quarta-feira, 23 de março de 2016
João da Meia-Noite
Um caboclo chamado João, cachaceiro como ele só, vivia caído de bêbado. Certo dia, o caboclo bebeu além da conta e "bateu as botas". O diabo, então, veio levar sua alma. João que não era nada bobo implora, ao diabo, por mais um copo de bebida que lhe é concedido.
Acontece que o caboclo estava sem dinheiro para o último trago e pede ao diabo que se transforme em uma moeda. O capeta concorda. João mal vê a moeda sobre o balcão do bar, guarda-a no porta-moeda da carteira que tem um fecho em forma de cruz.
Desesperado, a "coisa ruim" implora para sair e o caboclo propõe um trato: libertá-lo em troca de ficar na Terra por mais um ano inteiro. O trato foi aceito de imediato. Depois desse encontro o caboclo deixa a bebida e passa a ter uma vida mais comedida.
Passado exatamente um ano, João está indo para casa quando o diabo aparece. O caboclo, esperto como sempre, diz ao diabo:
— Tenho um último pedido a fazer. Antes de morrer, gostaria de rezar o Pai-Nosso. Mas, me prometa que só vai me levar depois que eu terminar a oração.
O demo concordou, e o caboclo começou a rezar:
— Pai-Nosso que... – parou e sorriu.
— Vamos lá! – inquiriu o diabo – Termine logo com isso que tenho mais o que fazer.
— Coisa nenhuma! Exclamou João – Você jurou que me levaria somente quando eu terminasse de rezar. Pois então, pretendo levar anos para terminar minha reza...
Ao perceber que fora enganado, o demo resolveu ir embora.
Um ano mais tarde, João morre. Tenta entrar no céu, mas sua entrada é negada. Sem alternativa, vai para o inferno. O diabo, ainda desconfiado e se sentindo humilhado, também não permite sua entrada. Entretanto, com pena da alma perdida, joga-lhe um lampião (ou uma vela) para que o caboclo possa iluminar seu caminho pelo limbo.
Quem estiver andando pelas ruas das cidades nas noites de sexta-feira após a meia-noite, com certeza, dará "de cara" com alguém carregando uma luzinha fraca. É João, procurando um lugar para ficar.
Fonte: Conto bem popular na Internet. Lenda urbana?
História do Demoníaco Pacheco
Finalmente, acordei para valer; o sol queimava as minhas pálpebras – abria-as com dificuldade. Vi o céu. Vi que estava ao relento. Mas o sono ainda pesava nos meus olhos. Não dormia mais, mas ainda não estava desperto. Imagens de suplícios sucederam-se umas às outras. Fiquei apavorado. Levantei-me sobressaltado e sentei-me.
Onde encontrarei as palavras para expressar o horror que então me invadiu?
Eu estava deitado ao pé da forca de Los Hermanos. Os cadáveres dos dois irmãos De Zoto não estavam enforcados, e sim deitados ao meu lado. Aparentemente eu tinha passado a noite com eles. Descansava em cima de pedaços de cordas, rodas apodrecidas, restos de carcaças humanas, e nacos horrorosos e fétidos que delas se soltavam.
Ainda pensei que não estivesse bem acordado e que estivesse a ter um sonho mau.
Fechei os olhos e busquei na minha memória onde eu tinha estado na véspera...
Então senti garras enfiando-se nos meus flancos. Vi que um abutre se havia empoleirado em mim e devorava um dos meus companheiros de quarto. A dor que me causava a impressão das suas garras me acordou de vez.
Vi que as minhas roupas estavam perto de mim, e apressei-me a vesti-las. Quando me aprontei, quis sair do recinto da forca, mas encontrei a porta fechada com pregos e tentei quebrá-la, em vão. Portanto, tive de subir naquelas tristes muralhas. Consegui e, apoiando-me numa das pilastras do patíbulo, comecei a examinar as terras dos arredores. Reconheci facilmente onde estava. De fato, estava na entrada do vale de Los Hermanos, e perto das margens do Guadalquivir.
Como eu continuasse a observar, vi perto do rio dois viajantes, um preparando o almoço e o outro segurando a brida de dois cavalos. Fiquei tão encantado ao ver aqueles homens que o meu primeiro gesto foi gritar “Agour, agour!", o que quer dizer, em espanhol, "Bom dia" ou "Salve".
