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segunda-feira, 2 de julho de 2018

A Lenda da Morte

A crença na fatalidade da morte produziu no sertão a mesma lenda que existe no Oriente, com pequena diversidade de forma e nenhuma de substância. Onde quer que a alma popular pense do mesmo modo, se manifesta de idêntica maneira e, como ensina Van Gennepp, a qualquer momento em tema lendário bem localizado será achado num ciclo de contos populares em outro extremo do mundo.


Conta Paul de Saint-Vitor que, na Turquia, em certa época, todo o dia que Alá dava ao mundo um dos mais queridos pachás do sultão vinha saudá-lo na Sala do Divã e suplicar-lhe para ser nomeado governador duma cidade distante. Justificava o pedido com uma desculpa qualquer.

O soberano não o queria atender e até já estava se aborrecendo com aquela insistência, quando o velho servidor do trono confessou o verdadeiro motivo do seu desejo de deixar Istambul. Todas as manhãs, ao sair de seus aposentos, encontrava a Morte que lhe cravava olhos de espanto. Já não podia mais com essa obsessão. O sultão tomou a narrativa como caduquice, teve pena do pachá e mandou-o para onde tanto queria ir.

Semanas depois, passeando a noite pelo jardim do palácio, o sultão encontrou a Morte e interpelou-a:

- Porque perseguias o meu velho pachá, fitando-o diariamente com olhos de espanto?

E ela respondeu:

- Porque recebi ordem de matá-lo na cidade para onde foi nomeado governador e me admirava de ainda vê-lo por aqui ...

Esta certeza de que ninguém escapa à morte no dia marcado se consubstancia também numa história sertaneja:

Um caçador armou um mondéu por trás dum cemitério, a fim de pegar um tatu que costumava andar por ali. Numa noite de luar, topou com o maior espanto a Morte presa naquela armadilha, cujo pesado tronco lhe caíra sobre uma das tíbias. O corpo esquelético se estirava no chão, envolto no branco lençol e a foice rolara por uma ribanceira, ficando dependurada numa raiz de angico. Gelado e imobilizado de pavor, o matuto ouviu a Morte chamá-lo:

- Venha cá! Livre-me deste mondéu e o recompensarei.

Cobrou algum ânimo, aproximou-se e, aproveitando o ensejo, pediu-lhe, como recompensa para libertá-la, o direito de viver sadio e forte até avançada idade, que somente diria depois dela lhe revelar quanto teria de vida, se não fosse aquela ocasião de prestar-lhe um favor. Ela respondeu sinceramente que isso não lhe era possível revelar e nem seria preciso para que dissesse quantos anos desejava de existência.

- Cento e vinte! Exigiu o caçador.

A Morte acedeu e ele a libertou. Viveu sempre rijo e feliz, assombrando o sertão e vendo o desfile das gerações, aquele longo período. No dia em que se completava o prazo obtido com o acordo, teve medo de morrer e resolveu enganar a Morte. Raspou completamente barba, bigode, cabelos e até sobrancelhas, de modo a se tornar irreconhecível e se meteu num baile que davam no lugar onde morava.

Perto da meia-noite, que era quando terminava o prazo, a Morte, que o procurava por toda a parte sem o achar, veio ter a festa, perguntando se o tinham visto; mas ninguém lhe dava a menor notícia dele. Aproximava-se a hora fatal. Então, ela examinou um por um os convivas e, ao bater a primeira badalada das doze horas, disse, segurando o nosso caçador pelo braço:

- Como não tenho mais tempo de procurar o velhaco e não quero me retirar de mãos vazias, levo comigo este pelado!...

Gustavo Barroso

Gustavo Barroso (Gustavo Dodt Barroso), historiador e folclorista, nasceu em Fortaleza, CE, em 29/12/1888, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 3/12/1959. Publicou, entre outras obras, Terra de sol, Rio de Janeiro, 1912; Heróis e bandidos, Rio de Janeiro, 1917; Casa de marimbondos, São Paulo, 1921; Ao som da viola, Rio de Janeiro, 1921 (2 ed. aumentada, Rio de Janeiro, 1949); O sertão e o mundo, Rio de Janeiro, 1923; Através dos folclores, São Paulo, 1927; Almas de lama e de aço, São Paulo, 1930; Mythes, contes et légendes des indiens, Paris, 1930; Aquém da Atlântida, São Paulo, 1931; As colunas do templo, Rio de Janeiro, 1932.


Fonte: Jangada Brasil - (Barroso, Gustavo. Ao som da viola; nova edição correta e aumentada. Rio de Janeiro, 1949).

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Natal de sangue

Thomas Cavendish

Naquele dia de Natal do ano da graça de 1591 três navios de velas desfraldadas ao sopro regular da brisa marinha entraram no porto de Santos. Os moradores da vila fundada por Braz Cubas enchiam as igrejas, ouvindo as missas e sermões da grande festa cristã.

De repente o estrondo da artilharia os encheu de espanto e os lançou em confusão nas ruas. Ao mesmo tempo as embarcações miúdas daquela frota despejavam na praia bandos de homens armados de mosquetes e piques, que, soltando gritos espantosos, foram matando quem esboçava resistência, invadindo casas, as saqueando, se apoderando, também, da casa da câmara e ocupando as posições convenientes pra dominar a povoação.

Eram, na maioria, ruivos, de olhos azuis, grandalhões e barbudos. E um clamor correu de boca a boca em toda a população espavorida.

— Os piratas ingleses!

Pertenciam os três barcos à esquadra do famoso ladrão-do-mar Thomas Cavendish: O Roebuck de capitão Cocke, o Desire (Desejo) de capitão John Davies e o Black Pinesse de capitão Stafford. Tendo os mandado na frente, Cavendish ficara de atalaia na ilha de São Sebastião com dois navios: O Leicester de capitão Southwell e o Daintie de capitão Barker. Quando entrou no porto, dias depois, as tripulações dos primeiros estavam de posse da vila e nela se haviam convenientemente fortificado.

Nesse bruxulear do século 16 os piratas ingleses não davam descanso às feitorias e estabelecimentos lusos da extensa e parcamente defendida costa brasileira. Eram pequenos e disseminados no vasto litoral os núcleos populacionais. A Bahia tinha 24 mil habitantes, Pernambuco 20 mil e havia umas 13 mil almas espalhadas em Itamaracá, Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Vicente e Santos.

