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segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A Mão do Hindu

Todos sabem que Sir Dominick Holden, o famoso cirurgião da Índia, fez-me seu herdeiro, e, desse modo, transformou um médico pobre num opulento proprietário. Muitos, também, sabem que, pelo menos, cinco pessoas se atravessaram em meu caminho, por julgarem a escolha de Sir Holden arbitrária ou caprichosa.

A estas, posso assegurar que estão redondamente enganadas e que, embora eu conhecesse Sir Holden apenas nos últimos tempos de sua vida, ninguém fez mais por lhe merecer a estima. Posso, mesmo, afirmar que, em toda sua vida, ninguém fez mais por ele. Não pretendo que aceitem a minha afirmativa, nem que creiam no que vou contar; parece obra de pura imaginação; mas, como me sinto no dever de contá-la, aqui a ponho, quer me creiam, quer não.

Sir Dominick Holden foi o mais notável cirurgião da Índia, no seu tempo. Começou no Exército mas, depois, estabeleceu-se, como particular, em Bombaim, donde era clamado para todos os pontos da Índia. Seu nome está muito ligado ao Hospital Oriental, por ele fundado e mantido. Tempo veio, entretanto, em que a sua constituição de ferro começou a dar sinais de cansaço, fazendo com que seus colegas (talvez não desinteressadamente) unânimes em aconselhá-lo a voltar à Inglaterra. Sir Holden resistiu quanto pôde, até que seu estado se agravou e ele ressurgiu em Londres, alquebrado, em busca de Wiltshíre, sua terra de nascimento. Lá, adquiriu uma grande propriedade, na fímbria da Alisbury Plain, e consagrou seus últimos anos ao estudo da Anatomia Comparada, que era sua vocação e na qual se tornara autoridade Mundial.

Nós, da família, ficamos muito excitados com a volta Já esperada de tio tão rico e sem filhos. Sir Holden, embora nada exuberante na hospitalidade, mostrou que tomava os parentes em linha de conta, a cada um de nós mandando, alternativamente, convite para uma estada lá. Desejava conhecer-nos. Por um primo, tive informação de que essas estadas eram bem melancólicas e, em vista disso, foi com idéias mal definidas que me dirigi para lá, quando minha vez chegou.

Minha mulher fora tão deliberadamente excluída do convite, que o meu primeiro ímpeto foi recusá-lo; mas, havia interesses em jogo – interesses dos filhos e, movido pela insistência de todos, pus de lado o ressentimento e, numa tarde de outubro, parti para sem, nem por sombras, imaginar o que iria suceder. A propriedade de meu tio estava situada na planície de terras aráveis, alternadas com morretes de grés, caraterísticas do condado de Wiltshire. Quando desci na estação de Dinton, ao apagar-se daquele dia de outono, senti-me impressionado pelo tom de magia da paisagem. Os escassos cottages de camponeses ficavam tão minúsculos diante dos restos da vida pré-histórica, que o presente se me afigurava um simples sonho e, o passado, uma realidade esmagadora. O caminho coleava ao sabor de vales rasgados entre morros, em cujos topos se erguiam fortificações, redondas umas, outras quadradas, desafiadoras da ação dos ventos e das chuvas através dos séculos. Uns as atribuem aos romanos; outros, aos bretões; mas, a sua verdadeira origem está muito entrelaçada de possibilidades para que possa ser tirada a limpo. A espaços, nas encostas escarpadas, emergem restos de túmulos. Neles subsistem as cinzas dos cadáveres cremados, da raça que esburacou daquela maneira a montanha. Uma urna de barro em cada túmulo conta que ali se dissolveu um homem que já viveu sob o sol.

Foi através dessa impressionante paisagem que me aproximei da residência de meu tio, em Rodenhurst, solar que se casava harmoniosamente com o meio. Dois pilares, corroídos pelo tempo e encimados de, emblemas heráldicos, flanqueavam o portão de entrada. Um renque de olmos seguia-se, agitado pelo vento gelado e a desfazer-se das folhas amarelecidas. Ao fim desse túnel vegetal, uma lâmpada. Era já quase noite, mas pude apanhar a vivenda em osso. Suas roupas penduram pelos ombros, em visão de conjunto uma casa baixa, que se estirava em duas alas desiguais, bem no estilo dos Tudors. Certa janela, com persianas, mostrava luz dentro, era o gabinete de meu tio, para onde me levou um criado. Encontrei-o junto à lareira, tiritando ao áspero frio do outono inglês. Não estava acesa a lâmpada, de modo que vi Sir Holden à luz do braseiro, cabeça grande, nariz de índio, rosto sulcado de rugas, como marcas sinistras de oculto fogo vulcânico. Sir Holden ergueu-se para receber-me, num gesto de cortesia grata às tradições do velho solar. Um criado veio acender as lâmpadas e pude ver que um par de olhos, penetrantes como o das águias, escondidos debaixo do espesso das sobrancelhas scouts atrás das moitas estavam lendo o meu caráter e os meus pensamentos, com a facilidade dum mestre nos segredos da vida. Eu não Podia despegar dele os meus olhos, porque jamais vira diante de mim uma criatura mais digna de nota. Um verdadeiro gigante, mas despido de carnes e só pareciam vazias, como as que se num cabide de guarda-roupa. As mãos eram só nós; as pernas, magríssimas. Os olhos, porém, aqueles perscrutadores olhos azuis, impressionavam mais que tudo.

Não pela cor, apenas, nem pelo fato de estarem emboscados sob as sobrancelhas espessas mas pela expressão. Do seu todo agigantado e senhoril, era de esperar-se, naqueles olhos, uma expressão de arrogância; ao invés disso, tinha a que emana de um espírito acovardado e agachado, com o furtivo e expectante do olhar do cachorro que vê o senhor levantar o chicote. Mentalmente, murmurei o meu diagnóstico, com base naquela expressão.

Vi que meu tio estava em luta com alguma doença mortal, dessas que extinguem uma vida repentinamente e percebi que isso o aterrorizava. Era o chicote erguido. Tal foi o meu diagnóstico mas errado, como os acontecimentos o provaram. Menciono-o para que o leitor acompanhe a marcha das minhas impressões. A recepção de meu tio foi, como já disse, cortês, e. uma hora depois, vi-me sentado entre ele e sua esposa, à mesa de jantar, diante de iguarias requintadas, e servido por criados do Oriente. O velho casal voltava, tragicamente, ao viver antigo dos começos do casamento, agora que se viam no fim da vida, sozinhos, sem amigos íntimos, já com a missão cumprida e à espera apenas do ponto final. Os que chegam a essa estação, com suavidade e amor, os que transformam o seu inverno em outono, saem da vida como vencedores. Lady Holden era uma criatura franzina e viva, com olhares para o marido, que eram certificados do nobre caráter do velho companheiro.

Entretanto, embora eu lesse amor mútuo naqueles olhos, também lia um mútuo terror, que interpretei como o medo do fim. A conversa de um ou de outro era, às vezes, alegre, às vezes, triste mas percebi esforço na nota alegre e muita naturalidade na nota triste o que me esclareceu sob o estado real dos corações que lhes palpitavam no peito.

Estávamos no primeiro copo de vinho, e os criados já haviam deixado a sala, quando a conversa tomou rumo imprevisto. Não me lembro o que nos pós naquele caminho, a debater o sobrenatural, assunto que me levou a discorrer sobre estudos psíquicos, aos quais me tenho devotado, como muitos outros neurologistas. Expus a experiência feita com membro da Psychical Research Society, quando, com mais três colegas, passara uma noite num prédio assombrado. Era um caso de nenhum modo excitante, ou convincente; mesmo assim, interessou meus tios no mais alto grau.

Ouviram-me em completo silêncio, trocando, a espaços, olhares que não pude compreender. Logo depois, Lady Holden ergueu-se da mesa e saiu da sala. Sir Holden ofereceu-me charutos e pusemo-nos a fumar em silêncio. Notei que sua mão, toda ossos, estremecia ao levar o charuto à boca, e por esse detalhe conheci que seus nervos vibravam como cordas de violino. Pressenti que estava na iminência duma confissão e calei-me, para melhor precipitá-la. Por fim, voltou-se na cadeira e teve um gesto de quem lança de si os últimos escrúpulos. Do pouco que sei, vi e ouvi do Senhor, Dr. Haracre, disse- me e, verifico que é exatamente o homem que procuro.

Encanta-me muito ouvir isso, Sir. Sua cabeça me parece firme e fria. Não suponha que eu esteja a lisonjeá-lo. As circunstâncias são por demais sérias para que eu perca tempo com insinceridades. O senhor tem conhecimentos especiais destes assuntos e os vê de um ponto de vista filosófico, que lhes tira toda a vulgaridade. Diga-me: acha que poderia assistir a uma aparição, sem impressionar-se de maneira desastrosa? Perfeitamente, Sir. E interessa-se por isso? Profundamente. Como observador psíquico, pode o Senhor ponderar sobre o fato, de um modo impessoal, como o astrônomo pondera sobre um cometa que surge? Exatamente, Sir.

O velho deu um prolongado suspiro. Creia-me, Dr. Hardacre, que houve tempo em que eu não podia falar como estou agora falando. Minha calma ficara famosa, na Índia. Ainda durante os dias trágicos da insurreição dos cipaios, essa calma não me abandonara por um só instante. E, no momento, veja ao que me acho reduzido. Sou a mais apavorada criatura de todo o condado de Wiltshire. Não fale muito arrogantemente dessa matéria, que se arrisca a um terrível teste como o que tive - um teste que poderá levá-lo ao hospício ou ao túmulo.

Esperei pacientemente que Sir Holden entrasse no âmago da sua confidência. Aquele prefácio enchera-me de curiosidade.

De alguns anos a esta parte, começou ele, a minha vida, e a de minha mulher, tornou-se profundamente miserável, por um motivo que parece grotesco. E a familiaridade com esse motivo, ao invés de tudo atenuar, como faz toda familiaridade, mais e mais me destrói os nervos pelo atrito constante. Se o Senhor não sente o medo físico, Dr. Hardacre, eu terei muito gosto em ouvir sua opinião sobre o fenômeno que tanto nos perturba. Embora pouco valha minha opinião, estará ela inteiramente ao seu serviço, Sir. Poderei saber a natureza desse fenômeno? Creio que sua opinião terá maior valor se de nada for informado antecipadamente. O Senhor sabe muito bem a ação das impressões subjetivas sobre o objetivo, e deve guardar-se de tê-las a prejudicar a experiência. Que devo fazer, então?

Vou dizer. Quer ter a bondade de acompanhar-me? E, assim dizendo, Sir Holden levou-me para fora da sala, rumo a um grande laboratório, cheio de instrumentos científicos. Uma prateleira corria pela parede, com dezenas de vidros contendo preparações anatômicas. O Senhor vê que eu ainda insisto nos meus velhos estudos, disse o famoso cirurgião. Estes frascos constituem os remanescentes da preciosíssima coleção que perdi no incêndio de minha casa, em Bombaim, no ano de 1892. Foi um grande desastre na minha vida, sob vários aspectos. Eu possuía exemplares únicos, em matéria de desvios anatômicos. Restam-me estes sobejos.

Corri os olhos pela coleção, e notei que eram realmente objetos de grande valor, pela raridade do ponto de vista patológico – órgãos anormais, ossos mal formados, distúrbios parasitários, uma singular exibição de transtornos orgânicos, coletados na Índia.

Temos, aqui, um divã disse o velho sábio. Nunca foi minha intenção oferecer a um meu hóspede tão incómodo leito; mas, já que as coisas chegaram a este ponto, seria interessante que o Senhor consentisse em passar a noite neste laboratório. Isso, caso não lhe repugne fazê-lo. Decida com toda a sinceridade. Bem pelo contrário, Sir. Será com grande prazer que me submeterei à experiência. Meu quarto é o segundo à esquerda e, se necessitar de mim, para o que quer que seja, não tenha escrúpulos em chamar-me.