Ao verem as cortesias que lhes eram feitas do alto do patíbulo, os dois viajantes por um instante pareceram indecisos, mas de repente montaram nos seus cavalos, saíram a todo o galope e tomaram a estrada de Los Alcornoques. Gritei para que parassem, mas foi inútil; quanto mais gritava, mais esporeavam as cavalgaduras. Quando os perdi de vista, pensei em sair do meu posto. Pulei para o chão e magoei-me um pouco.
Coxeando bastante, cheguei às margens do Guadalquivir, e lá encontrei o almoço que os dois viajantes tinham abandonado; nada podia vir mais a calhar, pois sentia-me exausto. Havia chocolate, ainda cozinhando, e “sponhao” embebido em vinho de Alicante, pão e ovos. Comecei a recuperar minhas forças, e depois fiquei refletindo sobre o que me havia acontecido durante a noite.
As lembranças eram muito confusas, mas o que me lembrava bem era de ter dado a minha palavra de honra de guardar tudo aquilo em segredo, e estava firmemente decidido a mantê-la. Acertado esse ponto, só me restava ver o que, por ora, eu devia fazer, ou seja, que caminho tomar, e pareceu-me que as leis da honra me obrigavam mais que nunca a passar pela Sierra Morena.
Talvez alguém fique surpreendido de me ver tão ocupado com a minha glória e tão pouco com os acontecimentos da véspera; mas esse modo de pensar era outro efeito da educação que eu havia recebido. É o que se verá na continuação deste meu relato. Por ora, volto à minha viagem.
Estava curiosíssimo em saber o que os diabos haviam feito do meu cavalo, que eu deixara em Venta Quemada; e, aliás, como era o meu caminho, resolvi passar por lá. Tive de percorrer a pé todo o vale de Los Hermanos e o de Venta, o que não deixou de me cansar e de me fazer desejar muito encontrar o meu cavalo. De fato, encontrei-o; estava na mesma estrebaria onde o deixara, e parecia pimpão, bem cuidado e escovado havia pouco.
Eu não sabia quem podia ter tido esse cuidado, mas, depois de ter visto tantas coisas extraordinárias, essa não me deteve por muito tempo. Teria retomado imediatamente o caminho se não fosse a curiosidade de percorrer, mais uma vez, o interior da hospedaria.
Encontrei o quarto onde havia dormido, mas por mais que procurasse foi impossível encontrar aquele onde eu tinha visto as belas africanas. Assim, cansei-me de procurar por mais tempo, montei no cavalo e segui meu caminho.
Quando acordei ao pé da forca de Los Hermanos, o sol já estava no meio de seu curso. Eu tinha levado mais de duas horas para chegar a Venta. Tanto assim que, depois de mais umas duas léguas, tive de pensar num abrigo, mas, não vendo nenhum, continuei a andar.
Finalmente, avistei ao longe uma capela gótica, com uma cabana que parecia a morada de um ermitão. Tudo isso ficava afastado da estrada principal, mas eu começava a sentir fome e não hesitei em fazer esse desvio para conseguir comida. Ao chegar, amarrei o cavalo numa árvore. Depois bati na porta da ermida e vi sair um religioso com aspecto venerável.
Beijou-me com uma ternura paternal, e depois disse-me:
"Entra, meu filho; anda logo. Não passes a noite ao relento, teme o tentador. O Senhor tirou Sua mão de sobre nós."
Agradeci ao ermitão a bondade que me demonstrava, e disse-lhe que precisava urgentemente comer.
Ele respondeu-me:
"Ó, meu filho, pensa na tua alma! Passa para a capela. Posterna-te diante da Cruz. Pensarei nas necessidades de teu corpo. Mas farás uma refeição frugal, tal como se pode esperar de um ermitão."
Fui à capela, rezei de verdade, pois não era um livre-pensador, e, aliás, ignorava que houvesse algum: mais uma vez, tudo isso era efeito da minha educação.
O ermitão foi me buscar depois de quinze minutos e conduziu-me à cabana, onde encontrei um lugar posto para mim, bastante limpo. Havia excelentes azeitonas, cardos conservados no vinagre, cebolas doces num molho e bolachas em vez de pão.
