sábado, 9 de abril de 2016

A Mão



O som da chuva me dava vontade de fazer xixi. Eu estava rolando na cama desde a meia-noite, inquieta após haver assistido a um filme de terror. Maldita sexta-feira treze e estas sessões intermináveis de monstros e cadáveres na TV!

Mal me segurando, desenrolei-me dos lençóis e pousei os pés nus no carpete do quarto.

Foi quando o inusitado ocorreu. Não foi como se me segurassem, ou como se me apertassem, foi apenas um toque, um resvalo no meu calcanhar, vindo de sob a cama. Tenho certeza de que não era fruto da minha imaginação, a sensação foi clara o suficiente para evitar qualquer dúvida: uma mão, de sob minha cama, havia tocado meu pé.

Gritei, saltando assim como quando, na praia, ondas geladas deslizam na altura das nossas canelas, e instintivamente olhei para a fonte do meu desespero.

Nada havia.

Corri para o banheiro, pois o susto aumentou ainda mais meu apuro.

Ao voltar para o quarto, entrei sem muita coragem. Acendi a luz e, a uns dois metros de distância da cama, ajoelhei-me, encostei lateralmente a cabeça no chão e tentei divisar algo. Tinha bastante entulho embaixo, mas nada que se assemelhasse a uma mão, ou a algum dono de mão querendo me dar um susto. A hipótese de ser meu irmão estava descartada.

Rastejei até lá e, no caminho, apanhei um tênis, para dar uns safanões, caso fosse algum bicho (rato?!) desgarrado. Encontrei caixas de Barbie (bonecas aposentadas há uns três anos), uma dúzia de caixas de sapatos, às quais afastei com o bico do tênis, uma meia suja recoberta de cabelos e poeira, até uma calcinha velha havia lá embaixo.

Respirei aliviada, afinal de contas, poderia ter sido minha imaginação — era mais fácil me agarrar a uma mentira —, um vento encanado, sei lá, qualquer coisa, menos uma mão.

Apaguei a luz e, no mesmo instante em que o quarto foi tomado pelo breu, um relâmpago brilhou pela cortina, lançando uma claridade azulada, e vislumbrei talvez um rosto, cabelos brancos desgrenhados, sorriso mórbido fitando-me por debaixo da cama. Acendi mais uma vez a luz, e ri sozinha, meio apavorada, mas também me convencendo de que a visão se devia a alguma configuração bizarra de luminosidade no entulho acumulado abaixo do estrado. Quando estamos com medo é isto mesmo que acontece: quantas vezes não vemos pessoas e fantasmas nas roupas dependuradas no cabide estando as luzes apagadas, ou garras ameaçadoras nas silhuetas de galhos de árvore por entre o tecido da cortina, ou o ruído do armário, dos móveis, do vento, de passos, de sussurros?

Pura obra de nossa imaginação, pois não há nada, apenas nosso medo.

Para não ficar na completa escuridão, deixei acesa a luz dum abajur. Depois, mais confiante, apaguei-a também e tentei dormir. Mas eu estava muito nervosa, coração batendo forte, pés gelados (temia que alguém viesse puxá-los), trêmula. Encolhi-me como um feto, a chuva havia engrossado, repicando na vidraça. Tive a impressão de ouvir sons debaixo de mim, alguém se arrastando, movendo a bagunça lá embaixo.

Pensei em me levantar e acender a luz, mas não tive coragem. Preferi ficar quietinha, crente que, se eu me acalmasse, uma hora isto passaria.

Mas não foi o que aconteceu, o som aumentou, adicionado a um ranger de dentes e a um estertorar idêntico ao que ouvi de meu avô agonizando, pouco antes de morrer. E realmente, assim como tive certeza de que uma mão tocara meu calcanhar, não havia do que duvidar: alguém estava lá embaixo!

A situação era tão aterradora que se tornou insuportável, insustentável, ou eu ficava lá e morria de medo, ou fugia. Num pulo, voei para fora da cama e fui bater à porta de meus pais.

— O que foi, Silvana? — minha mãe a abriu, remelas nos olhos e cabelos despenteados.