Espero não ser forçado a perturbar o seu repouso, Sir. Não receie acordar-me. Raro durmo. Estarei sempre alerta, e às suas ordens.

Não foi afetação ou exagero de minha parte dizer que sentiria prazer em passar a noite ali. De nenhum modo pretendo ter mais coragem física do que qualquer outro; mas a familiaridade com um assunto atenua a sua impressão sobre nós. O cérebro humano é capaz duma só emoção forte cada vez, mas, se está tomado de curiosidade, ou entusiasmo científico, não cabe nele o medo. É verdade que eu ouvira de meu tio o contrário disto atribuí o fato à fraqueza e decadência dos seus nervos. Eu, pelo contrário, estava perfeito de saúde e nervos, e, por isso, ansioso como o caçador pela caça. Fechei a porta do laboratório e deitei-me no divã. Não era o ambiente ideal para um quarto de dormir. Ar pesado e impregnado de cheiros de drogas, entre os quais predominava o do álcool mitílico. As decorações, igualmente, eram nada sedativas.

Havia a odiosa prateleira de relíquias de doenças horrorosas a tomar-me os olhos para onde quer que os voltasse. As janelas não tinham cortinas, de modo que a lua, em minguante, punha na parede fronteira um quadrilátero de prata. Quando apaguei a lâmpada, essa claridade assumiu singular importância. Silêncio absoluto pela casa inteira, e tal que o rumor das brisas nas árvores, lá fora, chegava até mim. E, ou fosse o embalo hipnótico desses sussurros externos ou o cansaço dum dia de viagem, cheio de emoções, breve me senti imerso em sono profundo. Fui despertado por um rumor qualquer, que imediatamente me fez sentar no divã. Algumas horas já se haviam passado, de modo que o quadrilátero de luar mudara de posição, aproximando-se de mim.

O resto da sala desaparecia, imerso na escuridão. A princípio, nada vi; depois, à medida que meus olhos se iam afazendo à penumbra, verifiquei, com um arrepio pelo corpo, que qualquer coisa movia ao longo da prateleira. Um som macio, como de sandálias, chegou-me aos ouvidos, e, vagamente discerni um vulto humano, que caminhava cauteloso.

Ao cruzar pela faixa de luz, pude distingui-lo com precisão. Era um homem atarracado, vestido duma espécie de burel escuro, que lhe caía, liso, dos ombros aos pés. Tinha a cor do chocolate e, na cabeça, uma massa de cabelos negros enrodilhada atrás, como certas mulheres usam. Caminhava lentamente, com os olhos fixos na direção dos frascos cheios dos horríveis resíduos humanos. O vulto ergueu as mãos. Não foi bem isso. Ergueu os braços, em gesto de desespero, e percebi que tinha só uma das mãos. O braço direito terminava em um coto. Em tudo mais, era um homem qualquer, podendo passar por um dos criados de Sir Holden que ali houvesse entrado em busca de qualquer coisa. Unicamente a sua súbita aparição é que me sugeriu algo de sinistro. Levanteime, acendi a lâmpada e examinei cuidadosamente a sala. Não havia sinal do meu visitante e tive de concluir que sua aparição representava algo fora das leis naturais que conhecemos. Fiquei acordado pelo resto da noite, porém, nada mais aconteceu. Sou madrugador, mas o meu tio o era ainda mais. Quando deixei o laboratório, já o encontrei medindo passos, à frente da casa. Ao ver-me, precipitou-se ao meu encontro.

— Então?! — exclamou. — Viu-o? Um indiano sem uma das mãos?

— Sim. Vi-o, sim.

Contei-lhe tudo quanto ocorrera. Ao concluir, Sir Holden encaminhou-se para o seu gabinete.

Temos algum tempo antes do breakfast, disse ele. Bastará para que eu lhe dê uma explicação deste mistério se é que posso explicar o inexplicável. Em primeiro lugar, se eu lhe disser que, de quatro anos para cá, tanto em Bombaim como a bordo ou aqui, ainda não se passou uma só noite sem que o meu sono fosse perturbado por essa aparição, o Senhor compreenderá o motivo deste meu miserável estado. O programa é sempre o mesmo. Surge à beira do meu leito, sacode-me rudemente pelos ombros, seque para o laboratório, caminha lento na direção da prateleira e desaparece. Por mais de mil vezes, já fez isso.

Que é que ele quer? Quer a sua mão. Sua mão... Sim, só quer isso. Vou contar. Fui, uma vez, chamado, o Peshawer, para uma consulta, dez anos atrás, e, nessa ocasião, tive ensejo de examinar um hindu, que passava numa caravana afegã. Esse: hindu das montanhas, lá do outro lado de Kaffrístã, falava um dialeto pushtoo. Foi tudo quanto pude saber. Sofria duma inchação sarcomatosa, na junta de um dos metacarpos, e verifiquei que somente lhe amputando a mão poderia salvar-lhe a vida. Após muita luta, o homem consentiu em ser operado e, depois da operação, pediu-me a conta. O pobre homem não passava dum quase mendigo, de modo que a idéia de conta soava absurda e respondi, brincando, que aceitava, como pagamento, o membro amputado, para o ter na minha coleção. Com surpresa minha, o hindu resistiu à proposta, explicando que, de acordo com as suas crenças, era matéria muito importante que o corpo se apresentasse inteiro, depois da morte. Esta crença é muito espalhada, e encontreia também no Egito. Lembrei-me que a mão já estava cortada e que ele não tinha meios de conservá-la para reuni-la ao corpo, depois que morresse. Respondeu-me que a conservaria em sal, trazendo-a sempre consigo, o que me fez alegar que estaria mais segura comigo, pois possuía melhor meio de conservá-la do que o sal. O homem compreendeu minha alegação e cedeu, dizendo: Sim, Sahib, mas lembre-se de que quero que ma devolva, depois que eu morrer. Ri-me dessa exigência e o caso ficou por aí. Voltei à minha vida habitual, enquanto o operado, já de vida salva, pôde pensar na sua viagem para o Afeganistão. Mas, como lhe contei ontem, fui vítima daquele incêndio, em Bombaim. Metade de minha casa foi destruída e, com ela, quase toda a minha coleção. O que salvei foi quase nada. A mão do hindu perdeu-se no incêndio. Dois anos depois, fui, certa noite, despertado por um vigoroso puxão na manga. Sentei-me na cama, certo de que meu cachorro entrara no quarto. Em vez do cachorro, vi diante de mim o hindu operado, vestido no burel que lá usam, a olhar-me com expressão de censura, enquanto estendia o braço sem mão. Em seguida, caminhou ao longo da prateleira de frascos, que nessa época eu conservava em meu quarto. Examinou-os todos e, com um gesto de cólera, desapareceu. Compreendi que acabara de falecer e que, tal como prometera, tinha vindo buscar a mão que me dera para guardar.

Eis aí o caso, Dr. Hardacre. Todas as noites, desde essa época, e à mesma hora, o fato se repete. Isso há já quatro anos. O efeito causado em mim pode equiparar-se ao do suplício da gota de água. Trouxe-me a insônia, porque não há dormir possível com o pensamento no que a horas tantas vai fatalmente suceder. Isso envenena-me os últimos anos de vida, e também os de minha mulher, que é companheira em tudo. Nesse momento, soou a campainha, anunciando o breakfast.

Vamos para a sala de jantar. Minha mulher deve estar ansiosíssima por saber como o Senhor passou a noite. Estou muito grato pela coragem com que nos assistiu. porque o fato de uma terceira pessoa haver testemunhado a aparição tira-nos um peso da alma – a hipótese de ser loucura nossa: minha e de minha mulher. Foi essa a história que Sir Holden me narrou, uma história que para muitos parecerá da mais grotesca impossibilidade mas que, depois da minha experiência daquela noite, e também por causa das minhas experiências anteriores sobre a matéria, fui forçado a admitir como verdade pura. Após o breakfast, surpreendi meus hospedeiros com a notícia de que ia regressar a Londres pelo primeiro trem. Meu caro Doutor, disse Sir Holden tomado de surpresa, o Senhor faz-me crer que errei perturbar a sua estada aqui, pondo-o no conhecimento da minha estranha história.

É justamente esse assunto que me leva a Londres, respondi, mas de nenhum modo suponha que a minha experiência desta noite me fosse desagradável. Ao contrário, tanto que peço permissão para voltar à tarde, a fim de passar mais uma noite naquele divã.

Meu tio sossegou, e eu parti. Fui reler, em meu consultório, a passagem dum livro recente sobre ocultismo, que não me estava clara na memória. Essa passagem dizia assim: Quando uma idéia muito forte obseda uma criatura no momento de morrer, basta isso para mantê-la presa a este mundo material. Tornam-se quais verdadeiros anfíbios desta vida e da outra, e capazes de passar de uma para outra como a tartaruga passa da água para a terra. As causas que tão fortemente podem amarrar uma alma à vida que O corpo abandonou as emoções violentas. Avareza, vingança, ansiedade, amor e piedade, têm efeitos bastante conhecidos, neste pormenor. Em regra, tudo provém de um desejo violento, e só quando esse desejo se satisfaz o espírito se acalma. Há muitos casos que mostram a estranha insistência desses visitantes, ou o seu desaparecimento, depois que o desejo que os move é satisfeito ou quando um pacto se realiza. Quando um pacto se realiza esta era a frase sobre a qual eu estava incerto e queria firmar-me. No caso de Sir Holden, só um pacto poderia atender à situação. Quem sabe se não estava ali o remédio que ele tanto procurava? Tomei o primeiro trem para o Shadwell Seamens Hospital, onde o meu velho amigo Hewett era cirurgião. Sem entrar em explicações, fi-lo compreender exatamente o que eu queria. Uma mão morena! exclamou Hewett, atônito. Que raio quer fazer com ela? Não se preocupe com as minhas razões. Depois contarei tudo. Neste momento, preciso duma mão hindu e sei que há, aqui, muitas.

Isso lá é, mas... e o meu amigo, depois de refletir uns segundos, tocou a campainha.

Travers, disse ao auxiliar que apareceu, que fim levaram as mãos daquele lascar operado ontem? Aquele camarada da East India Dock, que foi colhido numa engrenagem? Estão no necrotério, Sir. Embrulhe-me uma delas e traga-ma. Foi assim que regressei a Rodenhurst, com aquele estranho embrulho, a tempo de alcançar o jantar. Nada contei a Sir Holden e, à noite, antes de deitar-me no divã, coloquei a mão morena num dos frascos de conserva, a certa distância de mim. Tão interessado fiquei pelos resultados da minha experiência, que nem pensei em dormir. Sentei-me, com a lâmpada bem sombreada pelo shade, e pus-me a esperar, com toda a paciência. Dessa vez, vi tudo claramente, desde o começo. O hindu apareceu na direção da porta, como na véspera, mas apareceu nebuloso; depois, fixou-se nas formas humanas. Trazia sandálias vermelhas, sem salto, o que explicava o macio do andar. Corporificou-se, e fez tudo como fazia sempre, caminhou na direção da prateleira de frascos e deteve-se diante do que continha a mão amputada. Agarrou o frasco, examinou-o, mas, com todos os sinais da fúria no rosto, arremessou-o por terra. O barulho inundou a casa e o hindu desapareceu imediatamente. Um momento depois, a porta abriu-se e Sir Holden entrava.

Não está ferido? Que houve? Ferido, não. Apenas desapontado. Sir Holden olhou com espanto para os destroços do frasco e para a mão morena, que jazia sobre o assoalho. Meu Deus! Que é isto? Contei-lhe, então, tudo. Sir Holden ouviu-me atento e meneou a cabeça.

