segunda-feira, 11 de junho de 2018

Cura-te a Ti Mesmo


SALA DO DIRETOR do centro de estudos era pequena e estreita, mas muito alta. A luz do sol entrava por janelas quase rentes ao teto, em raios brilhantes que iluminavam pequenos turbilhões de poeira.

A mesa do diretor ficava sobre um tapete de feltro embolorado bem no centro de um minilabirinto de estantes metálicas e cheias de livros, dessas que podem ser montadas e expandidas com paciência e uma boa chave de fenda.

A mesa em si era grande e velha. Cheirava como madeira velha. Paulo, o diretor em pessoa, socava fumo no cachimbo com o polegar enquanto explicava o trabalho do centro ao estagiário, um jovem recém-formado em medicina, recém-chegado:

– Como você sabe, a maior parte das curas paranormais acontece dentro de algum tipo de ambiente religioso – Paulo lambeu o polegar e, sem perceber, limpou o dedo sujo de saliva e tabaco na gravata azul. – Centros de diversas correntes espíritas, terreiros, templos pentecostais, na maior parte das vezes. Daí, você percebe como é difícil obter dados científicos a respeito do fenômeno. Isso acontece porque...

O diretor fez uma pausa para acender o cachimbo, que logo começou a fumegar. Um cheiro de chocolate amargo preencheu a sala.

– Porque as pessoas nesses lugares tendem a enquadrar a realidade na teologia. O fato de a Terra girar em torno do sol prova que tal atitude dificilmente conduz à verdade – Paulo sorriu. – Compreende?

– Claro – o jovem não conseguiu evitar que sua voz saísse rascante, como se viesse junto com um pigarro.

– Você não tem nenhuma forte convicção religiosa a esse respeito, tem? – o diretor não esperou pela resposta antes de prosseguir; a pergunta era estritamente protocolar. – Então, nós reunimos aqui pessoas que acreditam possuir algum dom especial e fazemos experiências em condições controladas. E é por isso que preferimos o termo curas paranormais a curas mediúnicas. Existe uma certa carga metafísica na palavra “mediúnica”, não acha?

– Com certeza. Mas...

– Mas? – pela primeira vez, Paulo encarou o estagiário com interesse, como se a adversativa fosse o primeiro sinal de inteligência vindo de um longínquo sistema solar. Ali, estava um rapaz magro, loiro, sardento, com íris tão claras que quase pareciam apagadas. De onde ele dissera que vinha a família? Holanda? Mas o garoto nascera no Brasil, ao menos segundo a ficha. – Alguma dúvida?

– Bem, sim. Como os “curandeiros” são testados? Vocês têm pessoas doentes aqui?

– Santo Deus, não! – a ideia parecia divertir o diretor mais do que propriamente escandalizá-lo. – Mas venha. Vou lhe mostrar.

– Aqui, é onde preparamos os testes – disse Paulo, fazendo um gesto amplo com os braços, como se para abarcar todo o espaço compreendido pelas paredes brancas, azulejadas. Eles estavam no laboratório. Ao redor, bancadas e jaulas com animais: porquinhos-da-índia, hamsters, alguns chimpanzés.

– Estes são os nossos pacientes – o diretor continuou. – Com os recursos que temos aqui, podemos criar tipos sortidos de doenças e deformidades e medir graus mínimos de recuperação aparentemente inexplicável. Assim, evitamos o golpe da velhinha na cadeira de rodas. E também descobrimos algumas coisas interessantes. Observe.

O estagiário acompanhou Dias até uma gaiola com dois hamsters.

– Vê o rato da direita? – perguntou o diretor, apontando para um animalzinho bastante ativo e excitado. – Há duas semanas, seccionamos sua coluna cervical. Para todos os efeitos, ele ficou tetraplégico.

– Incrível! E quem conseguiu curá-lo?

– O rato da esquerda.

Isso pegou o rapaz de surpresa; ele ficou quieto, com a boca aberta, como se à espera de palavras que não vinham.

– Reagi assim, também, quando me contaram – disse Paulo, rindo, dando tapinhas amistosos no ombro do jovem. – Mas revisamos todos os testes, e não há erro. O que parece provar que o dom da cura não é exclusivo da raça humana, mas comum a todo o reino animal... ou, ao menos, aos mamíferos.

– E vocês já sabem como isso funciona?

