relação do processo inquisitorial publicado em Logroño no início de 1611, poucos meses depois de se realizar o auto de fé em que seis bruxas e bruxos foram queimados vivos.

De acordo com esta relação, a iniciação à bruxaria começava cedo. As bruxas-mestras, à noite, retiravam de suas camas crianças com menos de cinco anos enquanto seus pais dormiam, e as levavam voando para o Sabbath. Se elas contassem aos pais ou a alguém desses passeios noturnos, seriam espancadas por essas "tias" malignas.

Uma das tarefas dessas crianças, entre outras, era cuidar dos sapos pelos quais as bruxas obtinham unguentos ou pomadas que as faziam voar. A princípio, não eram obrigadas a abjurar de sua fé, porque ainda pequenas eram simplesmente apresentadas ao demônio, mas quando completavam seis anos de idade as bruxas-mestras as convenciam a renunciar Cristo através de guloseimas e promessas de coisas fantásticas.

A cerimônia de apostasia começava duas horas antes do Sabbath, quando a bruxa-mestra despertava o novato (a) o untando com um líquido fedorento verde-escuro — obtido de sapos — mãos, plantas dos pés, seios, cada uma das partes laterais e da frente da cabeça, proeminências, orelhas e partes pudendas do corpo, transportando seu corpo pelo ar.

Depois desse ritual é conduzido à reunião, onde diabo já o aguarda sentado em seu trono com uma aparência entre homem e bode, olhos enormes e assustadores, mãos como garras de aves de rapina, coroa com chifres pequenos e um grande chifre que saí de sua frente iluminando a reunião de bruxos e bruxas — a quem a bruxa-mestra apresenta a seu discípulo com as palavras: "Senhor, este eu trago e apresento".

Em seguida, o menino ou a menina ajoelhada ainda repete a renúncia (abjuração) pronunciada pelo diabo. "Negar a Deus, a Virgem Maria, Todos os Santos, batismo e confirmação, de ambas as crismas, de seus padrinhos e pais, da fé e de todos os cristãos”.

Depois de aceitar como seu novo deus e mestre Satanás, — que lhe levará ao paraíso — a nova bruxa ou bruxo faz seu primeiro ato de adoração ritual, beijando-lhe a mão esquerda, depois sua boca, seios, sobre o coração e nas partes íntimas; então o diabo se volta para o seu lado esquerdo, levanta a sua cauda que é igual à dos asnos, descobrindo assim seu imundo traseiro e o oferece para o discípulo (a) beijar.

Ósculo infame de uma bruxa no diabo - Compendium maleficarum, 1608

Satisfeito por esse ósculo infame, o novo senhor faz uma marca com uma unha da mão esquerda em algum lugar do corpo da nova bruxa, um sinal durará para sempre e que irá causar dor pelo menos um mês. Também marca a menina dos olhos deixando impressa a figura de um sapo, um sinal de que lhe servirá para conhecer outros membros da seita. Em seguida, é enviado para se divertir e dançar com outros bruxos (as) jovens ao som de pandeiro e flauta.

Mas eles ainda não são totalmente bruxos ou bruxas. Com os novos poderes que ganharam são obrigados a executar o mal, liderados por suas bruxas-professoras. Só com o passar do tempo é que recebem a “dignidade” de poder fazer poções ou venenos mediantes à bênção com a mão esquerda que lhes faz o diabo na reunião em que participam.

Em seguida, ele lhes entrega os sapos vestidos que deu às suas professoras quando renegaram a Cristo e, a partir de então, já podem obter destes o líquido fedorento com que hão de se untar para poderem voar, produzir poções ou venenos para matar pessoas e animais, destruir culturas e frutas.

A partir de agora eles não vão mais precisar de padrinhos ou professores, irão sozinhos às reuniões noturnas e poderão ser admitidos aos maiores segredos e maldades. Já são magos ou bruxas, membros de pleno direito da seita, desfrutando de interação direta, pessoal e mútua com seu deus e senhor.


Fonte: eanswers - Bruja

sábado, 12 de dezembro de 2015

As Catacumbas de Palermo


As Catacumbas de Palermo, Itália, construídas em 1621 e situadas na Piazza Capuccini, exploradas e de propriedade dos Padres Capuchinhos, são mundialmente conhecidas como «As Catacumbas dos Capuchinhos».

Nessas catacumbas estão depositados corpos de monges datados desde 1599.

Estes monges morreram e não foram enterrados, ou seja, você pode ver seus corpos através de diversas salas.


Por alguma explicação física (talvez a falta de humidade), os corpos não se decompuseram, e as roupas continuaram intactas.

Este cemitério tem uma lotação de 8.000 hóspedes, a maioria mumificados (por diversos métodos, como o do banho em arsênico ou banho em leite quente), alguns de pé (erguidos com arames) ou em caixões e pode-se ver ainda o que resta dos cabelos, as roupas intactas, etc.

As catacumbas são divididas por alas: Irmãos Capuchinhos, Homens, Mulheres, Homens de Profissão Liberal, Padres e Crianças.

As mulheres eram subdivididas e discriminadas em casadas, virgens e solteiras, estas últimas gentilmente assinaladas com uma coroa de metal.

Das várias crianças existentes, a relíquia emblemática é a pequena Rosália Lombardo (figura ao lado) que faleceu aos 2 anos e foi embalsamada pelo próprio pai, que por sua vez nunca revelou o segredo desta mumificação.

Existe música nas catacumbas com inspiração em 1777, de Ippolito Pindemonte no canto «I Seplocri», o que lhe valeu o nome afixado numa rua de Palermo.



Fonte: portugalparanormal.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Queen Mary e seus fantasmas



O transatlântico Queen Mary navegou o Oceano Atlântico Norte de 1936 à 1967 e em 2 de outubro de 1942, em plena Segunda Guerra, acidentalmente, afundou um de seus navios de escolta, cortando o casco do Cruzador HMS Curacoa ao largo da costa irlandesa com uma perda de 239 vidas.

O Queen Mary levava milhares de americanos para se juntarem as forças aliadas na Europa. Devido aos riscos de ataque de submarinos, estava sob as ordens de não parar em qualquer circunstância.

Em dezembro de 1942, transportava mais 16.000 soldados norte-americanos de Nova Iorque para a Grã-Bretanha. Durante esta viagem, foi subitamente atingido por uma onda gigantesca que pode ter atingido uma altura de 28 metros. Dr. Norval Carter, a bordo na época, escreveu que em dado ponto "o maldito virou ... em um momento, o deck estava no auge de costume, e em seguida, swoon! ". Calculou-se mais tarde que o navio rolou 52 graus, e se teria virado mais 3 graus.

Esse incidente inspirou Paul Gallico a escrever sua história, "The Poseidon Adventure", que mais tarde foi transformado em um filme com o mesmo nome, no qual o SS Poseidon é virado de cabeça para baixo e a história segue com os passageiros tentando escapar.

O Queen Mary foi adquirido pela cidade de Long Beach, Califórnia, em 1967, e transformado em um hotel. Aí começam as aparições.

A área mais assombrada do navio é a casa de máquinas, onde um marinheiro de 17 anos foi esmagado até a morte tentando escapar de um incêndio. Batidas e pancadas nos canos ao redor da porta já foram ouvidas e gravadas por várias pessoas. No que é conhecido como a área da recepção do hotel, visitantes têm visto o fantasma de uma “dama de branco”. Fantasmas de crianças são ditos que assombram a área ao redor da piscina.

Alguns visitantes recentes afirmam terem ouvido até mesmo o choque do navio, e gemidos dos espíritos inquietos. Os hóspedes ao saírem de suas cabines, escutaram gemidos e foram procurar de onde saia, então descobriram que não havia lugar para caminhar até o local de onde vinha o som. Outros hóspedes, de repente despertaram no meio da noite, e viram ao pé de suas camas, uma menina (descrita por vária pessoas como sendo a mesma) olhando eles dormirem e desaparecendo alguns segundos após.

Os visitantes têm observado várias vezes durante o mesmo dia, o mesmo personagem que aparece e desaparece em várias partes do barco. Há fatos, de ectoplasmas vestindo roupas do passado, blazers de Gatsby e de maravilhosos vestidos estilo Greta Garbo.

Uma mulher, visitante deste navio foi internada, após cair e se levantar como se fosse uma outra pessoa, durante alguns minutos, como se um espírito tivesse tomado posse dela. Sombras fugazes fantasmas, odores fortes de cigarros assombram quartos e corredores do navio, já tendo recebido visita de vários especialistas do paranormal.

Mais de uma dúzia de aparições já foram gravadas a bordo deste transatlântico de luxo.


Fontes: Sobrenatural.org; Wikipédia.