Foi bem pensado, disse ele, mas receio que não seja fácil pôr termo aos meus sofrimentos. Numa coisa, porém, insisto. É que nunca mais durma aqui, nem se preocupe por mais tempo com este caso. Meu pavor de que alguma coisa lhe houvesse acontecido, quando ouvi o barulho, foi maior que todas as agonias lentas que ando sofrendo. Não quero expor-me a ver a repetição disso. Sir Holden, entretanto, permitiu-me passar o resto da noite ali, onde fiquei a lamentar o desastre da minha experiência. A luz da manhã veio iluminar a mão do lascar ainda no chão. Pus-me a mirá-la, e de súbito uma idéia me fuzilou no cérebro, que me fez saltar do divã, trêmulo de emoção. De fato, a mão do lascar era a esquerda! Pelo primeiro trem, corri ao Seamens Hospital, terrivelmente apavorado com a hipótese de que a mão direita do hindu já houvesse ido para o forno crematório. Meu susto não durou muito tempo. Ainda lá estava o precioso objeto, que iria salvar a vida de um homem de ciência. E voltei para Rodenhurst, com a mão direita do lascar. Sir Holden, entretanto, não quis, nem por nada, que eu dormisse de novo no laboratório. Foram inúteis todas as minhas tentativas. Achava que isso ia de encontro a todas as regras da hospitalidade. Tive de colocar a mão direita do lascar no laboratório e ir acomodar-me num quarto próximo. Mas, a despeito disso meu sono foi do mesmo modo interrompido. Altas horas da noite, meu tio apareceu-me no quarto, de lâmpada em punho. Seu vulto agigantado vinha envolto num enorme pijama, e sua aparição seria mais terrível para um espírito desprevenido do que a do próprio hindu sem mão. Todavia, não foi a sua entrada o que me espantou e sim a expressão do seu rosto. Parecia remoçado vinte anos. Os olhos brilhavam, todo seu rosto irradiava e sua mão erguia-se no ar, em gesto de triunfo.

Sentei-me na cama e arregalei os olhos. Deu certo! Deu certo! – gritava ele. Meu caro Hardacre, como poderei pagá-lo do benefício que me fez? Explique-me isso. Que é que deu certo. Sir Holden? Creio que o meu amigo não ficará aborrecido de ser arrancado ao sono, para ouvir a grande nova. Mas, que é? Não tenho mais dúvida nenhuma e tudo o devo ao meu querido sobrinho. Nunca esperei isto de homem nenhum. Que poderei fazer que pague tão enorme beneficio? Foi a Providência que o mandou aqui para me salvar. Salvou-me a vida e a razão, porque eu não suportava mais este inferno em vida. O manicômio ou o túmulo já estavam à minha espera. E minha pobre mulher, a coitada! Nunca, nunca imaginei que essa carga pudesse ser arredada dos nossos ombros e, dizendo isto, abraçava-me com alegria infantil.

Foi apenas uma experiência, uma tentativa, e estou encantado que desse resultado. Mas, como sabe que está tudo bem? Viu alguma coisa? Sir Holden sentou-se à beira da minha cama. Vi tudo, disse ele. O Senhor sabe que, a horas certas, a criatura aparecia infalivelmente em meu quarto. Hoje veio, como de costume, e despertou-me, ou antes, puxou-me pela manga ainda mais violentamente que das outras. Parece que a decepção da véspera o irritara ao extremo. Olhou-me cheio de cólera e afastou-se, rumo ao laboratório. Poucos instantes após, vi-o de volta e, desde o inicio da sua perseguição, era a primeira vez que voltava ao meu quarto. Vinha sorrindo. Vi-lhe os dentes alvíssimos de fora. Parou na minha frente e por três vezes curvou-se, no clássico salaam, que é o modo solene de despedir-se dos orientais. Na terceira curvatura, seus braços ergueram-se à altura da cabeça e eu vi duas mãos desenharem-se no ar. Depois, esvaiu-se e creio que para sempre.

Eis narrada a curiosa experiência que me conquistou a afeição e gratidão desse meu famoso tio. Suas suposições realizaram-se, porque, desde essa noite, nunca mais foi perturbado pelas visitas do hindu maneta. Sir Dominic Holden e Lady Holden tiveram uma velhice muito feliz, sem nuvens, vindo a morrer por ocasião da grande epidemia de gripe, com diferença de semanas um do outro. Pelo resto de sua vida, nunca mais o bom velho deixou de consultar-me sobre tudo quanto dizia respeito à vida inglesa, da qual se afastara por muitos anos. Também o auxiliei na compra de outras propriedades, que lhe aumentaram os domínios. Não foi, portanto, nenhuma surpresa para mim quando o seu testamento me colocou na frente de cinco furiosos sobrinhos e me transformou de modesto médico de província em chefe de uma importante família de Wiltshire. Graças ao hindu de mão cortada, meu destino mudou-se completamente.





por Arthur Conan Doyle

O Demônio da Tanoaria

Não foi coisa fácil trazer o "Gamecock" até a ilha, porque o rio arrastara tanta lama que os bancos se estendiam muitas milhas pelo Atlântico a dentro. A costa ainda mal se via quando a primeira linha branca de arrebentação nos preveniu do perigo, e desse ponto em diante avançamos com muito cuidado com a vela grande e a bujarrona, conservando a arrebentação da água bem para a esquerda, como estava indicado na carta.

Mais de uma vez a quilha tocou na areia (estávamos calando um pouco mais de seis pés, naquela ocasião) mas tivemos sempre jeito e porte para passar. Finalmente, a água encheu-se rapidamente de bancos, mas tinham mandado uma canoa da feitoria e o piloto Krooboy levou-nos até uma distância de duzentas jardas da ilha.

Aí lançamos ferro, porque os gestos do negro indicavam que não podíamos esperar avançar mais. O azul do mar mudara para o castanho do rio e mesmo ao abrigo da ilha a corrente cantava e remoinhava em volta da nossa proa. A maré parecia estar cheia porque passava acima das raízes das palmeiras e, por todos os lados, sobre sua superfície barrenta e oleosa podíamos ver pedaços de madeira e destroços de toda espécie que tinham sido arrastados pela enxurrada.

Quando me certifiquei de que estávamos firmes em nossa ancoragem, pensei que era melhor começar a tomar água imediatamente, porque o lugar parecia inquinado de febres. O rio denso, os bancos lamacentos e lodosos, o verde brilhante e venenoso da mata, o vapor úmido no ar, eram outros tantos sinais para quem soubesse lê-os. Mandei portanto arriar o escaler com dois grandes odres, que seriam suficientes para durar até chegarmos a São Paulo de Loanda. Quanto a mim, tomei o bote pequeno e remei para a ilha, porque podia ver a bandeira inglesa flutuando acima das palmeiras para marcar a posição do entreposto comercial de Armitage & Wilson.

Depois de passar para além do pequeno bosque pude ver o lugar, uma construção baixa, comprida, caiada, com profunda varanda na frente e imensas pilhas de barris de óleo de palma de ambos os lados. Uma fila de caíques e canoas estava amarrada ao longo da praia e um simples pontão se projetava pelo rio. Dois homens de roupa branca, com faixas vermelhas em volta da cintura, estavam esperando na extremidade para me receber. Um era um camarada grande e corpulento, de barba grisalha. O outro era magro e alto, de rosto pálido, enrugado, meio escondido sob um grande chapéu em feitio de cogumelo.

— Muito prazer em vê-lo — disse este último, cordialmente. — Sou Walker, agente de Armitage & Wilson. Permita-me apresentar-lhe o Doutor Severall, da mesma companhia. Não é muitas vezes que vemos um iate particular nestas paragens.

— É o Gamecock — expliquei — Sou o proprietário e comandante. Meldrum é o meu nome.

— Explorador? — perguntou ele.

— Sou um entomologista — um caçador de borboletas. Estive fazendo a costa oeste, do Senegal para baixo.

— Bom esporte? — perguntou o doutor, voltando para mim um olhar lento, amarelado.

— Tenho quarenta caixas cheias. Viemos aqui para tomar água e também para ver o que tem na minha especialidade.

Estas apresentações e explicações tomaram o tempo durante o qual os meus dois Krooboys amarraram o caíque. Então caminhei pelo pontão com um dos meus novos conhecidos de cada lado, ambos crivando-me de perguntas porque não viam um homem branco havia meses.

— O que fazemos? — disse o doutor quando comecei a fazer perguntas por minha vez. — Nosso negocio dá-nos bastante que fazer, e nas horas vagas discutimos política.

— Sim, por especial mercê da Providencia, Severall é um radical ferrenho e eu sou um unionista inflexível, e discutimos o "Home Rule" durante duas boas horas todas as tardes.

— E bebemos coquetéis de quinino — disse o doutor. — Agora já estamos ambos bem "salgados", mas nossa temperatura normal era de 80 graus no ano passado! Como conselheiro imparcial, não lhe recomendaria ficar aqui por muito tempo, a menos que queira colecionar bacilos, além de borboletas. A embocadura do rio Ogowai nunca será um clima saudável.

Não há nada mais interessante do que a maneira pela qual aqueles marcos avançados da civilização conseguem destilar bom humor da situação desolada em que se encontram, e mostram cara não só calma como alegre às contingências que a vida possa trazer. Por toda a parte desde a Serra Leoa para baixo, encontrei os mesmos pântanos pestilentos, as mesmas comunidades isoladas, torturadas pelas febres, e os mesmos maus gracejos. Há qualquer coisa, que toca as raias do divino naquela forca do homem de erguer-se acima das circunstancias e usar a inteligência para zombar das misérias do corpo.

— O jantar estará pronto dentro de uma meia hora, capitão Meldrum — disse o doutor. — Walker foi providenciar a esse respeito; é o encarregado da casa, esta semana. Entretanto, se quiser, poderemos dar uma volta por ai, e eu lhe mostrarei as vistas da ilha.

O sol já descera abaixo da linha de palmeiras, e a grande abóbada do céu sobre as nossas cabeças era como o interior de uma calote imensa, irisada de cor-de-rosa claro e delicadas nuanças. Ninguém que não tenha vivido numa terra onde o peso e o calor de um guardanapo se tornam intoleráveis sobre os joelhos, pode imaginar o abençoado alívio que o frescor das tardes traz consigo. Naquele ar mais leve e mais puro o doutor e eu caminhamos em volta da pequena ilha, ele apontando os armazéns e explicando a rotina do serviço.

— O lugar é um tanto romântico — disse ele, em resposta a alguma das minhas observações sobre a monotonia daquela vida. — Estamos vivendo aqui bem no limiar do grande desconhecido. Ali — continuou apontando para o nordeste — penetrou Du Chaillu e encontrou a terra dos gorilas. É o país de Gabão — a terra dos grandes símios. Naquela direção — apontando para o sudeste — ninguém avançou muito. A região irrigada por este rio é praticamente desconhecida aos europeus. Cada tronco de árvore que passa por aqui arrastado pela corrente vem de território inexplorado. Desejei muitas vezes ser melhor botânico quando vi singulares orquídeas e plantas de aspecto curioso que encalharam na extremidade oriental da ilha.

O lugar que o doutor indicava era uma praia em declive, literalmente coberta pelos destroços arrastados pela corrente. Em cada extremidade havia uma ponta curva, formando uma espécie de quebra-mar natural, de modo que havia uma pequena baía entre as duas. Esta estava cheia de vegetação flutuante, com um único grande tronco de árvore atravessado no meio, e de encontro ao qual a correnteza vinha quebrar-se.

— Isto é tudo lá de cima — disse o doutor. — Ficam presas em nossa baía até que alguma nova enxurrada desce e são novamente arrastadas para o mar.

— Que árvore é aquela?