Esta última vila repelira, em 1581, o ataque do pirata John Whitall com o Minion. Em 1583 fora saqueada por Edward Fenton, que a esquadra espanhola de dom Diogo Flores Valdez, em caminho a Buenos Aires, derrotou e pôs em fuga. Em 1587 Roberto Witrington, com dois navios seus e um do holandês Duarte Esquert, atacara a Bahia, felizmente sem êxito. Em 1595 James Lancaster, associado a Verner, levaria sete navios contra Recife, sendo expulso no fim dum mês de permanência em terra.

Thomas Cavendish era natural de Trimby, Grã-Bretanha, e recebera patente de corsário da rainha Elizabeth, inimiga figadal do império espanhol, sob cujo domínio se encontravam Portugal e o Brasil, quando atacou Santos. Sua profissão de pirata não empanou seu talento de grande navegador. As observações que fez e anotou, nas longas travessias, sobre as marés, as correntes marinhas e o regime eólico no Atlântico, no Pacífico e no Índico enriqueceram consideravelmente o conhecimento náutico de seu tempo.

Saindo da Inglaterra em 1586, pilhou e devastou as colônias espanholas do grande oceano, subindo até a costa da Califórnia e dali rumando às ilhas de Sonda e o cabo da Boa Esperança. Regressou a seu país, carregado de botim, em 1588. Dois anos mais tarde se fez ao mar com destino à costa do Brasil, à frente da esquadra, com que, de surpresa, se apoderou da vila de Santos.

Permaneceu nela cerca de dois meses, tiranizando a população, roubando o que podia, depredando e queimando os engenhos do arredor. Depois navegou ao sul, levando os porões atestados de riqueza. Mas parece que o fato de haver atacado a indefesa povoação brasileira naquele dia santificado do Natal de 1591 trouxe pra ele e seus principais capitães uma verdadeira maldição.

É verdade que, pra Cavendish, o assalto não fora cometido no Natal, que os ingleses respeitam e celebram tradicionalmente, porque, em 1591, já haviam os portugueses adotado o calendário da chamada reforma gregoriana, enquanto na Inglaterra continuava a prevalecer o velho calendário juliano. Assim, o Natal britânico se festejava no dia 25 de dezembro do antigo sistema cronológico, que correspondia no novo, segundo a correção determinada por papa Gregório, em 15 de dezembro. Aliás os ingleses somente viriam a aceitar essa modificação tardiamente, em 1752.

Em 1592 o pirata se apresentou, novamente, diante de Santos. Esperava que a vila estivesse refeita da rapinagem anterior e vinha sequioso de nova roubalheira. Mas dessa vez lhe saiu o ano bissexto, como diz o povo, ou saiu o tiro pela culatra. A população estava alerta e preparada prà luta. Aqueles sinos que repicaram festivamente no Natal do ano anterior, convocando os moradores às cerimônias litúrgicas nas igrejas, então tocaram a rebate, conclamando todos à resistência diante das velas inglesas desfraldadas sobre o mar.

Os piratas ruivos, barbudos e ferozes desembarcaram. Porém foram recebidos por nutrido fogo de pedreiros e mosquetaria, carregados a arma branca, cercados e chacinados sem piedade. Santos tomava sua desforra do Natal triste e sangrento que tivera. Os capitães Southwell, Barker e Stafford morreram no combate e seus marujos e soldados fugiram a bordo, completamente dizimados. Horas mais tarde as velas dos piratas derrotados se apagaram no horizonte e os sinos badalaram no espaço os festivos repiques do triunfo.

Thomas Cavendish entrou em grande fúria e resolveu se ressarcir daquele revés noutros pontos do litoral brasileiro. Não poderia voltar à pátria desonrado e desmoralizado por aquela terrível repulsa, ele que se considerava invencível, um verdadeiro leão-do-mar. Pôs as proas sobre a ilha de São Sebastião mas ali achou a população armada, que o repeliu, também, com novas perdas. Outras perdas e outro revés o esperavam na ilha Grande.

Desfalcado de seus melhores oficiais e aventureiros, com os barcos precisando de refresco e conserto, velejou ao Espírito Santo e entrou na baía de Vitória, ancorando diante de Vila Velha, ao pé do monte íngreme, onde se eleva o pitoresco convento de Nossa Senhora da Penha.

A população entrouxara roupas e alfaias, tudo o que possuía, e se refugiara no seio dos muros conventuais que, do cume do agreste penedo, dominam toda a costa. Os piratas desembarcaram sem achar resistência, porém se viram diante de casas vazias e não encontraram, no arredor, recurso que pudesse minorar a situação. Diante deles Cavendish resolveu atacar e se apoderar do mosteiro e forçar os habitantes da colônia a fornecer mantimento e a pagar resgate.

Todavia pesava sobre ele a maldição do Natal, que violara com o sangue e a rapinagem na vila de Santos. Ao chegar ao pequeno planalto que, do lado do oceano, antecede ao convento, os moradores, armados e organizados, o receberam com uma trabucada que derrubou muitos homens. Os ingleses, enraivecidos, se lançaram a diante em furente investida a arma branca.

Então, houve o milagre: Um cavaleiro armado desceu do céu, que se abriu, mostrando, em resplandecente clarão, o vulto de nossa senhora da Penha e, ajudando os defensores, lhes guiando a carga, acometeu os piratas, lhes deu de rijo e insuflou a todos que o seguiam uma coragem sem limite. Os britânicos recuaram e fugiram aos pendores do morro abaixo, abandonando os mortos, os feridos e as próprias armas.

Lá embaixo, na praia de Vila Velha, diante da gruta, onde outrora vivera o ermitão frei Pedro Palácios, tomaram os batéis e remaram desatinadamente a seus navios. A frota levantou ferro, largou pano, transpôs a barra e se fez na volta do mar. Enfraquecida por tanto revés, após aquela sacrílega vitória de Santos, não podia mais tentar êxito no Brasil e só lhe restava o recurso de regressar, tristemente, à Grã-Bretanha.

Thomas Cavendish não veria mais sua terra natal. Desorientado, baldo de recurso, minado de desgosto e esfalfado pela derrota, foi deperecendo a cada singradura de seus barcos veleiros na travessia do Atlântico e morreu miseravelmente, sendo seu corpo sepultado no mar.