Destinos assustadores: Charles Bridge


Praga, República Checa

Dizem ser assombrada por dez senhores decapitados que perambulam a ponte à noite. A história da ponte é macabra: existem 27 estátuas ao longo da ponte, estátuas de líderes Checos, hoje santos. Elas foram construídas no local exato onde esses líderes foram executados brutalmente por Jan Mydlar: 24 decapitações e 3 enforcamentos.

Um dos locais mais famosos de Praga, Charles Bridge é normalmente a primeira parada para muitos visitantes. A ponte está alinhada com as estátuas de pedra dos santos, dando aos visitantes a sensação de que eles estão sendo observados enquanto fazem seu caminho para o outro lado. No entanto, a lenda que um desses santos não foi morto exatamente no momento em que foi transformada em uma estátua.

O conto diz que no século 14, São João Nepomuceno tinha acabado de tomar a confissão da rainha Joana, esposa do rei Venceslau IV. Quando o santo se recusou a dizer ao rei, precisamente o que foi confessado, o rei mandou o padre ser torturado antes de ser jogado fora da ponte e deixado para morrer. Seu fantasma andou a ponte por 300 anos, até o século 17, quando foi congelado e colocado em forma de estátua.

Se você tocar a estátua poderá manter qualquer segredo seguro e garantido que ele não será descoberto por ninguém. Apesar de São João já não assombrar a ponte, não é aconselhável para cruzar a área da meia-noite.

Isto é quando os fantasmas dos dez senhores, executados na Idade Média, aparecem cantando canções tristes, com a intenção de assustar alguém atravessando a ponte durante a hora das bruxas.

A lenda também diz que essa ponte jamais cairá, porque à sua argamassa foram incorporados ovos e vinho.


Fonte: Portugal paranormal; 10 destinos assustadores

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Destinos assustadores: Bram Castle



Brasov, Romênia.

Antiga casa de Vlad, o Empalador, que serviu de inspiração do Drácula de Bram Stoker.

Foi nesta cidade que Vlad Tepes – nascido na Transilvânia em 1431 e morto numa batalha contra os Turcos Otomanos em 1476 – cometeu algumas das maiores atrocidades já vistas pelo homem, inspirando o romance Drácula de Bram Stoker, escrito em 1877.

Vlad III herdou o apelido de seu pai, Vlad II: guerreiro da Ordem do Dragão, símbolo de seu principado e destinada à defender o cristianismo e o Império da ameaça dos Otomanos. Em romeno “drac” significa dragão e “ulea”, filho de; assim, Vlad II foi chamado de Vlad Drácula, ou seja, “o filho do Dragão”. A palavra “drac” também pode significar demônio.

Conta-se que em 1461, Mehmet II do Império Otomano, homem reputado por sua coragem, desistiu de invadir a Transilvânia diante da horrenda visão e fétido odor da floresta de 20.000 prisioneiros turcos empalados na entrada da cidade de Torgoviste. Mas este não foi seu recorde, no dia de São Bartolomeu de 1459, Vlad ordenara o empalamento de trinta mil pessoas.

Para efetuar o processo de empalamento, Vlad prendia as pernas da vítima em um cavalo enquanto uma estaca afiada era introduzida lentamente no corpo do torturado. A ponta da estaca era mergulhada em óleo, mas mantinha-se o cuidado especial de não a deixar excessivamente afiada para não causar a morte imediata da vítima. Normalmente a estaca era inserida no ânus até sair pela boca, entretanto, muitas vezes, as vítimas eram empaladas através de outros orifícios corporais, abdômen, peito...; mãe e filhos eram empalados em uma mesma estaca, incialmente atravessada pelo peito da mãe. Todos os corpos eram deixados no local para apodrecer a olhos nus.

O empalamento logicamente não era seu único método de tortura física, psicológica e política. Despelamento, mutilamento de membros e genitais tanto masculinos quanto femininos; estrangulamento, cortes, queimaduras, decepamento de narizes, orelhas, olhos.


Fontes: Wikipédia; 10 destinos assustadores

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Angéle de la Barthe


Angéle de la Barthe foi julgada por bruxaria e condenada à morte pela Inquisição em 1275. Ela tem sido popularmente retratada como a primeira pessoa a ser condenado à morte por feitiçaria herética durante as perseguições de bruxas medievais.

Nascida por volta de 1230, uma nobre de Toulouse, França, Angéle era uma adepta do catarismo, uma seita gnóstica cristã considerada herética pela Igreja Católica. Ela teria sido acusada em 1275 pelo Inquisidor Hugo de Beniols de ter relações sexuais com o Diabo (ou com um incubus) e dar à luz a um monstro carnívoro com uma cabeça de lobo e cauda de serpente, cujo único alimento consistia em bebês e crianças pequenas.

De la Barthe foi acusada de ter sequestrado e assassinado estas crianças ou de ter retirado os corpos delas de suas sepulturas. Foi considerada também responsável pelo desaparecimento de muitas crianças ao longo dos dois anos anteriores. Sob tortura, ela confessou ter tido relações sexuais com Satanás e ter alimentado a criatura durante dois anos, antes que o próprio fugisse no meio da noite.

Considerada culpada, foi queimada viva na Praça Saint Stephen, em Toulouse.

Estudiosos contemporâneos têm dúvidas sobre a veracidade da história de Angéle de la Barthe, pois não há menção de seu julgamento nos registros de Toulouse da época. Além disso, em 1275, a bruxaria ainda não era considerada um crime. Em última análise, a crônica do século XV a partir do qual a história dela deriva é considerada ficcional.


Fontes: This is a Witch; Nas mãos da Lua; Wikipédia.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Agnes Sampson

Agnes Sampson e suas amigas bruxas dando bebês para o Diabo.

Agnes Sampson (? - 1591 D. C) foi uma senhora idosa, respeitada parteira e curandeira de North Berwik, Escócia, acusada de se reunir com "outras bruxas" na noite de Halloween em 1590 e lançar um feitiço sobre a "Mãe Natureza" que levou a uma tempestade que quase afundou o navio em que o rei James VI estava navegando.

Sampson foi levada até o rei James e um conselho de nobres. Ela negou todas as acusações, mas depois de ser torturada horrivelmente, finalmente confessou.

Ela estava presa à parede de sua cela por um freio de bruxa - um instrumento de ferro com pontas afiadas que forçava para dentro da boca, de modo que dois dentes pressionavam a língua, e os dois outros iam contra as bochechas.

Foi mantida sem dormir, lançada com uma corda em volta de sua cabeça, e só depois destas provações confessou cinquenta e três acusações contra ela, entre elas a de ser aliada de Satanás e de conspirar para afogar o rei.

Após sua confissão, foi estrangulada até a morte e depois queimada.

Ela foi a primeira de um número estimado de 70 bruxas de North Berwick a serem mortas no reinado do rei James. De acordo com TC Smout, entre 3.000 e 4.000 bruxas foram acusadas e executadas na Escócia nos anos 1560-1707.


Fontes: 10 ‘Witches’ Who Were Famously Killed For Their Alleged Crimes; Wikipédia.

O Retrato de Antonietta Gonsalvus


De autoria da pintora italiana Lavinia Fontana (1552-1614), esta tela é de 1577 e diz respeito a uma pessoa real quando tinha 12 anos. Antonietta Gonsalvus, eternizada como Tognina, tal como seu pai, Petrus Gonsalvus (figura abaixo), seu irmão e suas irmãs, sofria de uma doença rara, a hipertricose (hypertrichosis univerversalis congênita), também conhecida por síndrome do lobisomem.

O manuscrito que Antonietta segura com as duas mãos resume a sua história: “Don Pietro, homem selvagem descoberto nas Ilhas Canárias, foi conduzido a sua Alteza Sereníssima D. Henrique, rei da França, e de lá para sua Excelência o Duque de Parma. Dele descendo eu, Antonietta, e posso ser encontrada junto da corte da senhora Isabella Pallavicina, honorável Marquesa de Soragna”.

Muito se falou da doença rara de sua família. Desenhos dela estão em Praga porque o imperador de lá tinha um livro de curiosidades. Médicos e antropólogos a estudaram minuciosamente. A igreja, que considerava o rosto como a capela sagrada do corpo, não a entendia e aceitava. A sorte da família é que Francisco, já santo há mais de 100 anos, havia incluído o animal ao reino de Deus.

Outra curiosidade sobre esta obra (lembre-se, a tela tem 500 anos): foi pintada por uma mulher, filha do dono da oficina de pintura que atendia a casa nobre que fez a encomenda da tela. Acredite... Pintoras no século XVI eram tão raras quanto mulheres lobo. Ah... Tognina cresceu, casou e teve filhos... todos parecidos com ela.


