sexta-feira, 3 de junho de 2016

O Desvio


“There’s a devil waiting outside your door.” – Nick Cave

Em alguma estrada, cujo nome não importa, aconteceu o seguinte. Havia um homem dirigindo um carro esportivo pelo deserto ensolarado. Estava sozinho no carro, ouvindo um rock tranquilo, sem vocal, quase minimalista. Conduzia havia algumas horas e mantinha a mesma expressão impassível no rosto parcialmente coberto pelos óculos escuros. A temperatura regulada pelo ar condicionado contrariava o céu sem nuvens.

O relógio marcou seis horas e trinta minutos. O motorista buscava um trajeto, um desvio, soltava o pé do acelerador sempre que via uma placa. Também relaxava os músculos do pé quando passava por algum sujeito pedindo carona. Ria deles, às vezes. Lembrou-se do seu amigo que gritava “eu tô de carro!” para as pessoas na parada de ônibus. Três mochileiros com jeito de hippies depois e então... Ela. No acostamento direito da pista.

Tinha uns dezesseis anos, talvez. O sol já estava se pondo, mas pôde avaliá-la com precisão. Sua microssaia e suas meias de arrastão lhe fizeram cogitar por uns instantes que ela poderia ser uma prostituta, mas concluiu que não. A jovem portava uma cruz ao contrário pendurada no pescoço, uma saia preta segurada na cintura fina por um cinto cheio de espetos de metal. Na orelha direita, entre cinco e oito adornos prateados cobrindo quase toda a sua extensão. Também vestia uma camiseta preta com mangas picotadas e uma estampa de alguma banda de heavy metal com demônios desenhados.

“Mas que gostosa, puta que pariu!”, o homem exclamou para si mesmo, reduzindo de cento e cinquenta a zero por hora em poucos segundos, como nas propagandas da tevê.

Abaixou o vidro elétrico e gritou:

“Pra onde você tá indo?”

Ela, tímida, apontou o horizonte que atingiriam seguindo em linha reta.

“Curioso. Eu também.” Ela sorriu.

“Quer uma carona? Eu tenho que pegar um desvio que não sei bem onde é, daí eu te deixo ali. Pelo menos é mais perto de onde você quer chegar, não?” Abriu a porta e entrou no automóvel.

“Não tem medo de dar carona pra uma completa estranha?”

“Oras, você pode se vestir de preto, mas não parece uma serial killer pra mim.”

Outro sorriso. Ela estava atraída por ele, o motorista tinha certeza. Entretanto, a música reproduzida pelos alto-falantes parecia desagradar a jovem.

“Não sei se tenho aqui algum tipo de música que você gosta.”

“Tá legal, deixa pra lá. Você tá me dando carona, já tá mais que bom.”

Ainda assim, apertou o botão de desligar e começou a olhar os discos que guardava atirados em um vão da porta esquerda do automóvel. Puxou um deles e mostrou para ela. Era um CD completamente preto, com o nome do cantor em branco, fonte pequena. Perguntou, com as sobrancelhas, se ela gostava, e teve como resposta um sacudir de ombros, de “não conheço”. O rosto dele se iluminou.

“Eu adoro mostrar músicas novas pras pessoas”. Inseriu o disco no aparelho. “O pessoal hoje em dia é meio bitolado. Sempre escuta as mesmas coisas.” Ele pulou até a faixa 3. Ela manifestou certo estranhamento.

“Bizarra a voz desse cara. Meio dançante, também. Isso eu não gosto muito.”

“É dos anos 80, sabe como é. Mas eu coloquei porque as letras dele são sempre bem sinistras, com assassinatos e tudo mais. E a voz cortante. Adoro.” O player indicou um minuto e meio passado.

“Acho que ele fala sobre o diabo nessa música.”

“É?”

“A-hã. E ele seria o diabo. O narrador.”

“Bacana!”

“Ele diz que veio buscar a alma de alguém, um treco assim. É o que eu entendo pelo menos. Nunca li a letra inteira, só pego umas frases de ouvido.” Ela, acanhada, virou-se para a janela.

“É, vou ter que admitir, é uma música legal para escutar com o sol quase se pondo, pegando uma estrada...”

Ficaram sem assunto, e ele apertou botões aleatórios no aparelho, fingindo entender de equalização sonora. Alguns segundos de silêncio constrangedor e ela abriu os lábios para falar, esboçando uma sensualidade que ativou a imaginação do motorista.

“Mas é muito engraçado que você veio me mostrar logo essa música.”

“É? Por quê?”

A faixa 4 tinha começado, bem mais lenta e melancólica que a anterior.

“Porque eu sou o diabo. E vim aqui buscar a sua alma.”

Ele riu. Gargalhou, até. Daí riu mais um pouco. Olhou para ela. Estava séria, mas mantivera o rosto de adolescente meiga e amável.

“Boa essa piada.”

“Sério.”

Ele tentou repetir o esquema da gargalhada.