— Oh, uma variedade de teca, imagino, mas bastante apodrecida, ao que parece. Chega-nos toda espécie de grandes árvores de madeira de lei flutuando até aqui, para não falar das palmeiras. Venha cá, por favor.

Conduziu-me até um comprido edifício, com enorme quantidade de aduelas de barris e aros de ferro espalhados lá dentro.

— Isto é a nossa tanoaria — disse — Mandam-nos as aduelas em amarrados, e nós montamos os barris aqui. Agora, não acha nada de particularmente sinistro neste edifício, pois não?

Olhei em volta, para o alto do telhado de zinco corrugado, para as paredes de madeiras caiadas e para o chão de terra batida. A um canto havia um colchão e um cobertor.

— Não vejo nada de muito alarmante — disse eu.

— E no entanto há qualquer coisa fora do comum, também — observou ele — Vê aquela cama? Bem, tenciono dormir nela esta noite. Não quero gabar-me, mas acho que é uma boa experiência para os nervos.

— Por que?

— Oh, tem acontecido umas coisas engraçadas. Estive falando a respeito da monotonia da nossa vida, mas asseguro que ela é às vezes tão excitante quanto poderíamos desejá-lo. Seria melhor voltarmos para a casa, agora, porque depois do crepúsculo começa a vir-nos o nevoeiro da febre lá dos pântanos. Ali, pode vê-lo vir através do rio.

Olhei e vi longos tentáculos de vapor branco subindo em espirais de entre o denso matagal verde e arrastando-se em nossa direção por sobre a larga superfície crespa do rio barrento. Ao mesmo tempo o ar se tornou de súbito úmido e frio.

— Lá está o gongo do jantar — disse o doutor. Se este assunto lhe interessa, falar-lhe-ei sobre ele depois.

Interessava-me muito, porque havia qualquer coisa de sério e contrafeito nas suas maneiras enquanto ele estava parado na tanoaria deserta, que me excitava fortemente a imaginação. Era um homem grande, resoluto, aquele doutor, e no entanto vislumbrei-lhe um curioso brilho nos olhos quando os passeava em sua volta — uma expressão que eu não descreveria como sendo de medo, mas antes como a de um homem que está alerta e em guarda.

— Incidentalmente — disse eu quanto voltávamos para a casa — mostrou-me as cabanas de grande parte de seus auxiliares nativos, mas não vi qualquer um deles.

— Dormem no batelão, acolá — respondeu o doutor, apontando para um dos bancos.

— De fato. Mas esse caso não me parece que precisem das cabanas.

— Oh, usavam as cabanas até bem recentemente. Pusemo-nos no batelão até que recuperem um pouco a confiança. Estavam todos meio loucos de medo, e por isso os deixamos ir. Ninguém dorme na ilha, exceto Walker e eu.

— O que foi que os assustou?

— Bem, isso nos traz de novo à mesma história. Suponho que Walker não fará objeção a que ouça tudo a esse respeito. Não sei por que haveríamos de fazer segredo disso, se bem que seja na realidade um assunto bem desagradável.

Não fizemos qualquer outra alusão ao caso durante o excelente jantar que fora preparado em minha honra. Parecia que, mal a vela branca do "Gamecock" surgira na extremidade do cabo Lopez, aqueles hospitaleiros camaradas tinham começado a preparar a famosa "panela-de-pimenta" — que é o ardente cozido peculiar à costa oeste — a cozinhar os inhames e as batatas doces. Servimo-nos de um jantar nativo tão bom quanto se poderia desejar, servido por um elegante criadinho da Serra Leoa. Estava já observando comigo mesmo que ele pelo menos não tomara parte na conversa geral quando, tendo colocado a sobremesa e o vinho em cima da mesa, ele levou a mão ao turbante.

— mais alguma coisa para eu fazer, Massa Walker? — perguntou.

— Não, acho que é tudo, Moussa — respondeu o meu anfitrião. — No entanto, não estou me sentindo bem esta noite, e preferiria muito que ficasses na ilha.

Vi a luta entre o medo e o dever no rosto do negro africano. Sua pele tomara aquele tom lívido-arroxeado que toma o lugar da palidez nos pretos, e seus olhos giraram furtivamente pela sala.

— Não, não, Massa Walker — exclamou por fim — é melhor que venha para o batelão comigo, patrão. Poderei tomar conta do senhor muito melhor no batelão.

— Isso não serve, Moussa. Os homens brancos não fogem dos postos onde são colocados.

De novo vi a luta desesperada no rosto do negro, e de novo seus receios prevaleceram.

— Não adianta, Massa Walker! — exclamou. — Nem que me batessem, não poderia faze-lo. Se fosse ontem, ou se fosse amanha..., mas esta é a terceira noite, patrão, e é mais do que eu posso suportar.

Walker encolheu os ombros.

— Dá o fora, então — disse. — Quando o navio do correio vier podes voltar para a Serra Leoa, porque não preciso de um criado que me abandona quando mais preciso dele. Suponho que isto tudo é um mistério para o senhor, ou o doutor já lhe contou, capitão Meldrum?

— Mostrei ao capitão Meldrum a tanoaria, mas não lhe contei coisa alguma — disse o doutor Several. — Está com mau aspecto, Walker — acrescentou, olhando para o companheiro. Vai ter um forte acesso.

— Sim, tive calafrios o dia inteiro e agora a minha cabeça está oca como um tambor. Tomei dez grãos de quinino, e meus ouvidos estão zumbindo como uma chaleira. Mas quero dormir com você na tanoaria esta noite.

— Não, não meu caro amigo. Não me fale em semelhante coisa. Deve meter-se na cama já, e tenho a certeza de que Meldrum o desculpará. Vou dormir na tanoaria eu, e prometo-lhe que estarei aqui com o seu remédio antes do café.

Era evidente que Walker fora atacado por um desses súbitos e violentos acessos de febre intermitente que são a praga da costa Oeste. Suas faces macilentas estavam vermelhas, os olhos brilhavam com a febre e, de súbito, ali mesmo sentado como estava, começou a bradar uma canção com a voz esganiçada do delírio.

— Vamos, vamos, temos de levá-lo para a cama, amigo velho — disse o Doutor; e com o meu auxílio conduziu o amigo para o quarto de dormir. Ali o despimos e, em seguida, depois de tomar forte sedativo, caiu em profundo torpor.

— Está bem para passar a noite — disse o doutor, quando nos sentamos e tornamos a encher os copos mais uma vez. — Ora é a minha vez, ora a dele, mas felizmente jamais caímos os dois ao mesmo tempo. Teria pena de ficar inutilizado esta noite, porque tenho um pequeno mistério a desvendar. Disse-lhe que tencionava dormir na tanoaria.

— Disse, sim.

— Quando disse dormir queria dizer montar guarda, porque não poderei dormir. Tivemos um tal alarme aqui que nenhum nativo seria capaz de ficar depois do por-do-sol, e tenciono descobrir esta noite qual pode ser a causa disso tudo. Foi sempre nosso costume ter um vigia noturno dormindo na tanoaria para evitar que os aros sejam roubados. Bem, há seis dias o camarada que dormia lá desapareceu, e não pudemos encontrar a menor pista dele. Era, por certo, singular, porque nenhuma canoa fora roubada e estas águas estão tão cheias de crocodilos que não seria possível um homem atravessá-las a nado. O que aconteceu ao camarada ou como poderia ele ter abandonado a ilha, é um mistério. Walker e eu ficamos surpresos, mas os pretos ficaram assombrados e estranhas histórias de vudu começaram a circular entre eles. Porém o verdadeiro pânico começou quando, há três noites, o novo vigia da tanoaria desapareceu também.

— Que foi feito dele? — perguntei.

— Bem, não só não sabemos como nem sequer podemos ter uma idéia que convenha aos fatos. Os negros juram que há um demônio na tanoaria que exige um homem de três em três dias. Não querem ficar na ilha — nada poderia persuadi-los. Até mesmo Moussa, que é um rapaz de bastante confiança, preferiu abandonar, como viu, o patrão com forte acesso de febre a ficar aqui durante a noite. Se quisermos continuar o negócio neste lugar, teremos de tranqüilizar os nossos negros, e não conheço outra maneira melhor de faze-lo do que ficando eu próprio uma noite lá. Hoje é a terceira noite, sabe, de maneira que espero que a coisa venha, seja lá o que for.

— Não tem qualquer indício? — perguntei — . Não havia qualquer sinal de violência, qualquer mancha de sangue, pegadas, nada que lhe possa dar uma idéia da espécie de perigo que terá que enfrentar?

— Absolutamente nada. O homem desapareceu, e é tudo. Da última vez foi o velho Ali, que tinha sido guarda do cais desde que aqui estamos. Estivera sempre firme como uma rocha e nada senão uma desgraça poderia faze-lo abandonar o serviço.

— Bem — disse eu — realmente não acho que isso seja serviço para um homem só. Seu amigo está cheio de láudano, e haja o que houver, não poderá prestar-lhe o menor auxilio. Vai permitir-me passar a noite com o senhor na tanoaria.

— Bom, isso é na realidade muita bondade sua, sr. Meldrum — disse ele cordialmente. — Não é coisa que eu me tivesse atrevido a propor, pois seria exigir muito de um mero visitante casual, mas se de fato quer...

— Por certo que quero. Se me der licença um momento, chamarei à fala o "Gamecock" e avisá-lo-ei de que não precisam me esperar.

Quando voltávamos da outra extremidade do pontão, ficamos espantados com o aspecto da noite. Enorme montanha de nuvens cor de chumbo elevara-se do lado da terra, e vento vinha daquela direção em pequenas baforadas quentes que batiam nos nossos rostos como as baforadas de uma fornalha aberta. Sob o pontão o rio fazia redemoinhos e escachoava, atirando pequenos salpicos de espuma branca por cima das pranchas.

— Com os diabos! — disse o doutor Severall. — Estamos arriscados a ter uma cheia, por cima de todos os nossos embaraço. Essa subida de nível do rio significa chuvas pesadas no interior, e quando começa ninguém sabe até onde irá. Já tivemos a ilha quase coberta, antes. bem, vamos ver se Walker está passando bem e depois, se quiser, iremos para a nossa vigília.

O doente estava mergulhado em profundo torpor e deixamos algumas limas espremidas em um copo ao lado dele, para o caso que acordasse com a sede da febre. Depois nos encaminhamos através da escuridão insólita lançada pelas nuvens ameaçadoras. O rio subira tanto que a pequena baía que descrevi, e que ficava na extremidade da ilha, estava quase obliterada pela submersão da península lateral. A grande balsa de detritos de madeira com a enorme árvore escura no meio estava derivando para cima e para baixo na corrente engrossada.

— Isso é ma boa coisa que a cheia fará por nós — disse o doutor. — Arrasta todo este lixo vegetal que é trazido para a extremidade leste da ilha. Veio com a correnteza no outro dia e aqui ficará até que uma cheia o arraste para o meio do rio. Bem, aqui está o nosso quarto e aqui estão alguns livros, e a minha bolsa de tabaco e vamos tentar passar a noite da melhor maneira possível.

À luz de nossa única lanterna, o grande salão solitário parecia muito vazio e triste. Salvo as pilhas de aduelas e montes de aros, não havia absolutamente nada nele, exceto o colchão preparado a um canto para o doutor. Fizemos dois assentos e uma mesa com as aduelas e iniciamos, juntos, uma longa vigília. Severall trouxera um revólver para mim e estava ele próprio armado com uma espingarda de caça de dois canos. Carregou as armas e deixou-as ao alcance da mão. O pequeno círculo de luz e as sombras negras que nos envolviam eram tão melancólicas que ele foi até a casa e trouxe duas velas. Um dos lados da tanoaria era, porém, rasgado por várias janelas, e foi somente protegendo as nossas luzes com o auxilio de aduelas que conseguimos mante-las acesas.