Fontes: Rui Gonçalves Piranda; Monstros: Milagres da natureza ou pecado dos homens?.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Circo



O seu frágil corpo de cinco anos era insuficiente para conter toda a ansiedade que o seu espírito produzia. Os seus pais iam levá-lo ao circo, ia finalmente ver ao vivo os palhaços, criaturas que tanto o animavam à distância da televisão. As suas gargalhadas pueris, sempre que confrontado com aquele tipo de entretenimento, tinham já cativado a atenção dos progenitores e a chegada do circo à cidade dar-lhe-ia a alegre recompensa.

O pequeno Pedro, na sua inocente matemática, contava os dias que faltavam para o grandioso evento. Cada dia que passava era uma batalha ganha.

Chegou finalmente o ansiado dia. Assim que os seus olhos alcançaram a enorme tenda, o seu rosto iluminou-se com a forma de um sincero e rasga do riso. As luzes, os ruídos, os cheiros e a emoção tomavam conta dos seus sentidos. O espetáculo começou com elegantes camelos a exibir um bailado de habilidades. Em seguida, um mágico manipulava a percepção do público com a ajuda de duas esguias assistentes. Mas não era disto que ele estava à espera e durante a atuação dos acrobatas conseguiu que o seu pai permitisse que ele se afastasse para junto da entrada da tenda. Tinha a sua fuga planejada e pronta a ser concretizada. Queria ver os palhaços e não conseguia esperar. Tinha de procurá-los. No curto espaço de tempo de uma corrida para fora da tenda, viu um palhaço entrando em um trailer. Estava encontrada a sua direção. Correu ofegante. Ao chegar junto da entreaberta porta viu, finalmente, os palhaços a uma distância próxima. Ficou eufórico, mas silencioso. Os palhaços estavam em círculo e iluminados por várias velas com pequenos paus de fumo em redor. Um dos palhaços proferia palavras que a compreensão de Pedro não alcançava. No centro daquela roda, um outro palhaço, amarrado a uma tábua de madeira vertical e com os olhos vendados e uma colorida fita em volta da sua boca, debatia-se numa tentativa de libertação. O ambiente era sinistro, mas para Pedro tudo era cor e animação. De súbito, um dos palhaços percebeu o olhar do intruso e com uma voz rude ordenou-lhe que saísse dali. Pedro tremeu de horror. A fonte da sua alegria acabava de o assustar. Ouviu o pai chamá-lo da entrada da tenda e correu para os seus braços. Assistiu em silêncio ao resto do espetáculo e quando chegou a atuação dos palhaços viu-os atirar tartes, água e outras provocações ao palhaço amarrado. Soltou algumas gargalhadas, mas a intimidação não deixou que fossem tão explosivas como seria de esperar. Nunca mais olharia para os palhaços da mesma forma.

Vinte anos mais tarde, Pedro, um saltimbanco de profissões, vivia sozinho no barato e minúsculo apartamento que ia conseguindo pagar. Os seus amigos, que gostavam bastante dele, lhe organizaram uma festa surpresa pelo seu vigésimo quinto aniversário. Foi um belo jantar repleto de esperanças partilhadas, recordações de histórias passadas e algum vinho à mistura. Ana, a sua amiga de longa data, ofereceu-lhe um bilhete para um espetáculo de circo, pois recentemente ele havia comentado com ela que a única vez que assistira a este tipo de espetáculo fora aos cinco anos. Ele agradeceu o presente, mas durante alguns segundos, enquanto olhava o bilhete, não conseguiu evitar um calafrio que o remeteu para os sinistros seres pintados.

Uma semana passada desde o evento de aniversário e chegou o dia da sua ida ao circo. Iria sozinho e iria divertir-se. O espetáculo começou e ele deu por si a adorar todas as atuações que se apresentavam. Sentiu-se novamente criança e desejou a entrada dos palhaços. Os palhaços entraram em cena. Ele viu a expressão de alegria que as crianças tinham ao vê-los entrar. Não conseguiu evitar um nostálgico sorriso, mas este foi quebrado de imediato pelo olhar do reconhecível palhaço que lhe falara há vinte anos. O palhaço parecia reconhecê-lo e ele sentiu um sarcasmo visual transmitido por aquele rosto pintado. A atuação era exatamente igual à que ele vira no passado, onde um palhaço amarrado era vítima das peripécias dos outros. Pedro abandonou o recinto antes do final, carregando consigo a tenebrosa imagem daquele palhaço, que durante o espetáculo insistia em olhá-lo fixamente e lhe transmitia uma química de intimidação. Era altura de esquecer o sucedido e voltar ao seu afastamento de palhaços.

Dois dias depois, quando regressava a casa após um convívio com alguns amigos, ao conduzir pela estrada que atravessava uma pequena porção de floresta existente na cidade, viu alguém pedir carona à beira da estrada. Sentiu-se um pouco intimidado, pois a noite já havia nascido e poucos eram os pontos de iluminação naquela estrada. No entanto, a eventualidade de ser alguém que necessitasse de ajuda não o fez recuar. Se houvesse algum perigo, ele podia sempre acelerar e avisar a polícia. Quando se encontrou a aproximadamente cinquenta metros de distância do transeunte reconheceu a figura. Era o palhaço que o encarara no circo. Em choque, virou abruptamente para trás e arrancou a grande velocidade. Chegou a casa com o coração prestes a explodir. Questionou a sua sanidade mental. Teria confundido uma qualquer pessoa com a assombração daquele palhaço? Era melhor tentar dormir e esquecer o episódio. O sono demorou a chegar, mas conseguiu finalmente adormecer. A meio da noite foi acordado pelo som de maxilares a roer algo, num hipnotizante mastigar. Julgou estar a sonhar, mas esticou-se para acender o candeeiro junto da sua cama. Foi então horrorizado pela presença do palhaço, em pé, no canto do seu quarto a comer uma maçã. Com o impacto desta visão desligou o candeeiro e voltou a ligá-lo. Sentiu um enorme alívio ao perceber que não existia palhaço algum e tudo fora fruto da sua fértil imaginação. O seu cérebro pregava-lhe partidas. Os pesadelos brincam com a mente das pessoas. Todavia, não conseguiu pregar olho durante o resto da noite. Estava atormentado por aquela ida ao circo. Decidiu que voltaria ao circo, não para assistir ao espetáculo, mas sim para tentar saber algo mais acerca daqueles palhaços e, quem sabe, falar com eles e tranquilizar o seu pesadelo. Ao acordar, sentiu o alívio da luz do Sol. Respirou fundo e eis que, para terrível espanto, encontrou um caroço de maçã no chão do seu quarto. Não tinha por hábito comer no quarto e a última pessoa que vira a roer uma maçã fora o fantasma do palhaço. O seu corpo tremia descontroladamente.

Carregou a sua insônia para o acampamento circense e abordou a primeira pessoa que viu, a qual, por sinal, era o dono da companhia. Ao inquiri-lo quanto ao espetáculo dos palhaços, a resposta que recebeu foi assustadora. O dono do circo afirmou que já há vários anos que não usava palhaços, pois uma certa ocorrência, que ele não quis descrever, fez com que optasse pela não inclusão de palhaços. Pedro lhe narrou o espetáculo a que assistira dias antes, mas o dono confirmou não existir algo do gênero na sua companhia. Para acalmar a inquietação que percebeu em Pedro, ofereceu-lhe um bilhete para o espetáculo do dia seguinte. O confuso Pedro aceitou o bilhete e sem qualquer coerência nos seus pensamentos regressou a casa. O medo acompanhou-o. Todo o dia seguinte foi de receosa excitação. Qualquer som o deixava alerta, qualquer imagem colorida lhe lembrava o universo dos palhaços.

Decidiu chegar ao circo após o espetáculo ter começado, pois assim não apanharia a azáfama da entrada dos outros espectadores e teria mais segurança para efetuar as suas pesquisas, quando todos estivessem concentrados no decorrer do evento. Começou por, cautelosamente, procurar algum trailer que pudesse ser a dos palhaços. Se por um lado desejava encontrá-la, para confirmar que não estava doido, por outro lado preferia que não existisse qualquer indício de palhaços naquele circo e que tudo aquilo fosse uma passageira artimanha da sua mente. Pouco demorou a encontrar resposta. Encontrou uma porta entreaberta e reconheceu-a. Aproximou-se e sentiu um arrepio na espinha. Em círculo, um grupo de palhaços, rodeados por velas num chão coberto de símbolos ritualistas, efetuavam uma estranha cerimônia. No centro, alguém vestido também de palhaço agonizava e tentava libertar-se das cordas que o prendiam. Uma caveira, sarcasticamente pintada como o rosto de um palhaço, estava aos seus pés. Subitamente, um dos palhaços que atacavam virou-se para Pedro e soltou uma gargalhada. Pedro ficou petrificado e foi de imediato agarrado pelos restantes.

