segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Vassoura Bruxólica


"É, neste mundo de Deus, há muitos mistérios e esta gente simples aqui da Ilha vive estas coisas quase como uma realidade. Meus lobisomens, bruxas, demônios e boitatás existem.

Sempre foi crença do povo hospitaleiro desta Ilha dos famosos bois de mamão que, na Sexta-Feira-Santa, não se deve tomar instrumentos de trabalho para usa-los, seja qual finalidade for.

É também costume tradicional deste povo, descendentes de colonos açorianos, que, na Sexta-Feira-Santa, a partir de zero hora, devem banhar-se nas ondas do mar, levando consigo animais domésticos, para purificarem-se e protegerem-se de todos os males do corpo físico e espiritual. As águas colhidas nesta hora servem para todo o tipo de cura.

É a fé, longínqua dos tempos, aliada a superstição, ao medo e ao amor pela conservação do corpo físico, na cura dos males que atacam o homem em franca vivência espiritual e física com o seu Deus. As forças atuantes de práticas religiosas freiam os instintos animalescos do homem, encaminhando-o, espiritualmente, para viver com bons modos junto com o seu Deus, com a cultura, na sociedade e conseqüentemente com o seu próximo.


Entrementes, sempre aparecem nos meandros desses cenários fantásticos, e outros moderados, pessoas que se arrojam contra os poderes divinos, maltratando esses conjuntos de sociedades freadoras, veículos insubstituíveis de abrandamento de sofrimentos que martirizam e açoitam a criatura humana.

Um caso de desrespeito espiritual aconteceu há muitos anos passados, lá pras bandas do sul da Ilha de Santa Catarina. A Maria Vivina, moradora da praia dos Naufragados, fez uma aposta com a Carrica, de que, na Sexta-Feira-Santa daquele ano, ela tomaria uma vassoura e com a mesma, varreria o quintal de sua casa e,certeza tinha, nada lhe aconteceria de extraordinário. Apostaram um par de tamancos contra uma botina. E firmaram a promessa da aposta, casando-a.

Quando a Vivina deu a primeira varredela, a vassoura soltou-se de suas mãos qui nem um relâmpago, metamorfoseou-se em bruxa, ganhou altura sobre o morro do Ribeirão da Ilha e desapareceu, num repente, no espaço sideral das alturas incomensuráveis da quimera.

A Maria Vivina caiu de joelhos no terreiro, rezou e pediu perdão aos céus pelo ato impensado que havia cometido contra as ordens divinas, chorando copiosamente. A Carrica abraçou-se com ela e ambas choraram e sentiram o amargo do néctar da desobediência humana. Nenhuma das duas era bruxa, porque a vassoura, que e um instrumento de montaria de bruxas, foi embora, viajar pelo espaço sideral, sozinha.

Oh! Minha querida Ilha de Santa Catarina de Alexandria, és a graciosa sereia que repousa sobre brancas areias de comoros errantes, sambaquis seculares, banhada pelas ondas acasteladas do oceano, perfumada pela brisa acariciante dos ventos e enxuta com as toalhas felpudas dos raios solares que beijam calorosamente seu corpo mitológico."


Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

O Boitatá


Este boitatá está passeando sobre a Ilha de Santa Catarina.

É meia-noite. Ele está apreciando, de riba, as sessenta praias que ela possui, brancas quiném jasmim.

Para afugentá-lo a pessoa que o avista deve chamar a outra que estiver mais perto e gritar assim: "Zenobra, trás a corda do sino mode amarrar o boitatá, que lele anda por aqui!"

Ele foge imediatamente do mundo fascinante da fantasia humana.

Franklin Joaquim Cascaes/Ilha de Santa Catarina


Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Mulheres Bruxas Atacando Cavalos


Foi do pensamento inculto do homem de argila humana crua, que nasceu as estórias de que cavalos galopeiam pelos ares, quando são atacados por mulheres bruxas em atividades extra-terrenas, para chupar-lhes o sangue.

Contam que no dia seguinte, os animais que foram atacados durante a noite, e que galopearam pelos espaços siderais, apresentam-se sangrando, e com nós indesátaveis nas crinas e nos rabos.

Apontam como responsáveis pelos atos demoníacos bruxólicos, mulheres de suas comunidades, que são magras, feias e sujas, e que apresentam um dente no céu estrelado da boca e falam grosso quénem Homem gordo, nariz aquelino, etc.

Na ilha de Santa Catarina é muito comum o homem do interior cercar os ranchos ou estrebarias onde recolhem o seu gado, com redes de pescaria usadas, porque as bruxas também os chupam, acreditam, dentro da noite.


Hoje, no século vinte, a madame ciência afirma que quem faz os cavalos galoparem é o morcego, transmissor da raiva, não pelos ares, mas sim, campo a dentro.

Ora vejam, meus amigos,
Que nesta Ilha encantada,
Até bruxas são astronautas,
Que pilotam cavalhada.

Na bonita praia do Rapa,
De aguá azul e saborosa,
Elas entram de biquini,
E saem cobertas de rosas.


Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Balé de Mulheres Bruxas


Depois de haverem chupado muito sangue de inocentes criancinhas, sem serem molestadas por benzedeiras, armadilhas e outros, esta caterva de mulheres resolveram comemorar a vitória diabólica, com uma dança de balé bruxólico no Morro do rapa no extremo norte da Ilha de Santa Catarina, sobre a bata rubra do ex-anjo Lúcifer.


Afirma a Madame Estória, que as mulheres bruxas possuem uma inteligência excepcional, a qual elas usam sempre para ludibriar o homem de argila humana crua.

Por isto, elas vivem às turras com benzedores, armadilhas e outros, desde os séculos dos séculos.

Madame Est'toria vê,
O sinistro Lucifer
Bispando o lote de bruxas,
Que está dançando balé.

Após haverem chupado
Muito sangue de criança,
Estas bruxas elegantes,
urdiram esta Festança.

O balé que elas usam.
É o balé da bruxaria.
Marcado nas horas mortas,
Quando vem o fim do dia.

Hó! minha Ilha encantadora,
Meu fraco é sempre te amar.
Pois tu és catita bruxinha
Que repousa sobre o mar


Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

A Bruxa Metamorfoseou o Sapato


O Sabinano da Ponta das Canas, tinha uma filhinha embruxada, que até metia dó à própria bruxa que a vinha sacrificando há muitos meses.

Aconselhado por amigos, ele passou a tratar a criança com um benzedor que morava na praia dos Ingleses.

O benzedor chamava-se Sotero das Capivaras e era um famoso curador de doenças dos outros mundos. Mas o tratamento que ele vinha aplicando para a criança do Sabiano não estava a produzir resultados satisfatórios.

O dia marcado para ele voltar a casa do benzedor foi uma sexta-feira.

De manhã bem cedo, o Sabiano levantou-se arrumou o gado no potreiro, tomou cafe, lavou os pés na gamela promode os havia sujado, enxugou-os, e pediu à mulher que lhe apanhasse os sapatos que estavam pendurados nos caibrosdo telhado da varanda.

A mulher dele, a Sotera, foi apanhá-los, mas só encontrou o sapato do pé direito, o outro não estava.

Procuraram em toda a casa, mas cuáli nada, não tava em nenhum lugar.

Pensou consigo: deve ter sido o cumpadre Zé Maratato.

Aquilo anda sempre pricurando coisas mode fazer das suas...

O tempo tá seco e o mihió memo prá mode a gente caminhá é descalço.

Apanhou uma cesta tecida de folhas de tabua, botou um vidro branco dentro e rasgou os pés no caminho, na direção dos rios das Capiras dos Inglêses.

Consultou o doutro curandeiro, apanhou o remédio e mandou-se de volta a caminho de casa.

Já havia caminhado um bom pedaço, quando algo chamou-lhe a atenção.

Olhou na direção da Ilha Mata Fome, e se deparou com um quadro curioso e horrível: uma bruxa passando pelo mar com o sapato dele transformado num barco, com uma vela bem enfunasa quiném lancha baleeira, passeando mui calmamente.

Apavorado com o que vira, retornou a casa do benzedor e narrou-lhe o fato.

O doutro benzedor apanhou um dente de alho com casca e mandou que ele o colocasse na boca e voltasse descançado para casa. Quanto à bruxa, ele a faria perder o estado fadórico, e consequintemente, o encanto, dentro de poucos minutos.

Ele atendeu a ordem do benzedor e calçou os pés no areião do caminho, de volta prá casa.

Quando chegou no terreiro, a Sotera já estava com a notícia bruxólica na pontinha da língua quase escapulindo.

_ "Sabiano, o teu sapato apodreceu nos caibros da varanda, molhado, sujo de areia da praia, e com um furo bem inrriba do bico."

_ Logo vi que aquela ègua ia dar-me prejuizo.

Ela furou o meu sapato prá mode meter o mastro da vela.




Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Nossa Senhora, o Linguado e o Siri

Conta a estória que certa ocasião Nossa Senhora precisou atravessar o mar, mas não tinha certeza se a maré iria encher ou vasar.