A maldição daquele natal de sangue o perseguira sem trégua.
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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Uma cidade misteriosa no sertão

Um manuscrito encontrado na Biblioteca Nacional, já roído por cupim, e publicado no primeiro tomo da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, leva o seguinte título: Relação histórica duma oculta e grande povoação antiquíssima, sem morador, que se descobriu no ano de 1753.

O autor do curiosíssimo documento escreveu:

"Depois duma larga e importuna peregrinação, incitados da insaciável cobiça ao ouro e quase perdidos em muitos anos neste vastíssimo sertão, descobrimos uma cordilheira de montes tão elevados que pareciam chegar à região etérea e que serviam de trono ao vento, às estrelas. O luzimento que de longe se admirava, principalmente quando o sol fazia impressão no cristal de que era composta, formando uma vista tão grande e agradável que ninguém daqueles reflexos podia afastar os olhos. Entrou a chover antes de entrarmos a registrar esta cristalina maravilha e víamos, sobre a pedra escalvada, correr as águas se precipitando dos altos rochedos, nos parecendo a neve ferida pelos raios solares, pelas agradáveis vistas...".

Depois desses pretensiosos tropos literários, de cujo fim, felizmente, as sevandijas deram cabo, discorre o autor anônimo: "Abarracados nós e com o desígnio de retrocedermos, no dia seguinte, sucedeu correr um negro, andando à lenha, a um veado branco, que viu, e descobriu, por acaso, o caminho entre duas serras, que pareciam cortadas por artifício e não pela natureza. Com o alvoroço dessa novidade principiamos a subir, achando muita pedra solta e amontoada por onde julgamos ser calçada desfeita com a continuação do tempo. Gastamos boas três horas na subida suave pelos cristais que admiramos, e no cume do monte fizemos alto, do qual, estendendo a vista, vimos num campo raso maiores demonstrações pra nossa admiração. Divisamos coisa de légua e meia uma povoação grande, nos persuadindo, pelo dilatado da figura, ser alguma cidade da corte do Brasil...".

Ruína de Igatu, Bahia, que alguns acreditam ser a cidade perdida

Foram mandados exploradores à mesma, continuou a relação, os quais voltaram desenganados, pois, embora ouvissem cantar os galos, não encontraram alguém. Guiados por um índio, entraram, todos, na madrugada, cidade adentro, devidamente prevenidos e armados. A entrada se fez por um arco triunfal semelhante ao de Constantino, em Roma, com uma porta larga entre duas menores. Não foi possível ler, devido à altura, a epigrafia que coroava o monumento.

Seguiram numa avenida de sobrados iguais e simétricos com terraços de lajes ou de ladrilhos requeimados. Visitaram muitas dessas moradias, todas sem alfaia, sob cujas abóbadas as vozes ecoavam soturnamente. No fim dessa rua havia uma praça regular, tendo, no centro, sobre uma coluna de granito negro, uma estátua de homem, de pé, a mão esquerda pousada na ilharga e a direita apontando o pólo norte. A cada canto da praça se erguia uma agulha, à imitação das que usavam os romanos. Quais? Agulhas de pedra com os obeliscos egípcios ou quadrantes solares?

Do lado direito de tal praça, um palácio soberbo, invadido por morcegos, com um baixo-relevo no pórtico, representando pessoa de pouca idade, sem barba, com uma banda atravessada e um fraldelim na cintura. Embaixo se viam alguns caracteres epigráficos que o manuscrito reproduz. Do lado esquerdo se erguia um templo de magnífico frontispício, cheio de efígies e cruzes. Em seguida os restos da cidade sepultados em grandes e medonhas aberturas da terra em que não brotava erva entre montões de pedras toscas ou lavradas.

Era a cidade banhada por um rio caudaloso, de margens limpas e agraciáveis, além do qual se estendiam viçosos campos, plantações de arroz e bandos de patos que se apanhavam com as mãos. Durante três dias desceram o curso de água até chegarem a estrondosa cachoeira, onde a força da correnteza não era menos do que a das bocas do decantado Nilo. Ali o rio se espraiava de tal modo que parecia o grande oceano. A oriente da catadupa, socavões cuja profundidade foi impossível sondar e em cuja entrada se encontravam vestígios de prata, como tirados das minas deixadas ao tempo. Uma dessas furnas era coberta por grande laje com figuras misteriosas gravadas, que o documento reproduz. No meio do campo outro palácio com escadaria de pedras de várias cores e quinze aposentos, além do salão. Cada qual com sua bica de água encanada. No pátio, colunatas circulares.

Nas margens do rio acharam boa pinta de ouro e prata. Viram andorinhas, morcegos, raposas enormes e ratos de pernas curtas, que não andavam nem corriam, mas saltavam como pulgas. Um dos companheiros, se afastando, deu com uma canoa tripulada por duas pessoas brancas de cabelo preto e vestidas à européia, as quais fugiram. Outro chamado João Antônio achou, numa ruína, um dinheiro de ouro, figura esférica, maior que nossas moedas de seis mil e quatrocentos, tendo, no anverso, a imagem dum moço ajoelhado e no reverso um arco, uma coroa e uma seta.

O manuscrito termina assim: "Estas notícias mando a v. m. deste sertão da Bahia e dos rios Paraguaçu e Una, assentando não darmos parte a pessoa alguma, porque julgamos se despovoarão vilas e arraiais. Mas a v. m. a dou das minas que temos descoberto, lembrado do muito que te devo. Suposto que nossa companhia saiu já um companheiro com pretexto diferente, contudo peço a v. m. largue essas penúrias e venhas utilizar estas grandezas, usando da indústria de peitar esse índio, pra se fazer perdido e conduzir v. m. a estes tesouros...".

Não se sabe a quem fora dirigida a curiosa relação nem seu autor. A única referência certa, além da data, é a do sertão da Bahia, nos rios Paraguaçu e Una. Nada mais. Pois, apesar disso, o que nele se encontra foi tomado a sério e, sob os auspícios do Instituto Histórico e o amparo oficial, cônego Benigno José de Carvalho e Cunha, que pra isso se oferecera, entrou ao sertão baiano buscando a cidade misteriosa.