O palhaço da gargalhada disse-lhe:

— Bem-vindo! Pedro foi amarrado e amordaçado. Tentou, em vão, soltar-se. O palhaço que antes ocupava o seu lugar pintava-o e ria de satisfação. Pedro perdeu a noção do tempo e sentiu os seus sentidos desfalecerem. Minutos depois ouviu uma multidão de risos e aplausos, enquanto os palhaços dançavam em seu redor. Começou a ser atacado e a sua involuntária prisão não era percebida pelos espectadores.

Nunca mais alguém soube do paradeiro de Pedro. Alguns amigos dizem que andava inquieto na altura do seu aniversário e, eventualmente, terá decidido viajar sem avisar. Outros dizem que seguiu o seu velho sonho de infância e se juntou a uma companhia de circo. Deixou tudo para trás, incluindo os medicamentos que tomava desde a infância e de que tanto precisa para a sua sanidade.

Por Emanuel R. Marques


Fonte: http://www.fabricadeebooks.com.br/ebooks/contos_de_terror

domingo, 22 de novembro de 2015

Os guerreiros azuis

Ilustração de John White ( 1585-1593 ): Guerreiro picto que segura uma cabeça humana.

Os pictos eram antigos habitantes da Escócia que estabeleceram seu próprio reino e lutaram contra os romanos na Britânia. Fontes romanas afirmam que os pictos teriam um poderoso reino com centro em Strathmore. Tiveram que enfrentar o advento de outros povos à Grã-Bretanha, entre eles os anglos da Úmbria do Norte; e os escotos procedentes da Irlanda, que formaram um reino na Dalriada.

As invasões nórdicas nos século VIII e IX parecem ter levado os pictos e escotos a se unirem, pois, em 843, Kenneth I MacAlpin, antes rei dos escotos, tornou-se também rei dos pictos. A partir de então, toda a Escócia reconhecia um só rei. Eles venceram os vikings e os anglo-saxões e criaram a Escócia.

Segundo um estudo efetuado pelo geneticista Bryan Sykes, os pictos seriam originários da península Ibérica.

Os pictos como povo constituem um enigma. Alguns especialistas defendem que seriam uma tribo celta, outros, por outro lado, crêem tratar-se de um povo mais antigo. Os escritores romanos sempre os distinguiram dos celtas da Escócia, surpreendendo-se pela sua ferocidade e o hábito barbárico de se pintarem ou tatuarem. Até o nome "pictos" não ajuda, na medida em que deriva da palavra latina picti, que significa simplesmente "pintados" - uma referência às suas pinturas ou tatuagens de guerra. O nome que os pictos davam a si mesmo perdeu-se.

As descrições dos pictos traçam um retrato de um povo pequeno, robusto mas delgado, pele amarelecida, de todo diferentes dos gauleses, cuja pele mais clara, altura e constituição impressionavam os escritores romanos.

O folclore escocês fala dos "pechs". Ao longo dos séculos estes foram tornando-se numa raça mágica de fadas e duendes, mas muitos especialistas crêem que se trata duma "memória popular" dos pictos, o que indica que seriam vistos pelos celtas da Escócia como uma raça separada e não apenas uma tribo separada. A juntar com as diferenças físicas, parece que os pictos poderiam ser os últimos vestígios da população pré-celtica da Grã-Bretanha, mas não há certeza.


Fonte: Wikipédia.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Os demônios das dores de dentes


O medo de dentista é um fenômeno conhecido há centenas de anos. As primeiras crônicas remontam à Idade Média, quando o imaginário popular relegava ao “Tiradentes” um papel inferior e mais ambíguo que o de seus “colegas” médicos. Ele era na maioria das vezes um ambulante: em companhia de ilusionistas, malabaristas e músicos, percorria feiras e mercados, de cidade em cidade, exibindo-se em palcos. Desse modo o público podia admirar a maestria do exercício de sua especialidade. De fato, naquele tempo, havia motivos reais para ter medo do dentista.

As dores de dentes eram atribuídas a três causas principais: demônios dentais, vermes dentais e alterações nos humores (desequilíbrios dos fluídos corporais).  Desta forma, a Odontologia seria mais bem praticada por sacerdotes e com o uso de orações.

Uma explicação sobre as dores de dentes está escrita numa tábua — uma precursora do Ipad? — Encontrada em Nínive, a capital do reino da Assíria, na margem esquerda do rio Tibre, na antiga Mesopotâmia. Nínive, cujo nome significava "bela", encontra-se próxima da atual cidade de Mossul, no norte do Iraque. Na Bíblia conta-se que, Jonas, após voltar do estômago do “peixe grande” que o havia engolido, é enviado a Nínive para converter o seu povo e, assim evitar a sua destruição (Jonas, 3, 1-10).

Voltemos à tábua de Nínive. É conhecida como “A Lenda do Verme Dental” e foi provavelmente uma cópia de um registro chinês mais antigo que falava da mesma causa para o problema. Um texto sumeriano de 5000 anos antes de Cristo descrevia um verme dental como causa das cáries. Há evidências que esta crença também estava nas culturas da Índia, Egito e Japão. Tal pensamento somente foi derrubado, em 1728, por Pierre Fauchard o pai da Odontologia Moderna.

O Nei Ching chinês classificava nove tipos de dores de origem dental que incluíam as dores devido às infecções e cáries. O tratamento chinês antigo para estes problemas era principalmente com drogas: romã, acônito, ginseng, alho, ruibarbo e arsênico. Palitos dentais e substâncias para limpeza eram usados e dentes com mobilidade eram fixados com amarras feitas com bambu. As coberturas com ouro tinham mais efeito estético que protetoras ou protéticas.

O primeiro dentista exclusivo parece ter sido o egípcio Hesi-Re, circa 3000 a.C.   Na sua câmara mortuária estava escrito “o maior entre aqueles que tratavam dos dentes”. Os achados mortuários egípcios mais antigos evidenciam que ocorriam grandes desgastes dentais que chegavam a expor a polpa dental, mas poucas cavidades cariosas. Algumas múmias humanas não tão antigas (ou pré-históricas) mostravam uma história pregressa de infecções, abscessos e cáries. As terapêuticas medicamentosas tentavam eliminar os ”vermes dentais”.

Na época em que Moisés liderava o êxodo dos judeus do Egito, circa 1500 a.C, os egípcios já faziam próteses substituindo dentes com peças semelhantes amarradas aos dentes ainda presentes com fios de ouro.

O papiro de Ebers, da mesma época acima, revelava conhecimentos médicos e odontológicos datados de circa 3000 a.C. Dois dos remédios citados, entre outros 700, eram incenso e mirra referidos entre os presentes que os sábios (ou magos) levaram para Jesus.

O Código de Hamurabi (circa 1900 a.C.) mostra que, em 2500 a.C., a profissão médica (incluindo a odontológica) foi regulamentada pelo governo central. A profissão tinha prestígio considerável e os honorários foram regulamentados pelo governo  baseados na posição social e econômica do paciente.

Sanções foram estabelecidas para negligências profissionais ou tratamentos sem sucesso. A pena final não era a morte, mas a remoção da mão do médico. O código não contém os detalhes do diagnóstico médico e correspondente tratamento. Os cirurgiões, que eram somente médicos estavam mais sujeitos a essas punições. O mesmo não acontecia com os médicos que tratavam com ervas e orações, pois eram também sacerdotes e o Código legislava em questões seculares e não nas questões religiosas.  

Aparentemente, o tratamento odontológico mais estava nas mãos destes tipos de médicos que dos cirurgiões.

Um baixo relevo hindu datado de 2000 a.C. mostra a extração dental executada num gigante feita com um fórceps. Entre os povos hindus antigos a prática da medicina era misturada com os rituais místicos e religiosos. Esta cultura chegou inclusive aos nossos dias.

Pouco antes do nascimento de Jesus, os romanos já usavam coroas de ouro nos dentes. Era uma técnica herdada dos primitivos etruscos. No apogeu romano antigo, uma boa parte dos médicos eram gregos. Na Grécia, Aristóteles, o aluno de Platão, foi o primeiro a fazer um estudo da anatomia comparada dos dentes e mencionou que a extração era feita puxando-se os dentes com um fórceps.

Circa 15 d.C., quando Jesus era um adolescente, o médico romano Archigenes declarou que uma das causas da dor de dente estava no interior do mesmo (pulpite). Ele fez uma broca especial para chegar ao interior da polpa dental e uma de suas recomendações foi a de colocar nela uma pomada constituída por minhocas torradas, nardo (planta medicinal) e ovos de aranhas esmagados dentro da cavidade feita.

Ao redor de 30 d.C., quando Jesus estava apenas começando seu ministério, Celsus, um grande médico romano, foi o primeiro a colocar um preenchimento feito com chumbo nas cavidades dentárias.  Ele não estava fazendo isso para salvar dentes, mas para aumentar suas resistências para poder removê-los sem fraturá-los.