Havia também uma garrafinha de vinho. O ermitão disse-me que nunca bebia vinho, mas que o guardava em casa para o sacrifício da missa. Por isso, não bebi mais vinho que o ermitão, mas o resto do jantar deu-me muito prazer. Enquanto o elogiava, vi entrar na cabana uma figura mais apavorante do que tudo o que tinha visto até então. Era um homem que parecia moço, mas de uma magreza horrorosa.
Os seus cabelos estavam eriçados, um dos seus olhos estava vazado, e dali saía sangue. A sua língua, pendurada para fora da boca, deixava escorrer uma baba espumosa. Tinha sobre o corpo um casaco preto bem-cortado, mas eram as únicas peças, pois estava sem meias e sem camisa.
A personagem horrenda não disse nada a ninguém e foi acocorar-se num canto, onde ficou tão imóvel como uma estátua, seu único olho fixando um crucifixo que segurava na mão. Quando acabei de jantar, perguntei ao ermitão quem era aquele homem. O ermitão respondeu-me:
"Meu filho, esse homem é um possesso que eu exorcizo, e a terrível história dele prova perfeitamente bem o poder fatal que o anjo das trevas usurpa nestas maravilhosas paragens; o relato pode ser útil à tua salvação, e vou ordenar-lhe que o faça." Então, virando-se para o lado do possesso, disse-lhe:
"Pacheco, Pacheco, em nome do teu redentor, ordeno-te que contes a tua história." Pacheco soltou um uivo horrível e começou nos seguintes termos:
HISTÓRIA DO DEMONÍACO PACHECO
"Nasci em Córdoba, o meu pai vivia ali numa situação mais que confortável. A minha mãe morreu há três anos. No início, o meu pai parecia sentir muito sua falta, mas, alguns meses depois, tendo a oportunidade de fazer uma viagem a Sevilha, apaixonou-se por uma jovem viúva, chamada Camille de Tormes. Essa pessoa não gozava de excelente reputação, e vários amigos de meu pai procuraram afastá-lo desse relacionamento; mas, apesar das providências que tomaram, o casamento realizou-se, dois anos depois da morte de minha mãe. As bodas foram em Sevilha, e, alguns dias depois, o meu pai voltou para Córdoba, com Camille, sua nova esposa, e uma irmã de Camille, que se chamava Inésille.
"A minha nova madrasta correspondeu perfeitamente à má opinião que se tinha dela, e começou, na casa do meu pai, a querer inspirar-me amor. Não conseguiu. Todavia, fiquei apaixonado, mas foi por sua irmã Inésille. Em pouco tempo a minha paixão era tão forte que fui me lançar aos pés do meu pai e pedir-lhe a mão da sua cunhada.
"O meu pai levantou-me, bondosamente, depois disse-me: 'Meu filho, proíbo-te de pensar nesse casamento, e proíbo por três razões. Primeira: seria contra a natureza que te tornasses, de certa forma, cunhado do teu pai. Segundo: os santos cânones da Igreja não aprovam casamentos desse gênero. Terceiro: não quero que desposes Inésille'.
"Tendo-me dado as suas três razões, o meu pai virou as costas e foi-se embora. Retirei-me para o meu quarto, onde me entreguei ao desespero. A minha madrasta, a quem o meu pai logo informou o que tinha acontecido, foi me procurar e disse que eu estava errado em me afligir; que, se não podia me tornar o marido de Inésille, podia ser seu cortesão, isto é, seu amante, e que ela iria arranjar as coisas; mas ao mesmo tempo declarou-me o amor que tinha por mim e invocou o sacrifício que fazia cedendo-me à sua irmã. Escancarei os meus ouvidos diante dessas palavras que afagavam a minha paixão, mas Inésille era tão modesta que achei impossível que algum dia correspondesse ao meu amor.
"Naquela época, o meu pai resolveu fazer uma viagem a Madrid, com a intenção de disputar o posto de corregedor de Córdoba, e levou consigo a mulher e a cunhada. A sua ausência devia ser só de dois meses, mas esse tempo pareceu-me muito longo, porque eu estava afastado de Inésille.