Estava parada na praia; praia esta que deveria ser no continente, mas ela queria passar para a mais bela ilha da terra, a Ilha de Santa Catarina, quando surgiu um bonito linguado nadando alí perto dela.

Com toda sua beleza e ternura celestial, dirigiu-se ao peixe linguado, indagando-lhe se sabia ou não se a maré ia encher ou vasar.

O linguado respondeu a pergunta da Senhora, remedando-a. Ficou com a boca torta.

Um siri que havia escutado a indagação da Senhora e a deseducada resposta do linguado, dirigiu-se a ela com toda educação sirinesca, e lhe ofereceu uma carona até a praia onde ela queria alcançar.

Afirma a estória que o resultado deste acontecimento lendário é o seguinte: o linguado ficou com a boca deformada. No casco do siri se observa, em baixo relevo, a figura de uma senhora segurando os lados da saia, para não molhá-la. Deve ser o retrato de Nossa Senhora, num ato celestial sublime de sincero agradecimento, pela atitude hospitaleira do frágil crustáceo.

Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

História de Assombração


Há muitos anos passados – contou-me um narrador de histórias de assombrações – num lugarejo da Ilha de Santa Catarina, morava um pescador que possuía várias embarcações para o serviço da pesca, inclusive uma lancha baleeira.


Homem trabalhador e cuidadoso que era, tratava com todo carinho suas embarcações e equipamento, os quais guardava num rancho bem construído e fechado à chave.

Certa manhã de uma sexta-feira, quando o pescador, junto com seus camaradas abriu o rancho para retirar as embarcações, encontrou a lancha baleeira molhada e com muita areia espalhada sobre o fundo o que causou surpresa a toda tripulação, pois tinham deixado enxuta e limpa quando na véspera a recolheram para o rancho.

Comentado e analisado o fato, eles chegaram à conclusão de que a maré naquela noite tinha sido alta e não encontraram nenhuma pegada de pessoa, na praia, portanto, não havia razão para suspeitarem que alguém tivesse tirado a lancha do rancho, mesmo porque ele estava fechado e a chave se encontrava em poder do seu dono.

Daquele dia em diante, todas as manhãs de sexta-feira, quando o pescador abria o rancho para retirar suas embarcações para retirar suas embarcações para pesca, encontrava a lancha molhada e lodosa.

Como aquele ano e naquele lugar, as endiabradas e perigosas mulheres bruxas vinham desenvolvendo grandes atividades bruxólicas contra as inocentes criancinhas, chupando-lhes o sangue até levá-las à sepultura e zombando sarcasticamente, das fortes rezas e bem urdidas armadilhas que se lhes preparavam – toda a tripulação da lancha foi unânime em concordar com a desconfiança do velho pescador de que aquele serviço só podia ser obra das temíveis mulheres bruxas.

Homem intrépido, acostumado a enfrentar fortes tempestades, o frio, a fome, a sede, etc., em sua árdua profissão, todos os dias, não titubeou em enfrentar mais este estranho caso que o destino lhe apresentou, como um desafio à sua coragem indomável de velho pescador.

Sempre respeitou as coisas do outro mundo, nunca lhes tocou nem de leve com escárnio ou zombarias, e, também, nunca duvidou da sua existência e atividades neste mundo. Apesar de tudo, procurou traçar um plano para cientificar-se verdadeiramente, se de fato eram as terríveis mulheres bruxas, as autoras daqueles embustes que tanto lhe preocuparam.

Seu plano foi o seguinte: colocou uma taramela na porta da gaiuta da lancha, pela parte interior, e ao entardecer de uma sexta-feira meteu-se dentro dela, fechou a porta por dentro e ficou esperando o resultado.

Passado alguns minutos, ele ouviu vozes estranhas e sentiu que abriam o rancho e levavam a lancha para o mar.

Na porta da gaiuta, ele tinha feito um pequeno furo, de onde espiou e viu um quadro horrível e descomunal, nunca imaginado por ele (e pensou consigo mesmo: "nem por ninguém").

Viu dentro da sua lancha uma caterva de mulheres nuas, de fisionomias horríveis, corpo esquelético, mãos com unhas pontiagudas, enfim um quadro dantesco, sinistro, demoníaco.

A mulher bruxa que ocupou o lugar de patrão na lancha, apresentava o corpo coberto de escamas negras, as unhas das mãos eram como ponta de lança. O cabelo muito comprido caía pela popa da lancha a fora e estendia-se sobre o mar, deixando no seu rastro um fogo de ardentia de comprimento incalculável.

Dos olhos chamejavam dois feixes de luz, que clareavam a grande distância, e seus pés eram semelhantes a patas de mula.

Cada banco da lancha estava ocupado por uma bruxa que manejava um remo de voga.

Ao começar a viagem, a misteriosa bruxa que estava governando a lancha, solta gritos enfurecidos, esbravejou e disse para as outras: "Aqui nesta embarcação, está cheirando a sangue real".

A mulher bruxa que estava sentada no banco da proa da lancha, perto da gaiuta onde o pescador estava escondido era comadre dele.

Todas as vezes que a temível bruxa patrão da lancha esbravejava e dizia: "Está cheirando a sangue real nesta embarcação", a mulher bruxa que era comadre do pescador respondia: "Remem, suas éguas, cada remada avance uma légua, que o galo branco já cantou e o amarelo cacarejou".

Vencida a légua por segundo em cada remada que davam, chegaram no porto do lugar que haviam escolhido, em uma sinistra reunião para as suas atividades diabólicas. Em pouco tempo, aí embicaram a lancha na praia e desapareciam.

Logo que elas abandonaram a lancha, o pescador saiu do seu esconderijo, apanhou um punhado de areia, colheu um ramo de rosas e escondeu-se novamente.

Mais tarde, as endiabradas mulheres bruxas chegaram na praia, reocuparam os seus lugares na lancha e saíam mar a fora.

Durante toda viagem de ida e volta, a mulher bruxa, patrão, advertiu insistentemente, às suas colegas de que naquela embarcação havia presença de sangue real.

A bruxa comadre do pescador, que havia notado a presença do seu compadre dentro da gaiuta, desde que chegou no rancho, defendeu-o sempre com muita habilidade também já na volta: "Remem, suas éguas, cada remada vence uma légua, os galos brancos e os amarelos já cantaram e os pretos já cacarejaram".

Com estes argumentos, ela defendeu o compadre das unhas terríveis daquelas mulheres bruxas, mesmo porque não podiam perder tempo à procura do sangue do pescador, senão seriam surpreendidas em estado fadórico pelo canto do galo preto.

E assim continuaram a viagem até chegarem ao porto de partida.

Desembarcaram, abriram o rancho, recolheram a lancha e desapareceram.

O dono da lancha que estava dentro da gaiuta, logo que se viu livre delas, apanhou a areia e as rosas que recolhera no porto onde elas o levaram e retirou-se para a sua casa.

No dia seguinte, tomou a areia e as rosas mostrou a muita gente do lugar para ver si alguém descobria a sua terra de origem.

Ninguém conseguiu, nem mesmo, dar uma opinião aproximada.

Mas acontecia que a mulher bruxa, sua comadre, aparecia quase todos os dias em sua casa – não para visitar o afilhado, pois ela já o havia mandado para o outro mundo, chupando-lhe o sangue – mas sim, para passear com uma filha dele de quem era muito amiga.

Como nenhuma das pessoas a quem ele mostrou a prova de sua coragem, conseguiu identificar o lugar da viagem voltou para casa um pouco desanimado.

Ao chegar em casa encontrou sua comadre bruxa sentada na varanda conversando com pessoas de sua família.

Cumprimentou-a e mostrando a areia e as rosas, perguntou-lhe se era capaz de descobrir o lugar de origem.

Quando a comadre bruxa foi solicitada a responder a pergunta, ela olhou para a areia e as rosas e imediatamente, respondeu o seguinte.

– Compadre, a terra de origem deste punhado de areia e destas rosas é a Índia. Estiveste entre a vida e a morte. Dentro de tua embarcação estavam as mais respeitadas, misteriosas, prepotentes e malignas mulheres bruxas, do reino de satanás. Se não foste assassinado por elas, agradece-o a mim, tua compadre, que estava sentada no banco de proa da lancha, perto da gaiuta, onde estava escondido.

O velho pescador depois de ter ouvido a narrativa da comadre bruxa foi à cozinha, apanhou um rabo de tatu que estava no fumeiro, despiu-a, deu-lhe uma boa surra, salgou as feridas com sal e pimenta e obrigou-a a descobrir o nome de todas as outras suas colegas de aventuras fadóricas.

Florianópolis, 25 de fevereiro de 1957

(Cascaes, Franklin. "História de assombração". A Gazeta. 23 de março de 1957)


Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Balanço Bruxólico

"Contou-me a seguinte estória acontecida na Ilha de Santa Catarina - Ilha dos trezentos engenhos de fabricar farinha de mandioca - o Sr. José Silveira residente no Canto da Lagoa da Conceição: que seus antepassados fizeram uma derrubada no Morro da Lagoa prá mode fazerem uma plantação de mandioca e milho.