Embora os médicos hebreus conhecessem os princípios médicos da época, pois muitos deles tinham estudado no centro cultural grego estabelecido em Alexandria e também faziam a ponte entre os conhecimentos gregos obtidos nesta cidade e os conhecimentos islamitas da sua região, pouco escritos deixaram relativos aos conhecimentos odontológicos. Sabe-se que os hebreus tinham preocupações quanto ao que chamamos hoje de biossegurança expressadas no Levítico bíblico e no Talmud.

Anos posteriores à morte de Jesus Cristo, em 249 d.C., Apolônia, uma parthenos presbytis (virgem dedicada: uma freira) depois tornada uma santa, foi torturada em Alexandria.  Segundo a lenda, sua tortura incluiu a remoção violenta de todos os seus dentes que foram arrancados ou quebrados. A causa de sua tragédia foi ter-se negado a repetir palavras ímpias, blasfemar contra jesus Cristo e repetir invocações a deuses pagãos.

Após esta tortura foi erguida, fora dos portões da cidade, uma pilha de lenha e seus algozes ameaçaram queimá-la viva. Apolônia, durante uma distração destes, saltou rapidamente para o fogo agora aceso que, milagrosamente, não a queimou. Ela acabou sendo decapitada.

Quase em todas suas imagens pictóricas, Apolônia parece com dentes e/ou fórceps e com um ramo de palmas nas mãos (um símbolo tradicional de sofrimento). Seu dia santo é em 9 de fevereiro.


Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/medo_de_dentista.html; Artigo do cirurgião dentista e estomatologista Prof. Assoc. Jayro Guimarães Jr.

sábado, 14 de novembro de 2015

A Selvagem


Nuremberg não era tão visitada na época quanto passou a ser desde então. Irving ainda não estava em cena com o Fausto, e a grande maioria dos viajantes mal ouvira falar na velhacidade. Estando minha esposa e eu na segunda semana de nossa lua de mel, era natural que quiséssemos a companhia de outra pessoa, de forma que quando o animado desconhecido Elias P. Hutcheson, proveniente de Isthmian City, Bleeding Gulch, Maple Tree County, Nebrasca, apareceu na estação de Frankfurt e comentou casualmente que estava indo visitaro diacho da cidade mais velha e matusalênica que existia nas Oropias, mas que suspeitava que fazer uma viagem tão longa sozinho pudesse ser o bastante para mandar qualquer cidadão ativo e inteligente para a ala dos melancólicos de uma casa de alienados,aproveitamos a deixa daquela sutil indireta e sugerimos unir forças. Descobrimos, ao trocar impressões mais tarde, que tínhamos os dois pretendido falar com certa reserva ou hesitação para não parecermos ávidos demais, o que não seria uma indicação muito lisonjeira do sucesso de nossa vida de casados. O efeito, contudo, foi inteiramente arruinado pelo fato de nós dois começarmos a falar ao mesmo tempo, calarmo-nos simultaneamente e logo depois começarmos a falar juntos outra vez. Enfim, não importa de que forma, o caso é que o convite foi feito e Elias P. Hutcheson tornou-se nosso companheiro de viagem. Logo, logo Amelia e eu sentimos o resultado benéfico dessa inclusão; em vez de brigarmos, como vínhamos fazendo, descobrimos que a influência inibidora de uma terceira pessoa era tal que passamos a aproveitar toda e qualquer oportunidade para namorar em cantos escondidos. Amelia conta que desde então, movida por essa experiência, vem aconselhando todas as suas amigas a levarem um amigo para a lua de mel. Bem, nós “fizemos” Nuremberg juntos e posso dizer que nos divertimos bastante com os comentários espirituosos de nosso amigo transatlântico, que, por seu jeito exótico de falar e maravilhoso estoque de aventuras, bem podia ter saído de um romance. De todos os pontos de interesse da cidade, deixamos para visitar por último o Kaiserburg, e no dia marcado para a visita circundamos a pé a muralha externa da cidade pelo lado oriental.

Situado no alto de um rochedo que domina a cidade, o Kaiserburg é protegido ao norte por um fosso profundíssimo. Nuremberg teve a sorte de nunca ter sido saqueada; tivesse sido, por certo não estaria em tão perfeito estado de conservação como está atualmente. O fosso não é usado há séculos, e agora sua base está coberta de canteiros de ervas de chá e de pomares, alguns com árvores de tamanho bastante respeitável. Enquanto contornávamos a muralha, caminhando sem pressa sob o sol quente de julho, volta e meia parávamos para admirar as paisagens que se estendiam diante de nossos olhos, em especial a enorme planície coberta de vilas e povoados e demarcada por uma linha azul de colinas, como uma paisagem de Claude Lorraine. De lá, nossos olhos sempre se voltavam com renovado prazer para a cidade em si, com sua miríade de graciosas cumeeiras antigas e vastos telhados vermelhos pontilhados de lucarnas, camada sobre camada. À direita, a uma pequena distância, erguiam- se as torres do Kaiserburg e, mais perto ainda, soturna, a Torre de Tortura, que era, e talvez ainda seja, o lugar mais interessante da cidade. Por séculos, a fama da Virgem de Ferro de Nuremberg foi sendo transmitida de geração em geração como um exemplo dos horrores de crueldade de que o homem é capaz. Havia muito ansiávamos por conhecê-la e, agora, enfim, lá estava a sua casa.

Numa de nossas paradas debruçamo-nos sobre o muro do fosso e olhamos lá para baixo. Os canteiros pareciam estar quase vinte metros abaixo de nós, e o sol que se derramava sobre eles produzia um calor intenso e imóvel como o de um forno. Mais além, erguia-se a lúgubre muralha cinza, que parecia elevar-se numa altura sem fim e estender-se à direita e à esquerda até sumir de vista nos ângulos do bastião e da contraescarpa. Árvores e arbustos coroavam a muralha e, mais acima, avultavam as casas majestosas, em cuja imponente beleza o Tempo só fizera impor a mão da aprovação. O sol estava quente e nós com preguiça; o tempo era todo nosso, e nos deixamos ficar, debruçados sobre o muro. Bem embaixo, avistamos uma bela cena: uma enorme gata preta tomava sol espichada no chão, enquanto um minúsculo filhotinho preto brincava e cabriolava em volta dela. A mãe abanava o rabo para lá e para cá para que o filhotinho tentasse pegá-lo, ou levantava as patas e empurrava o animalzinho para trás como estímulo à brincadeira. Eles estavam bem próximos do muro, e Elias P. Hutcheson, no intuito de colaborar com a brincadeira, inclinou-se e arrancou do muro uma pedra de tamanho mediano.

“Olhem!”, disse “vou jogar esta pedra perto do filhote e os dois vão ficar tontos tentando descobrir de onde ela veio.”

“Ah, tome cuidado”, disse minha esposa, “o senhor pode acabar acertando o bichinho!”

“Eu? Eu não, dona”, disse Elias P., “pois se eu sou mais delicado do que uma cerejeira do Maine! Valha-me Deus! Eu seria tão incapaz de machucar aquela pobre criaturinha quanto de escalpelar um bebê. Pode apostar sua roupa do corpo nisso! Olhe, vou soltar a pedra longe do muro, que é pra ela não cair perto do bichano.”

Assim dizendo, inclinou-se para a frente, esticou bem o braço para o lado de fora e deixou a pedra cair. Pode ser que exista alguma força de atração que puxe os corpos menores de encontro aos maiores ou pode ser também — o que é mais provável — que o muro não fosse reto, e sim mais largo na base, e nós, de cima, não tivéssemos notado a inclinação; o fato é que a pedra caiu, com um baque nauseante que veio subindo até nós pelo ar quente, bem na cabeça do filhote, estraçalhando seus miolinhos na mesma hora. A gata preta rapidamente olhou para cima e vimos seus olhos, que mais pareciam chamas verdes, cravarem-se por um instante em Elias P. Hutcheson. Em seguida ela voltou a atenção para o filhote, que, a não ser por um leve tremor dos membros pequeninos, jazia imóvel no chão, enquanto um fio vermelho de sangue escorria de uma ferida aberta. Com um gemido estrangulado, como o que um ser humano poderia soltar, a gata se inclinou sobre o filhote, lambendo-lhe as feridas e miando. De repente, pareceu se dar conta de que ele estava morto e mais uma vez olhou para o alto, na nossa direção. Nunca vou me esquecer daquela visão, pois a gata parecia a perfeita encarnação do ódio. Seus olhos verdes faiscavam de forma sinistra e os dentes brancos e afiados pareciam quase reluzir em meio ao sangue que lhe besuntara a boca e os bigodes. Rangeu os dentes e arreganhou as garras, que saltaram hirtas de dentro de todas as suas patas. Em seguida, lançou-se desatinada muro acima como para nos alcançar, mas,perdendo o impulso, caiu para trás, o que contribuiu para piorar ainda mais sua aparência terrível, pois caiu em cima do filhote e, quando se levantou, tinha o pelo preto coberto de miolos e sangue. Amelia perdeu a cor e as forças e tive de retirá-la do parapeito e afastá-la do muro. Havia um banco ali perto, à sombra de uma árvore frondosa, onde fiz com que se sentasse para recompor-se. Depois voltei para perto de Hutcheson, que olhava imóvel para a gata enraivecida lá embaixo.