— Mãe, estou com medo... — resmunguei.

— O que foi que aconteceu? — meu pai perguntou, também despertando.

— É a Sil... Acho que aconteceu alguma coisa.

— Estou com medo, pai.

— Porra, Silvana, até o Júnior já passou desta fase! Deixa a gente dormir porque amanhã eu acordo cedo!

Uma expressão de condescendência e compaixão surgiu no rosto de minha mãe, mas a ordem de papai era lei.

— Vai domir, Sil, vai — ela acariciou meus cabelos.

Mas como?!

Eu não entraria naquele quarto novamente, por isto, fui para a sala assistir TV. Estava tarde, e os únicos programas sendo transmitidos eram de compras por telefone, pastores tirando o diabo do corpo de crentes e um ou outro filme de terror, pois, apesar da sexta-feira treze ter oficialmente terminado, ainda estavam aproveitando o clima.

Meus olhos começaram a pesar e, em pouco tempo, adormeci no sofá.

Fui acordada por meu pai, na manhã de sábado, ele se preparando para ir ao trabalho.

— Dormiu aqui, Silvana? — ele me perguntou.

— Eu estava sem sono, pai. Vim assistir TV.

— E o que aconteceu ontem para você bater na nossa porta?

— Nada, bobeira, achei ter visto um rato. Ele riu.

— Mulheres mesmo!

Passei o dia na casa da Camila; dançamos funk, rimos com uns vídeos na net, falamos dos gatinhos que estávamos ficando. Cheguei em casa tarde, apenas para comer um lanche e ir dormir, mas não consegui entrar no meu quarto, a simples memória de ontem à noite bastava para me impedir.

Voltei para sala e repeti o serão da noite anterior: TV e dormir no sofá.

E isto se repetiu por uns dez dias, para estranhamento de meus pais e irmão.

No entanto, numa das noites, adormecida na sala, tive a vaga impressão de que meu pai havia se levantado, apanhado-me nos braços e me conduzido à cama; lembro-me até de ter murmurado, sonolenta, algo como “Não, pai! Por favor, não!”

Eu entendo a atitude dele, devia pensar que meu medo era mero capricho, e que uma noite no meu quarto e na minha cama quentinha já seria suficiente para espantar os fantasmas da minha alma.

Realmente, ao ser coberta pelo edredom e pelos lençóis cheirosos, caí num sono profundo e devo até ter roncado, após tantas noites dormindo desconfortavelmente.

Mas fui acordada por ruídos e grunhidos. Não havia chuva para que eu me confundisse, além disto, havia um ligeiro tremor na cama. Alguém se arrastava lá embaixo, e parecia que as costas desta pessoa se chocavam contra o estrado. Eu estava meio lenta, com sono, mas não estava tendo pesadelo nem delírio, alguém tentava sair de sob a cama.

O medo fez com que o sono desaparecesse, mas, quando considerei a possibilidade de saltar para fora e me refugiar na sala, a visão duma mão, esquálida e branca, se erguendo pela borda do colchão, agarrando o edredom, dando suporte ao resto do corpo que haveria de aparecer, me fez mudar de ideia. Encolhi-me contra a parede, abraçando minhas próprias pernas, tremendo, pelos todos eriçados.

A segunda mão apareceu, também agarrando as cobertas e, entre o espaço das mãos, uma cabeça começou a surgir, cabelos brancos, os olhos vazios, fundos, perdidos nas órbitas, repletos de angústia e cólera, a pele desta velha criatura era ressecada e apegada aos ossos duros da face, os dentes podres e enegrecidos. A criatura erigiu a parte superior do tórax, vestia uma camisola amarelecida e ensanguentada, podia-se ver as vértebras e os ossos dos ombros saltando por entre o tecido.

Ela se arrastou até mim e, quase encostando a boca no meu nariz, exalando aquele hálito pútrido, a criatura sibilou a questão:

— Onde você estava, Silvana? Eu estava apenas te esperando.