Aconteceu - continuou o narrador - que na margem da roça derrubaram um grande tanheiro, bem vazado, que ficou caído ao pé de uma grande árvore que tinha em si um cipó enroscado e que de lá do alto das ramagens deixava cair um grande seio em forma de balanço.

Quando começaram a fazer a plantação, sentiram cheiro de fumaça de querosene, que saía de dentro do vazado do tanheiro, e também porque ali faziam a comida, notaram que as panelas amanheciam sujas e as ferramentas atiradas pelo chão, como se alguém dentro da noite lá aparecesse somente para fazer malvadezas.

Desconfiados com a situação, passaram a vigiar o lugar e constataram que dentro da noite a ramagem da árvore que tinha o balanço, era tomado por luzes de várias formas e tamanhos e que se movimentavam para direções diversas.

Encorajados por uma mulher benzedeira muito entendida e poderosa destas coisas dos outros mundos, subiram o morro protegidos com bentinhos, breves, figas, mostarda, arruda, cisco das três marés, água benta, vela benta, folhas de guiné, que são verdadeiras armas contra o poder diabólico destes trasgos dos infernos.

O que encontraram e viram era horripilante para os olhos humanos. As árvores tinham na base formas de pés de vários animais, lamparinas dançavam metamorfoseadas em forma humana; na boca do tanheiro derrubado estava um bicho em forma de morcego; no alto da árvore a canga do carro de boi estava pousada, ao lado de uma lamparina; um pouco abaixo uma coruja com cara de roda de carro de boi enfeitada com um par de antolhos; e no centro de tudo, de toda fantasmogênese uma bruxa se balançava no cipó fantasiada de cabeça de boi com pernas traseiras e mãos dianteiras, também de boi, e sendo a cabeça uma roda de carro de boi.

Todas as pedras que ali viviam estavam metamorfoseadas em atitude de exorcismo.

A coruja que aparece metamorfoseada no meio da árvore, se destaca como um observador cultural, deste tipo de cultura que o Povo antigo conduz em sua bagagem tradicional ..."


Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

O Gabinete do Dr. Caligari


"No ano de 1783, um místico chamado Dr. Caligari, perambulava pelas cidades do norte da Itália com um sonâmbulo de nome Cesare, apresentando-se nas quermeces. E, durante meses, manteve uma cidade após a outra em pânico, com assassinatos que sempre ocorriam sob as mesmas circunstâncias, nas quais ele levava o sonâmbulo, que estava sob seu inteiro controle, a executar seus planos aventureiros. Colocando um boneco no lugar de Cesare, quando este não estava em seu caixão, o Dr. Caligari conseguia afastar qualquer suspeita de culpa do sonâmbulo."

Este é o pequeno prefácio que dá início ao filme O Gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett von Dr. Caligari, ALE, 1919), um dos maiores clássicos do horror. Dirigido por Robert Wiene, esta obra-prima do cinema mudo, forma, ao lado de Nosferatu (1922) e Fausto (1926) a "santíssima trindade" do cinema de terror expressionista alemão; e incorporam o que há de mais sombrio e expressivo na arte cinematográfica.

São filmes que pertencem a tradição do pessimismo pós-guerra, uma vez que foram realizados numa das fases mais conturbadas da história alemã: o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). E como tal, voltam-se para um horizonte negativo, onde o domínio da sombra é quase que absoluto. Em O Gabinete do Dr. Caligari (o filme que deu origem ao expressionismo cinematográfico alemão), o contraste luz e sombra é aterrador quando analisado em sua essência.

Foi o filme que estabeleceu os padrões gerais para o expressionismo, usando e abusando do jogo de luz e sombra, ângulos imprevistos, movimentos rápidos e retilíneos, cenários tortuosos e desfigurados, tudo envolto numa atmosfera sobrenatural que surpreende os desavisados até hoje. Por estes e outros elementos, que Wiene soube explorar até a exaustão, este filme é considerado a primeira obra-prima do cinema de horror.

E com todos os méritos, pois foi, certamente, um dos primeiros também, a incorporar o horror ao suspense; a fonte que alimentou e serviu de referência para os filmes posteriores, com situações inusitadas e personagens que vivem em um mundo sombrio, onde nada é espontâneo ou natural, mas sim fruto do desespero e da demência.

Como legítimo exemplo do expressionismo, este filme foi todo rodado em estúdio (Nosferatu foi o único a abdicar esta tradição ambientando-se ao ar livre) e os cenários, na maioria feitos de papelão e madeira, são completamente desfigurados e encaixados sem nenhum padrão ou norma pré-estabelecida, o que o torna mais sombrio e reflete-se como um hórrido pesadelo.


Robert Wiene (inspiradíssimo!) orquestrou uma sequência arrasadora de imagens insólitas e sufocantes, num verdadeiro show de demência. É impressionante a criatividade de Wiene, pois o diretor não só conseguiu, logo no início da história do cinema, relatar uma história de horror, temperada com um requintado suspense, como criar uma das mais originais sequências do cinema mudo; as imagens mostram que não é necessário o uso de diálogos para relatar a aflição e a neurose humana.

Inclusive Alfred Hitchcock (o maior mestre do suspense, conhecidíssimo por seu filme Psicose - 1960) certamente "bebeu" em O Gabinete do Dr. Caligari para elaborar a sequência de imagens de seus principais filmes, notadamente os contrastes de luz e sombra, sempre sugerindo as cenas e nunca as evidenciando, uma das características básicas do gênero. (por E. R. Corrêa)

Ficha Técnica

O Gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett von Dr. Caligari / The Cabinet of Dr. Caligari), Alemanha, 1919) - Preto & Branco, mudo, 52 minutos, em vídeo VHS pela Continental (fora de catálogo). Direção de Robert Wiene. Produção de Erich Pommer. Roteiro de Carl Mayer e Hans Janowitz. Fotografia de Willy Hameister. Direção de Arte de Herman Warm, Walter Rohring e Walter Reimann. Vestuário de Walter Reimann.

Elenco

Werner Krauß...Dr. Caligari
Conrad Veidt...Cesare
Friedrich Feher...Francis
Lil Dagover...Jane
Hans H.Twardowski...Alan
Rudolf Lettinger...Dr. Olson
Rudolf Klein-Rogge...A Criminal

Sinopse
Um clássico do filme de terror, realizado no tempo em que o cinema ainda não falava. Mas as belíssimas imagens (que criam um tom meio surrealista) valem mais que mil palavras. O malvado Dr. Caligari hipnotiza um jovem e o induz a matar várias pessoas. Tudo se complica quando ele se recusa a assassinar uma bela jovem. Num toque de mestre, realiza um filme sob a ótica de um louco: daí as distorções e deformações das ruas, casas e pessoas.

Uma História Horripilante

O capitão Miguel tinha apenas um braço, que lhe servia para ajeitar seu cachimbo. Era um velho lobo do mar, que conheci em Toulon, junto com outros marujos inveterados, numa tarde, tomando um aperitivo no terraço de um café do Dique Velho.

Adquirimos o costume de nos reunir, próximos das taças, das águas alvoroçadas e das lanchas dançarinas, à hora em que o sol se põe na baía de Tamaris.

Os outros quatro velhos lobos do mar se chamavam Zinzin, Dorat - o capitão Dorat-, Bagatela e Chaulieu - aquele vagabundo do Chaulieu. Nem é preciso contar que tinham navegado por todos os mares e que haviam vivido mil aventuras, mas agora, aposentados, matavam o tempo contando histórias horripilantes uns aos outros.

O capitão Miguel era o único que nunca contava coisa alguma e, como o que ouvia não lhe causava nenhum assombro, acabou por exasperar os outros:

- Capitão Miguel, pelo visto nunca lhe aconteceu nenhuma aventura horripilante?

- Sim - respondeu o capitão olhando para mim, que pela primeira vez o via tirar o cachimbo da boca - sim, me aconteceu uma vez!

- Então conte!

- Não!

- Por quê?

- Porque é demasiadamente horrorosa. Vocês não poderiam me escutar; já por algumas vezes tentei contá-la, mas todos se afastavam antes que chegasse ao fim.

Os quatro velhos lobos do mar riram às gargalhadas e concordaram que sem dúvida o capitão Miguel procurava dar muita importância ao fato assustando as pessoas para que não contasse coisa nenhuma porque, talvez, nada de tão horroroso lhe tivesse acontecido.

O capitão fitou-os por alguns instantes, depois, numa atitude insólita de largar o seu cachimbo na mesa, olhou uma a um com os olhos faiscando:

- Senhores - anunciou solenemente - vou lhes contar como perdi o meu braço!

E começou a contar:

- Naquela época, isto há uns vinte e cinco anos, eu tinha em Mourillon uma casinha herdada da minha família, que vivera muito tempo naquele povoado, onde eu nasci. Gostava de descansar, entre as longas viagens, naquele recanto. Me afeiçoei ao local onde a vizinhança, formada de marinheiros e empregados das colônias, era tranqüila e os moradores só se deixavam ver nos finais da tarde. Divertiam-se aos seus modos, fumando ópio com suas amigas e outras atividades que lhe agradavam, mas que não me interessavam. Cada um tem lá seus hábitos, não é mesmo?