Quando parei a seu lado, ele disse:

“Bom, acho que essa deve ser a fera mais bravia que já vi na vida, tirante só quando uma selvagem apache estava enfuriada com um mestiço em quem eles puseram o apelido de Estilha por causa do tratamento que ele deu pro piá dela, que ele roubou num saqueio, só para mostrar o quanto ele estava agradecido pelo modo como eles tinham aplicado a tortura do fogo na mãe dele. Ela tinha esse mesmo tipo de carantonha tão entranhada na cara dela que parecia até que tinha nascido assim. Ela seguiu o Estilha por mais de três anos, até que os guerreiros pegaram ele e entregaram pra ela. Mas eles disseram que nunca nenhum homem, nem branco nem índio, tinha demorado tanto tempo pra bater as botas debaixo das torturas dos apaches. A única vez que vi aquela selvagem sorrir foi quando acabei com a raça dela. Cheguei ao acampamento no tempo justinho de ver o Estilha abotoar e posso dizer que ele também não ficou triste de ir, não. Era um cidadão tinhoso, e mesmo que eu não pudesse nunca mais apertar a mão dele por causa daquela história do piá — porque foi um troço feio, no duro que foi, e ele devia ter se comportado feito um homem branco, porque era isso que ele parecia ser —, eu vi que as contas dele estavam mais do que acertadas. Deus que me perdoe, mas peguei um pedaço do couro dele de um dos mastros em que ele tinha sido esfolado e mandei fazer uma carteira. Aliás, ela está bem aqui!” — concluiu, batendo no bolso interno do paletó.

Enquanto ele falava, a gata continuava em seus esforços frenéticos para escalar o muro. Tomava distância e depois saía em disparada muro acima, às vezes alcançando alturas inacreditáveis. Parecia não se importar com os tombos feios que levava depois de cada tentativa, lançando-se sempre com novo vigor à empreitada; e a cada tombo sua aparência ficava ainda mais terrível. Hutcheson era um homem de bom coração — minha esposa e eu já havíamos testemunhado pequenos atos de generosidade seus tanto com animais quanto com pessoas — e parecia preocupado com o estado de fúria em que a gata se encontrava.

“Ora, ora!”, disse ele, “não há como negar que essa pobre criatura parece bastante desesperada. Pronto, pronto, bichana, tudo não passou de um acidente, apesar de que nada vai trazer o seu filhote de volta. Diacho! Deus sabe que eu não queria que isso acontecesse! Só serve para mostrar o que um idiota desastrado é capaz de fazer quando tenta brincar! Parece que sou estabanado demais até para brincar com um gato. Diga, coronel (ele tinha o afável costume de distribuir títulos livremente), sua esposa não está zangada comigo por causa dessa infelicidade, está? Eu não queria de jeito nenhum que uma coisa dessas acontecesse.”

Hutcheson foi até Amelia e desculpou-se profusamente, e ela, com sua amabilidade habitual, apressou-se em assegurar-lhe que entendia perfeitamente que fora um acidente.

A gata, não vendo mais o rosto de Hutcheson, afastara-se do muro e estava sentada no meio do fosso, apoiada sobre as patas traseiras, como que pronta para saltar. De fato, no mesmo instante em que o viu, saltou, com uma fúria cega e desatinada que teria sido grotesca se não fosse tão assustadoramente real. Não tentou escalar o muro como das outras vezes, mas simplesmente atirou-se na direção de Hutcheson como se o ódio e a fúria pudessem emprestar-lhe asas para atravessar a enorme distância que havia entre os dois. Amelia, como qualquer mulher em seu lugar, ficou muito preocupada e disse a Elias P. em tom de advertência:

“O senhor precisa tomar muito cuidado. Esse animal tentaria matá-lo se estivesse aqui. Está escrito nos olhos dela que ela quer assassiná-lo.”

Hutcheson soltou uma gargalhada bem-humorada.

“Desculpe, dona, mas não posso deixar de rir. Imagine um homem que já lutou contra ursos e contra índios tomando cuidado para não ser assassinado por uma gata!”

Quando a gata ouviu a risada de Hutcheson, sua atitude pareceu se transformar. Não tentou mais dar saltos nem escalar o muro, mas saiu andando em silêncio e, sentando-se de novo ao lado do filhote morto, começou a lambê-lo e a acariciá-lo como se ainda estivesse vivo.

“Está vendo!”, observei. “É o poder de um homem verdadeiramente forte. Mesmo esse animal, em meio a sua fúria, reconhece a voz de um líder e se curva diante dele!”

“Como uma selvagem!”, foi o único comentário de Elias P. Hutcheson, enquanto retomávamos o caminho ao redor do fosso da cidade. De vez em quando olhávamos por cima do muro e, sempre que o fazíamos, víamos a gata nos seguindo. No início ela voltava a todo momento para perto do filhote morto, mas quando a distância se tornou grande demais pegou-o na boca e assim seguiu. Depois de algum tempo, no entanto, abandonou a ideia, pois vimos que ela nos seguia sozinha; tinha, obviamente, escondido o corpo em algum lugar. Amelia, diante da persistência da gata, foi ficando cada vez mais aflita e mais de uma vez repetiu sua advertência ao americano, mas ele sempre ria e achava graça, até que, ao perceber que Amelia estava começando a ficar nervosa, disse:

“Eia, dona, não precisa ter medo por causa da gata. Eu ando sempre prevenido, ora se não!”, declarou, batendo no coldre onde guardava a pistola, na parte de trás da região lombar.

“Arre, se é pra dona ficar nervosa desse jeito, prefiro dar logo um tiro na criatura aqui mesmo e correr o risco de a polícia abordar um cidadão dos Estados Unidos por carregar uma arma contra a lei!” Enquanto falava, olhou por cima do muro, mas a gata, ao vê-lo, soltou uma espécie de rosnado, correu para um canteiro de flores altas e se escondeu. Hutcheson continuou: “Raios me partam se essa criatura não tem mais noção do que é melhor para ela do que muito cristão. Acho que foi a última vez que pusemos os olhos nela. Aposto que agora vai voltar para aquele filhote arrebentado e fazer um funeral particular para ele, todinho dela!”.

Amelia achou melhor não dizer mais nada, temendo que Hutcheson, numa tentativa equivocada de ser gentil, cumprisse a ameaça de atirar na gata. Assim, continuamos em frente e atravessamos a pequena ponte de madeira que levava ao portal por onde se chegava à íngreme pista pavimentada que ligava o Kaiserburg à Torre de Tortura pentagonal. Ao atravessar a ponte, vimos a gata de novo, bem embaixo de nós. Quando nos viu, ela pareceu encher-se outra vez de fúria e fez esforços desesperados para subir o muro alcantilado. Vendo-a lá embaixo, Hutcheson riu e disse:

“Até mais ver, minha velha. Sinto muito ter ferido seus sentimentos, mas com o tempo você vai superar isso. Adeus!” E então nós três atravessamos a longa e sombria arcada e chegamos ao portão do Kaiserburg.

Quando nos vimos novamente do lado de fora, depois da visita àquele belíssimo lugar antigo que nem mesmo os bem-intencionados esforços dos restauradores góticos de quarenta anos atrás conseguiram estragar — muito embora a restauração feita por eles ainda tivesse, na época, um branco ofuscante —, parecíamos já ter esquecido quase por completo o episódio desagradável da manhã. A velha tília, com seu grandioso tronco retorcido pela passagem de quase nove séculos, o poço profundo aberto no coração da pedra pelos cativos de outros tempos e a linda vista que se abria do alto da muralha, de onde ouvimos, ao longo de quase quinze minutos, as badaladas dos inúmeros carrilhões da cidade, tudo contribuiu para apagar de nossa mente o incidente do gatinho morto.