O colchão, os lençóis, as cobertas estavam todas espalhadas pelo quarto de Silvana quando seus pais foram até lá de manhã. A mãe de Silvana se desesperou, certa de que algum estuprador a tinha levado. O pai foi mais coerente, ligou para a polícia para dar queixa de desaparecimento, supunha que a filha adolescente devia ter conhecido algum rapaz na Internet e agora estava se aventurando pelo mundo, pensando que o amor lhes bastaria (havia assistido a uma notícia semelhante no telejornal durante a semana).

No entanto, apesar das suposições, dos cartazes espalhados pela vizinhança, da foto de Silvana na TV, do detetive particular contratado, das investigações policiais, nada foi descoberto. A moça havia simplesmente desaparecido sem deixar vestígios.

Anos se passaram e a família manteve o quarto da Silvana como um santuário intocado, para caso ela um dia retornasse.

No entanto, Júnior cresceu e sugeriram que ele ocupasse o quarto maior, que havia sido de Silvana; as coisas dela foram entulhadas na garagem.

A mudança de cômodo foi acompanhada de pesadelos nas noites subsequentes. Júnior acordava suado, ofegante, com a sensação de que algo se movia sob a cama. Mas ele era corajoso, sabia que tais coisas estavam em sua imaginação.

Até a noite de sexta-feira, dia treze, quando mãos surgiram pela borda do colchão, magras, secas, e uma jovem, irreconhecível, loira, pele e osso, olhos profundos, fétida, se ergueu.

Estendeu a mão e acariciou o rosto de Júnior, paralisado pelo medo: — Achei que você nunca se mudaria para cá, meu irmão. Agora pode vir comigo.

E o tragou para as profundezas das sombras, entre chinelos e meias.

Nova York
27/11/2007


Fonte: Fantasmas, Vampiros, Demônios e histórias de outros Monstros — Henry Alfred Bugalho — Oficina Editora, 2013.

O Cãozinho


O filhotinho veio dentro duma caixa, as crianças pulavam de alegria.

— Você comprou, mãe! Obrigado!

Mas Susana deixou bem claro aos filhos:

— São vocês que vão cuidar dele.

Batizaram o cãozinho de Lúcio, um vira-lata preto. Lúcio era carinhoso, lambia as orelhas dos meninos, corria trôpego pela sala.

Crescia, e foi aí que começaram os problemas. O temperamento de Lúcio mudava, já não era mais tão carinhoso, latia o dia inteiro e rosnava para as visitas. Um dia, mordeu a mão de Susana quando ela tentava tirar um osso de galinha da boca dele.

As crianças o defendiam:

— É só um cachorro, mãe.

Porém, quando elas saíam para a escola, Lúcio se transformava; seguia Susana pela casa, intimidando-a; se ela lhe desse uma ordem, ele desobedecia; se ela queria assistir TV, ele se deitava no sofá (havia crescido bastante) e mostrava os dentes; se ela tentava enxotá-lo para o quintal, ele avançava contra ela e, se ele a agarrasse em suas presas, o estrago seria grande.

— Temos de dar o Lúcio — ela insistia, mas, sob apelos desesperados das crianças, Susana acabava mudando de ideia, mesmo sabendo que suas tardes seriam um inferno, com Lúcio seguindo-a e ameaçando-a o tempo todo.

Susana temperava um bife para o jantar, Lúcio deu o bote e o arrancou de Susana, ferindo-a no pulso. Assustada, enquanto o cão devorava a posta, ela o trancou na cozinha e correu para o quarto. Refletia um modo para se livrar do cachorro, sem que as crianças sofressem com isto. Lúcio, confinado à cozinha, uivava.

Exausta e com medo, Susana se deitou, tentava cochilar. Os uivos cessaram, porém, ela ouvia outra espécie de ruídos, algo arranhava a porta do quarto. Lúcio havia escapado. As arranhadas se converteram em patadas, o animal queria entrar de qualquer maneira. Rosnava.

— Sai daqui! — Susana gritava, mas, ao invés de acalmar a fera, seus gritos apenas o estimulavam mais, seu medo o alimentava.