"Numa noite precisei alterar meus hábitos de dormir. Um tumulto estranho, cuja natureza eu não conseguia identificar, me fez despertar sobressaltado. Como sempre, minha janela ficava aberta e assombrado eu escutava aquele ruído estranho, que parecia uma mistura de tambor com o ribombar do trovão... Mas que tambor! Mais de duzentas baquetas pareciam martelar, não a pele esticada no tambor, mas a madeira diretamente...

"Este estrépito saía da vivenda em frente, que estava abandonada há cinco anos, onde tinha visto na véspera uma placa: "Vende-se".

"Da janela do meu quarto, minha vista, passando por cima da cerca do jardim que rodeava aquela casa, enxergava todas as portas e janelas, mesmo as do pavimento térreo. Ainda estavam fechadas, como as tinha visto naquele dia. Mas vi luz nos vãos das madeiras do térreo. Quem poderia ter entrado naquela casa abandonada nos arredores de Mourillon? Que bando poderia entrar ali e que malandragem estariam planejando?

"Aquele ruído infernal continuava, sem cessar. Durou até a madrugada, quando no umbral da porta surgiu, com a cabeça descoberta, a criatura mais linda que já vi na minha vida. Graciosa e vestida com trajes de baile, ela carregava uma lanterna, que me permitia ver seus ombros de deusa. Sorria docemente e pude ouvi-la claramente ao se despedir, pois então tudo silenciara:

- "Adeus, querido; até o ano que vem..."

"Mas com quem ela falava? Não me foi possível descobrir porque não vi ninguém perto dela. Esperara, com a lanterna na mão, que a porta do jardim se abrisse e então não vi mais nada. A porta da vivenda se fechou e a escuridão não permitiu que eu visse qualquer coisa.

"Estranhei e admiti que talvez tivesse sonhado, pois tinha a certeza de que era impossível uma pessoa atravessar o jardim sem que eu a visse.

"Fiquei parado junto à janela, sem entender o que tinha acontecido, quando a porta da vivenda se abriu novamente e apareceu a mesma belíssima criatura, ainda sozinha e com a lanterna na mão.

- "Shiuuu!" - disse - "Fiquem calados!... Não vamos acordar o vizinho... eu os acompanho."

"Silenciosa e só, ela atravessou o jardim até a porta, onde batia em cheio a luz da lanterna, tanto que vi perfeitamente o trinco da porta girar, sem que alguém a tocasse. A porta se abriu sozinha, diante da mulher que não demonstrou surpresa. Posso garantir que eu estava colocado de maneira a ver, ao mesmo tempo, o que se passava dos dois lados da porta.

"A 'celestial aparição' acenou com um movimento da cabeça, como se agradecesse à escuridão da noite e depois disse sorrindo:

- "Vá! Adeus! Até o ano que vem!... Meu marido está muito satisfeito. Ninguém faltou à reunião... Adeus, senhores!... "

"Logo várias vozes responderam as saudações, repetindo:

- "Adeus, senhora!... Adeus, senhora!... Até o ano que vem!...

"E como se a misteriosa dama se dispusesse a fechar a porta, ouvi:

- "Por favor, não se incomode!...

"E a porta se fechou sozinha...

"O espaço encheu-se, por um instante, de pios dum bando de passarinhos... cuí... cuí... cuí... e foi como se aquela bela mulher tivesse aberto uma gaiola cheia de pardais.

"Ela então caminhou calmamente para a sua casa, olhando o jardim à sua volta. Ao chegar à vivenda, ela perguntou:

- "Já subiste, Geraldo?

"Não ouvi a resposta, mas a porta da vivenda fechou-se novamente... e poucos minutos depois as luzes se apagaram completamente.

"Às oito da manhã eu ainda permanecia na minha janela contemplando como um bobo o jardim e a vivenda nas quais tinha visto coisas tão singulares naquela noite e que, ante a luz do sol, me parecia uma velha vivenda abandonada.

"Quando falei, com a minha empregada da época, das estranhas cenas que havia presenciado, me acusou de ter fumado algumas cachimbadas a mais. Então aproveitei a oportunidade, pois nunca fumo ópio e já estava cansado daquela mulher que vinha sujar a minha casa durante duas horas por dia, e a despedi. Ainda mais porque no dia seguinte retornaria ao mar.

"Mal tive tempo de arrumar minhas malas, fazer algumas compras, despedir-me dos amigos e tomar o trem para o Havre, onde um novo contrato com a Transatlântica me manteria longe de Toulon por cerca de onze a doze meses.

"Regressei à Mourillon sem ter falado com ninguém a respeito do que havia acontecido, mas não deixei de pensar naquela mulher por um instante. Sua imagem carregando aquela lanterna me perseguia e as palavras de despedida dos amigos ressoavam nos meus ouvidos constantemente:

-"Vá! Adeus!... Até o ano que vem!"

"Pensei naquele encontro todos os dias. Resolvi por minha conta que iria descobrir a chave daquele mistério, custasse o que custasse, que podia levar à loucura um homem como eu que não acredita em aparições ou fantasmas de qualquer tipo.

"Ah! Depressa havia de me convencer de que nem no céu, nem no inferno, tinham qualquer coisa a ver com aquela espantosa aventura..."

O capitão Miguel parou para dar um gole e viu que ouvintes estavam atentos. E continuou:

- Às seis horas da tarde cheguei na minha casa de Mourillon. Era a antevéspera do aniversário da famosa noite. A primeira coisa que fiz ao entrar em casa foi correr à janela do andar superior e abri-la. Então vi uma mulher, de estonteante beleza, passeando calmamente pelo jardim, bem à minha frente, colhendo flores. Com o ruído que fiz, ergueu a cabeça. Era a dama da lanterna! Estava tão linda de dia como na noite em que a vi. Tinha a pele branca como os dentes de um negro do Congo, os olhos tão azuis como o mar de Tamaris e os cabelos loiros tão macios como nenhuma roca já afiou. Por que não confessar? Ao ver aquela mulher, na qual não havia deixado de pensar durante um ano, meu coração acelerou. Ah, não era uma ilusão de uma mente enferma! Estava de fato ali, diante de mim! Pelos seus cuidados, todas as janelas da casa estavam abertas, enfeitadas com flores.

"Então me viu e se mostrou contrariada. Continuou pela alameda principal do seu pequeno jardim e, dando de ombros, conformada, ouvi dizer:

- "Vamos para casa, Geraldo! O tempo está esfriando..."

"Olhei para todos os lados e não vi ninguém. Com que ela falava? Com ninguém... Estaria louca? Não parecia. Vi que ela se dirigiu diretamente para a casa. Fechou a porta atrás de si e, em seguida, todas as janelas.

"Naquela noite não vi nem ouvi mais nada. No dia seguinte, lá pelas dez horas, vi quando ela saiu em traje de passeio, atravessou o jardim, fechou o portão, com a chave, e seguiu o caminho para Toulon. Desci também e, ao primeiro que encontrei, apontei-lhe a elegante silhueta perguntando se sabia o nome daquela mulher.

- "Claro que sim! É a sua vizinha, que mora com o marido na vivenda Makoko. Mudaram-se para ela há um ano, quando o senhor foi embora. São muito esquisitos. Nunca dirigem a palavra a ninguém e não falam senão o necessário. Mas o senhor bem sabe que em Mourillon cada qual vive à sua maneira, sem causar espanto. De modo que o capitão..."

- "Capitão?"

- "Sim, o capitão Geraldo, o marido... Segundo parece, o marido é um capitão aposentado da infantaria da marinha... Bem, ninguém nunca o viu... À vezes, quando tive que levar alguma compra à casa deles e não está a senhora, ouço ele gritar, lá de dentro, mandando deixar as coisas na porta. E para vir buscar as compras, espera que a gente se afaste."

"Como vocês podem compreender, minha curiosidade ia aumentando. Fui a Toulon para interrogar o engenheiro que havia alugado a vivenda ao casal. Também nunca havia visto o marido, mas sabia que se chamava Geraldo Beauvisage. Ao ouvir esse nome quase deixei escapar um grito, pois eu o conhecia muito bem! Era um velho amigo, oficial da infantaria da marinha, e não o via há vinte e cinco anos, desde que saíra de Toulon. Certamente era ele! Agora eu tinha um pretexto para me apresentar em sua casa e cumprimentá-lo, especialmente na data do seu aniversário, quando esperava os amigos.

"Ao regressar a Mourillon vi bem à minha frente o perfil da minha vizinha. Apressei-me para o passo e a cumprimentei.

- "Senhora, tenho a honra de falar com a esposa do capitão Geraldo Beauvisage?"

"Ela continuou como se não tivesse me escutado."

- "Sou seu vizinho, sou o capitão Miguel Albano,"- insisti.

-"Ah!" - exclamou ela. -"Desculpe-me cavalheiro. Capitão Miguel Albano? Meu marido falou muitas vezes do senhor."

"Ela estava perturbada, o que a fazia ainda mais encantadora. Mas eu continuei, a despeito da vontade de se afastar que ela demonstrava.