Em junho de 1844 oficiou ao governador da província da Bahia, dizendo que desde o ano anterior andava naquela busca já descoroçoado de achar a tal cidade na margem direita do Paraguaçu e na serra de Sincorá. Levava um roteiro impresso pelo instituto e o combinava com as notícias que obtinha, convencido de que a cidade abandonada estava situada acima do Orobó. E terminava:

"Estes meus cálculos sobre o lugar da cidade abandonada acabam de ser confirmados por uma testemunha de vista. Indo eu ao Tingá, recebi uma carta de José Rodrigues da Costa da Otinga, na qual me diz que um negro cativo, morador com seu senhor no lugar que chamam serra do Orobó, que morou anos dentro dos maninhos, se me oferecia pra acompanhar e mostrar o quilombo, onde esteve, e a cidade que busco. Disse, esse negro, que o quilombo está fora da cidade abandonada, mas perto, que os negros do quilombo ali vão passear nos domingos e dá tão exata notícia das casas e entrada da cidade, das estátuas e do rio que corre defronte, que quadra completamente com o roteiro do Instituto e com o que eu calculara. Mandei chamar o negro e lhe prometi a alforria, porém o senhor não o deixou vir, pois mesmo tendo havido pessoa da Otinga que pretendeu comprar o negro o senhor não o vende por preço algum. Entretanto minha guia é o rio: Terei mais trabalho mas não deixarei de ter bom resultado. Há três meses que estou doente, não sei o mais que tem havido a respeito desse negro mas haverá 15 dias me instaram na Otinga pra apressar minha entrada, que tínhamos guia. Se Deus me der saúde entrarei depois de São João".

O crédulo cônego Benigno desde 1842 procurava aquela miragem, assinalada no documento aliteratado que citamos, sertões adentro. Em 23 de janeiro de 1845 se dirigiu, mais uma vez, ao tenente-general Soares de Andréa, governador da Bahia, confessando que, depois de percorrer a Serra do Sincorá e encontrar entre a gente velha dali tradição oral do episódio do veado branco que dera a conhecer aos aventureiros do século 18 a existência da cidade abandonada, repisou a história do negro que conhecia a tal cidade e pediu mais dinheiro.

Afirmou com solenidade: "Me animo a afirmar a V. Exa. que a cidade está descoberta. Mas, pra dar com mais brevidade esta gostosa notícia aos sábios do Brasil e da Europa, que estão com os olhos em mim pra saber, decerto, a existência dum monumento de tamanha transcendência prà história deste país, são necessários socorros, pois num terreno ocupado por negros e feras me é indispensável entrar com cautela, com gente armada e municiada e levar mantimento, porque daqui a dentro não há o que comer...".

Em julho de 1848 Manuel Rodrigues de Oliveira fazia uma comunicação publicada pelo Instituto Histórico, criticando a perambulação sem rumo de cônego Benigno e assegurando que as indagações deviam partir do local assinalado no manuscrito do século 18, a confluência e barra dos rios Paraguaçu e Una. Primeiro, porque ali, onde depois foi plantada a vila de Belmonte, se encontram fragmentos de móveis antiqüíssimos, de louças e ferramentas carcomidas, mesmo restos de alicerces e paredes. Segundo, porque dali ao centro, na fazenda Provisão, a 22 léguas [88km] de Camamu, se encontravam montículos de ruínas como de antigas ruas, fragmentos de louça pintada, escumalho de ferro, foices, machados e moedas de cobre à romana, tão grandes que delas os meninos faziam roda de carrinho. Mais adiante se veria a catadupa assinalada no papel de 1753. Terminava descrendo de que o cônego Benigno achasse algo e assegurando que guardava em segredo suas notícias sobre o assunto, certo de estar servindo à grandeza do Brasil.

Se fez, após esse comunicado, um grande silêncio sobre a cidade misteriosa do sertão baiano. Cônego Benigno morreu sem a ter achado. Manuel Rodrigues de Oliveira também. Do negro de Otinga que conhecia seu roteiro nem mais notícia.

Mas em 1886, quase 40 anos depois, o conselheiro Tristão de Alencar Araripe, em sua memória sobre Cidades petrificadas e inscrições lapidares no Brasil, escreveu: "A existência de cidades abandonadas no interior de nossos extensos e inexplorados bosques tem sido, às vezes, anunciada, e bem conhecemos o empenho com que esse instituto procurou verificar a notícia dada num roteiro escrito em 1753 e encontrado na Biblioteca Nacional desta corte... Cônego Benigno da Cunha, nosso consócio, hoje falecido, se incumbiu da investigação e descoberta da inculcada cidade. Nada pôde conseguir, se queixando da falta de recurso pruma indagação completa. E assim continua problemática a existência das ruínas descritas no roteiro".

É mais que provável que a relação de 1753 seja mera fábula criada por um sujeito de fértil imaginação, dosado de pretensão literária. Parece mais uma página de Rider Haggard, em As minas do rei Salomão, que um roteiro de verdade.

Até hoje já seria tempo de se ter qualquer notícia de tais ruínas com estátuas, praças e epigrafias, se tudo não passasse dum conto à dormir débout, história pra boi dormir ou lagartixa cair da parede, segundo diz, espirituosamente, nosso povo.
Gustavo Barroso
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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.

O monstro de praia Vicentina

Ipupiara
As formas espantosas dos animais antediluvianos entrevistas pelos homens pré-históricos nas cavernas geladas ou as suas ossadas imensas encontradas nos pântanos causaram profunda sensação que, transmitida através das gerações, deu, sem dúvida, origem a muitas das lendas de bestas híbridas e horrendas. E todos os povos primitivos misturaram as formas vivas da água e da terra nessa produção duma verdadeira fauna de pesadelo, que velhos livros nos descrevem e antigos documentos iconográficos nos apresentam pintados ou esculpidos.

Os chineses criam no grande dragão Tatsmaki. Os hindus na imensa tartaruga Kusmaradja, na fabulosa serpente Midgard, no bicho Saza, de cabeça de cobra, no Çafir, de bico de águia e corpo de cão, na Çaga, de cara de milhafre e cauda de flor. Os árabes himiaritas e nabateus no pássaro Roca e nas aves Homai. Os cafres na serpente Manika, que bóia no mar como a dos escandinavos. Os esquimós no Tupilek, que tem milhões de pés, de olhos e de dentes. Os finlandeses no misterioso Herlihanem, que envenena o ferro. Os polinésios no homem-porco ou porco-homem Tamampuá.

A lista é longa, variada e apavorante. A ela concorrem os assírios com o sinistro Lahmu, nascido da mistura de água doce e salgada, com homens-escorpiões, os touros-alados, anjos-gafanhotos e deuses-peixes. Os gregos com centauros, dragões, hidras, Quimera, Minotauro, górgonas, sereias e o Campé, morto por Dionísio, que revolvia campos, devorava povos e arrasava cidades.