Inesperadamente, as investidas de Lúcio pararam; som nenhum se podia ouvir. Trêmula, crente de que Lúcio havia encontrado outra diversão, Susana entreabriu a porta, apenas para encontrar os olhos flamejantes da besta, dentes afiados à mostra. Ele se precipitou sobre ela, jogando-a no chão. Com as patas sobre o tórax de Susana, Lúcio a dominava, baba escorrendo sobre o rosto dela, presas a poucos centímetros de seus olhos, com fúria de quem estava disposto a trucidá-la.

Risos na sala de estar dissiparam a ira de Lúcio que correu, rabo abanando, para saudar as crianças que retornavam do colégio.

No dia seguinte, Susana preparou a comida de Lúcio, que se refestelou, sem nunca tirar os olhos enfurecidos da mulher, depois, ele se deitou no sofá. Durante horas, ficou lá, sob a vigilância de Susana, que aguardava o efeito do veneno de rato. No entanto, Lúcio continuava vivo, muito vivo.

— Veja, mamãe, tem uma coisa no pescoço do Lúcio! — um dos meninos havia encontrado uma marca, um símbolo, gravado na garganta do cachorro.

Susana se aproximou e viu um pentagrama, invertido, como uma cicatriz.

— O que isto significa? — as crianças perguntaram.

Susana não sabia, mas ao vasculhar, na Biblioteca, um tratado de simbologia, ela descobriu que o pentagrama invertido havia sido adotado como o símbolo de Satanás.

Mais do que nunca, livrar-se de Lúcio se tornava crucial.

Religiosidade não era o forte de Susana, mas ela entrou numa igreja antes de voltar para casa. A igreja estava vazia; ela procurou pelo padre, mas não o encontrou. Porém, na sacristia, um crucifixo dourado chamou sua atenção; apesar do sacrilégio, Susana o retirou da parede e o guardou na bolsa.

Em casa, logo ao entrar, Susana se armou com o crucifixo. Deparou-se com Lúcio na cozinha e, quando o animal avistou o símbolo sagrado, começou a urrar, não como um cão, mas como um homem em agonia. Susana se aproximava dele, brandindo o artefato. Lúcio recuava para um canto, presas à mostra, olhar enfurecido.

— Afasta isto de mim, mulher! — uma voz rouca brotou de Lúcio.

A mão de Susana tremia, ela fraquejava, mas este confronto era necessário.

— Vai embora! — ela gaguejava.

— Não, não! Eu vou ficar — a voz rouca retrucou.

— Vai embora, demônio! — Susana berrava, quase encostando o crucifixo na testa de Lúcio.

A batalha estava perdida para a criatura, o cão se desvencilhou, estilhaçou uma vidraça e abandonou a casa de Susana.

As crianças ficaram tristes com a fuga de Lúcio, puseram cartazes de “Cão perdido” nos postes, mas não o encontraram.

Numa noite, Susana voltava da casa duma vizinha e teve a sensação de estar sendo vigiada. Olhou para trás e avistou uma sombra, esgueirando-se por entre os carros estacionados. Ela se apressou, mas, antes de cruzar o portão, viu um cão negro, olhos de fogo, rondando-a.

Por isto, apenas por garantia, o crucifixo roubado se tornou enfeite sobre a mesa de jantar. Deus certamente a perdoaria por este pecado.

10/09/2007


Fonte: Fantasmas, Vampiros, Demônios e histórias de outros Monstros — Henry Alfred Bugalho — Oficina Editora, 2013.

O Filho Morto


Quando Luiz morreu, minha esposa ficou em choque por dias. Talvez eu não tenha sido tão afetado quanto ela pelo simples fato que, quando algo como isto ocorre, alguém tem de manter o equilíbrio. Se todos desabam, que rumo resta a ser tomado? Ou talvez eu apenas não tivesse assimilado a desgraça, fingindo que tudo continuava como antes.

À noite, enquanto Tatiana permanecia no quarto, sedada, eu me levantava e ia até o quarto de Luiz, ler histórias para ele dormir. Apesar da cama vazia, eu tinha a plena sensação de que ele estava ali, rindo das fábulas, as pálpebras pesadas, lutando contra o sono.