"Quando os dois meses praticamente se tinham passado, recebi uma carta do meu pai, em que me ordenava que fosse ao seu encontro e o esperasse em Venta Quemada, na entrada de Sierra Morena. Algumas semanas antes não teria sido fácil tomar a decisão de passar pela Sierra Morena, mas, justamente, acabavam de enforcar os dois irmãos De Zoto. O bando deles estava dispersado, e os caminhos, supostamente, eram bastante seguros.
"Portanto, parti de Córdoba por volta das dez horas da manhã, e fui pernoitar em Andujar, com um dos mais tagarelas hospedeiros que existem na Andaluzia. Na estalagem encomendei um jantar abundante, do qual comi uma parte e guardei a outra para a viagem.
"No dia seguinte jantei em Los Alcornoques, com aquilo que tinha reservado na véspera, e cheguei na mesma noite a Venta Quemada. Não encontrei o meu pai, mas, como na carta ele mandava aguardá-lo, decidi ficar, com muito prazer, mais ainda porque estava numa hospedaria espaçosa e confortável. O hospedeiro que a mantinha era, na época, um certo González de Múrcia, homem muito bom, embora tagarela, que não deixou de me prometer um jantar digno de um grande de Espanha. Enquanto ele se ocupava em prepará-lo, fui passear à beira do Guadalquivir, e, quando voltei à hospedaria, encontrei um jantar que, de fato, não era nada mau.
"Depois de comer, pedi a González que fizesse a minha cama. Então vi que ele ficou perturbado, disse-me umas frases que não tinham muito sentido. Finalmente confessou-me que a hospedaria estava possuída por assombrações, que ele e a sua família passavam todas as noites numa fazendola, à beira do rio, e acrescentou que, se eu quisesse dormir lá também, arranjaria uma cama para mim perto dele.
"Achei essa proposta muito imprópria; disse-lhe que ele tinha mesmo é que ir dormir onde quisesse e que devia enviar meus homens para perto de mim. González obedeceu-me e retirou-se, balançando a cabeça e levantando os ombros.
"Os meus criados chegaram logo em seguida; também tinham ouvido falar de assombrações e quiseram convencer-me a passar a noite na fazenda. Recebi os seus conselhos um pouco brutalmente e mandei-os fazer a minha cama no próprio quarto onde eu tinha jantado. Obedeceram-me, embora relutantes, e, quando a cama estava arrumada, me conjuraram de novo, com lágrimas nos olhos, para que eu fosse pernoitar na fazenda. Seriamente impacientado com as suas admoestações, permiti-me certas demonstrações que os fizeram correr, e, como eu não tinha o costume de contar com meus criados para me despir, foi fácil dispensá-los ao ir me deitar. No entanto, tinham sido mais atenciosos do que eu merecia por tê-los tratado com maus modos. Deixaram perto de minha cama uma vela acesa, outra de reserva, duas pistolas e alguns livros cuja leitura podia me manter acordado, mas a verdade é que eu tinha perdido o sono.
"Passei umas duas horas, ora lendo, ora me virando na cama. Finalmente ouvi as badaladas de um sino ou de um relógio batendo meia-noite. Espantei-me, porque não tinha ouvido bater as outras horas. Logo a porta se abriu, e vi entrar a minha madrasta: estava de camisa de dormir e levava um castiçal na mão. Aproximou-se de mim, andando nas pontas dos pés e com o dedo na boca, como para me impor silêncio. Depois colocou o castiçal na mesa-de-cabeceira, sentou-se na minha cama, pegou uma de minhas mãos e falou-me nos seguintes termos:
'Meu querido Pacheco, chegou o momento em que posso dar-te os prazeres que prometi. Há uma hora arribamos a esta taverna. O teu pai foi dormir na fazenda, mas, como soube onde você estava, consegui a permissão de pernoitar aqui com a minha irmã Inésille. Ela aguarda-te e dispõe-se a nada te recusar; mas é preciso que estejas informado das condições que impus para a sua felicidade. Amas Inésille, e eu te amo. Não convém que, de nós três, dois sejam felizes à custa do terceiro. Exijo que uma só cama nos sirva esta noite. Vem'.