Os egípcios com a Esfinge, a Fênix e os deuses chacais, cinocéfalos ou gaviões. Os japoneses com o Baku, que devora os sonhos, e o Raiboku, que ataca o raio e cai despedaçado em chuva de pedrinhas pretas. Os cingaleses com o Daity-Mura de cinco cabeças. Os judeus com o pavoroso peixe Leviatã e o Hud-hud, pássaro de ouro que conversava com Salomão. Os africanos com o Kamapa, tão grande que duma extremidade não se vê a outra, e o Seedinevé, que engole aldeias inteiras. Os navegadores antigos com o Kraken, polvo gigante12 que sugava navios e o peixe-bispo, que abençoava os náufragos na hora da morte.

Os apocalipses, os volucrários, os fisiólogos, os bestiários, as moralizações e os espelhos naturais, nomes dados, geralmente, na Idade Média, a obras que traziam notícia ou figura desses bicharocos tremendos, enumeravam monstros de arrepiar: Capricervos, Caprimolgos, Capricórnios e Tragelafos, mestiços de bodes, veados e serpes; Cepus, mescla de pantera, gazela e leão; Sarcófagos, touros carnívoros; Crocotas, lobos e cães ao mesmo tempo; Dpsades, Anfisbenas, Acôntias, Áspides, Cerastas, Fisalos, Ceprestas, Basiliscos, Cítalos, Pancadas, Kesiduros, Enhídrios, Ascalábios, Ptíades, Anerudutes, Sanglos, Rútelos, Estifos, Filolópios, Céncrinos, Amolotes, Heláganas, Atélabos, Cicriodes, Selsiros, Onocrócalos e Coquátris, espantosa série de répteis monstruosos, alguns que até zurravam como jumento.

A fantasia humana não teve limite na criação de tanta monstruosidade. Encontramos no estudo das fábulas antigas, a cada passo, as bestas apocalípticas: Hipocampos, hipogrifos, hipocervos, grifos, guivras, oquilis, unicórnios, rafos, tarandos, salamandras, catopléias, cinamolgos, lumerpas, bonasios, pastinacas, masticoras, senadios, mirags, saduzags e manhotes. Na hagiografia cristã os animais fabulosos aparecem ao lado dos santos: O dragão Cauquemar lanceado por São Jorge, a Tarasca aos pés de Santa Marta, a baleia Fisetério conduzindo São Brandão, o lobo voraz de Gúbio amansado por São Francisco de Assis e a gárgula dominada por São Romano.

Algumas dessas criações híbridas representam verdadeiros símbolos. O que é o Falmante, leopardo que estourava de gritar sem necessidade, senão a representação figurada de certos indivíduos? O que é o Mirmecóleo (Mimercoleão), leão na frente e formiga atrás, senão o emblema dos fracalhões, que roncam, aparentando força que não possuem? O que é o Presteros, cujo contato tornava imbecil, senão o retrato de certas pessoas e de certas épocas que espalham a imbecilidade e a estupidez?

Entre os portugueses também correu, quando revolviam mundos e mares na sede de aventura, a história dum desses bichos apavorantes. A contou Fernão Mendes Pinto em sua Peregrinação: Era avistado nos mares misteriosos da Indochina e se chamava Caquesseitão. Tinha corpo gigantesco, carregado de compridos e terríveis espinhos, e agitava à flor das ondas um longo rabo como de lagarto.

Nosso Brasil, em seu amanhecer, possuía um bicharoco desses, muito digno de se comparar ao Caquessitão de Fernão Mendes Pinto e a quaisquer dos outros aqui anteriormente enumerados. Na penumbra das primeiras idades de todos os povos sempre se agitam formas larvares. Não podíamos escapar à regra geral. A espantosa notícia nos foi dada por dois graves e sisudos historiadores. Um forrado de saber teológico, frei Vicente do Salvador, o outro forrado de saber gramatical, Pero de Magalhães Gândavo.

Escreve o primeiro, textualmente, no capítulo 10 de sua História do Brasil: Na capitania de São Vicente, na era de 1564, numa noite saiu à praia um monstro marinho, o qual, visto por um mancebo chamado Baltasar Ferreira, filho do capitão, que se foi a ele com uma espada e o peixe, se levantando direito, como um homem, sobre as barbatanas do rabo, deu no mancebo uma estocada na barriga com a qual o derrubou e, se tornando a levantar, com a boca aberta pra o tragar, lhe deu um altabaixo15 na cabeça com o que o atordoou. Logo acudiram alguns escravos seus que o acabaram de o matar, ficando o mancebo desmaiado e quase morto, depois de haver tido tanto ânimo. Era este monstruoso peixe de 15 palmos de comprido [3,3m], não tinha escama senão pele, como se verá na figura seguinte.

Apesar desse se verá na figura seguinte, nenhum desenho do monstro acompanhava o manuscrito de frade custódio e não nos dá o nome do fabuloso animal marinho. Encontraremos, tanto esse nome como a estampa em que vem retratado, em História da província de Santa Cruz, de Pero de Magalhães Gândavo, edição de 1575, a primeira, 11 anos posterior ao aparecimento da besta, que foi em 1564.

Gândavo assim a descreveu: Era 15 palmos de comprido e semeado de cabelo no corpo. No focinho tinha cerdas muito grandes, como bigodes. Os índios da terra o chamam, em sua língua, Hipupiara,16 que quer dizer demônio dágua. Alguns como este já se viram nestas partes mas se acham raramente. E assim também deve haver outros muitos monstros, de diversos pareceres, que no abismo desse largo e espantoso mar se escondem...

Ao lado dessa descrição, a estampa do monstro sendo atacado a espada por Baltasar Ferreira, na praia de São Vicente: Hórrido aspecto antropomorfo e zoomorfo ao mesmo tempo. Decerto era essa mesma figura que frei Vicente do Salvador esqueceu de incluir em seu manuscrito, depois da haver citado. Nenhum outro documento iconográfico se conhece sobre ele em nossa história.