A culpa que Tatiana alimentava não era de todo infundada, Luiz estava com ela quando tudo ocorreu, cruzavam a rua, o sinal aberto para os carros, mas Tatiana jura que não havia perigo. Luiz deixou cair a chupeta, sua mãozinha se soltou da de Tatiana, e ele voltou para buscá-la.

Nenhum pai deveria passar pelo que passei, ir ao necrotério e ver o pequeno corpo do filho estraçalhado, crânio esfacelado, rosto desfigurado, quase nenhum osso intacto, após ter sido atropelado por um ônibus. Nenhum!

E tantas memórias surgem naquele momento, entre aqueles segundos em que a porta se abre e, num relance, já se pode ver o corpo embalado num saco preto, e torcendo para que, quando o médico abrisse o zíper, fosse o filho de outro, fosse uma outra criança de três anos, dominado por este egoísmo que nos faz esquecermos de que as outras pessoas também sofrem. Mas não era o filho de outro, não era um Pedro, nem um João, era o meu Luiz, quase irreconhecível com o rosto ocultado pela crosta de sangue coagulado. E as memórias nos afogam, retornando ao primeiro instante, Tatiana me ligando no celular, choro de alegria na voz, mal articulando a simples frase “Você vai ser papai!”, o coração batendo mais forte e, contagiado pela alegria dela, choramos juntos pelo telefone, e como nos maravilhávamos ao vermos aqueles borrões do ultra- som que insistiam em dizer que era o coraçãozinho do bebê, o pintinho dele, ele chupando o dedo, e a angústia do parto, todo aquele sangue saindo da minha mulher, e aquela criatura cabeçuda, enrugada, chorando e tremendo, e as recordações das primeiras noites, nós embasbacados, postados ao lado do berço, admirando o ser que havíamos concebido, e o primeiro sorriso, as primeiras palavras, o engatinhar, os primeiros passos. Tudo encerrado ao se abrir o zíper, Luiz morto; não, não era o filho de outro.

Tatiana foi para a casa da mãe. Eu estava encarregado da triste tarefa de retirar os pertences de Luiz de casa, dá-los a alguém, jogá-los fora, qualquer coisa. Mas não consegui, ao abrir a porta, vi Luiz sentado na cama, pernas balançando, olhinhos brilhando:

— Vamos brincar, papai?

Passei a tarde brincando com Luiz, mesmo sabendo que o corpo dele estava na casa funerária, sendo preparado para o velório, mesmo sabendo que Tatiana estava devastada e que adoraria estar comigo agora, brincando com nosso filho.

Como eu poderia me livrar do quarto de Luiz, se ele ainda estava lá?

Tranquei o cômodo, todos os móveis dentro.

Minha esposa retornou para casa, ainda sob influência de calmantes.

Porém, durante a sedação, ela resmungava:

— Afonso, você está ouvindo? Você está ouvindo o riso de Luiz?

E eu acarinhava os cabelos dela, aquiescendo:

— É claro que sim, Tati, ele está no quarto dele, brincando.

Pois o cadáver de Luiz já havia sido sepultado, mas ele ainda estava conosco. O que era uma grande alegria para nós, mais do que mero consolo.

Aos poucos, Tatiana se recuperou e, ao invés de ir sozinho contar histórias para Luiz, agora Tatiana me acompanhava. Ficávamos até de madrugada, mesmo após Luiz ter adormecido, sentados na cama dele, admirando-o, agradecidos pela segunda chance que Deus nos havia dado.

No entanto, numa tarde, ao chegar em casa do trabalho, Tatiana estava sentada na cozinha, pernas unidas, mãos entrelaçadas, olhar desesperado.

— O que aconteceu? — perguntei.

— Algo não está certo... — Tatiana hesitava — algo não está certo com Luiz.

— Como assim?

Sem muita confiança, ela me pegou pelo braço e me levou até o quarto do nosso filho. Eu abri a porta, mas o clima alegre, pueril, que costumava predominar, havia desaparecido. O quarto estava na penumbra, um cheiro de carne apodrecida, e Luiz de pé, voltado para a parede, num dos cantos.