O doutor, que parecia ser um homem com nervos de ferro, dedicara-se à leitura de um livro, mas eu observei que de vez em quando o pousava sobre os joelhos e passeava um olhar atento à sua volta. Pelo meu lado, embora tentasse uma ou duas vezes ler, achei impossível concentrar os pensamentos no livro. Voltavam sempre a vaguear por aquele grande salão vazio e silencioso e a prender-se naquele sinistro mistério que o envolvia. Torturei o cérebro procurando qualquer teoria possível que pudesse explicar o desaparecimento daqueles dois homens. Havia o fato positivo que se tinham sumido e nem o menor ponto de referência de como nem para onde. E ali estávamos nós, esperando no mesmo lugar — esperando sem a menor idéia sobre aquilo que esperávamos. Tivera razão em dizer que não era empresa para um só homem. Já era bastante excitante naquelas condições, porém fora alguma no mundo me teria feito ficar ali sem um companheiro.

Que noite infindável e tediosa aquela! Lá fora ouvíamos o murmúrio e rumorejo do grande rio e o soluçar do vento em ascensão. Lá dentro, salvo a nossa respiração, o virar das páginas pelo doutor e o zumbido agudo e fino de algum ocasional mosquito, havia um silêncio pesado. Em certo momento senti o coração subir-me à boca ao mesmo tempo que o livro de Severall caía ao chão e ele se punha em pé de um pulo com os olhos fitos em uma das janelas.

— Viu alguma coisa, Meldrum?

— Não. E você?

— Bem, tive a vaga sensação de movimento do lado de fora daquela janela — Pegou na espingarda e aproximou-se dela. — Não, não se vê nada, e contudo eu seria capaz de jurar que alguma coisa passou lentamente por junto dela.

— Uma folha de palmeira, talvez — disse eu, porque o vento se estava tornando mais forte a cada momento.

— Muito provavelmente — concordou ele, e voltou de novo ao seu livro, mas seus olhos desde então lançavam de vez em quando rápidas olhadelas desconfiadas para a janela. Pus-me a observá-la também, mas lá fora estava tudo quieto.

E então, de súbito, nossos pensamentos foram desviados em outra direção, pelo desabar da tempestade. Um relâmpago encandeador foi seguido por um trovão que abalou o prédio. Mais uma vez e mais outra vinha o vívido clarão e o estrondo de uma peça de artilharia. E então desabou a chuva tropical, retinindo e roncando no telheiro de zinco corrugado da tanoaria. O vasto espaço oco ressoava como um grande tambor. Da escuridão ergueu-se estranha mistura de ruídos, um gorgolejar, respingar, pingar, borbulhar, escoar, gotejar — todos os sons líquidos que a natureza pode produzir, desde o desabar e cantar da chuva até ao surdo escachoeirar do rio. Hora após hora o tumulto se tornou mais forte e mais contínuo.

— Palavra, — disse Severall — vamos ter a mãe de todas as cheias, desta vez. Bem, aí vem a aurora, afinal, e isso é uma bênção. Estamos quase acabando de extirpar a superstição da terceira noite, de qualquer maneira.

Uma luz cinzenta ia invadindo a tanoaria e o dia raiou pouco depois. A chuva estiara, mas o rio cor de café rugia como uma catarata. Sua força me fez recear pela ancoragem do "Gamecock".

— Tenho de ir a bordo — disse eu. — Se ele desgarrar, nunca mais será capaz de subir o rio outra vez.

— A ilha é um ótimo quebra-mar — respondeu o doutor — Posso dar-lhe uma xícara de café se vier até a casa.

Sentia-me enregelado e deprimido, e a sugestão foi bem acolhida. Deixamos a agourenta tanoaria com seu mistério ainda por desvendar e patinhamos pela lama até a casa.

— Temos ali o fogareiro de álcool. Se quiser acendê-lo, irei ver como Walker se sente esta manhã — disse Severall.

Deixou-me, mas voltou logo em seguida com uma cara assombrada.

— Foi-se! — exclamou, com voz rouca.

Aquelas palavras deram-me um calafrio de terror. Fiquei parado com a lâmpada na mão, olhando para ele.

— Sim, foi-se! — repetiu — . Venha ver.

Segui-o sem uma palavra e a primeira coisa que vi quando entrei no quarto foi o próprio Walker deitado na cama, com o pijama de flanela cinza que eu ajuda a vestir-lhe na véspera.

— Não está morto, decerto! — gaguejei.

O doutor estava terrivelmente agitado. Suas mãos tremiam como folhas ao vento.

— Morreu há várias horas.

— Foi a febre?

— Febre! Olhe para o pé dele.

Lancei um olhar para baixo e um grito de horror escapou-me dos lábios. Um dos pés estava não somente deslocado, mas torcido completamente na mais grotesca contorção.

— Santo Deus! — exclamei — . O que terá podido fazer isto?

Severall pousara a mão sobre o peito do morto.

— Apalpe aqui! — sussurrou.

Coloquei a minha mão no mesmo lugar. Não houve resistência. O corpo estava absolutamente fofo e mole. Era como apalpar um boneco de serragem.

— O osso esterno desapareceu — disse Several no mesmo murmúrio assustado. Graças a Deus que ele tinha tomado o láudano. Pode ver-lhe pelo rosto que morreu dormindo.

— Mas quem pode ter feito isso? — Já tenho bastante disso — disse o doutor, enxugando a testa. — Não sei se sou mais cobarde do que os meus vizinhos, mas isto vai além das minhas forças. Se vai para o Gamecock...

— Venha daí! — disse eu, e seguimos. Se não corremos foi porque cada um de nós queria conservar uma última sombra de respeito perante o outro. Era perigoso arriscar-se em uma leve canoa sobre as águas do rio engrossado, mas não paramos um instante para pensar isso. Ele ao leme e eu remando, conseguimos mante-la à tona d’água e chegamos à coberta do iate. Ali, com duzentas jardas de água entre nós e aquela maldita ilha, sentimos que éramos nós mesmos de novo.

— Voltaremos dentro de uma hora ou duas — disse ele — mas precisamos de algum tempo para nos refazer. Não consentiria que os negros me vissem no estado em que eu estava ainda agora nem por um ano de salário.

— Eu disse ao despenseiro para preparar o café. Depois voltaremos — disse eu. — Mas, em nome de Deus, doutor, que concluiu de tudo isto?

— Vai além da minha compreensão; simplesmente além da minha compreensão. Tenho ouvido falar da feitiçaria dos vudus, e ria-me disso, com os outros. Mas que o pobre velho Walker, um cidadão inglês decente, temente a Deus, do século dezenove, tivesse de ser enterrado assim, sem um único osso no corpo — isso me abalou, não nego. Mas olhe para ali, Meldrum; estará aquele seu homem maluco, bêbado, ou que é que ele tem?

O velho Patterson, o homem mais antigo da tripulação, e calmo como as pirâmides, estivera de quarto à popa com um croque para afastar os troncos flutuantes que desciam arrastados pela correnteza. Agora estava de cócoras, com os olhos esgazeados olhando para a frente e o dedo indicador agitando-se furiosamente no ar.

— Olhem para ela! — gritava — Olhem para ela!

E no mesmo instante vimo-la.

Um enorme tronco de árvore preto vinha descendo rio abaixo, com a parte superior apenas lambida pelas águas. E na frente dele — cerca de três pés a frente — arqueando-se para cima como a figura de proa de um navio, via-se uma cabeça terrível, balançando devagar de um lado para o outro. Era achatada, malévola, do tamanho de um pequeno barril de cerveja, cor de fungo desbotada, mas o pescoço que a sustentava era mosqueado de amarelo e preto. Enquanto passava ao longo do costado do Gamecock arrastada no torvelinho das águas, vi duas imensas roscas distenderem-se de dentro de um grande buraco no tronco, e a horrenda cabeça ergueu-se de súbito à altura de oito ou dez pés, fitando o iate com olhos sombrios, cobertos de escamas.

— Que é aquilo? — exclamei.

— É o nosso demônio da tanoaria — disse o doutor Severall tornando-se em um instante o mesmo homem resoluto, confiante em si próprio que fora antes — . Sim, aquilo é o diabo que andou assombrando nossa ilha. É a grande serpente píton do Gabão.

Pensei nas histórias que ouvira ao longo de toda a costa sobre os monstruosos constritores do interior, do apetite periódico, e os efeitos assassinos de seu aperto mortal. Então, tudo tomou forma no meu espírito. Houvera uma inundação na semana anterior. Trouxera rio abaixo aquele enorme tronco com seu horrendo ocupante. Quem sabe de que distante floresta tropical teria vindo? Ficara detido na pequena baía a leste da ilha. A tanoaria era a construção mais próxima. Duas vezes, com a volta do apetite periódico, carregara um vigia. Nessa noite voltara sem dúvida, quando Severall julgou ver qualquer coisa movendo-se na janela, mas as nossas luzes tinham-na afastado. Seguira para diante e matara o pobre Walker.

— Por que não o carregou? — perguntei. — Os trovões e relâmpagos devem ter assustado o bruto. Aí vem o despenseiro, Meldrum. Quanto mais depressa tomarmos café e voltarmos à ilha, melhor, porque alguns negros poderiam pensar que tivemos medo.


por Arthur Conan Doyle

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Arthur Conan Doyle

"O mundo está cheio de coisas óbvias, que ninguém, em momento algum, observa!."
Conan Doyle

Todo livro é uma onda sonar. A comparação pode parecer esdrúxula, mas não existe analogia mais exata. O escritor cria sua onda no mundo; ela se choca em vários lugares e produz novas ondas que retornam ao escritor. Nunca se tem controle — o mínimo que seja — sobre esse retorno, e o fato dele existir é o que torna escrever, ao menos para mim, uma atividade tão interessante.

No caso de Conan Doyle, essa onda tornou-se um vagalhão totalmente incontrolável — e até indesejável! — pelo escritor. Já dura 120 anos e prova que uma personagem pode extravasar seu criador e torná-lo escravo de suas vontades.

Doyle nasceu na Escócia, mais precisamente na cidade de Edimburgo, no dia 22 de maio de 1859. Era filho de um pintor, Charles Doyle, e de Mary Foley Doyle, ambos de descendência irlandesa.

Entrou na Universidade de Edimburgo em 1876, visando formar-se em medicina. Lá conheceu o Dr. Joseph Bell, cirurgião, cujos métodos de diagnóstico serviram de espelho para que Doyle criasse o detetive mais famoso do mundo. Em sua autobiografia, o escritor narra um episódio dessa peculiar figura:

"Bell era um homem excepcional, tanto no intelecto quanto no físico. Era magro, rijo, moreno, com um rosto comprido e nariz reto, penetrantes olhos cinzentos, ombros angulosos e um jeito desengonçado de caminhar. Tinha uma voz aguda e dissonante. Cirurgião de grande habilidade, seu ponto forte, entretanto, era o diagnóstico - não só da doença, mas da ocupação de índole do paciente. Por algum motivo que nunca atinei, selecionou-me, num grupo de estudantes que freqüentava a sua clínica, e fez de mim o secretário da ala, o que significa que eu tinha que classificar os seus pacientes, fazer anotações simples sobre cada caso e conduzi-los, um de cada vez, para a ampla sala onde Bell ficava sentado, rodeado de enfermeiros e alunos. Tive então muitas oportunidades de estudar os seus métodos e de verificar que, com freqüência, bastavam-lhe umas poucas olhadelas para saber mais, sobre o paciente, do que eu descobria com minhas perguntas. Vez por outra, os resultados chegavam a impressionar, embora em uma ou outra ocasião ele se enganasse. Um de seus casos mais notáveis foi quando ele se dirigiu a um paciente vestido à paisana:

"Quer dizer, meu amigo, que você serviu o exército?"

"Sim, senhor."