- "Senhora, como pôde o capitão Beauvisage regressar à França, sem participar ao seu velho amigo? Eu lhe agradeceria se dissesse ao capitão que irei abraçá-lo nesta noite mesmo!"
"Ela não parou nem um instante e agitou-se ainda mais após as minhas palavras. Era uma atitude bastante incomum.

- "Impossível!" - exclamou. - "Impossível Esta noite... Eu prometo que vou dizer ao Geraldo que o vi hoje, mas é a única coisa que posso fazer hoje... O Geraldo não quer ver ninguém... Ninguém mesmo. Vivemos isolados. Alugamos esta casa porque nos disseram que a de frente, a sua, só era ocupada uma ou duas vezes ao ano, durante poucos dias, e que mal se via..."

"E acrescentou, implorando:

- "É importante que perdoe o Geraldo, e por favor, não insista. Nunca vemos ninguém!"

- "Mas senhora," - insisti, contrariado. - "O capitão Geraldo costuma receber alguns amigos e nesta noite esperam os mesmos convivas do ano passado..."

"Ela não conteve um grito:

- "Ah! Isso não é o normal! São amigos excepcionais!"

"Após essas palavras ela se afastou rapidamente, mas parou logo adiante.

- "Pelo amor de Deus! - suplicou. - Pelo amor de Deus não venha nesta noite!"

"Em seguida desapareceu atrás da cerca. Eu entrei na minha casa com o cuidado de não olhar pela janela que dava para o jardim. Mas, escondido, vigiei-os o dia todo, constatando que não saíram de lá o dia todo. Bem antes do amanhecer vi que as janelas foram fechadas e pelas frestas notei aquela mesma luminosidade, tudo o que tinha vislumbrado um ano antes. Faltava apenas o barulho dos trovões e do tambor de madeira.

"Às oito horas me vesti, as últimas palavras da sra. Beauvisage vieram reforçar a minha ansiedade e a decisão de comparecer à festa, certo de que ele não se atreveria me por na rua. Vesti o meu fraque e fiquei na dúvida se levava ou não o meu revólver. Acabei achando tolice carregá-lo e acabei deixando-o em casa.

"A tolice foi não levá-lo.

"Na entrada da vivenda Makoko girei a aldrava, que no ano anterior tinha visto girar sozinha, e surpreendentemente ela se abriu. Estavam, então, esperando alguém...

"Atravessei o pequeno jardim entre os canteiros floridos. Chegando à porta, bati.

- "Entre" - gritou alguém.

"Reconheci a voz de Geraldo e entrei. Cheguei num vestíbulo e avistei o salão iluminado mas sem ninguém. Então chamei-o:

- "Geraldo! Sou eu! Miguel Albano, teu velho caramada!"

- "Ah! Ah Ah! Então se decidiste a vir, meu caro! Neste instante estava dizendo à minha mulher que teria um grande prazer em vê-lo. Mas só a ele e aos nossos amigos excepcionais... Sabe que você não mudou quase nada?"

"Difícil é descrever o meu espanto. Ouvia-o perfeitamente, mas não o via! Sua voz parecia estar ao meu lado, mas junto de mim não havia ninguém! O salão estava completamente vazio!

"A voz continuou:

- "Sente-se! Minha mulher deve vir aí, porque esqueceu de mim em cima da lareira..."

"Então vi, lá em cima do topo da lareira, um busto. Era aquele busto que falava, e parecia o Geraldo. Era um busto como os escultores costumam fazer, sem os braços. Ele continuou a falar:

- "Infelizmente não vou poder te abraçar, meu caro Miguel, porque, como pode ver, não tenho braços, mas você, pode me ajudar e me colocar em cima da mesa. Minha mulher me deixou aqui num momento de mau humor, porque a atrapalhava para limpar a sala. Segundo ela... Ah! Minha mulher é uma maravilha..."

"E o busto riu para valer.

"Tive a impressão de que havia ali, como nos circos, um jogo de espelho que nos fazia crer que homens perfeitos parecessem anões e lindas mulheres se transformassem em verdadeiros monstros. Mas depois de carregá-lo colocando-o sobre a mesa, me convenci que aquele tronco sem braços e pernas era realmente o que restava daquele oficial arrogante que em outros tempos conhecera.

"Dos ombros saíam uns ganchos que permitiam que ele se movimentasse, e até conseguia saltar da mesa para a cadeira e depois para o chão. Saltou durante um tempo, pulando sobre a cadeira e retornou para a mesa, com surpreendente agilidade e alegria. Depois da exibição parou na minha frente, rindo às gargalhadas.

"Consternado, eu não sabia o que fazer e ficava apenas surpreso com aquele malabarismo insólito. Parou na minha frente com um sorriso inquietante:

- "Estou mudado, não é verdade? Não me reconhece, meu caro... Mas fez bem em vir aqui esta noite, vamos nos divertir... Vamos receber nossos amigos excepcionais, porque além desses amigos não quero ver ninguém, nunca mais! Questão de amor-próprio! Pois nem temos empregados... Bom, espere-me aqui, vou vestir um smoking.

"Saiu e a esposa apareceu em seguida. Vestia o mesmo traje de gala do ano passado. Ao me ver empalideceu e me disse a meia voz:

- "Meu Deus, o senhor veio! Fez muito mal, capitão... Passei ao meu marido o recado que me pediu... Mas o senhor veio, apesar do meu pedido! Quando ele soube que o senhor morava aqui em frente me mandou convidá-lo... Mas não fiz isso e tinha bons motivos para não fazer!

"Ela estava bastante confusa e me parecia esconder alguma coisa, quando continuou:

- "Esta noite vamos receber nossos amigos excepcionais, que às vezes são muito impróprios... Fazem muito barulho, discutem... Deve ter ouvido no ano passado! Pois bem, me prometa que sairá bem cedo...

- "Prometo sim, senhora - prometi, com a sensação de que algo de terrível pairava no ar. - Mas poderia me informar por que encontro o capitão nesse estado? Que tragédia lhe ocorreu?

- "Nenhuma , cavalheiro, nenhuma...

- "Como? Nenhuma? A senhora não sabe o que aconteceu com ele para perder suas pernas e braços? Sem dúvida aconteceu depois do seu casamento.

- "Não, senhor! Casei com o capitão como está agora. Mas, por favor me desculpe, tenho que ajudar o meu marido a se vestir, os convidados não devem demorar...

"Deixou-me sozinho, aniquilado por um pensamento: o capitão havia se casado naquele estado! Logo ouvi um ruído, aquele mesmo curioso cuí... cuí... cuí... que me intrigara no ano anterior e que seguia os passos da dama da lanterna até a porta do jardim. O ruído se avolumou até entrar na sala, na forma de quatro carrinhos, cada um trazendo um aleijado, todos eles sem braços e pernas, vestidos em traje de gala, com bordados dourados. Olhavam para mim, dois deles através de seus óculos de ouro, outro, de monóculos, e, o que parecia ter melhor visão, me dirigia um olhar de surpresa e contrariedade. Mas os quatro me saudaram os seus ganchos, perguntando pelo capitão Geraldo e informei que estava se vestindo, acompanhado pela Sra. Beauvisage. Percebi que se surpreenderam ao me referir à senhora com tanta familiaridade; seus olhos se cruzaram carregados de ironia e escarninho.

- "Hum! Hum!" - fez o aleijado de monóculo. - "Pelo visto o senhor é amigo do capitão!

"Todos riram, com boa dose de deboche, e iniciaram a falar quase todos ao mesmo tempo:

- "Queira desculpar, por favor! Oh! É natural que nos surpreenda ao vê-lo na casa deste bizarro capitão que, no dia do seu casamento, jurou retirar-se para o campo e não ver mais ninguém... Ninguém, a não ser os seus "amigos excepcionais". Entende? Quando um homem está todo deformado, como o capitão, é normal que pretenda ficar a sós com a mulher, ainda mais tão linda! É muito natural... muito natural... Mas afinal, se encontrou um amigo decente, mesmo que não seja aleijado, tanto melhor...

"Oh! Meu Deus, como eram estranhos aqueles gnomos!... Eu os fitava, sem dizer uma palavra... E foram chegando outros, de dois em dois, de três em três. Apenas um chegou sozinho. Todos me encaravam com surpresa, insegurança ou ironia.

"Diante de tantos aleijados, eu pensei que fosse enlouquecer. Mas se por um lado eu entendia o fenômeno de união dos aleijados, não conseguia explicação para o relacionamento deles com aquela formosa criatura que chegou a se casar com aquele farrapo humano.

"Parte das minhas dúvidas primárias estavam resolvidas, como por exemplo, que seria impossível alguém passar na estreita alameda do jardim, abrir e fechar o portão sem que pudesse vê-lo da minha janela. E mesmo o trinco da porta não teria mistério se eu soubesse que era acionado por aqueles ganchos invisíveis, como também aquele cuí... cuí... que tanto me intrigara. E, finalmente, aquele ribombo de trovão e o rufar de tambores de madeira que nada mais eram do que o barulho dos carrinhos e daqueles ganchos ao bater no chão, quando se punham a dançar depois do lauto jantar.

"Pois bem, tudo se explicava. Mas este pobre coitado aqui ia se surpreender ainda mais...