— Algum problema, Luiz? — gaguejei.

Ele se virou e todo meu corpo começou a tremer; aquele menino não era o Luiz que eu conhecia, pelo menos não aquele ao qual contei fábulas nas noites anteriores. O rosto estava magro e ressecado, o olhar fundo, os braços e pernas contorcidos, o crânio afundado.

— Vocês precisam me deixar ir embora — ele disse.

— Mas você não pode — gemi — Você é o nosso filhinho.

Sem sustentação dos membros fraturados, ele cambaleou até a cama e se deitou. Fiz menção de me aproximar, para cobri-lo com o lençol, mas ele me repeliu com um olhar de ódio.

— Não, — ele disse — eu quero ir embora. Meu verdadeiro pai me chama.

— Quem é o seu verdadeiro pai? — indaguei.

Os olhos de Luiz miraram um ponto ao pé da cama, instintivamente, eu também olhei pra lá e, por um segundo, tive a impressão que um vulto ou sombra estava de pé ali. Recuei para a porta.

— Mas não queremos que você vá, meu filho — Tatiana choramingava.

— Eu preciso — e, ao dizer isto, Luiz se virou da cama, insinuando que pretendia dormir.

Depois desta noite, eventos mórbidos passaram a nos atormentar. Até aquele momento, nosso filhinho nunca havia deixado seu quarto, mas, agora que ele queria partir, Luiz fazia questão de incomodar nossa rotina. Certa vez, enquanto eu tomava banho, ouvi um risinho do outro lado da cortina, e uma silhueta que se aproximava. Abri uma fresta, Luiz me encarava, tapava a boca, ria.

Noutra vez, Tatiana cozinhava, o som duma gaveta se abrindo. Era Luiz, faca afiada na mão, apontando para minha esposa:

— Posso te ajudar, mamãe?

Mas o pior foi quando eu e Tatiana fazíamos amor, ela sobre mim, olhos fechados, minhas mãos nos seios dela, e meus pelos todos se arrepiaram, senti a presença de alguém e avistei, nas sombras, num canto, o crânio afundado de Luiz. Brochei e, ao mesmo tempo, tomei uma resolução:

— Tatiana, precisamos nos livrar deste menino!

Naquela mesma noite, fomos ao quarto do Luiz e o informamos:

— Você nos pediu para o deixarmos partir. Pode ir, quando quiser.

Mas a resposta do nosso filho foi enigmática:

— Não é tão simples, papai. Vocês têm de me deixar ir.

Não entendemos. Desde a mudança de comportamento dele, tudo que mais desejávamos era que ele fosse embora, deixasse-nos em paz. Mas ele não ia, continuava nos pregando sustos, espionando-nos, abrindo gavetas e portas de armários.

A herança católica de Tatiana falou mais alto, ela correu para a igreja que não frequentava há anos e implorou auxílio ao padre. Este veio, passeou por nosso apartamento, requisitou entrada no quarto de Luiz, por fim, emitiu seu parecer:

— Não vejo nada de extraordinário aqui, minha filha. Isto não é obra de demônio.

Mas, mesmo assim, sob súplicas de Tatiana, ele concordou em benzer nossa casa, espargindo água-benta por todos os cômodos.

De nada adiantou, Luiz continuava lá e, agora, zombava de nossos esforços para nos livrarmos dele. Ele estava muito transformado, pouco recordava aquele menino doce que havia sido nosso filho, era apenas um ser diabólico, uma criatura deformada e irônica.

Após o padre, perfizemos uma sucessão de “profissionais” na área da paranormalidade, um médium espírita, um pai-de-santo, um pastor, mas ninguém conseguia nos ajudar.

Na TV, vimos um programa no qual aparecia uma mulher que dizia falar com os mortos, conversou ao telefone com telespectadores e revelou informações impressionantes sobre eles. Esta entrevista nos convenceu a ligarmos para esta mulher e a chamarmos para nos auxiliar com Luiz.

Ela veio, entrou sozinha no quarto e saiu dele assustadíssima.