"E não faz muito tempo que deu baixa?"

"Não senhor."

"Um regimento de Highlands?"

"Sim, senhor."

"Acantonado em Barbados?"

"Sim, senhor."

"Como podem ver, cavalheiros", explicou-nos, "embora se trate de um homem respeitador...ele não tirou o chapéu. Não se tira, no exército. Entretanto, se ele tivesse dado baixa há muito tempo, teria assimilado hábitos de civil. Ele tem um ar de autoridade, e é, evidentemente, um escocês. Quanto a Barbados, o problema dele é elefantíase - doença das Índias Ocidentais, e nem um pouco britânica". Para sua platéia de Watsons, tudo pareceu milagroso, até a explicação, quando então tornou-se muito simples. Não é de admirar que, após ter observado um personagem desses, eu tenha usado e ampliado seus métodos mais tarde, quando me propus a criar um detetive científico, que resolvia os casos devido ao seu mérito próprio, e não à estupidez do criminoso. Bell interessava-se vivamente por essas histórias de detetive, e até dava sugestões - as quais devo dizer, não eram muito práticas.”

Graças aos comentários elogiosos dos amigos sobre suas cartas, Conan Doyle achou que poderia perceber algum dinheiro com literatura e se animou a escrever seu primeiro conto: “O Mistério de Sassassa Valley”. Ele foi publicado anonimamente pela miserável quantia de três guinéus no Chamber’s Journal, em 1879. O texto já continha a idéia do escritor sobre a aparição de uma “besta demoníaca”, tema usada na mais célebre história de Sherlock Holmes, “ O cão dos Baskervilles”. Sobre a publicação desse primeiro conto, afirmou Doyle:

“Para minha imensa alegria e surpresa, ela foi aceita pelo Chamber's Journal, e recebi 3 guinéus. Pouco me importou o fracasso de outras tentativas. Eu havia vencido uma vez, e consolava-me pensar que venceria de novo. Anos se passaram até que eu chegasse de novo ao Chamber's, mas em 1879 publiquei um conto, A História do Americano (The American's Tale), na London Society, recebendo por ele módico cheque...".

Nos anos de 1880 e 1881, o escritor trabalhou em um navio de caça a baleia e em um outro, como médico de bordo. Viajou pelo Ártico e pela costa ocidental da África, angariando valores um pouco menos insignificantes para ajudar a família.

Ao retornar instalou um pequeno consultório em Portsmouth, onde, devido a escassez de Conan Doyle e Houdineclientes, passou a dedicar seu tempo livre à literatura. Mas precisava de bons personagem, e assim nasceu Sherlock Holmes, que por pouco não seria Sherringford Holmes, e o coadjuvante mais famoso da história, doutor Watson: “Que nome dar ao personagem? Ainda possuo a folha de caderno onde anotei várias alternativas. Rebelei-me contra o artifício de colocar nos nomes insinuações sobre o caráter, com personagens chamados Sharp (Agudo) ou Ferret (Furão). Primeiro, foi Sherringford Holmes; depois Sherlock Holmes. Ele não poderia contar as próprias proezas, de forma que era preciso dar-lhe um companheiro banal - um homem culto e ativo, capaz tanto de acompanhá-lo em suas aventuras, quanto narrá-las. Um nome simples e banal para esse homem modesto. Watson serviria. Foi assim que surgiram os meus fantoches e escrevi Um Estudo em Vermelho (A Study in Scarlet)"

No entanto, Um Estudo em Vermelho perambulou de editora em editora, tendo as constantes recusas deixado o autor “magoado, pois tinha certeza de que merecia sorte melhor”. Somente em 1986, a Ward, Lock & Co. mandou-lhe uma pequena nota:

Primeira edição de "Um Estudo em vermelho""Prezado Senhor,

Seu conto foi lido por nós e nos agradou. Não podemos publicá-lo este ano, uma vez que o mercado se encontra saturado de ficção barata, mas, se o senhor não fizer nenhuma objeção a que ele saia no próximo ano, podemos pagar £25 pelos direitos de autor.
Atenciosamente,
Ward, Lock & Co.

30 de out. de 1886.”

Doyle quase não aceitou a proposta (eu também ficaria MUITO reticente, depois da ficção barata), não tanto pelo valor quase irrisório, mas pela demora, pois achava que o livro poderia lhe abrir caminhos. Entretanto, em vista da série de negativas, resolveu garantir a publicação. O livro foi lançado no ano de 1987 e, não obstante as constantes reedições em todo o globo, doyle só ganhou os tais £25 por ele.

O sucesso do livro (principalmente nos Estados Unidos, pois na Inglaterra não se saiu tão bem) abriu as portas para o escritor, sem no entanto lhe permitir abandonar o consultório, mesmo com os pacientes correndo na direção contrária. Em contrapartida, tinha tempo para escrever, e diversos contos de Holmes foram publicados em uma revista londrina.

Nesse ponto de sua vida é que Doyle nos mostra quão pouco os escritores têm controle sobre o que escrevem: após duas séries do detetive, ele resolveu buscar outros ares, e por fim as suas histórias. Aproveitou a catarata de Reichenbach, a qual havia conhecido durante umas férias na Suíça, e a transformou no túmulo de Sherlock no livro "O Problema Final", publicado em 1893. O alarido de desgosto dos leitores foi tão surpreendente quanto poderoso, sendo organizado até passeata pelas ruas de Londres.

Mesmo assim, o autor foi reticente por dez anos, até que as propostas se tornaram financeiramente irrecusáveis. Em 1903 surge "A Aventura da Casa Vazia", no qual o detetive reaparece, sob o escopo de uma escapada fantástica.

Nesse interlúdio, Doyle auxiliou seu país no conflito com a África do Sul, supervisionando um hospital estabelecido na África e escrevendo artigos defendendo os interesses da Inglaterra. Por esses atos recebeu, em 1902, o título de Sir.

Doyle criou ainda o famoso Professor Challenger, de “O Mundo Perdido”, além de ter escrito vários artigos e livros sobre a doutrina espírita, religião que abraçou.

Morreu aos 71 anos, em 1930, devido a complicações de um ataque cardíaco. Os livros de Sherlock Holmes, apesar do atrito entre o criador e a criatura, o imortalizaram, angariando uma legião de fãs em todo mundo. Uma prova disso é que até hoje os correios londrinos recebem cartas endereçadas a 221-B Baker Street, endereço do escritório do perspicaz detetive.

Romances de Sherlock Holmes

Um Estudo em Vermelho (1887), O signo do quatro (1890), O Cão dos Baskervilles (1902), O Vale do Medo (1915)

Coletânea de contos Holmes:

As Aventuras de Sherlock Holmes (1892), As Memórias de Sherlock Holmes (1894), A Volta de Sherlock Holmes (1905), Seu Último Adeus (1917), O livro de casos de Sherlock Holmes (1927), Coleção completa de histórias de Sherlock Holmes (1928).

O Funil de Couro

Meu amigo, Lionel Dacre, morava na Avenue de Wagram, em Paris. Sua casa era dessas comuns, tendo grades de ferro e um espaçoso gramado na frente, e ficava no lado esquerdo se você viesse pelo Arco do Triunfo. Imagino que ela já existia ali bem antes da construção da avenida, pois as telhas cinzas estavam manchadas de líquens, e as paredes mostravam-se emboloradas e desbotadas pelo tempo. Vista da rua, dava a impressão de ser uma casa pequena, com cinco janelas na fachada, se estou bem lembrado, mas que se estreitava para o fundo até reduzir-se a um único amplo aposento.

Era ali que Dacre colocara a singular biblioteca de literatura de ocultismo, e as fantásticas curiosidades que consistiam, ao mesmo tempo, na sua paixão predileta e num divertimento para seus amigos. Homem abastado, de gostos excêntricos e refinados, ele investira boa parte da sua vida e da sua fortuna em reunir o que se dizia ser a única coleção particular de obras cabalísticas, talmúdicas e de artes mágicas, muitas das quais de grande raridade e valia. Suas preferências inclinavam-se para o maravilhoso e o monstruoso, e tenho ouvido dizer que os experimentos que fazia no campo do desconhecido haviam transposto todos os limites do civilizado e do decente.

Ele jamais fez referências sobre esses assuntos a seus amigos ingleses, assumindo sempre a postura do estudioso e do especialista; mas um francês, cujos gostos eram da mesma natureza que os de Dacre, assegurou-me que os piores excessos da missa negra haviam sido perpetrados naquele amplo e alto salão, que se alongava entre as estantes de livros e os mostruários de seu museu.

A aparência de Dacre era suficiente para mostrar que seu acentuado interesse nesses assuntos psíquicos era de ordem intelectual antes que espiritual. Não havia o menor vestígio de ascetismo naquela face robusta, e sim muita energia mental no volumoso crânio em formato de abóbada, que se elevava em curva por entre delgados anéis de cabelo, como um pico nevado acima da orla de abetos.

Seu conhecimento eramaior que sua cautela, e suas faculdades eram bem superiores ao seu caráter. Os pequenos olhos claros, afundados no rosto carnudo, cintilavam com inteligência e uma inabalável curiosidade pela vida, mas eram olhos de alguém sensual e egotista. O que foi dito sobre esse homem é o suficiente, pois agora já é morto, pobre coitado, morto exatamente no momento em que estava certo de haver finalmente descoberto o elixir da vida. Não é do seu caráter complexo que irei me ocupar, mas com o incidente muito estranho e inexplicável que ocorreu durante a visita que lhe fiz no início da primavera de 1882.

Conheci Dacre na Inglaterra, porque minhas pesquisas no salão assírio do Museu Britânico foram conduzidas ao mesmo tempo em que ele tentava estabelecer um significado místico e esotérico a tabuinhas de argila com inscrições da Babilônia, e tal coincidência de interesses foi a causa da nossa aproximação. Comentários casuais converteram-se em conversações diárias, e essas foram nos conduzindo a algo próximo da amizade. Prometi a ele que na seguinte viagem que fizesse a Paris, iria visitá-lo. Quando foi possível cumprir a promessa, eu estava morando numa pequena casa em Fontainebleau, e como os trens noturnos eram inconvenientes, ele me convidou a passar a noite em sua casa.

— Tenho somente aquela peça disponível – disse ele, apontando para um largo sofá em sua ampla biblioteca. — Espero que possa ficar confortável ali.

Era um singular quarto de dormir, com as altas paredes cobertas de volumes encadernados de capa marrom, mas não haveria mobília mais agradável para um rato de biblioteca da minha espécie, e minhas narinas não sentiriam melhor perfume que o leve, sutil cheiro característico que se exala de um velho livro. Disse a ele que não podia desejar aposento mais encantador e ambiente mais apropriado.

— Se as armações não são nada convenientes nem convencionais, são pelo menos valiosas – disse ele, olhando as estantes em torno. — Investi cerca de um quarto de milhão em dinheiro nesses objetos que o cercam. Livros, armas, jóias, esculturas, tapeçarias, imagens – dificilmente haverá aqui algo que não tenha a sua história, geralmente digna de ser contada.

Enquanto dizia essas coisas, ele estava sentado a um lado da espaçosa lareira e eu do outro lado. A mesa de leitura ficava a sua direita e o forte candeeiro acima dela lançava um vívido círculo de luz. No centro da mesa, um palimpsesto semi-enrolado tinha ao redor vários e estranhos artigos de antiquários. Um deles era um volumoso funil, como aqueles usados para encher tonéis de vinho. Parecia ser feito de madeira negra, com as bordas revestidas de latão descorado.

— Eis ali uma coisa curiosa – observei. — Qual é a sua história?

— Ah! – disse ele – é exatamente a pergunta que mais de uma vez tive ocasião de fazer a mim mesmo.Gostaria muito de saber a resposta. Vamos, pegue o funil, examine-o.