– Não, mas descobrimos algumas limitações interessantes. Por exemplo, até agora, só vimos curas paranormais funcionarem em casos de cicatrização. Podem ocorrer cicatrizações maravilhosas, como a do tecido nervoso no pescoço do rato, mas apenas cicatrizações. Até o momento, nenhum de nossos voluntários foi capaz de remover pedras dos rins, ou um apêndice inflamado, ou deter um câncer. Ao que tudo indica, a cura paranormal é o poder de induzir a uma rápida divisão celular no local da lesão.

– E como essa indução acontece? Força de vontade?

– Ainda não temos muita certeza. Só sabemos que o fenômeno afeta a aura vital.

– Aura vital? – por mais que tentasse, o estagiário não conseguia deixar de sorrir. Afinal, ele encontrara uma brecha de superstição no frio racionalismo do diretor! – Vocês trabalham com auras? Sempre achei que...

– Pois achou errado – Paulo não gostava daquilo, do ar de superioridade que as pessoas adquiriam quando ele mencionava auras. – Considere os tubarões, por exemplo.

– Tubarões?

– Tubarões. Têm órgãos especiais no focinho, que permitem detectar o campo elétrico gerado por matéria viva. Muito útil quando se é um predador e a presa pode se esconder mergulhando na areia do fundo do mar. E... – ele deteve a frase bruscamente, pensando no que dizer ou fazer em seguida. – Ora, venha cá.

– Esta é a grande prova que posso apresentar a favor do nosso trabalho aqui.

O diretor havia conduzido o estagiário até uma sala no subsolo no edifício e, agora, lhe mostrava um homem obeso, completamente nu, conectado a uma série de monitores por uma verdadeira teia de fios e eletrodos, mergulhado em um aquário de vidro – apenas a boca e o nariz estavam acima da linha d’água. Se é que, pensou o jovem, o líquido era água.

– Tubarões detectam auras sentindo o campo elétrico que se forma entre o organismo da presa e a água salgada do mar – disse Paulo. – É como se a pele fosse uma membrana de bateria na verdade. Daí, o tanque.

– Mas...

– Você é um médico, não? – provocou o diretor. – Então, examine-o!

O estagiário procedeu com cautela. Tocou o corpo. Com cuidado, e depois de obter um olhar de aprovação de Paulo, retirou um braço e a cabeça do homem da água por alguns instantes, moveu-o no interior do tanque, produzindo um som de chapinhar que lhe pareceu um tanto quanto sinistro, irreal. Testou a rigidez nas articulações, olhou as pupilas e, por fim, disse, sacudindo as mãos para secá-las:

– Esse homem está morto.

– Há quanto tempo?

– O corpo já atingiu a temperatura ambiente, mas não há manchas de sangue nas costas... e não há sinais de decomposição. É difícil dizer.

– Esse homem está aqui, nesse estado, há duas semanas.

O estagiário engoliu em seco, lembrando-se de que Paulo iria ser seu superior hierárquico – buscando uma resposta educada.

– O que o senhor diz é... impossível – o jovem murmurou, engasgando com as palavras. – Em duas semanas... Nesta temperatura... na água... não notei sinais de conservantes, ou...

– O cadáver estaria se desmanchando, dissolvido, bolhas de gordura humana boiando na água, dentes podres, a água exalando um fedor insuportável. Eu sei! Mas venha, veja os monitores.

As telas negras com linhas verdes eram bem conhecidas: eletrocardiograma, eletroencefalograma. Nenhuma delas indicava qualquer sinal de atividade.

Próximo desses aparelhos, havia um grande painel de luz fluorescente, onde se prendiam dois negativos fotográficos. As fotos apresentavam os contornos de um corpo humano, bastante acima do peso, envolto numa ofuscante aura branca. Ao lado, um monitor de tomografia mostrava, com sua imagem colorida e cambiante, que ainda havia alguma atividade no interior do corpo.

– Este homem era um de nossos voluntários mais talentosos – disse Paulo. – Ele morreu de ataque cardíaco há 15 dias. Também, com esse peso... Mas o fato é que nenhuma decomposição teve início, e a aura, como mostram as fotos, parece tão firme como antes, embora, na verdade, esteja decaindo aos poucos. Fizemos uma pequena cirurgia exploratória e descobrimos que seu coração está se regenerando lentamente, células novas ocupando o lugar daquelas mortas durante o enfarto. Percebe? Ele está cicatrizando a causa da própria morte.