— Eu conversei com seu filho — ela nos disse — com o ser que um dia foi ele, quero dizer. Ele quer partir, mas vocês não deixam. Luiz está acorrentado a esta casa.

— O que devemos fazer? — eu me desesperava.

— Não é nada simples. Enquanto o corpo e a memória de Luiz ainda existirem, ele não partirá. Façam o que eu digo e tenho certeza de que tudo ficará bem.

Seguindo as indicações da médium, dirigi-me a uma casa de ferragens; em casa, Tatiana estava incumbida de esvaziar o quarto de Luiz, queimar as roupas deles e todos os objetos e brinquedos que lhe eram caros.

Para não ser apanhado, esperei anoitecer, pulei o muro do cemitério e, auxiliado por uma lanterna, encontrei o túmulo de Luiz. Com uma picareta, derrubei a abertura inferior do túmulo, retirando os tijolos. Avistei o caixãozinho dele e já podia puxá-lo para fora.

Ainda com a picareta, abri a tampa do caixão, revelando o esverdeado corpo apodrecido de Luiz, porém, eu estava tão acostumado com este aspecto dele, pois era assim que ele se manifestava a nós, que nem me impressionei. Abracei o cadáver e o tirei do esquife, jogando-o sobre um lençol, no qual o enrolei.

Reinseri o caixão vazio no túmulo, lancei o corpo embrulhado no ombro e me apressei a deixar o cemitério, arremessando Luiz por sobre o muro, secundando-o sem demora.

Dirigi por horas, até chegar a uma estrada de terra. Na madrugada, enveredei-me por uma trilha no matagal. Quando atingi um local que considerei seguro, estacionei e removi o cadáver do porta-malas.

Este seria o momento mais difícil, seguir passo-a-passo as prescrições da médium. Utilizando-me duma agulha para couro e um grosso barbante, costurei a boca de Luiz; em seguida, com um serrote, separei a cabeça do corpo; por fim, embebi o defunto em querosene e ateei fogo.

Levei muito tempo alimentando as chamas, até que os restos mortais se tornassem irreconhecíveis. Cavei uma cova com quase um metro de profundidade e sepultei Luiz. O sol estava nascendo.

Voltei para casa arrebentado. Cheguei e fui direto para o quarto do Luiz, completamente vazio, as cortinas abertas, um local bem diferente, renovado, luminoso. Tomei um banho e fui me deitar, ronquei até, pelo que Tatiana me contou. Sentíamos bem, um peso havia sido erguido de nossas costas, prometíamos a nós mesmos que nos esqueceríamos de tudo e, talvez, um dia, até riríamos do que aconteceu.

Assistíamos televisão no quarto, ouvi um ruído vindo de fora. Tatiana segurou minha mão.

— O que foi isto, Afonso?

— Não sei — levantei-me, fui até a porta e a abri um pouco. Espiei, não vi nada, mas o ruído continuava, no quarto que havia sido do Luiz. Na ponta dos pés, caminhei até lá e entrei. O terror me dominou, absurdamente, incompreensivelmente, o quarto de Luiz estava todo reconstruído, os móveis, os brinquedos, a decoração, e, sentado no chão, estava um ser carbonizado, costuras na boca e a cabeça se equilibrando sobre o pescoço.

A criatura me fitou com olhos ensanguentados e murmurou por entre as costuras:

— Por que você não me deixa ir, papai?

Desde então, somos obrigados a conviver com esta aberração. Mantemos o quarto sempre fechado, fingimos não percebermos quando Luiz nos espia, ou passa correndo, derrubando algum objeto da sala. É difícil, mas somente assim conseguimos manter a sanidade e continuar nossas vidas.

Este é o nosso segredo, meu e de Tatiana, e, às vezes, me angustia a certeza de que Luiz só sossegará quando eu e ela também estivermos mortos. Somente assim, ele poderá partir.

Nova York
09/08/2007



Fonte: Fantasmas, Vampiros, Demônios e histórias de outros Monstros — Henry Alfred Bugalho — Oficina Editora, 2013.