"A minha madrasta não me deu tempo de responder; pegou-me pela mão e levou-me, de corredor em corredor, até chegarmos a uma porta, quando então se pôs a olhar pelo buraco da fechadura.
"Depois de ter olhado bastante, disse-me: 'Corre tudo bem, vê tu mesmo'.
"Tomei o seu lugar na fechadura e, de fato, vi a encantadora Inésille na sua cama; mas como estava distante da modéstia que sempre vi nela! A expressão dos seus olhos, a respiração agitada, a sua tez corada, a sua atitude, tudo provava que esperava um amante.
"Camille deixou-me olhar bem, e disse-me: 'Meu querido Pacheco, fica nesta porta; quando estiver na hora, virei avisar-te'.
"Quando entrou, pus novamente o meu olho no buraco da fechadura e vi mil coisas que é difícil contar. Primeiro Camille despiu-se, com certa insinuação, e, depois, pondo-se na cama da irmã, disse-lhe:
'Minha pobre Inésille, é verdade mesmo que queres ter um amante? Pobre criança, não sabes o mal que ele te fará. Primeiro, vai sufocar-te, pisar-te, e depois esmagar-te, dilacerar-te'.
"Quando Camille imaginou que a sua aluna estava devidamente doutrinada, foi abrir a porta, conduziu-me ao leito de sua irmã e deitou-se conosco.
"Que lhes direi daquela noite fatal? Esgotei as suas delícias e os seus crimes. Por muito tempo lutei contra o sono e a natureza para prolongar ainda mais os meus prazeres infernais. Finalmente adormeci e acordei no dia seguinte ao pé da forca dos irmãos De Zoto e deitado entre os infames cadáveres deles."
O ermitão interrompeu aqui o demoníaco e disse-me:
"E então, meu filho, o que te parece? Não ficarias um tanto espavorido ao te veres deitado entre dois enforcados?"
Respondi:
"Padre, o senhor me ofende. Um fidalgo jamais deve ter medo, e menos ainda quando tem a honra de ser capitão dos Guardas Valões."
"Mas, meu filho", continuou o ermitão, "já ouviste falar que uma aventura dessas tenha acontecido a alguém?"
Hesitei um instante, depois do que respondi:
"Padre, se essa aventura aconteceu com o senhor Pacheco, pode ter acontecido com outros; julgarei melhor ainda se fizer a gentileza de mandá-lo continuar a sua história."
O ermitão virou-se para o possuído e disse:
"Pacheco, Pacheco! Em nome do teu redentor, ordeno-te que continues a tua história."
Pacheco deu um uivo terrível e prosseguiu nos seguintes termos:
"Eu estava semimorto quando saí da forca. Arrastava-me sem saber para onde. Finalmente, encontrei viajantes que tiveram pena de mim e me levaram de volta a Venta Quemada. Ali encontrei o estalajadeiro e os meus homens, muito pesarosos comigo. Perguntei se meu pai havia dormido na fazenda. Responderam-me que ninguém tinha ido lá.
"Não aguentei mais ficar muito tempo em Venta, e tomei de novo o caminho de Andujar. Só cheguei depois do pôr-do-sol. A estalagem estava cheia, arranjaram-me uma cama na cozinha e ali me deitei, mas não consegui dormir, pois era incapaz de afastar do meu espírito os horrores da noite anterior.
"Eu tinha deixado uma vela acesa em cima da fornalha da cozinha. De repente ela apagou-se, e senti instantaneamente como que um arrepio mortal, que gelou as minhas veias.
"Puxaram a minha coberta, depois ouvi uma vozinha dizendo: 'Sou Camille, a tua madrasta, estou com frio, meu coraçãozinho, abre um lugar para mim debaixo da tua coberta'.
"Depois outra voz disse: 'E eu sou Inésille. Deixa-me entrar na tua cama. Estou com frio, estou com frio'.
"Depois senti a mão gelada de alguém pegando debaixo do meu queixo. Enchi-me de coragem para dizer bem alto: 'Satanás, retire-se!'.
"Então as vozinhas disseram-me: 'Por que nos expulsas? Tu não és nosso maridinho? Estamos com frio. Vamos fazer um foguinho'.