– Tal processo precisaria de... energia. Proteínas. Como...?

– Ele está drenando da própria aura. É por isso que o campo elétrico parece decair aos poucos: a energia está sendo consumida pelo processo de cura. É um cabo de guerra, veja bem. Se o campo se exaurir antes que a regeneração esteja completa, a morte irá se consumar. Se resistir... É claro que estamos dando uma pequena ajuda, mantendo as condições ambientais estáveis, desobstruindo as artérias, cuidando do equilíbrio eletrolítico da água.

– O senhor está dizendo que esse homem pode voltar a viver?

– Estou dizendo que, embora o sistema bioquímico de seu corpo tenha sido destruído, o sistema eletromagnético ainda luta para se recuperar. É a Ressurreição, dois mil anos depois.

Depois dessa última demonstração, o estagiário foi conduzido ao quarto que ocuparia, uma sala nua com cama, banheiro e escrivaninha. As malas já estavam lá.

Sua primeira atitude foi tomar um banho frio, na esperança de que o choque térmico clareasse as ideias. Cada vez que pensava no assunto, porém, ele se convencia de haver cometido um erro – um grande erro, ao não se identificar adequadamente após a pergunta sobre “crenças religiosas”.

Mas como explicar a vocação, o chamado que o levara ao seminário e, depois, o arrancara de lá, conduzindo-o à faculdade de medicina, aos centros de curandeirismo, à busca incessante pelos sinais da mão d’Ele em cada vida salva, no alívio da dor?

Ao ouvir falar do centro, o estagiário havia imaginado que aquele seria o seu lugar, um espaço onde a ciência e os misteriosos dons de Deus se reconheceriam em respeito mútuo. Mas o que ele vira – o quê? – vaidade. Blasfêmia. A ciência tentando ocupar o assento do Criador, a dizer, de forma zombeteira, que o cadáver flácido e inchado poderia se constituir numa símile do Salvador.

Não houvera tanque de água no Santo Sepulcro. Mas os óleos aplicados ao cadáver... Os íons metálicos da rocha... A esponja de vinagre...

Só quando terminou de mudar de roupa que se deu conta de que não vestira o pijama, como (ao menos conscientemente) pretendia. A roupa que usava era um conjunto de calças e moletom pretos, o tipo de traje que alguém escolheria para...

Esgueirar-se na noite.

Um delicado equilíbrio se rompera, e o jovem louro soube que lhe cabia reajustá-lo.

Chegar à sala no subsolo não era difícil. Os poucos seguranças do centro dedicavam-se apenas a vigiar as portas que davam para a rua – e não as instalações internas. Assim, o estagiário logo se viu diante do cadáver que se recusava a morrer.

Era um homem branco, cerca de 40 anos e 190 quilos. Gordo com aquele tipo de gordura que se concentra no tronco, deixando braços e pernas com uma aparência de abjeta fragilidade, e os peitos como se fossem seios flácidos de mulher. A barriga se revolvia em dobras que pareciam querer boiar na água rasa.

Pela primeira vez, o estagiário olhou com atenção para o tubo conectado à coxa direita; talvez o responsável pela tal “limpeza de artérias”.

Caminhando até a tela do tomógrafo, o jovem notou uma série de matizes coloridos que só poderiam significar um tipo de vida vegetativa, mantida a taxas metabólicas extremamente baixas. Mas mesmo esse diagnóstico era falso – pois o corpo atingira a temperatura ambiente, e não havia atividade cardíaca nem cerebral. Aquele era o quadro de um homem morto que não morria, uma aberração médica, um conceito que a própria linguagem não alcançava adequadamente.

Como matá-lo?

O problema ético surgiu ao mesmo tempo em que a questão prática. Como matar um morto? Assassinar um cadáver é pecado?

O estagiário começara a suar. Olhando ao redor em busca de uma solução para seu duplo dilema, encontrou um armário. Abriu-o: instrumentos cirúrgicos. Serras, bisturis, luvas.

É isso, pensou. Posso dissecá-lo – e não seria crime; seria aprendizado.

Equacionadas as duas questões, o jovem médico logo se preparou para o trabalho, selecionando o bisturi que pareceu mais adequado para a incisão torácica em Y.

Respirando fundo, aproximou-se silenciosamente do corpo. Será que o sangue vai se espalhar como fumaça colorida pela água?