O rapaz que se diz ter atacado e matado a aterradora Hipupiara, segundo conta Pero de Magalhães Gândavo no capítulo 11 de sua obra já citada, de nome Baltasar Ferreira, era filho do capitão Jorge Ferreira, um dos companheiros de Martim Afonso de Souza na fundação de São Vicente. Se casara com a mameluca Joana, filha do misterioso taciturno e lendário João Ramalho, genro de Tibiriçá e um dos fundadores de São Paulo. Se encontra essa filiação em Nobiliarquia paulistana de Pedro Triques. Conta Hans Staden que um filho do mesmo Jorge Ferreira, quando este era capitão-mor de São Vicente, em 1556, fora morto e devorado a sua vista pelos índios. Não se sabe se era filho natural ou legitimo. Todavia não podia ser Baltasar Ferreira, pois este matou a Hipupiara em 1564, como depõem os historiadores a quem recorremos.

Como se vê, o matador do monstro marinho aparecido em São Vicente teve existência real e não é crível que a lenda do próprio monstro não se estribe num fato verdadeiro. As lendas são geralmente a fumaça ou as cinzas quentes da fogueira da história. Procurando uma explicação aceitável à Hipupiara, uma nota na introdução do terceiro volume da monumental História da colonização portuguesa do Brasil, aventa o seguinte: Se trata, muito provavelmente, dum exemplar do lamantino da América, vulgarmente conhecido por lobo-marinho ou leão-marinho, habitante da região antártica.

Difícil é se encontrar em tão reduzidas frases tantas cincadas em zoologia. O Lamantino, cetáceo herbívoro e fluvial, é um manatídeo. O da Flórida e do norte da América Meridional, que se chama, na Amazônia, peixe-boi, é o Manatus latirostris; o do sul do Brasil é o Manatus inunguis. O leão-marinho habita o oceano e não os rios como o peixe-boi. É uma otária, sendo que a espécie antártica se classifica como Otaria jubata ou cabeluda. Gândavo descreve a Hipupiara como semeada de cabelo.

Ora, nossos índios conheciam perfeitamente o Lamantino ou peixe-boi e não o tomariam por um bicho aterrador e fora do comum. Além disso, o episódio da Hipupiara se passou na costa do mar, onde os manatídeos não freqüentam. Quando muito seu aparecimento seria possível num estuário, com água ao menos salobra, o que não é o caso da praia de São Vicente. Assim, pra explicarmos racionalmente a presença daquele bicharoco no século 16 temos de admitir a hipótese plausível de se tratar dum verdadeiro leão-marinho, duma otária, Otaria jubata, dos mares do sul. Brehn, em sua Vida dos animais, disse que o leão-marinho, quando atacado, põe em fuga o homem mais corajoso, e o naturalista Steller, que lhe estudou os hábitos, conta que os canchadales tinham, em suas tribos, em alta estima os que já haviam matado um desses leões, por isso era prova da maior coragem.

Indicamos esta hipótese como plausível, porque é sabido que as correntes marinhas trazem e lançam sobre a costa meridional do Brasil, desde Rio Grande do Sul até São Paulo, cadáveres de pingüins e focas, entre os quais, às vezes, alguns exemplares vivos da fauna das regiões antárticas. Viajando no litoral, de Laguna a Torres, no Rio Grande, em 1935, vi, pessoalmente, dezenas desses cadáveres na praia do Soberbo. Nada há de extraordinário, portanto, na presença dum leão-marinho antártico vivo na de São Vicente.

Carlos Malheiro Dias aproveitou a luta de Baltasar Ferreira com a Hipupiara literariamente prum belo símbolo da colonização portuguesa do Brasil: Aquele adolescente São Jorge, prostrando com a espada o monstro que o arremete, é ainda o símbolo da vitória lusitana sobre o terror que emanava da terra virgem, das florestas obscuras e insondáveis, da ferocidade do arqueiro tatuado das selvas.

Gustavo Barroso
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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Lendas do diabo

O diabo é o herói de mil tropelias no sertão. Aparece com o aspecto tradicional que lhe deu o catolicismo: chifres, olhos de fogo e pés de pato ou de bode. Também pode surgir como um grande cachorro, um bode, um gato ou um porco negro. Tem muitos apelidos, porque não se deve nunca dizer seu verdadeiro nome, a fim de o não atrair: Cão, Debo, Moleque, Fute, Pé-de-pato, Futrico, Figura, Bode Preto, Porco-Sujo, Sujo, Capa-Verde, Capinha, Gato Preto, Malmo, Sapucaio, Pedro Botelho, Bicho Preto, Rapaz, Tinhoso, Capiroto, Droga, Capeta, Coxo, Maioral, Ele.

Geralmente, o demônio sertanejo, como o de todos os povos, é criado à sua imagem e semelhança. Anda, por isso, encourado como os vaqueiros, monta a cavalo, é especialista em velhacadas de cigano e alquilador, gosta de cachaça, come picadinho de bode com gerimum, dança nos sambas, campeia o gado, faz a corte às moças, e desaparece sempre com um estouro e um fedor terrível de enxofre ou de chifre queimado. Às vezes, se apresenta como um cantor de desafio a quem ninguém vence. De outras, se encarna no couro dos cantadores célebres, ou faz pactos com eles, tornando-os invencíveis. O cantador Manuel do O Bernardo, não podendo vencer num desafio célebre seu rival Rio-Preto, gritou no meio da sala onde se achavam, rodeados de muita gente:

Senhora dona da casa,
Abra a porta, acenda a luz:
Estamos c’o Cão em casa,
Rezemos o credo em cruz!

Outro famoso cantador, Manuel das Cabeceiras, afirmava ter cantado desafio uma vez com o demônio em figura de moleque.

Corre pelo sertão uma versalhada sobre a disputa do diabo com São Miguel a propósito da alma de certo ricaço inimigo dos pobres, que estava sendo julgada no outro mundo. Quando o arcanjo começou a pesar as boas e más obras do morto na sua balança, este pediu a intercessão em seu favor de Nossa Senhora, da qual fora sempre devoto. Satanás esperava com prazer apoderar-se da alma do infeliz. Nossa Senhora, porém, movida da piedade de seu amantíssimo coração, conseguiu salvá-la. Ao avistá-lo, o Fute falou assim:

Lá vem a compadecida!
Mulher com tudo se importa!
Todos fazem seus negócios,
Mas a mim fecham a porta.
No fim de todas as coisas,
Eu é que levo a taboca!

Não foi possível obter os outros versos do poemeto sobre esse milagre da Virgem Mãe.