Foi o que fiz, descobrindo que aquilo que eu imaginara ser madeira era na realidade couro, embora o tempo o tivesse endurecido ao extremo. Era um enorme funil, e deveria conter pouco mais de um litro quando cheio. O latão recobria as bordas do círculo maior, mas a ponta do funil era também revestida de metal.

— O que você acha disso? – perguntou Dacre.

— Poderia imaginar que pertenceu a algum negociante de vinho ou fabricante de malte da Idade Média – respondi. — Já vi na Inglaterra jarros de couro do século dezessete, para servir bebidas – eram chamados de black jacks. Tinham a mesma cor e solidez dessa peça.

— Arrisco afirmar que esse funil é mais ou menos da mesma data – disse Dacre – e, sem dúvida, também era usado para encher recipientes com líquidos. Se as minha suspeitas forem corretas, contudo, um estranho vinhateiro foi quem o usou e o recipiente a ser enchido, bastante singular. Você não observa nada fora do comum na extremidade mais estreita?

Quando o levantei próximo da luz, pude verificar que numa estreita faixa, cinco polegadas acima do bico de metal, o gargalo de couro do funil estava todo esfolado e riscado, como se alguém tivesse feito cortes ao redor com uma lâmina cega. Somente nessa faixa ocorria isso; a parte restante da superfície negra e fosca não apresentava qualquer aspereza.

— Alguém experimentou cortar o gargalo.

— Você chamaria a isso de corte?

— Está lacerado e esfiapado. Foi preciso alguma força para deixar essas marcas em material tão resistente, qualquer que tenha sido o instrumento utilizado. Mas, e você, o que pensa disso? Acho que você sabe mais do que está dizendo.

Dacre sorriu e seus olhinhos experientes piscaram.

— Você incluiu a psicologia dos sonhos entre os seus assuntos de estudo? – indagou.

— Eu nem mesmo soube até agora da existência de tal psicologia.

— Meu caro senhor, aquela prateleira acima da vitrine de jóias está repleta de livros, de Alberto Magno e outros autores. Tratam exclusivamente desse assunto que, em si mesmo, é uma ciência.

— Uma ciência de charlatães.

— O charlatão é sempre o pioneiro. Do astrólogo surgiu o astrônomo, do alquimista o químico, do mesmeriano o psicólogo experimental. O impostor de ontem é o professor de amanhã. Mesmo coisas tão sutis e impalpáveis como os sonhos serão, no devido tempo, submetidas a sistema e ordem. Quando chegar esse tempo, as pesquisas de nossos amigos daquela prateleira de livros deixarão de ser divertimento dos místicos para se tornarem os fundamentos de uma ciência.

— Supondo que isso seja verdadeiro, que relação pode existir entre a ciência dos sonhos e um funil enorme, negro, com as bordas revestidas de latão?

— Vou contar-lhe. Você sabe que tenho um agente que está sempre atento em relação às raridades e curiosidades de interesse para a minha coleção. Alguns dias atrás ele ouviu falar que um negociante do cais do Sena havia adquirido algumas velhas quinquilharias encontradas num armário de uma casa antiga, aos fundos da rua Mathurin, no Quartier Latin. A sala de jantar dessa velha residência era decorada com um escudo de armas, que continha insígnias, e listas vermelhas sobre um fundo prateado, o que, após investigações, foi comprovado ser o escudo de Nicolas de la Reynie, alto funcionário do rei Luís XIV. Não resta nenhuma dúvida de que os demais artigos encontrados no armário datavam-se de antes do início desse reinado. A inferência é que, por conseguinte, todos os artigos eram propriedade desse Nicolas de la Reynie, que foi, pelo que sei, o cavalheiro que se ocupou com a manutenção e execução das draconianas leis da época.

— E daí?

— Eu pediria a você para segurar uma vez mais o funil e examinar a borda superior, revestida de latão.

Havia por certo alguns arranhões sobre ela, quase apagados pelo tempo. O efeito geral era o da existência de diversas letras gravadas; a última delas mostrava certa semelhança com um B.

— Trata-se de um B, não é?

— Acho que sim.

— Penso também desse modo. Na verdade, não tenho dúvida alguma de que se trata de um B.

— No entanto o nome do aristocrata que você mencionou tinha R por inicial.

— Exatamente! Eis a beleza da coisa. Ele possuía este curioso objeto e, entretanto, o objeto tinha as iniciais de outra pessoa gravadas nele. Por que o guardava?

— Não posso imaginar. Você pode?

— Bem, talvez possa ter uma hipótese. Você consegue ver algum desenho um pouco adiante, nessa mesma borda?

— Eu diria que é o desenho de uma coroa.

— É de fato uma coroa; mas se você examiná-la sob uma boa luz, vai ficar convencido de que não é uma coroa qualquer. É uma coroa heráldica – um emblema de distinção, e esse aí se compõe alternadamente de quatro pérolas e quatro folhas de morangueiro, o emblema representativo de um marquês. Podemos inferir, portando, que a pessoa cujas iniciais terminam com a letra B possuía o título que lhe dava direito ao uso desse diadema.

— Então, esse vulgar funil de couro pertenceu a um marquês? Dacre sorriu de modo peculiar.

— Ou a algum membro da família de um marquês – disse ele. — Isso é tudo que podemos claramente reunir a propósito dessa borda gravada. — Mas o que tudo isso tem a ver com sonhos?

Eu não sei se era algo na expressão do rosto de Dacre, ou qualquer sutil sugestão advinda de seus gestos, mas um sentimento de repulsa, de horror irracional tomou conta de mim, enquanto olhava aquele antigo e rugoso volume de couro.

— Mais de uma vez tenho recebido informações importantes por intermédio de meus sonhos – disse meu companheiro, com o didatismo característico em sua maneira de falar. — Agora faço disso uma norma: sempre que duvido das informações obtidas sobre qualquer objeto, lembro de colocá-lo próximo a mim, quando vou dormir, e fico na expectativa de algum esclarecimento a seu respeito. Tal procedimento não me parece absurdo, embora não tenha ainda merecido as benções da ciência ortodoxa. De acordo com minha teoria, um objeto associado intimamente a qualquer paroxismo da emoção humana, seja de alegria ou de sofrimento, conservará uma certa atmosfera ou ligação com esse evento, capaz de ser comunicada a uma mente sensível. Quero significar, por mente sensível, não uma sensibilidade fora do normal, mas uma inteligência treinada e educada como a sua ou a minha.

—Você quer dizer que, por exemplo, se eu dormir junto daquela velha espada, que está ali na parede, posso sonhar com algum episódio sangrento do qual aquela mesma espada fez parte?

— É um excelente exemplo, pois, a bem da verdade, eu próprio usei aquela espada com esse propósito, e vi no meu sonho a morte de seu possuidor. Morreu durante uma movimentada escaramuça, que não fui capaz de identificar, mas que ocorreu na época das guerras frondistas. Se você pensar a respeito desse assunto, algumas de nossas lendas populares mostram que esse fenômeno já era reconhecido por nossos ancestrais, embora nós, com a nossa sabedoria, as tenhamos classificado entre as superstições.

— Por exemplo?

— Bem, o costume de colocar gulodices de noiva debaixo do travesseiro, de modo que, ao dormir, tenha ela sonhos agradáveis. Este é um dos diversos exemplos que você poderá encontrar num folheto que eu mesmo escrevi sobre o tema. Mas, voltando ao que interessa, dormi certa noite com esse funil ao meu lado, e tive um sonho que sem dúvida projetou uma curiosa luz sobre seu uso e sua origem.

— O que sonhou você?

— Eu sonhei... – Ele fez uma pausa e uma compenetrada expressão de interesse surgiu em seu rosto imponente —.Por Júpiter, é uma ótima idéia! – exclamou. — Realmente vai ser uma experiência muitíssimo interessante. Você é um indivíduo dotado de psiquismo, com nervos que respondem prontamente a qualquer impressão.

— Nunca fiz testes comigo mesmo nessa direção.

— Pois vai testar hoje à noite. Seria demasiado pedir-lhe, como um grande favor, para colocar o velho funil ao lado de seu travesseiro, quando você for deitar-se no sofá?

Tal solicitação pareceu-me grotesca; mas devo admitir que, na complexidade da minha natureza, existe um fascínio para tudo que é bizarro e fantástico. Não acreditava nem um pouco na teoria de Dacre, nem esperava qualquer êxito nesse tipo de experiência; entretanto, seduzia-me o fato de que ela pudesse ser realizada. Dacre, com muita seriedade, levou uma banqueta à cabeceira do sofá e colocou o funil sobre ela. Depois disso, após uma breve conversação, desejou-me boanoite e saiu da sala.

Fiquei algum tempo ali, sentado, fumando, ao calor da lareira, enquanto revolvia mentalmente o incidente ocorrido e a estranha experiência que parecia ainda me aguardar adiante. Cético que eu fosse, havia alguma coisa impressiva no comportamento confiante de Dacre, e aquele ambiente extraordinário que me cercava, o espaço enorme com objetos incomuns, sinistros, espalhados ou suspensos em torno dele, tudo isso criava uma aura de solenidade em meu espírito. Por fim, desvesti-me e, apagando o candeeiro, deitei-me no sofá. Após revolverme por longo tempo, adormeci.

Vou tentar descrever do modo mais exato possível o drama que surgiu em meus sonhos. Ele agora está fixado na minha memória mais claramente do que tudo que eu tenha visto com os olhos despertos. Havia um quarto que tinha a aparência de uma abóbada. Quatro arcos de base triangular levantavam-se dos quatro cantos na altura que seria do forro do quarto e reuniam-se num ponto mais acima, criando um teto na forma de taça. A arquitetura era tosca, mas visivelmente sólida. Com certeza, fazia parte de uma grande construção.

Três homens de vestes negras, que usavam esquisitos chapéus de veludo também negro, mais amplos no topo, sentavam-se numa linha tapetada de vermelho de um estrado. Os rostos eram bastante solenes e melancólicos. À esquerda, de pé, viam-se dois homens, de longas togas, segurando nas mãos porta-fólios que pareciam atulhados de papéis. No lado direito, olhando na minha direção, estava uma mulher de baixa estatura, cabelos louros e olhos azul-claros, expressivos – os olhos de uma menina. Já ultrapassara a primeira juventude, mas não se podia dizer que estivesse na meia-idade. Seu corpo tendia à gordura, mas o porte era altivo e confiante. O rosto, pálido e sereno. Era um rosto interessante, gracioso e no entanto felino, com uma tênue sugestão de crueldade em torno da pequena boca, reta, firme e do maxilar rechonchudo. Vestia uma espécie de camisola branca e larga. De pé, ao lado dela, um sacerdote magro, de expressão ansiosa, murmurava-lhe algo ao ouvido e continuamente elevava um crucifixo diante de seus olhos. Ela voltava a cabeça e olhava fixamente, para além do crucifixo, os três homens de preto que eram, eu senti, os seus juízes.

Enquanto eu olhava, os três homens se levantaram e alguma coisa foi dita, mas não consegui entender uma única palavra, embora percebesse que, dos três, era o homem do centro quem estava falando. Depois abandonaram a sala, seguidos pelos dois homens com portafólios. No mesmo instante vários indivíduos de aparência rude, vestindo sólidas jaquetas, entraram impetuosos e foram removendo, primeiro o assento tapetado de vermelho, depois as armações do estrado, de modo a deixarem aquele espaço inteiramente vazio. Quando a armação de fundo do estrado foi removida, vi alguns objetos assustadores, peças de mobília, que estavam por detrás dela. Uma dessas peças parecia uma cama com cilindros de madeira nas duas extremidades e um sarilho manual para regular o seu comprimento. Outro objeto era um potro de madeira. E assim havia diversas outras coisas igualmente estranhas e também um conjunto de cordas suspensas que passavam por roldanas. Tudo aquilo não era diferente de uma moderna sala de ginástica.