O primeiro acesso de tosse foi tão violento que literalmente arremessou o estagiário três ou quatro passos para trás, fazendo-o derrubar a mesinha com os monitores, que caíram no chão com um som abafado, as telas espatifando-se como velhas garrafas vazias. O médico sentiu um estremecimento mórbido se apossar de seu corpo. A garganta e os pulmões ardiam, enquanto alguma coisa parecia abrir caminho lá de dentro, impulsionada por uma erupção.

Logo em seguida, veio a dor, por todo o tronco, que o obrigou a se ajoelhar no chão, com os braços cruzados sobre a barriga. E então a tosse voltou, convulsiva, e dessa vez veio acompanhada por pedaços ensanguentados de algo que o médico recém-formado, olhos arregalados, identificou como sendo os próprios pulmões.

No dia seguinte, a equipe de pesquisas encontrou dois cadáveres na sala. Um, o do estagiário, jazia de forma deplorável em meio a uma poça fétida de sangue. O outro, no tanque, começava a apresentar os primeiros sinais de decomposição. Leituras de aura foram feitas, e o resultado não mostrou qualquer resquício do campo. Era como se houvesse esgotado suas energias num último grande esforço.

Havia cacos de vidro, componentes eletrônicos, serras e bisturis pelo chão, e o estagiário calçava luvas cirúrgicas. A autópsia, realizada poucas horas depois pelo próprio Paulo, foi incapaz de encontrar a cavidade torácica – e isso porque uma massa anormal de tecido preenchia todo o espaço entre o peito e as costas: algo que havia empurrado os pulmões para fora, esmagado o coração e esmigalhado a coluna.

O atestado de óbito só dizia “câncer”.

por Carlos Orsi


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

Vodu!

Quadrinhos do Terror apresenta: "Vodu!" - Os mortos assombram as selvas com uma insana sede de vingança -, da revista Creepy nº 1. História: Russ Jones e Bill Pearson; Arte: Joe Orlando; Publisher: James Warren.





Nós, Robôs


O MODELO HUD-002 era apenas um protótipo quando surpreendeu seus construtores ao dar uma resposta totalmente não-programada. Os cientistas não sabem explicar como ele adquiriu consciência e noção moral, coisa rara mesmo em seres humanos.

A história da robótica, de fato, remonta até uma idade mítica quando os computadores e aparelhos eletrodomésticos ainda não eram ligados em rede e, pior ainda, quando as cirurgias eram feitas abrindo o corpo dos pacientes num espetáculo de sangue e tubos. Pouco restou da memória daqueles dias, especialmente depois da guerra. Temo que seja sempre assim: os grandes fatos do passado são as curiosidades de hoje.

Foi no Natal de 49 que o já obsoleto modelo HUD-004 apareceu na sala de casa trazendo uma taça de vinho e um prato muito bem servido de peru com salada de maionese.

– Eu comeria também – disse ele – se não fizesse mal aos meus circuitos.

Eu ri.

– Álcool e gordura fazem mal aos meus circuitos também.

Ele emitiu um som metálico, indicando que ria também.

– Daqui a pouco, vão começar os fogos, senhor.

Tomei um gole de vinho e caminhei até a janela. Meu apartamento proporcionava uma excelente vista do espetáculo. Suspirei:

– Não sei por que mantemos essas tradições.

HUD-004 foi até a parede e ligou o seu cabo de alimentação na tomada.

– Isso eu não sei responder: são dúvidas para modelos mais avançados, como o senhor. Agora, se me dá licença, já cumpri minhas tarefas. Vou entrar em modo de descanso.

A delicada luz de seus olhos apagou-se lentamente. Por via das dúvidas, conferi no pequeno visor no meu pulso o estado de minha bateria. Havia o suficiente para mais algumas horas.

Olhei os fogos coloridos, pensando no passado e me sentindo terrivelmente sozinho.

por Bernardo Moraes


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

A Ilha de Tobias


A BORBOLETA, QUE surgiu do meio das flores e quase tocou o solo, mudou repentinamente a trajetória de seu voo, indo pousar na palma da mão de Tobias. Embora surpreso, ele a recepcionou com cuidado. Erguendo um pouco o braço, a permitiu decolar novamente. Seguiu-a com os olhos por algum tempo, mas logo voltou sua atenção para as flores que beiravam a estreita trilha na qual caminhava. Estavam por todos os lados, em variadas espécies. Uma mais bela do que a outra.