"Quando apareceram a sra. Beauvisage e seu marido, a recepção foi uma gritaria ensurdecedora acompanhada de um rufar dos ganchos sobre os carrinhos e o piso. Havia aleijados por todos os cantos, nas cadeiras, nas mesas... Um deles permanecia como um Buda, encarapitado numa prateleira; outro dava saltos incríveis. A maior parte me tratava cortesmente e pareciam pessoas distintas, portando títulos e medalhas. Soube depois que muitos dos nomes eram falsos, o que, para mim, era perfeitamente aceitável. Lord Wilmore era o que melhor se exibia, com sua barba dourada e o belo bigode que alisava com o seu gancho; tinha uma postura nobre e não ficava pulando de um móvel para outro, como os demais, nem dava rasantes como um morcego gigante.

- "Só esperamos o doutor - anunciou a dona da casa, que, de vez em quando me olhava com indisfarçável preocupação, voltando logo a sorrir para os seus convidados.

"Aí chegou o doutor.

"Também era aleijado, mas ainda tinha os dois braços, e ofereceu um deles para acompanhá-la à sala de jantar. Devo explicar que a dona da casa alcançou apenas a ponta dos seus dedos.

"A comida já estava servida, mas as janelas hermeticamente fechadas. Grandes candelabros iluminavam a mesa, cheia de flores e de enfeites. Ruidosamente, os aleijados saltaram para suas cadeiras e começaram a fincar seus ganchos nas travessas. Não era um espetáculo agradável e me deu enjôo ver a voracidade com que aqueles homens-troncos comiam.

"De repente se acalmaram, e com seus ganchos suspensos, se voltaram para a Sra. Beauvisage, que estava ao lado do marido. Ela se inclinava sobre o prato e percebi seu olhar assustado, enquanto ele voltava a bater seus ganchos, agitado, como a pedir silêncio:

- "Bem, meus amigos, tenham paciência... Nem sempre se tem a sorte que tivemos no ano passado! Mas não se preocupem, porque, com um pouco de imaginação, vamos nos divertir ainda mais...

"E olhando nos meus olhos, ergueu seu copo:

- "Saúde! A você, Miguel, e a todos os presentes...

"Todos repetiram seu gesto, agarrando seus copos com seus ganchos, formando uma estranha coreografia. Geraldo ergueu-se o quanto pôde e novamente se dirigiu à mim:

- "Você não está muito a vontade, meu caro! Nos conhecemos quando você era mais alegre e falante. Será que é porque nos vê neste estado? Mas o que esperava? Cada um tem que seguir a vida como pode. Nos reunimos aqui com os amigos para que possamos rir, se lembrando dos tempos felizes, mesmo que tendo nos deixado assim... Não é verdade tripulantes do Dafne? - acrescentou ele voltando-se para o grupo.

O capitão Miguel soltou um suspiro profundo:

- Então o meu antigo companheiro explicou que, viajando no Dafne, um navio a vapor, naufragou nos mares do Extremo Oriente, e, como todos os presentes, se tornou um náufrago. Como toda a tripulação se salvou tomando os botes salva-vidas, todos eles ficaram abandonados numa balsa improvisada.
Dessa vez o capitão arregalou os olhos para expressar a situação em que se encontravam aqueles desgraçados, que se viam repentinamente à própria sorte, sem água e alimento. E continuou:

- Recolheram ainda uma bela jovem, a srta. Madje, depois sra. completando treze pessoas perdidas no mar, sem água doce e alimento. Em oito dias estavam para morrer. Foi então, como na lenda da Nau Catarineta, que resolveram jogar na sorte para ver quem seria sacrificado.

Austero, acrescentou:

- Senhores! Coisas como essas certamente acontecem mais vezes do que se pensa, e o mar deve ter assistido muitas vezes essas antropofagias...

"Então, assim se preparavam para jogar na sorte quando o doutor se manifestou e anunciou que havia conservado o seu estojo de cirurgia e propôs: "Será inútil que um de nós se exponha a ser comido por inteiro. Vamos sortear inicialmente os braços ou as pernas, à escolha, e depois veremos como se apresenta o dia. Talvez surja uma vela no horizonte...

Quando chegou nesse ponto os quatro velhos lobos do mar, que até então não o haviam interrompido, começaram a se manifestar:

- Bravo! Muito bom... Bravo! - falou alto Chaulieu.

- Como? Bravo? - estranhou o capitão.

- Sim! Bravo! É muito boa a sua história. Agora vão ser cortados aos poucos, as pernas, os braços... É realmente uma história boa, mas é que nada tem de horripilante...

- Falando sério? Parece engraçada? - perguntou o capitão, enraivecido. - Pois bem... mas estou certo de que se algum de vocês tivesse ouvido o relato do que aconteceu por aqueles aleijados, cujos olhos brilhavam como vulcões, certamente teriam achado menos engraçado! E se tivessem visto como se agitavam nas suas cadeiras... entrechocando seus ganchos como se estivessem numa festa, alegres e brincalhões! Não vejo coisa mais espantosa e horripilante!

- Espera, - interrompeu Chaulieu. - Não! O teu relato nada tem de horripilante! É simplesmente engraçado porque é lógico. Deixe-me contar o final... Me diga se não é assim... Os da balsa tiraram sorte, que caiu para a mais linda, ou seja, a perna da srta. Madje. Teu amigo, o capitão, que é um homem corajoso e galante, ofereceu a dele e fez cortar os quatro membros para que a jovem permanecesse inteira! Certo?

- Sim, meu amigo, foi isso mesmo... Assim mesmo! - exclamou o capitão Miguel com ganas de arrebentar a cara daqueles que achavam graça naquela história. - Sim... e falta acrescentar que, quando a sorte designou o capitão Geraldo, e se pensou em cortar os da Srta. Madje, porque já não se tinha na balsa outros membros senão os seus, ele deixou-se cortar, rente ao tronco, os cotos que lhe tinham ficado na primeira operação.

- E a srta. Madje nada podia fazer senão lhe oferecer aquela mão que ele tão heroicamente lhe havia conservado - declarou Zinzin.

- Realmente! - rugiu o capitão. - E isso lhes parece engraçado...

- E comeram tudo cru? - perguntou o imbecil do Bagatela.

O capitão deu um soco tão forte na mesa que jogou os copos pela chão.

- Basta! - gritou. - Calem-se! O que contei é só o começo! Agora é que vem o terrível!

Os quatro, que se entreolharam sorrindo, mas ao perceberem, no entanto, que outros se interessavam pelo fim da história, silenciaram.

- Sim, o terrível meus senhores - continuou o capitão Miguel, pausadamente, com um ar sombrio. - O horripilante é que aqueles homens, que foram salvos um mês depois por uma traineira chinesa, conservaram a afeição à carne humana...

Ninguém sorriu dessa vez, ante o olhar tétrico do capitão, que continuou:

- Ao voltarem à Europa, decidiram reunir-se uma vez por ano para renovar o abominável festim! Ah! Meus senhores, logo pude compreender... Percebi a acolhida pouco entusiasta dos pratos que a sra. Beauvisage servia... Apenas as fatias grelhadas de atum foram aceitas com algum prazer, pois como disse o médico, estavam bem cortadas e pelo menos o visual enganava.

"Quando o um dos aleijados comentou que aquela comida não podia se comparar com o 'pedreiro', senti me congelar, porque me lembrei que no ano anterior, naquela época, um pedreiro que caíra dum telhado, fora encontrado sem um dos braços.

"Assim, pude imaginar qual era o papel da minha bela vizinha naqueles banquetes... Me inclinei para observá-la e vi que vestia luvas, que lhe cobriam os braços completamente, e uma capa, que escondia seus ombros. O médico, meu vizinho, que era o único entre todos que possuía braços, também vestiu luvas.

"Reconheço que, ao invés de procurar as razões daquela extravagância, deveria ter seguido os conselhos da sra. Beauvisage. Mas não consegui interpretar seus olhares que pareciam às vezes de carinho, às vezes de compaixão.

"Aqueles homenzinhos agitados faziam uma barulheira com seus ganchos batendo nos copos, vaidosos pelo prazer que usufruíam, ao mesmo tempo em que se recriminavam mutuamente pelos fatos acontecidos. Lord Wilmore chegou a se atracar com o aleijado de monóculo. A dona da casa tentou acalmá-los na medida do possível, esclarecendo que nem sempre se poderia conseguir um banquete como desejavam.

- Oba! - interrompeu Dorat, o velho lobo do mar. - Oba! Isso também é engraçado...

Temi que o capitão se atirasse sobre ele, ainda mais porque os outros três se puseram a cacarejar, numa demonstração de que não estavam acreditando naquela história.

Bufando, o capitão se controlou e dirigiu-se a Dorat:

- Meu caro, ainda tens seus dois braços e não quero que perca um deles, como perdi o meu, só para mostrar que essa história não tem graça nenhuma...