Fomos os únicos visitantes a entrar na Torre de Tortura naquela manhã — ou pelo menos assim nos disse o velho zelador — e, como tínhamos o lugar todo para nós, pudemos observá-lo mais minuciosa e satisfatoriamente do que teria sido possível com outras pessoas presentes. O zelador, vendo em nós sua única fonte de rendimentos naquele dia, estava disposto a fazer de tudo para atender a nossos desejos. A Torre de Tortura é de fato um lugar tenebroso, mesmo agora que os muitos milhares de visitantes já injetaram ali uma torrente de vida — e da alegria que a acompanha. Na época a que me refiro, no entanto, o local tinha o aspecto mais sombrio e sinistro que se possa imaginar. A poeira de várias eras parecia ter se depositado ali, e as memórias do lugar, feitas de trevas e horrores, pareciam ter se tornado de tal forma vivas que teriam agradado às almas panteístas de Fílon ou de Spinoza. O andar mais baixo, por onde entramos, aparentemente vivia tomado, em seu estado normal, por um breu tão absoluto que parecia a própria escuridão encarnada. Mesmo a luz do sol forte que penetrava pela porta aberta parecia perder-se na vasta espessura das paredes e iluminava apenas a alvenaria — uma alvenaria ainda tão áspera como quando os andaimes dos construtores foram desmontados, mas coberta de poeira e marcada aqui e ali por manchas escuras que, se paredes pudessem falar, relatariam suas próprias lembranças terríveis de medo e dor. Foi com alívio que nos dirigimos à empoeirada escada de madeira.

O zelador deixara a porta externa aberta para iluminar um pouco mais o caminho, pois, para nossos olhos, a solitária vela de pavio longo e fedorenta enfiada num castiçal preso à parede oferecia uma luz insuficiente. Quando, atravessando um alçapão aberto, saímos num canto do pavimento superior, Amelia agarrou-se a mim com tanta força que cheguei a sentir as batidas de seu coração. Devo dizer, de minha parte, que o medo de minha esposa não me surpreendeu, pois aquele salão era ainda mais aterrorizante do que o do andar inferior. Aqui havia sem dúvida mais luz, mas apenas o suficiente para que pudéssemos vislumbrar os terríveis contornos do que nos cercava. Os construtores da torre tinham, evidentemente, pretendido que apenas aqueles que alcançassem o topo pudessem usufruir das alegrias proporcionadas pela luz e pela paisagem. Lá, como notáramos pelo lado de fora, havia inúmeras janelas, ainda que de uma pequenez medieval, mas em todo o resto da torre só o que havia eram raras e estreitas seteiras, como era comum nas edificações de defesa medievais. Apenas algumas dessas seteiras iluminavam o salão em que nos  encontrávamos, mas estavam posicionadas tão no alto que de lugar nenhum era possível divisar o céu através da grossura das paredes. Em armeiros, e apoiados em desordem contra as paredes, havia diversos machados de decapitação, ou “espadas do carrasco”, enormes armas de cabo longo,lâminas largas e gumes afiados. Bem perto viam-se os cepos sobre os quais os pescoços das vítimas eram apoiados, com entalhes profundos aqui e ali, nos lugares em que o aço atravessara a barreira de carne e rompera a madeira. Ao redor do salão, dispostos das formas mais irregulares, encontravam-se inúmeros instrumentos de tortura que, só de olhar, davam um aperto no coração — cadeiras cheias de espetos capazes de causar dores instantâneas e lancinantes; leitos e cadeiras cravejados de pinos de ponta arredondada que pareciam provocar tormentos comparativamente menores, mas que, embora mais lentos, eram igualmente eficazes; potros, cintos, botas, luvas, coleiras, todos feitos para comprimir à vontade; cestos de aço em que cabeças podiam ser lentamente esmagadas até virar polpa, se necessário; ganchos de sentinela, de cabo comprido e lâmina afiada para vencer toda e qualquer resistência — uma especialidade da antiga polícia de Nuremberg; e uma infinidade de outros dispositivos feitos para o homem ferir o homem.

Amelia ficou lívida de horror diante daquelas coisas, mas felizmente não desmaiou, pois, sentindo-se um pouco tonta, acabou por sentar-se numa cadeira de tortura, da qual se levantou de um salto e com um grito, deixando de lado, na mesma hora, qualquer inclinação para o desmaio. Nós dois fizemos de conta que fora o estrago causado a seu vestido pela poeira da cadeira e pelos espetos enferrujados que a havia perturbado, e o sr. Hutcheson teve a gentileza de aceitar a explicação com uma risada carinhosa.

O objeto principal, no entanto, de todo aquele salão de horrores era a máquina conhecida como Virgem de Ferro, que se encontrava perto do centro da sala. Era toscamente construída no formato de uma figura de mulher, algo semelhante a um sino ou, para oferecer uma comparação mais próxima, na forma da sra. Noé da Arca das crianças, mas sem a cintura esbelta e os quadris perfeitamente arredondados que caracterizam o tipo estético da família Noé. Na verdade, dificilmente alguém identificaria uma figura humana no formato daquele objeto não fosse o ferreiro ter moldado no alto da parte da frente um arremedo de rosto de mulher. A máquina estava coberta de ferrugem e poeira. Uma corda amarrada a um aro fixado na parte frontal da figura, perto de onde a cintura deveria estar, passava por uma roldana presa à trave de madeira que sustentava o teto. Puxando essa corda, o zelador mostrou que uma seção da parte da frente era, na verdade, uma porta, presa de um lado por uma dobradiça. Vimos, então, que as paredes da máquina eram consideravelmente espessas, deixando do lado de dentro apenas espaço suficiente para um homem. A porta era igualmente grossa e extremamente pesada, pois, mesmo com a ajuda do dispositivo da roldana, o zelador precisou de toda a sua força para abri-la. Esse peso colossal devia-se em parte ao fato de a porta ter sido propositalmente instalada de modo que seu peso a empurrasse para baixo, o que fazia com que se fechasse sozinha quando a corda era solta. O interior da máquina estava todo corroído de ferrugem — não, pior, pois a ferrugem que advém apenas da passagem do tempo dificilmente teria carcomido tão profundamente as paredes de ferro; não, a corrosão daquelas manchas cruéis era muito mais profunda!

No entanto, foi só quando examinamos a parte interna da porta que o propósito diabólico da máquina se revelou por completo. Ali havia vários espetos, quadrados e imensos, largos na base e afiados na ponta, posicionados de tal forma que, quando a porta se fechava, os de cima perfuravam os olhos da vítima e os de baixo seu coração e órgãos vitais. A visão daquilo foi demais para a pobre Amelia, que dessa vez perdeu os sentidos por completo, e precisei então carregá-la escada abaixo e sentá-la num banco do lado de fora até que se recuperasse. Que seu choque foi profundo ficou mais tarde comprovado pelo fato de meu filho mais velho carregar até hoje um grosseiro sinal de nascença no peito, que, por consenso familiar, foi aceito como uma marca da Virgem de Nuremberg.

Quando voltamos ao salão, encontramos Hutcheson ainda parado diante da Virgem de Ferro; estivera evidentemente filosofando e, agora, compartilhava suas ruminações conosco como numa espécie de exórdio.

“Bom, acho que aprendi alguma coisa por aqui enquanto a dona estava se recuperando do desmaio. Tenho a impressão de que estamos um bocado atrasados no tempo, lá do nosso lado do oceano. Todo mundo lá nas planícies acha que são os índios que dão as cartas quando se trata de fazer um homem se sentir desconfortável, mas desconfio que a velha polícia medieval de vocês ganharia dos índios com um pé nas costas, nesse departamento. O Estilha até que não se saiu mal na cartada dele contra a selvagem, mas essa jovem senhora aqui ganharia dele com um straight flush se estivesse no jogo. As pontas desses espetos ainda estão bem afiadas, embora até as beiradas estejam carcomidas pelo que costumava ficar nelas. Não seria nada mau se o nosso departamento de índios arranjasse alguns exemplares desse brinquedinho aqui para mandar para as reservas, só para acabar com a empáfia dos selvagens, e das fêmeas deles também, mostrando como a velha civilização bota todos eles no chinelo. Acho que vou entrar nessa caixa um instante, só para ver qual é a sensação.”

“Ah, não! Não faça isso!”, disse Amelia. “É terrível demais!”

“Pois eu acho, dona, que nada é terrível demais para uma mente curiosa. Eu já estive em muito lugar esquisito no meu tempo. Passei uma noite dentro de um cavalo morto enquanto um incêndio queimava todo o prado à minha volta no território de Montana e, numa outra ocasião, dormi dentro de um búfalo morto quando os comanches partiram para a guerra e eu não estava muito disposto a deixar o meu cartão de visitas com eles. Passei dois dias dentro de um túnel desmoronado na mina de ouro de Billy Broncho, no Novo México, e fui um dos quatro sujeitos que ficaram presos quase um dia inteiro dentro de um caixão flutuante que tombou de lado quando estávamos deitando as fundações da Buffalo Bridge. Nunca fugi de uma experiência esdrúxula e não vai ser agora que vou começar!”