Ainda não compreendia o que fazia num lugar como aquele. Sempre foi um homem urbano, acostumado a respirar o ar cada vez mais poluído do planeta. Estava surpreso de encontrar um ambiente tão limpo, sem fios ou instalações elétricas por perto enfeando a paisagem. Sem qualquer sinal de poluição industrial, podia enxergar o verdadeiro tom azulado do céu, bem diferente das cores cinza e vermelho que predominavam nas grandes cidades. Pensava não existir mais um azul como aquele. Só havia visto paisagens semelhantes em antigas fotos dos séculos XX e XXI. O silêncio retumbante do lugar o assustava um pouco; cresceu e viveu ouvindo o barulho de diversas máquinas. Como qualquer outra pessoa viva, tinha se desenvolvido em meio ao caos e à desordem, a pressa e a falta de tempo para contemplações como a que vinha fazendo pelo caminho. Não se lembrava de como tinha chegado até aquela trilha. Podia estar ali havia dias ou apenas alguns minutos. Sentia-se confuso. Sua memória falhava totalmente, desorientando-o por completo.

Caminhou por quase quinze minutos. Durante esse período, as flores foram tudo que pôde enxergar. Por mais estranho que pudesse parecer, sentia-se bem, fisicamente falando, com um vigor fora de seus padrões. Normalmente, era alguém cansado, exaurido por qualquer atividade corporal um pouco mais exigente. Dessa vez, entretanto, estava firme em sua marcha. Fôlego pleno.

Avistou uma praia ao final da trilha. Belíssima. Em que lugar do mundo poderia estar? Não existiam mais lugares assim. Correu na direção do mar. Seus pés afundaram na areia fofa a cada passada até conseguir mergulhar.

Entrou sem tirar a roupa. Como um bebê, bateu seguidas vezes na água com as mãos. A temperatura estava perfeita, morna o suficiente para manter a sensação de conforto que vinha sentindo. Após afundar por completo na água e retornar à superfície, enxergou uma pessoa, entre as flores, vestida toda de branco. Percebeu ser um homem de cabelos brancos. Era incrível conseguir enxergar com tanta nitidez daquela distância, pois era míope e estava sem os óculos.

Saiu da água para ir na direção do sujeito. Embora sentisse vontade de ficar no mar por horas, precisava informar-se sobre sua localização. Aquele homem era, até o momento, o único que poderia lhe dizer algo a respeito.

Aproximou-se com um sorriso no rosto. Tentava ser simpático.

– Olá – disse. – Tudo bem com o senhor?

O homem o observou por um breve instante. Mantinha as mãos nos bolsos de sua calça.

– Tudo bem – respondeu, sucintamente.

– Sei que parece estranho perguntar isso, mas sabe que lugar é esse?

– Gosta daqui?

– Gosto. É lindo. Pensei que não existissem mais lugares assim.

O homem de branco olhou ao seu redor. As flores, a praia e o céu azul foi o que viu.

– É realmente muito bonito.

– Bem diferente das cidades, não é? Sabe o nome daqui? A região em que estamos? – perguntou Tobias, ansioso pelas respostas.

Seu interlocutor permaneceu em silêncio por algum tempo.

– Como é possível estar aqui e não saber nada sobre o lugar? – questionou.

– Não sei! É esquisito, parece que eu despertei há menos de vinte minutos. Não lembro o que aconteceu antes.

– Por que você viria para cá? O que veio fazer aqui? – o homem tornou a perguntar.

– Não tenho ideia. Sabe ou não o nome daqui?

Uma certa tensão surgiu entre eles. Tobias havia deixado de sorrir com a demora em ouvir uma resposta.

– Alguém como você só viria para cá se estivesse fugindo de algo, concorda?

– O que quer dizer?

– Tem certeza de que não sabe?

– Do que está falando? Quem é você? – perguntou Tobias, perdendo a paciência.

– Você não está aqui à toa – afirmou o homem. – Sabe disso.

Ele deu as costas e começou a percorrer a trilha. Tobias deu alguns passos em sua direção.

– Espere! Me diga onde estamos.

O homem parou por um segundo.

– Me diga você! – disse, e depois voltou a caminhar, ignorando Tobias.