O suplício mais terrível que existe no inferno para aqueles que cometem impurezas nesta vida é, no dizer dos matutos, o chamado da cama do compadre com a comadre. A decência não permite se faça sua descrição. Para mostrar quanto é terrível, basta a seguinte lenda sertaneja:

Um dia, o diabo coxo revoltou-se contra o maioral do inferno e pintou o sete lá dentro. Quebrou os móveis e deu pancada a torto e a direito. Todos os demônios o cercaram armados de espetos em brasa. Continuou a lutar. O maioral ameaçou-o se não se rendesse, de passá-lo pelas moendas onde se supliciam as almas mais pecadoras. Soltou uma gargalhada. Ameaçou-o com a grande caldeira de azeite fervente. Tornou a zombar. Ameaçou-o com a cama do. compadre com a comadre. O diabo coxo empalideceu, pôs-se a tremer e entregou-se, pedindo perdão.

Na opinião sertaneja, o demônio tem horror aos meninos, porque já o fizeram perder duas vasas. A primeira, numa igreja. Todo vestido de preto, debo estava tomando nota de quem se portava mal durante a missa, quando um menino puxou a saia da mãe.

- Que é isso, menino? disse ela.

- Mamãe, olhe ali aquele homem! Ele tem os pés de pato!

A mulher voltou-se, viu e fez o sinal da cruz. O bicho estourou, fedendo.

A segunda foi numa festa. O diabo, que andava apaixonado por uma moça muito bonita, compareceu a um baile em casa do pai dela, bem vestido e bonito, mas sem poder esconder os pés de pato. Quando mais aceso ia o seu namoro, um menino gritou no meio da sala:

- Aquele homem tem os pés de pato!

Houve grande reboliço. A moça fez o sinal da cruz. Ouviu-se logo o estouro e sentiu-se a fedentina de chifre queimado.

No sertão, o diabo faz pactos ou pautas, como dizem os nordestinos, com indivíduos que o logram a maior parte das vezes. Para mútua segurança nesses contratos, quase sempre realizados alta noite, numa encruzilhada deserta, o homem deve dar ao Maligno em caução alguma gotas de seu sangue.

Conta-se que um fazendeiro fez com o Capeta o seguinte acordo: Este faria tudo quanto aquele mandasse e somente o poderia levar para o inferno, quando tivesse esgotado suas ordens. É quase a condição imposta pelo demônio aos desejos do doutor, no Segundo Fausto de Goethe.

O homem fez o que bem quis com o auxílio do diabo até que um dia já não sabia mais o que ordenar. Ia ser carregado para o inferno, quando lhe ocorreu um ardil salvador: mandou o Tinhoso encher um cesto de água e ele, desesperado, estourou e foi-se.

Tendo morrido numa cidade sertaneja um homem, cuja riqueza era de origem duvidosa, verificou-se que a tinha obtido com um pacto infernal, pois que, no dia do enterro, quando todos os parentes e amigos enchiam a casa do defunto vestidos de preto, nela entrou um vaqueiro alto e moreno, todo encourado, que, sem tirar da cabeça, com escândalo dos presentes, o seu chapeu de couro, deu em silêncio algumas voltas em torno do esquife e foi embora. Quando se abriu o caixão, antes de ser levado para o cemitério, a fim da viúva se despedir de seu marido, verificou-se que estava vazio. O demônio levara o morto em corpo e alma!

Conta, afinal, o sertanejo que o diabo é casado e tem uma filha muito bonita. Por ela se apaixonou um rapaz de grande virtude e valor. Seu anjo da guarda não conseguiu afastá-lo de tão perigosa paixão. A moça não foi indiferente a esse amor, mandou-lhe recados carinhosos, e até falou ao pai em abandonar o inferno e ir morar na fazenda do namorado. O diabo enraiveceu-se com esses desejos e, para evitar que os realizasse, trancafiou-a a sete chaves numa torre de ferro, ao meio de seu reino.

Ao saber disso, o rapaz montou no seu cavalo de campo castanho escuro, fechado ou, melhor, cacete, sem sinal descoberto nem encoberto de espécie alguma, o animal de maior fama da ribeira, e dirigiu-se ao inferno, decidido a tudo. Chegou lá na hora em que os diabos dormiam, abriu as portas da torre com chaves falsas, pôs a moça na garupa e fugiu a todo galope.

Quando acordou e soube, pela mulher, do audacioso rapto, o diabo teve violentíssimo acesso de fúria. Depois, mandou selar um de seus melhores cavalos e lançou-se em perseguição dos fugitivos. A moça, que ia sentada à garupa do namorado e podia voltar-se para trás, avistou ao longe o vulto do pai. Preveniu-o e ele esporeou a cavalgadura, perguntando:

- Em que cavalo vem teu pai?

- Num gáseo.

Ele respondeu, rindo:

- Cavalo gáseo-sarará não presta nem prestará.

As rimas dos rifões sobre os pêlos dos cavalos são simples meios mnemônicos para não esquecê-los. O cavalo gáseo-sarará é o albino, o ruço ou branco de pele rósea. Chama-se comumente só gáseo. Sarará se diz do indivíduo rusalgar. A combinação dos dois termos dá mais força à idéia da cor do animal.

Sentindo escapar-lhe a cobiçada presa, o demônio muda de cavalo e a moça previne ao rapaz, que indaga:

- Em que cavalo vem teu pai?

- Num alazão.

- Trazes o freio na mão, onde deixaste teu alazão?

Seguem-se contínuas mudanças, sempre acompanhadas da pergunta - em que cavalo vem teu pai? - e de respostas que indicam as qualidades ou defeitos atribuídos às cores dos animais.

- Em que cavalo vem teu pai?

- Num bebe-em-branco.

- Quem monta em bebe-em-branco, monta em cavalo manco.

O bebe-em-branco é o cavalo escuro de narinas e queixo brancos.

- Em que cavalo vem teu pai?

- Num cardão rodado.

- Cavalo cardão rodado melhor andando que parado...

O cardão rodado é o tordilho escuro com manchas apatacadas que o francês chama grís pommelé.

- Em que cavalo vem teu pai?

- Num cardão pedrez.

- Cavalo cardão pedrez para carga Deus o fez.

O cardão pedrez é o tordilho pintadinho.

- Em que cavalo vem teu pai?

- Num ruço-pombo.

- Cavalo ruço-pombo traz pisadura no lombo.

- Em que cavalo vem teu pai?

- Num melado-caxito.