"De fato, logo em seguida vi chamas na lareira da cozinha, que ficou mais clara. E avistei, não mais Inésille e Camille, mas os dois irmãos De Zoto, enforcados na chaminé.
"Essa visão deixou-me fora de mim. Saí da cama. Pulei pela janela e comecei a correr pelo campo. A certa altura cheguei a felicitar-me por ter escapado de tantos horrores, mas virei-me e vi que estava a ser seguido pelos dois enforcados. Continuei a correr, e vi que os enforcados tinham ficado para trás. Mas a minha alegria não durou muito. As detestáveis criaturas começaram a dar cambalhotas e num instante estavam na minha frente. Corri de novo; finalmente as minhas forças abandonaram-me.
"Então senti que um dos enforcados agarrava o meu tornozelo esquerdo. Quis me safar, mas o outro enforcado barrou o meu caminho. Apresentou-se diante de mim, fazendo uns olhares horrorosos e mostrando uma língua vermelha como ferro que sai do fogo. Pedi clemência. Em vão. Com uma das mãos, ele pegou-me pela garganta e com a outra arrancou o olho que está me faltando. No lugar do olho, enfiou a sua língua escaldante. Lambeu todo o meu cérebro e fez-me rugir de dor.
"Então o outro enforcado, que tinha agarrado a minha perna esquerda, também quis dar o seu espetáculo. Primeiro começou a fazer cócegas na planta do meu pé, que ele segurava. Depois, o monstro arrancou a pele desse pé, separou todos os nervos, deixou-os expostos e quis tocar com eles como se tocasse com um instrumento de música; como eu não fazia um som que lhe agradasse, enfiou o seu esporão na minha panturrilha, beliscou os tendões e começou a enroscá-los, como se faz para afinar uma harpa. Finalmente começou a tocar com a minha perna, na qual tinha modelado um saltério. Ouvi seu riso diabólico. Enquanto a dor me arrancava mugidos pavorosos, os berros do inferno faziam-lhes coro. Mas quando chegaram aos meus ouvidos os rangidos daqueles danados, achei que cada uma de minhas fibras estava a ser triturada entre os seus dentes. Afinal, perdi os sentidos.
"No dia seguinte, os pastores acharam-me no campo e trouxeram-me para esta ermida. Aqui confessei os meus pecados, e encontrei ao pé da cruz algum alívio para os meus males."
Nesse momento, o demoníaco soltou um grito medonho e calou-se.
Então o ermitão tomou a palavra e disse:
"Jovem, estás a ver o poder de Satanás, reza e chora. Mas é tarde. Temos de nos separar. Não te proponho dormir na minha cela porque durante a noite Pacheco dá uns gritos que poderiam incomodar-te. Vai dormir na capela. Ali estarás sob a proteção da Cruz, que derrota os demônios."
Respondi ao ermitão que me deitaria onde ele quisesse. Levamos para a capela uma pequena cama de armar. Deitei-me, e o ermitão desejou-me boa-noite. Quando fiquei sozinho, o relato de Pacheco voltou à minha mente. Encontrei muitas semelhanças com as minhas próprias aventuras, e ainda refletia nisso quando ouvi bater meia-noite. Não sabia se era o ermitão que batia, ou se mais uma vez eu teria de lidar com assombrações. Então ouvi alguém a arranhar a minha porta. Fui até lá e perguntei:
"Quem está aí?"
Uma vozinha respondeu: 'Estamos com frio, abra, são as suas mulherzinhas'.
"Sei, sei, malditos enforcados", respondi, "voltem para o vosso patíbulo e deixem-me dormir."
Então a vozinha disse:
"Está a zombar de nós porque está numa capela, mas venha um pouco aqui fora."
"Já estou indo", logo respondi.
Fui pegar a minha espada e quis sair, mas achei que a porta estava fechada. Disse isso às assombrações, que nada responderam. Fui-me deitar e dormi até amanhecer.
Tradução de Rosa Freire D'Aguiar
Este conto ("Histoire du démoniaque Pascheco", 1805) é parte do livro “Manuscrito Encontrado em Saragoça”, de Jan Potocki, para a coletânea “Contos Fantásticos do século XIX : o fantástico visionário e o fantástico cotidiano" / organização de Ítalo Calvino. — São Paulo : Companhia das Letras, 2004.
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