Os amigos se calaram e o capitão continuou:

- Os aleijados tinham bebido muito e alguns deles subiram na mesa e me rodeavam olhando meus braços, o que imediatamente me levou a escondê-los. Na mesma medida, a ferocidade do comportamento deles se acirrou e procurei me afastar da mesa, onde poderia ser alcançado por eles. Bastou esse movimento de recuar a cadeira, se descobrindo sob os punhos da minha camisa a brancura da minha pele, para que dois ganchos afiados se cravassem no meu punho, rasgando a minha carne! Eu apenas lancei um grito lancinante...

- Nossa! Chega capitão! - exclamei, interrompendo-o. - É uma história horripilante mesmo, mas já vou indo porque isso vai me virar o estômago...

- Não senhor! - bradou o capitão. - Agora fique, porque vou terminar a história horripilante que fez rir quatro imbecis...

Olhou para cada um dos quatro velhos lobos do mar, que se asfixiavam com os esforços que faziam para não rir, e continuou:

- Quando se tem sangue de grego nas veias, é para toda a vida... e o que nasceu em Marselha nunca irá acreditar em coisa nenhuma! Assim, estou falando só com você, meu jovem! Não tenha medo que serei brando nos assuntos mais chocantes... afinal, tenho-o como um cavalheiro!

O capitão voltou-se para mim, quase dando as costas para os outros quatro:

- O meu martírio foi tão rápido que só me recordo que todos me cercavam, gritando como selvagens, alguns estimulando e outros reclamando. Tentei escapar, mas fui derrubado... Então senti que aqueles ganchos horríveis rasgavam a minha pele e extraíam a minha carne... como num açougue!

Devo ter feito um gesto de repulsa porque ele imediatamente se desculpou:

- Sim... Sim... vou suprimir detalhes... Como prometi...

Esboçou um sorriso e continuou:

- Aliás, mais detalhes não lhe poderia mesmo dar porque não assisti a operação, pois o médico me aplicou uma mordaça com algodão cloroformizado. Quando voltei à mim, estava na cozinha com um braço a menos... Os aleijados estavam lá, à minha volta e entre eles reinava plena harmonia, sonolentos. Foi horrível constatar que eles estavam me digerindo... Amarrado, largado no piso da cozinha, não podia me mover; ouvia-os apenas. Geraldo, antigo camarada, satisfizera-se e agradeceu-me, sem saber se eu podia ouvi-lo: "Ah! Meu caro Miguel, jamais imaginei que nos daria esse prazer..."

"Não vi a sra. Beauvisage, mas participara do festim, porque a ouvi perguntar a Geraldo:

- "Que tal a sua parte?"

- "Muito boa... Boa mesmo. Já acabei...

"Satisfeitas as suas paixões, aqueles monstros caíram na realidade e compreenderam a gravidade do crime que cometeram e logo partiram estabanadamente. Largaram abertas as portas e desapareceram. Jamais os vi ou ouvi falar deles. Ninguém veio me acudir senão passados quatro dias, quando eu já me aproximava da morte...

"Aqueles miseráveis não me tinham deixado senão os ossos!

por Gaston Leroux

Assombrações de Agosto

Chegamos a Arezzo pouco antes do meio-dia, e perdemos mais de duas horas buscando o castelo renascentista que o escritor venezuelano Miguel Otero Silva havia comprado naquele rincão idílico da planície toscana.

Era um domingo de princípios de agosto, ardente e buliçoso, e não era fácil encontrar alguém que soubesse alguma coisa nas ruas abarrotadas de turistas.

Após muitas tentativas inúteis voltamos ao automóvel, abandonamos a cidade por uma trilha de ciprestes sem indicações viárias, e uma velha pastora de gansos indicou-nos com precisão onde estava o castelo. Antes de se despedir, perguntou-nos se pensávamos dormir por lá, e respondemos, pois era o que tínhamos planejado, que só íamos almoçar.

- Ainda bem - disse ela -, porque a casa é assombrada.

Minha esposa e eu, que não acreditamos em aparições de meio-dia, debochamos de sua credulidade. Mas nossos dois filhos, de nove e sete anos, ficaram alvoroçados com a idéia de conhecer um fantasma em pessoa.

Miguel Otero Silva, que além de bom escritor era um anfitrião esplêndido e um comilão refinado, nos esperava com um almoço de nunca esquecer. Como havia ficado tarde não tivemos tempo de conhecer o interior do castelo antes de sentarmos à mesa, mas seu aspecto visto de fora não tinha nada de pavoroso, e qualquer inquietação se dissipava com a visão completa da cidade vista do terraço florido onde almoçávamos.

Era difícil acreditar que naquela colina de casas empoleiradas, onde mal cabiam noventa mil pessoas, houvessem nascido tantos homens de gênio perdurável. Ainda assim, Miguel Otero Silva nos disse com seu humor caribenho que nenhum de tantos era o mais insigne de Arezzo.

- O maior - sentenciou - foi Ludovico.

Assim, sem sobrenome: Ludovico, o grande senhor das artes e da guerra, que havia construído aquele castelo de sua desgraça, e de quem Miguel Otero nos falou durante o almoço inteiro. Falou-nos de seu poder imenso, de seu amor contrariado e de sua morte espantosa. Contou-nos como foi que num instante de loucura do coração havia apunhalado sua dama no leito onde tinham acabado de se amar, e depois atiçou contra si mesmo seus ferozes cães de guerra que o despedaçaram a dentadas. Garantiu-nos, muito a sério, que a partir da meia-noite o espectro de Ludovico perambulava pela casa em trevas tentando conseguir sossego em seu purgatório de amor.

O castelo, na realidade, era imenso e sombrio. Mas em pleno dia, com o estômago cheio e o coração contente, o relato de Miguel só podia parecer outra de suas tantas brincadeiras para entreter seus convidados. Os 82 quartos que percorremos sem assombro depois da sesta tinham padecido de todo tipo de mudanças graças aos seus donos sucessivos.

Miguel havia restaurado por completo o primeiro andar e tinha construído para si um dormitório moderno com piso de mármore e instalações para sauna e cultura física, e o terraço de flores imensas onde havíamos almoçado. O segundo andar, que tinha sido o mais usado no curso dos séculos, era uma sucessão de quartos sem nenhuma personalidade, com móveis de diferentes épocas abandonados à própria sorte. Mas no último andar era conservado um quarto intacto por onde o tempo tinha esquecido de passar. Era o dormitório de Ludovico. Foi um instante mágico. Lá estava a cama de cortinas bordadas com fios de ouro, e o cobre-leito de prodígios de passamanarias ainda enrugado pelo sangue seco da amante sacrificada.

Estava a lareira com as cinzas geladas e o último tronco de lenha convertido em pedra, o armário com suas armas bem escovadas, e o retrato a óleo do cavalheiro pensativo numa moldura de ouro, pintado por algum dos mestres florentinos que não teve a sorte de sobreviver ao seu tempo. No entanto, o que mais me impressionou foi o perfume de morangos recentes que permanecia estancado sem explicação possível no ambiente do dormitório.

Os dias de verão são longos e parcimoniosos na Toscana, e o horizonte se mantém em seu lugar até as nove da noite. Quando terminamos de conhecer o castelo eram mais de cinco da tarde, mas Miguel insistiu em levar-nos para ver os afrescos de Piero della Francesca na Igreja de São Francisco, depois tomamos um café com muita conversa debaixo das pérgulas da praça, e quando regressamos para buscar as maletas encontramos a mesa posta. Portanto, ficamos para jantar.

Enquanto jantávamos, debaixo de um céu de malva com uma única estrela, as crianças acenderam algumas tochas na cozinha e foram explorar as trevas nos andares altos. Da mesa ouvíamos seus galopes de cavalos errantes pelas escadarias, os lamentos das portas, os gritos felizes chamando Ludovico nos quartos tenebrosos.

Foi deles a má idéia de ficarmos para dormir. Miguel Otero Silva apoiou-os encantado, e nós não tivemos a coragem civil de dizer que não. Ao contrário do que eu temia, dormimos muito bem, minha esposa e eu num dormitório do andar térreo e meus filhos no quarto contíguo. Ambos haviam sido modernizados e não tinham nada de tenebrosos.

Enquanto tentava conseguir sono contei os doze toques insones do relógio de pêndulo da sala e recordei a advertência pavorosa da pastora de gansos. Mas estávamos tão cansados que dormimos logo, num sono denso e contínuo, e despertei depois das sete com um sol esplêndido entre as trepadeiras da janela. Ao meu lado, minha esposa navegava no mar aprazível dos inocentes.

“Que bobagem”, disse a mim mesmo, “alguém continuar acreditando em fantasmas nestes tempos.” Só então estremeci com o perfume de morangos recém-cortados, e vi a lareira com as cinzas frias e a última lenha convertida em pedra, e o retrato do cavalheiro triste que nos olhava há três séculos por trás na moldura de ouro.

Pois não estávamos na alcova do térreo onde havíamos deitado na noite anterior, e sim no dormitório de Ludovico, debaixo do dossel e das cortinas empoeirentas e dos lençóis empapados de sangue ainda quente de sua cama maldita.

Outubro de 1980.


por Gabriel García Márquez

Histórias de Assombrações: Bruxas

Mulheres bruxas atacando cavalo - Ilustração: minhamarcaeflorianopolis.com

"Contou-me um narrador de histórias de assombrações, que um casal jovem depois de um ano de feliz matrimônio, ganhou uma linda criança, a qual ao completar cinco anos, adoeceu.