- Cavalo melado-caxito tanto é bom como é bonito.

O melado-caxito é o baio dourado de crinas e canos pretos.

A excelência do animal não adiantava mais nada ao demônio, porque os dois amantes chegavam à face da terra e se refugiavam numa igreja, onde casaram. O diabo voltou ao seu reino, aborrecido e fatigado. Ao entrar em casa, sua mulher indagou:

- Alcançou-os?

- Não. Foi impossível!

- Por que?

- Porque montavam um cavalo castanho escuro que pisa no mole e no duro, e leva o dono seguro.

O sertanejo aproveita essa lenda dum Orfeu bárbaro para enumerar seus conceitos sobre as cores dos cavalos, desmentindo o velho aforismo dos maquignons de França; à tout poil bonne bête. Mas, em todos os pêlos, mesmo nos mais desacreditados, há exceções. Essa a verdade.

De todas as lendas sobre o diabo que correm pelos sertões do Nordeste brasileiro parece que esta é a mais peculiar, a mais característica.

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Gustavo Barroso (Gustavo Dodt Barroso), historiador e folclorista, nasceu em Fortaleza, CE, em 29/12/1888, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 3/12/1959. Publicou, entre outras obras, Terra de sol, Rio de Janeiro, 1912; Heróis e bandidos, Rio de Janeiro, 1917; Casa de marimbondos, São Paulo, 1921; Ao som da viola, Rio de Janeiro, 1921 (2 ed. aumentada, Rio de Janeiro, 1949); O sertão e o mundo, Rio de Janeiro, 1923; Através dos folclores, São Paulo, 1927; Almas de lama e de aço, São Paulo, 1930; Mythes, contes et légendes des indiens, Paris, 1930; Aquém da Atlântida, São Paulo, 1931; As colunas do templo, Rio de Janeiro, 1932.

Fonte: Jangada Brasil - (Barroso, Gustavo. Ao som da viola, p.574-579)

A lenda da Morte

A crença na fatalidade da morte produziu no sertão a mesma lenda que existe no Oriente, com pequena diversidade de forma e nenhuma de substância. Onde quer que a alma popular pense do mesmo modo, se manifesta de idêntica maneira e, como ensina Van Gennepp, a qualquer momento em tema lendário bem localizado será achado num ciclo de contos populares em outro extremo do mundo.

Conta Paul de Saint-Vitor que, na Turquia, em certa época, todo o dia que Alá dava ao mundo um dos mais queridos pachás do sultão vinha saudá-lo na Sala do Divã e suplicar-lhe para ser nomeado governador duma cidade distante. Justificava o pedido com uma desculpa qualquer.

O soberano não o queria atender e até já estava se aborrecendo com aquela insistência, quando o velho servidor do trono confessou o verdadeiro motivo do seu desejo de deixar Istambul. Todas as manhãs, ao sair de seus aposentos, encontrava a Morte que lhe cravava olhos de espanto. Já não podia mais com essa obsessão. O sultão tomou a narrativa como caduquice, teve pena do pachá e mandou-o para onde tanto queria ir.

Semanas depois, passeando a noite pelo jardim do palácio, o sultão encontrou a Morte e interpelou-a:

- Porque perseguias o meu velho pachá, fitando-o diariamente com olhos de espanto?

E ela respondeu:

- Porque recebi ordem de matá-lo na cidade para onde foi nomeado governador e me admirava de ainda vê-lo por aqui ...

Esta certeza de que ninguém escapa à morte no dia marcado se consubstancia também numa história sertaneja:

Um caçador armou um mondéu por trás dum cemitério, a fim de pegar um tatu que costumava andar por ali. Numa noite de luar, topou com o maior espanto a Morte presa naquela armadilha, cujo pesado tronco lhe caíra sobre uma das tíbias. O corpo esquelético se estirava no chão, envolto no branco lençol e a foice rolara por uma ribanceira, ficando dependurada numa raiz de angico. Gelado e imobilizado de pavor, o matuto ouviu a Morte chamá-lo:

- Venha cá! Livre-me deste mondéu e o recompensarei.

Cobrou algum ânimo, aproximou-se e, aproveitando o ensejo, pediu-lhe, como recompensa para libertá-la, o direito de viver sadio e forte até avançada idade, que somente diria depois dela lhe revelar quanto teria de vida, se não fosse aquela ocasião de prestar-lhe um favor. Ela respondeu sinceramente que isso não lhe era possível revelar e nem seria preciso para que dissesse quantos anos desejava de existência.

- Cento e vinte! Exigiu o caçador.

A Morte acedeu e ele a libertou. Viveu sempre rijo e feliz, assombrando o sertão e vendo o desfile das gerações, aquele longo período. No dia em que se completava o prazo obtido com o acordo, teve medo de morrer e resolveu enganar a Morte. Raspou completamente barba, bigode, cabelos e até sobrancelhas, de modo a se tornar irreconhecível e se meteu num baile que davam no lugar onde morava.

Perto da meia-noite, que era quando terminava o prazo, a Morte, que o procurava por toda a parte sem o achar, veio ter a festa, perguntando se o tinham visto; mas ninguém lhe dava a menor notícia dele. Aproximava-se a hora fatal. Então, ela examinou um por um os convivas e, ao bater a primeira badalada das doze horas, disse, segurando o nosso caçador pelo braço:

- Como não tenho mais tempo de procurar o velhaco e não quero me retirar de mãos vazias, levo comigo este pelado!...

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Gustavo Barroso (Gustavo Dodt Barroso), historiador e folclorista, nasceu em Fortaleza, CE, em 29/12/1888, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 3/12/1959. Publicou, entre outras obras, Terra de sol, Rio de Janeiro, 1912; Heróis e bandidos, Rio de Janeiro, 1917; Casa de marimbondos, São Paulo, 1921; Ao som da viola, Rio de Janeiro, 1921 (2 ed. aumentada, Rio de Janeiro, 1949); O sertão e o mundo, Rio de Janeiro, 1923; Através dos folclores, São Paulo, 1927; Almas de lama e de aço, São Paulo, 1930; Mythes, contes et légendes des indiens, Paris, 1930; Aquém da Atlântida, São Paulo, 1931; As colunas do templo, Rio de Janeiro, 1932.

Fonte: Jangada Brasil - (Barroso, Gustavo. Ao som da viola; nova edição correta e aumentada. Rio de Janeiro, 1949).