Como vimos que ele estava mesmo decidido a fazer o experimento, eu disse:

“Bom, então ande logo, amigo velho, e acabe com isso de uma vez!”

“Pois não, general”, disse ele, “mas acho que ainda não estamos prontos. Os cavalheiros, meus predecessores, que foram parar aí dentro dessa lata não se ofereceram para ocupar o posto por livre e espontânea vontade, não mesmo! Tenho a impressão de que eles eram lindamente amarrados antes que o grande golpe fosse desferido. Se quero fazer a coisa como manda o figurino, tenho que ser devidamente preparado. Aposto que o nosso velho zé-das- portas aqui pode arranjar um pedaço de corda e me amarrar bem amarradinho, não pode não?”

A pergunta foi dirigida ao velho zelador, mas ele, que compreendia o sentido geral da fala de Hutcheson, embora talvez não pudesse apreciar toda a riqueza das nuanças dialetais e das imagens, sacudiu a cabeça, fazendo que não. Sua recusa, no entanto, foi apenas formal e feita para ser contornada. O americano meteu uma moeda de ouro na mão do zelador e disse:

“Tome aqui, parceiro! A bolada é sua. E não precisa ficar espavorido, não, que ninguém aqui está pedindo para você ajudar a estripar ninguém!” O zelador então trouxe uma corda fina e puída e começou a amarrar nosso companheiro de viagem com a firmeza necessária. Quando a parte superior de seu corpo já estava amarrada, Hutcheson disse:

“Espere um instante, juiz. Acho que sou pesado demais para você me carregar pra dentro da lata. Deixe eu ir andando até lá primeiro, depois você termina o serviço nas minhas pernas.”

Enquanto dizia isso, Hutcheson foi se enfiando na abertura da máquina, que era a conta justa de seu corpo. Sem dúvida, o espaço era exíguo para alguém do seu tamanho. Amelia observava tudo com olhos que transbordavam de medo, mas não quis dizer nada. O zelador concluiu a tarefa amarrando os pés do americano bem unidos um ao outro, de forma que Hutcheson estava agora absolutamente impotente e fixo em sua prisão voluntária. Parecia estar se deliciando com a experiência, e o sorriso incipiente que era habitual em seu rosto desabrochou por inteiro quando ele disse:

“Esta Eva aqui só pode ter sido feita da costela de um anão! O espaço aqui dentro é mísero para um cidadão adulto dos Estados Unidos se encafuar. A gente costuma fazer caixões de defunto mais espaçosos lá no território do Idaho. Agora, juiz, você vai começar a descer essa porta, devagar, em cima de mim. Quero sentir o mesmo prazer que os outros mequetrefes sentiam quando os espetos começavam a avançar para os olhos deles!”

“Ah, não! não! não!”, interveio Amelia, histérica. “É horrível demais! Não vou suportar ver uma coisa dessas! Não vou! Não vou!” Mas o americano estava irredutível.

“Escute, coronel”, disse ele, “por que você não leva a patroa para dar uma voltinha? Eu não magoaria os sentimentos dela por nada neste mundo, mas agora que já estou aqui, depois de viajar quase treze mil quilômetros pra chegar a este lugar, não acha que seria cruel demais ser obrigado a desistir justo da experiência que eu estava seco de vontade de fazer? Não é sempre que um homem tem a oportunidade de se sentir feito comida enlatada! Eu e o nosso juiz aqui vamos liquidar esse assunto em dois tempos, e aí vocês dois vão poder voltar e nós vamos rir juntos disso tudo!”

Mais uma vez, a resolução que nasce da curiosidade venceu e Amelia decidiu ficar, agarrando-se com força ao meu braço e tremendo de nervoso, enquanto o zelador ia soltando lentamente, centímetro por centímetro, a corda que mantinha aberta a porta de ferro. A expressão de Hutcheson estava definitivamente radiante enquanto seus olhos acompanhavam os primeiros movimentos dos espetos.

“Bom!”, disse ele, “acho que não me divirto assim desde que saí de Nova York. Tirante um arranca-rabo com um marinheiro francês lá em Wapping, que aliás também não foi nenhum piquenique no parque, ainda não tinha tido nem uma mísera chance de me divertir de verdade neste continente desgramado, que não tem nem urso nem índio e onde homem nenhum carrega uma arma pra se defender. Devagar aí, juiz! Não me apresse esse negócio! Quero fazer valer o dinheiro que botei nesse jogo, ora se quero!”

O zelador devia ter nas veias um pouco do sangue de seus predecessores naquela torre macabra, pois sabia manobrar a máquina com uma lentidão tão aflitiva e angustiante que depois de cinco minutos, durante os quais a extremidade externa da porta não se moveu nem a metade desse número em centímetros, Amelia começou a entregar os pontos. Vi seus lábios perderem a cor e senti que já não apertava meu braço com a mesma força. Olhei em volta um instante à procura de um lugar onde pudesse fazê-la sentar-se e, quando olhei para ela de novo, percebi que seus olhos fixavam-se num ponto ao lado da Virgem.

Seguindo a direção de seu olhar, vi a gata preta armando o bote, sorrateira. Seus olhos cintilavam como luzes de alerta na escuridão daquele lugar e pareciam ainda mais verdes em contraste com o vermelho das manchas de sangue que ainda cobriam seu pelo e sua boca. Gritei:

“A gata! Cuidado com a gata!”, e no mesmo instante ela saltou diante da máquina. Parecia um demônio triunfante. Seus olhos faiscavam ferocidade, o pelo estava tão eriçado que ela parecia ter o dobro de seu tamanho e seu rabo chicoteava o ar como faz o de um tigre diante de uma presa. Quando viu a gata, Elias P. Hutcheson achou graça, e seus olhos definitivamente brilhavam de prazer quando ele disse:

“Raios me partam se essa selvagem não está toda pintada para a guerra! Dê um passa-fora nela se ela quiser vir com gracinha pra cima de mim, porque o chefe aqui me prendeu tão bem prendido que nem que o diabo diga amém eu vou conseguir salvar meus olhos se ela resolver arrancá-los. Vá com calma aí, juiz! Não me solte essa corda, ou estou liquidado!”

Nesse momento, Amelia terminou de desfalecer, e precisei segurá-la pela cintura para que não caísse no chão. Enquanto cuidava de Amelia, vi a gata preta armando outro bote e levantei-me de um salto para enxotar a criatura. Mas naquele instante, lançando uma espécie de guincho diabólico, a gata arremessou-se não contra Hutcheson, como esperávamos, mas contra o rosto do zelador. Suas garras pareciam dilacerar a esmo, como vemos em gravuras chinesas que retratam um dragão empinado para atacar, e quando olhei outra vez vi uma delas cravar-se bem no olho do pobre homem e rasgá-lo ao descer por sua bochecha, deixando uma grossa listra vermelha do sangue que parecia jorrar de todas as veias.

Com um berro de puro terror, que veio mais rápido até do que sua sensação de dor, o homem saltou para trás, largando a corda que mantinha aberta a porta de ferro. Corri para pegá-la, mas já era tarde: a corda correu como um relâmpago pela roldana e a porta maciça fechou-se, impulsionada pelo próprio peso.

Enquanto a porta se fechava, vi num relance o rosto de nosso pobre companheiro de viagem. Hutcheson parecia paralisado de terror. Olhava para a frente fixamente, com uma medonha expressão de angústia, como que entorpecido, e nenhum som saiu de seus lábios.

Então os espetos fizeram seu trabalho. Felizmente, o fim foi rápido, pois quando, com um puxão violento, consegui abrir a porta, vi que os espetos tinham penetrado tão profundamente que chegaram a ficar presos nos ossos do crânio que haviam transpassado, arrancando Hutcheson — ou o que restara dele — de dentro de sua prisão de ferro até que, amarrado como estava, seu corpo desabou no chão com um baque nauseante, de rosto virado para cima.

Corri para minha esposa, peguei-a no colo e a carreguei para longe dali, pois temia por sua razão se ela acordasse do desmaio e deparasse com uma cena como aquela. Deixei-a no banco do lado de fora e corri de volta para dentro. Encostado à coluna de madeira estava o zelador, gemendo de dor e segurando um lenço ensanguentado sobre os olhos. E, sentada na cabeça do pobre americano, estava a gata, ronronando alto enquanto lambia o sangue que escorria das órbitas vazadas de Hutcheson.

Creio que ninguém irá me chamar de cruel por ter pegado uma das espadas dos antigos carrascos e partido a gata ao meio ali mesmo onde ela estava sentada.

Conto de Bram Stoker - Tradução de Sonia Moreira


Fonte: A Causa Secreta e Outros Contos de Horror – Machado de Assis - Editora Boa Companhia