Assim que o estrado foi retirado, apareceu em cena um novo personagem. Era um homem alto, magro, de roupagem negra, tendo um rosto descarnado e austero. O aspecto desse homem me fez estremecer. Suas roupas brilhavam de tão engraxadas e estavam salpicadas de manchas. Movia-se com lenta e impressionante dignidade, como quem assumisse o comando de tudo desde o instante de sua entrada. A despeito da aparência rude e das vestes sujas, aquela sala era agora sua responsabilidade, estava sob seu controle. Viam-se cordas finas enroladas e dependuradas em seu antebraço esquerdo. A mulher examinou-o de alto a baixo com os olhos, mantendo a expressão impassível. Sua expressão era confiante, até mesmo de desafio. Mas foi muito diferente com o sacerdote. O rosto deste tornou-se horrivelmente lívido e eu vi a umidade do suor brilhar e deslizar pela sua fronte ampla e levemente inclinada. Ele ergueu as mãos em gesto de prece e curvava-se continuamente para murmurar palavras frenéticas no ouvido da mulher.

O homem de vestes negras agora avançava e, tomando uma das cordas em seu braço esquerdo, amarrou os pulsos da mulher, que ficou com as mãos unidas. Ela estendia os braços sem resistência na direção dele, enquanto era amarrada. Então ele segurou-a rudemente pelos ombros, empurrando-a na direção do potro de madeira, cujo assento ficava um pouco acima da cintura dela. Por isso ergueram-na e colocaram-na sobre o assento, deitada de costas, com o rosto voltado para o teto, enquanto o sacerdote, horrorizado e trêmulo, fugia da sala. A mulher movia rapidamente os lábios, e, ainda que eu não pudesse ouvir nada, sabia que ela estava rezando. Seus pés pendiam suspensos nos dois lados do potro e vi que alguns lacaios grosseiros, sob ordem, haviam-lhe amarrado os tornozelos e prendido a outra extremidade das cordas em anéis de ferro fixados sobre o chão de pedra.

Senti que meu coração afundava, enquanto eu via aqueles sinistros preparativos e ao mesmo tempo me achava preso ao fascínio do horror e não conseguia afastar os olhos daquele terrível espetáculo. Um homem entrara na sala carregando um balde de água em cada mão Outro homem o seguia, trazendo um terceiro balde. Foram deixados ao lado do cavalo de madeira. O segundo homem segurava na outra mão uma grande concha de madeira – espécie de tigela com uma asa reta. Entregou-a ao homem de vestes negras.

Nesse momento um dos lacaios se aproximou da mulher com um objeto escuro nas mãos, o qual, mesmo em sonho, apoderou-se de mim, originando um vago sentimento de familiaridade. Era um funil de couro. Com um impulso enérgico e horrível, o lacaio enfiou-o na... – mas não pude mais suportar. Meus cabelos se arrepiaram de pavor. Eu me estorci e debati, conseguindo romper os limites do sonho, soltando o grito mais forte de toda minha vida e fui encontrar-me, trêmulo de horror, no sofá de uma ampla biblioteca, com raios de luar fluindo da janela e atirando arabescos sombreados e prateados na parede oposta.

Ah, que alívio abençoado sentir que estava de volta ao século dezenove, e não sob uma abóbada medieval, que estava num mundo onde os homens tinham corações humanos em seus peitos. Sentei-me no sofá, tendo os membros ainda trêmulos, a mente dividida entre a gratidão e o horror. Pensar que coisas tais foram um dia realizadas, que puderam ser realizadas sem que Deus houvesse fulminado os vilões responsáveis. Foi tudo uma fantasia, ou foi algo que realmente aconteceu nos dias negros, cruéis, da história do mundo? Mergulhei a cabeça palpitante entre as mãos ainda trêmulas. E, então, repentinamente, tive a impressão que cessavam as batidas de meu coração, e eu nem mesmo consegui gritar, tão grande foi o meu medo. Alguma coisa se movimentava na minha direção, na escuridão do quarto.

É uma seqüência de horrores que abate o espírito humano. Eu não conseguia raciocinar, nem podia rezar; podia somente ficar sentado como uma imagem congelada, e olhar o sombrio espectro que atravessava a ampla sala. Mas então ele se moveu sobre uma faixa iluminada pelo luar e eu pude respirar aliviado uma vez mais. Era Dacre, e seu rosto indicava que ele parecia tão assustado quanto eu.

— Foi você? Pelo amor de Deus, o que houve? – perguntou ele com uma voz áspera.

— Como me alegro em vê-lo, Dacre! Estive no inferno. Foi uma coisa medonha.

— Então foi você quem gritou?

— Ouso dizer que sim.

— Seu grito ressoou por toda a casa. Os criados estão apavorados. Dacre acendeu um fósforo e levou-o ao candeeiro.

— Vamos atiçar o fogo da lareira e aquecer de novo o ambiente – acrescentou, atirando algumas achas de lenha sobre as brasas. — Por Deus, meu caro, como você está pálido! Dá a impressão de ter visto um fantasma!

— Você tem razão. Foram vários fantasmas.

— Quer dizer que o funil de couro funcionou, afinal?

— Eu não dormiria de novo ao lado dessa coisa infernal nem por todo o dinheiro que você pudesse oferecer-me.

Dacre soltou uma risadinha reprimida.

— Eu esperava que você tivesse uma noite agitada – disse ele. — Mas você me deu o troco, pois aquele grito não foi nada agradável, às duas horas da madrugada. Suponho pelo que você está dizendo que você viu todo o terrível negócio.

— Que terrível negócio?

— A tortura pela água, o “interrogatório extraordinário”, como era chamado nos alegres dias de Le Roi Soleil. Você agüentou até o fim?

— Não, graças a Deus. Acordei antes que começasse de fato.

— Ah, você é um felizardo! Eu suportei até o terceiro balde. Bem, é uma velha estória, e todos os que dela participaram estão agora em suas tumbas, assim, de qualquer modo, que importância tem sabermos como chegaram até ali? Suponho que você tenha alguma idéia a propósito daquilo que viu?

— A tortura de alguma malfeitora. A mulher deve ter sido uma terrivel malfeitora, na verdade, se os seus crimes foram cometidos na proporção de sua penalidade.

— Bem, temos esse pequeno consolo – disse Dacre, arrepanhando o roupão e acocorando-se mais próximo da lareira. — Eles foram cometidos na proporção da penalidade. Quer dizer, se estou correto sobre a identidade da mulher.

— Como pôde saber a provável identidade dela?

Por resposta, Dacre apanhou da prateleira próxima um antigo volume com capa de velino.

— Apenas escute – disse ele. — Está escrito num francês do século dezessete, mas farei uma tradução aproximada. Você julgará por si mesmo se matei ou não a charada: “A prisioneira foi conduzida à presença das Grand Chambers e Tournelles do Parlamento, em sessões de corte de justiça, acusada do assassinato do mestre Dreux d’Aubray, o pai dela, e de seus dois irmãos,os senhores d’Aubray, um deles tenente civil, e conselheiro do Parlamento o outro. Em pessoa, parecia difícil de acreditar que ela realmente tivesse cometido ações de tal perversidade, pois seu aspecto era meigo, e de baixa estatura, com uma pele bonita e olhos azuis. Entretanto, a Corte, tendo averiguado a sua culpa, condenou-a aos interrogatórios usual e extraordinário, de modo a obrigá-la a confessar os nomes de seus cúmplices, depois do que seria conduzida numa carreta até a Place de Grève, onde seria decapitada, sendo seu corpo posteriormente queimado e as cinzas jogadas aos ventos. A data deste registro é de 16 julho de 1676.”

— É interessante – eu disse — mas não muito convincente Como você prova serem a mesma essas duas mulheres?

— Já vou fazê-lo. A narrativa prossegue, descrevendo a conduta da mulher ao ser interrogada: “Quando o carrasco se aproximou, ela o reconheceu pelas cordas que ele trazia nas mãos, e ela em seguida estendeu as próprias mãos para ele, olhando-o de alto a baixo sem pronunciar uma palavra”. Que tal isso?

— Confere, de fato.

— “Ela olhou sem estremecer o potro de madeira e os anéis de ferro que tinham retorcido tantos membros humanos e causado tantos gritos de angústia. Quando seus olhos caíram sobre os três baldes com água, que estavam já preparados para ela, disse com um sorriso, ‘toda essa água deve ter sido trazida aqui com o propósito de afogar-me, monsieur. O senhor decerto não tem, confio eu, a menor idéia de forçar uma pessoa da minha estatura a beber tudo isso”. Deverei ler os detalhes da tortura?

— Não, pelo amor de Deus, não!

— Eis um parágrafo da sentença que vai lhe mostrar que o que está aqui registrado é uma cena que, por certo, você presenciou esta noite: “O bom abade Pirot, incapaz de contemplar os tormentos a que ia ser submetida a sua penitente, saiu correndo da sala” Isso convence você?

— Completamente.Não tenho mais dúvida de que se trata do mesmo evento. Mas, quem era essa mulher de aparência tão atraente e cujo fim foi tão horrível?

Sem responder, Dacre cruzou-me à frente e trouxe, aceso, um pequeno lampião, colocando-o depois sobre a banqueta que estava ao lado do sofá. Erguendo o funil agourento, iluminou em cheio a orla de latão. Vistas assim, bem iluminadas, as gravações na orla pareciam mais nítidas que na noite anterior.

— Já concordamos que se trata do emblema de um marquês ou marquesa – disse ele. Também acertamos que a última letra é B.

— Sem dúvida.

— Vou sugerir agora a você que as outras letras, da direita para a esquerda, são M, M; um d minúsculo, A, um d minúsculo e, então, finalmente, o B.

— Sim, Você tem razão.Posso ver claramente os dois d minúsculos.

— O que eu li a você esta noite – disse Dacre – é a cópia do registro oficial do processo de Marie Madeleine d’Aubray, marquesa de Brinvilliers, uma das mais célebres envenenadoras e assassinas de todos os tempos.

Fiquei sentado em silêncio, acabrunhado ante a natureza extraordinária do acontecimento. e ante a inteireza das provas em relação às quais Dacre expusera o real significado. De um modo vago, recordei alguns detalhes da carreira da mulher, sua libertinagem desenfreada, o sangue-frio e a prolongada tortura a seu pai doente, o assassinato dos irmãos motivado por lucros mesquinhos. Lembrei também que a bravura de seu fim havia reparado de algum modo o horror de sua vida, e que Paris em peso havia simpatizado com seus momentos finais, havendo-a abençoado como mártir poucos dias depois de havê-la amaldiçoado como assassina. Uma objeção, e apenas uma, passou-me pela mente.

— Como as iniciais de seu nome e o emblema de sua categoria vieram a ser gravados no funil? Por certo a admiração medieval à nobreza não chegava ao ponto de ornamentar os instrumentos de tortura com os títulos de suas vítimas, não é verdade?

— Essa questão também me intrigou – disse Dacre –, mas ela admite uma explicação simples. O processo provocou extraordinário interesse na época, e nada poderia ser mais natural que La Reynie, o Chefe de Polícia, tivesse retido esse funil como sinistro souvenir. Não era acontecimento freqüente que uma marquesa de França fosse submetida ao interrogatório extraordinário.Que ele tivesse mandado gravar as iniciais dela sobre o funil, a título de informação para as demais pessoas, era seguramente um procedimento comum em casos assim.

— E isto? - perguntei, apontando para as marcas sobre o gargalo de couro do funil.

— Ela era uma tigresa cruel – disse Dacre, enquanto se afastava dali. — Penso ser evidente que, a exemplo das outras tigresas, essa também tivesse dentes fortes e afiados.


por Arthur Conan Doyle
traduzido por Silveira de Souza