“Não é tão engraçado quando é verdade, né?” ela disse, espremendo os olhos, como se assim fosse possível enxergar através dos óculos escuros do motorista.

“A brincadeira tá perdendo a graça.”

“Por que você acha que ainda não encontrou o desvio que procura?”

“Porque eu sou completamente perdido, que tal?”

“Você realmente acredita nisso?”

Ele sinalizou que sim com a cabeça.

“E pra onde acha que você, ou melhor, nós, estamos indo?”

Os últimos raios já haviam iniciado o processo de despedida no horizonte.

“Não tô vendo chamas ou qualquer coisa que o valha ali na frente.” ele disse, e tossiu nervoso.

“O nível, o círculo mais baixo do inferno é gelado. Nunca leu Dante?”

“Ah, sim, sim. Escuro e gelado, porque é o mais longe de Deus possível.”

“Você não parece assustado.”

“Você realmente acha que eu vou cair nessa?”

“O diabo pode assumir as mais diversas formas. De uma garotinha inocente na estrada. Não? Então me diz. Por que eu não sou o diabo?” Ele refletiu.

“Bom. Em primeiro lugar...”

“Em primeiro lugar...?”

“Você não pode ser o diabo...”

“Por...?”

“Porque eu sou o diabo.”

Foi a vez dela de achar graça e demonstrar isso com uma gargalhada forçada e artificial.

“Sim, é sério. Eu sou o diabo. Por que você acha que logo eu apareci para dar carona? E você sabe o que é o desvio que eu tô procurando?”

“O caminho para me levar ao inferno?” ela disse, no meio de um estouro de risos.

“Isso aí. A diferença é que eu tenho um motivo.”

“Tem? E qual é?”

“Eu não tolero quem se passa por mim. Quem fica dizendo para os outros que é o diabo. Almas patéticas. Por que fingem tanto serem o diabo se quando conhecem ele ficam assim com essa cara, do tipo, ‘foi tudo uma brincadeira, por favor não leve minha alma’? Hein?”

Ela olhou para o pino da porta. Trancado. O velocímetro indicava 170 km/h.

“Você acha que por se vestir de preto, se comportar como uma cadela no cio, furar o nariz, isso vai te deixar mais parecida comigo? Olhe pra mim. Eu tô usando uma jaqueta jeans, óculos escuros. O diabo é discreto, não é uma menina gótica metida a besta que nem você.”

“Cale a boca! Não quero mais carona. Como funciona esse pino? Aperte o botão que abre aí!”

“Você sabe que aconteceram vários estupros aqui por essa região, né? Garotinhas de microssaia não deveriam ficar aqui, esperando algum caminhoneiro tarado no escuro. Tem certeza que quer descer?”

“Qualquer psicopata é melhor que você. Seu porco psicótico. Eu só tava brincando com aquela história. E agora você vem com esse papo com um jeito de quem tá falando sério, quando eu sei que, no fundo, no fundo, não tá. Mas sei lá, vai que você é um maníaco, algo assim. Então é bom que você me diga agora, agora mesmo, que tá brincando. Senão, eu prefiro descer aqui.”

Ele finalmente tirou os óculos, não necessitava mais deles na noite que já caía sobre o deserto. Aguardou alguns instantes antes de falar, saboreando o medo impresso na garota.

“Sim, eu tô brincando. Só queria que você admitisse a sua brincadeira também. Desculpe se eu fui longe demais.”

Ela sorriu com a mesma inocência dos primeiros sorrisos que deu logo que entrou no carro. Ele retribuiu.

“O nosso humor não é dos mais saudáveis, né?”

Olharam-se como um casal em um final feliz de Hollywood.

Ele pensou: “depois dessas piadinhas de mau gosto, acho que, no fim das contas, vou comer essa menina hoje. Será que tenho camisinha na carteira?”. Ela pensou: “Que dia. Mal posso esperar para contar para as minhas amigas”. Estava começando a simpatizar com o estilo da música. “Cara legal. Fazia mais de mês que não conhecia alguém tão legal assim.”

O desvio apareceu a 500 metros deles, sem placa alguma indicando seu surgimento.

“Olhe! Acho que é esse aqui. Quer descer?”

“Suas histórias me assustaram.” Ela engoliu fundo e se remexeu no banco. “Acho que prefiro continuar com você até a cidade onde você tá indo, sei lá. Essa estrada é sinistra de noite mesmo.”

Os dois entraram no desvio, uma estrada um pouco mais fina. Alguns quilômetros depois ele começou a se perguntar se tinha acertado o caminho, mas, no papel de homem orgulhoso, se recusou a admitir que talvez não soubesse o trajeto. O frio foi aumentando vertiginosamente, e os dois acreditaram que assim era o clima à noite naquele deserto. Ele ligou o ar-condicionado no quente, potência máxima. De nada adiantou.

No fim do desvio, dizem que o frio é tão forte que é capaz de congelar qualquer viva alma.

Afinal de contas, é o lugar mais longe de Deus, e o diabo detesta pessoas que se passam por ele.

por Antonio Xerxenesky


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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