O dia continuava claro, embora Tobias tivesse certeza de estar ali havia mais de doze horas. Como não sentia sono e não tinha para onde ir, ficou andando pela praia, vagando sem rumo. O cenário nunca variava; o mar de um lado, as flores do outro, com a praia separando-os. Descobriu várias trilhas idênticas àquela em que havia caminhado. Entrou em cada uma delas, percorrendo-as até o fim. Sempre encontrou uma praia do outro lado. Sua única certeza era de estar em uma ilha.

Em nenhum momento, sentiu cansaço ou fome. Estava, sim, com um certo incômodo desde o encontro com o homem de branco. O lugar, outrora paradisíaco aos seus olhos, já era visto como chato e repetitivo. As poucas borboletas eram o máximo de agitação que podia ver. Inércia era algo que sua vida não tinha. A falta de barulho do lugar, aliada à ausência de informações, mexiam com sua paciência. O que antes lhe proporcionava uma sensação de paz começava a perturbá-lo.

Sentou na praia de frente para o mar. A roupa tinha secado sem que ele notasse. Por isso, pôde encostar na areia sem se preocupar em ficar todo sujo com grãos grudados em si. De repente, ouviu alguém dizer:

– Sentindo-se sozinho?

Era o mesmo sujeito de antes. Ainda vestia a roupa branca. Tobias virou a cabeça e o enxergou. Feliz por avistar alguém, contudo, incomodado por ser aquele indivíduo pouco hostil. Dirigiu-se a ele:

– Também me parece sozinho, ou não viria falar comigo.

O homem caminhou até o seu lado.

– Posso sentar aqui?

Tobias consentiu com a cabeça.

– Descobriu que lugar é esse? – perguntou o homem, sentando-se.

– Descobri que é uma ilha. Mas sem placas, indicações ou alguém para me informar, jamais saberei seu nome ou sua localização exata. Estamos cercados de água, não há mais nada em volta.

– Bom, as ilhas costumam ser assim – o homem disse, sarcasticamente.

Encarando com bom humor, Tobias sorriu.

– E o que você faz aqui, senhor?

– Estou trabalhando.

– Que tipo de trabalho?

– Isso eu não posso dizer ainda. Se tudo der certo, eu lhe direi. Prometo.

Tobias balançou a cabeça. Coçou a testa. Passou a considerar a hipótese de estar travando um diálogo com algum louco. Ainda assim, era melhor do que ficar sozinho por mais tempo. Era sua única oportunidade de obter alguma informação sobre a ilha.

– Ok. Como quiser – disse. – Sabe ao menos como posso sair desse lugar?

– Quer mesmo ir embora? É um lugar tão bonito.

– É, realmente é lindo. Mas é muito estranho também. Não anoiteceu até agora.

– Por que está com tanta pressa para ir? Você é casado?

– Sou.

– Tem certeza? É casado?

Cerrou os olhos. Pensou em levantar e se afastar do homem. Acabou ficando.

– Claro que tenho certeza! Por que está me provocando todo o tempo? – perguntou, irritado.

– Se você quer tomar como provocação, é um direito seu. Mas isso faz parte do meu trabalho – o homem respondeu, calmamente.

– Seu trabalho é me incomodar?

– Se as perguntas o incomodam, sim. E pare de mentir para mim, você não é mais casado.

Tobias levantou-se. Bateu na calça para tirar o pouco de areia que havia grudado lá.

– Bom trabalho para você!

Dessa vez, foi ele quem se afastou, deixando o homem sozinho na praia. Esse, no entanto, não demonstrou vontade alguma de chamá-lo.

– Até amanhã, senhor. Isso se houver amanhã, já que esse dia nunca acaba.

– Só não há amanhã para os mortos de hoje! – proclamou o homem, sentado relaxadamente sobre a areia.

Após atravessar para a praia do outro lado da ilha, buscando se distanciar do homem que o incomodava, Tobias começou a chutar a areia com toda a força que podia. Estava irado. Seus sapatos haviam desaparecido em algum momento do qual não se lembrava, mas ele, aparentemente, ignorava esse fato. A vitalidade que exibia não o impressionava mais, trocaria toda sua energia pela oportunidade de sair daquele lugar.

– Droga! – berrou, chutando a areia. – Não aguento mais! Maldito lugar!

Ouviu um trovão. Observou o céu mudar de cor imediatamente, escurecendo em poucos segundos.

Começou a chover forte. Tobias olhou em volta, procurando um abrigo. Riu da impossibilidade total de escapar da chuva e jogou-se na areia. Arrastou suas mãos como se fossem garras, deixando as marcas dos dedos na terra molhada. Parecia ensandecido.

– Quer ir embora? – perguntou alguém por trás de Tobias. – Acha que conseguirá agindo assim?

Sabia exatamente quem era. A voz ainda estava viva o bastante em sua cabeça.

– Saia daqui, idiota! – gritou, sem olhá-lo. – Vá trabalhar em outro lugar!

– Posso tirá-lo daqui, Tobias.

Parou o que fazia. As mãos, sujas de areia, iam sendo limpas pela água da chuva. Virou-se, pois havia percebido algo importante.

– Como sabe meu nome?

Estavam a mais de dois metros de distância. Apesar da forte chuva, um ouvia claramente o que o outro dizia.

– Sei muito sobre você, meu jovem. Mas existem alguns detalhes não muito claros a seu respeito. Pode me ajudar com isso? Se colaborar, posso auxiliá-lo a sair daqui – disse o homem.

– O que você quer exatamente? Quem é você?

– Me fale sobre sua esposa. O que tem a dizer sobre Daniele?

Tobias não conseguiu esconder a apreensão. Levantou com dificuldade. A chuva ficou ainda mais forte, os trovões aumentaram e uma ventania começou se apresentar. Um dilúvio anunciava-se.

– Fique calmo, Tobias! – o homem instruiu. – Fique calmo ou a tempestade só irá aumentar.

Estavam com dificuldade para enxergar-se. O homem deu alguns passos à frente, enfrentando o vento, afundando os pés no lamaçal que se formou rapidamente. Chegou bem próximo de Tobias.

– Você sabe onde ela está agora? – perguntou.

Tobias abaixou a cabeça. Fechou os olhos e fez uma expressão de dor.

– Ela está ferida – disse. – Caiu da varanda de nosso apartamento e bateu na calçada. Eu vi muito sangue escorrer!

– Acha que ela está bem?

– Não sei!

– Ela está morta!

Tobias colocou as mãos sobre a cabeça. A água da chuva batia em seu rosto, misturando-se a algumas lágrimas.

– Seus vizinhos disseram que você batia nela constantemente, e que estavam discutindo no momento da queda. Duas pessoas afirmam que a empurrou da varanda. O que tem a dizer?

Manteve-se calado. As mãos desceram para tampar o rosto.

– Quando entramos no apartamento, você foi encontrado em um canto, num estado catatônico. Não respondia a nada, nem reagia. Isso foi há doze dias atrás. Continua assim até hoje. Está em uma cama de hospital, monitorado com a ajuda de aparelhos, observado por especialistas. Sou o investigador do seu caso. Pode-se dizer que estamos em um sonho seu, ou dentro da sua cabeça, como queira. Nossa tecnologia permite que eu entre em contado com você. É o único modo de interrogá-lo. Nada aqui é real, nem nossos corpos. A ilha é imaginação sua, um refúgio criado por você.

Tobias permaneceu em silêncio. A chuva parou, e o dia voltou a clarear quase instantaneamente.

Tirou as mãos do rosto.

– Serei preso? – perguntou.

– Quem decide isso é um juiz.

– Você disse que me ajudaria a sair daqui.

– Vou ajudar. Você admite que a empurrou?

A areia estava seca, os dois homens e suas roupas também. Nem sinal da chuva de alguns segundos atrás.

– Pois saiba que não quero mais sair daqui. Quero que você vá embora. Agora!

– Não funciona dessa maneira, Tobias. Se cometeu um crime, deve pagar por ele. Mesmo que tenha sido sem intenção, terá que ir a julgamento.

– Não em minha ilha!

Abaixo do homem de branco, a areia começou a rachar e a formar um buraco. O homem, pego de surpresa, foi tragado para dentro da terra, após tentar inutilmente segurar-se à superfície. Logo, a areia foi completamente recomposta. Em poucos segundos, não havia mais qualquer vestígio do sujeito ou do buraco. Mesmo porque começaram a surgir prédios, carros, pessoas, ruas e tudo mais que a imaginação de Tobias conseguia criar. Aos poucos, o lugar ia perdendo todas as suas características originais, deixando de ser um local tranquilo e conservado para tornar-se como qualquer outro lugar do mundo.

Mas aquela ainda era a ilha de Tobias, e ele jurou para si mesmo que jamais o tirariam de lá.

por Leonardo Siviotti


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.