O sintoma da doença era o seguinte: as mãos cruzadas sobre o peito, o corpo manchado de roxo e ao anoitecer desatava num choro que metia dó, principalmente nas sextas-feiras.

Pessoas idosas, entendidas em doenças de bruxarias, quando viram aquela criança no estado lastimável em que se encontrava não tiveram dúvidas em afirmar aos pais, que todos aqueles sintomas eram, verdadeiramente, a confirmação de que as malvadas bruxas a estavam perseguindo.

Uma daquelas pessoas entendidas em assuntos bruxólicos aconselhou ao jovem pai que devia procurar uma benzedeira e não um médico, como queria a mãe da criança, pois este não entenderia nada daquela doença causada pelas forças misteriosas das terríveis mulheres que vêm a este mundo com a triste sina de ser bruxa.

No sítio, a conselho das pessoas mais velhas que são acatados com todo respeito, o casal resolveu chamar uma velha benzedeira, muito afamada na cura de crianças embruxadas.

A velha benzedeira, ao entrar na casa e pôr as vistas sobre a criança doente, desatou a bocejar tanto, que quase ficou sem poder falar por muitos minutos, mas logo que se recuperou, voltou-se para o casal e disse-lhes: "Esta criança está embruxada por bruxas muitos perigosas, de grandes poderes diabólicos. Recebi toda carga do seu poder maligno, no meu corpo, logo que entrei nesta casa, para enxotá-la daqui".

Tomou um breve que trazia no bolso do vestido, benzeu a criança e aconselhou aos pais que fizessem o seguinte remédio:

Na sexta-feira daquela semana, ao anoitecer, tomassem uma ceroula do pai, colocassem-na em cruz em cima da criança, rezassem um Credo de trás para diante em cima da ceroula, colocassem um pires com água e dentro um pedaço de cera virgem e a chave da fechadura da porta da entrada, e ficassem de vigília.

No momento em que a criança chorasse, era o sinal de que as bruxas a estariam chupando o sangue e, portanto, o pai devia pegar a cera virgem que estava no pires e introduzi-la no buraco da fechadura, para que assim as bruxas ficassem presas dentro de casa e aguardassem, ali, o canto do galo preto para ser descoberto o fado.

As bruxas, que andavam chupando aquela criança, eram moradoras do mesmo lugar e duas das quais primas irmãs da mãe da criança doente.

Naquela semana, elas fizeram uma reunião numa casa abandonada e mal-assombrada, para desenvolver o poder do fado em uma moça nova, muito feia e rude, que começaria a cumprir a sina pela primeira vez.

Para poderem voar por cima das árvores e entrar pelo buraco da fechadura, além de despirem toda roupa e esconderem-na nas tocas das bananeiras, grutas, e debaixo dos paneiros de canoas de pescadores e untarem todo o corpo com unto virgem, elas devem pronunciar certíssimas as seguintes palavras: "Por cima do silvado e por debaixo do telhado".

A reunião que elas fizeram naquela semana foi para ensinar à bruxa praticante que o canto do galo branco e amarelo não lhes quebra o encanto, mais sim o do galo preto.

Que as palavras "Por cima do silvado e por debaixo do telhado" não podem ser pronunciadas ao contrário, senão perderão uma noite de atividades diabólicas.

Na mesma reunião, combinaram irem todas, inclusive a bruxa nova, chuparem a criança na casa onde a velha benzedeira tinha mandado fazer a armadilha com a ceroula.

Naquela sexta-feira, dia combinado, depois de prontas para entrarem em estado fadórico a bruxa velha pronunciou as palavras do encanto e mandou que todas respondessem certo, mas a bruxa nova respondeu ao contrário, estragando assim, as atividades da noite.

Devido o engano da bruxa nova, não puderam atingir o objetivo visado que era chupar a criança.

Em vez de passarem por cima do silvado, passavam por debaixo, e em vez de passarem por debaixo do telhado ficavam por cima.

Cansadas de tanto voar e não conseguirem entrar no buraco da fechadura, para chuparem o sangue da criança, resolveram pousar sobre o telhado da casa.

Devida a benzedeira da velha e as armadilhas que se achavam dentro de casa, elas ficaram presas sobre o telhado e foram surpreendidas em estado de encanto, pelo canto do galo preto.

No momento em que elas pousaram sobre o telhado da casa, a criança começou a chorar, e o pai então tratou de introduzir a cera virgem no buraco da fechadura. e ficou aguardando o canto do galo preto, quando se daria justamente, o desencanto das bruxas.

Logo que o galo preto cantou, elas se desencantaram, em cima da casa e não dentro como o homem esperava, isto devido a bruxa nova ter pronunciado as palavras de encanto ao contrário.

Mal se desencantaram, viram-se presas pela armadilha que estava dentro de casa e começaram a chorar.

O dono da casa, que estava de vigília, logo que ouviu o choro, abriu a porta da casa e saiu para o quintal, a fim de ver onde era o choro, quando, qual não foi sua surpresa, ao deparar com aquele quadro tétrico sobre o telhado da sua casa.

Apavorado pelo que viu, chamou a mulher e alarmou os vizinhos que acudiram assustados.

Colocaram uma escada e fizeram-nas descer.

O dono da casa foi na cozinha, apanhou um rabo de tatu que estava no moeiro, deu uma surra em cada uma até deixar caída por terra.

A surra foi tão violenta que, para curar os ferimentos tiveram que usar água com sal bem forte e cachaça com ervas."

Florianópolis, 16 de janeiro de 1957


Franklin Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

O Espectro

— Olhe cá, ouça!

Quando falou assim a voz que o chamava, estava de pé, à porta de sua casinha, empunhando a bandeirola, que conservava enrolada no pauzinho que desempenhava as funções de haste.

Era tal a configuração do terreno que não parecia possível que pudesse ter dúvida sobre a procedência da minha voz. Contudo o homem, longe de erguer os olhos para o lugar em que me achava, à borda da trincheira, precisamente sobre a sua cabeça, deu meia volta e olhou em direção à vila.

— Olhe cá, ouça!

Só então deixou de esquadrinhar a linha. Girou de novo sobre os calcanhares e deitando a cabeça para trás distinguiu-me por cima do seu observatório.

— Há algum caminho que me permita descer até aí para travarmos conversação um pouco mais de perto?

Houve uma pausa, então. O homem examinava-me com profunda atenção. Por fim, apontou-me com a bandeirola um ponto situado a duzentas ou trezentas toesas à esquerda.

— “All right!” Muito bem! — exclamei.

E dirigi-me ao lugar indicado. Lá, depois de muito olhar em torno de mim, descobri um estreito caminho, toscamente talhado em ziguezague e comecei a segui-lo.

A trincheira era funda em extremo. Estava talhada a pique sobre um bloco de pedra e, à medida que se descia, diminuía a consistência da pedra, ao passo que a umidade aumentava proporcionalmente. Vi-me obrigado a serpentear. Durante minhas voltas e reviravoltas não me saíam da memória o jeito indeciso e a rara timidez que havia notado no pobre homem quando se decidiu a indicar-me o caminho.

Concluídos os rodeios, tornei a contemplá-lo da vertente e pude observar que permanecia na via que dera passagem ao último comboio. Sua atitude permitia afirmar que estava à minha espera.

Encostava o queixo na palma da mão esquerda, enquanto o braço correspondente procurava apoio no direito que tinha cruzado ao peito; e era tão singular a sua expectativa, refletia tanta ansiedade que parei por um pouco, cheio de surpresa.

Continuei descendo até chegar ao terrapleno e então pude contemplar, à vontade, a cútis morena, a barba negra e as sobrancelhas espessas da minha estranha personagem.

Sua casita ocupava o lugar mais solitário e triste da via férrea. De cada um dos lados erguia-se um muro pedregoso que vertia água e impedia o olhar de espraiar-se pela imensidade do céu, de que só se distinguia uma faixa estreita.

E não eram mais alegres as perspectivas da estrada. De um lado via-se a prolongação tortuosa desse grande cárcere; de outro, ainda mais limitado, o que atraía os olhares era uma luz de vermelho sinistro, situada sobre a abertura de um túnel sombrio, cuja estrutura maciça oferecia um aspecto grosseiro e repulsivo. Os raios solares ali chegavam minguados e amortecidos; respirava-se um cheiro subterrâneo. Um vento fúnebre que me gelou o sangue nas veias soprava daquela boca escura... Estremeci. Apossou-se de mim a idéia de que já não estava no mundo dos vivos.

O interpelado permanecia fixo no mesmo lugar. Cheguei-lhe ao lado; consegui tocar-lhe; mas perseverou indefinidamente na sua primitiva imobilidade. Enquanto não parei, permaneceu quieto em seu lugar. Depois, retrocedeu um passo e levantou a mão; mas não tinha deixado um só instante de assestar nos meus olhos o olhar desvairado dos seus.

— É bem solitário este posto — disse-lhe eu. — Já lá de cima, quando o descobri, foi o que me pareceu. Poucas visitas terá por aqui, não é verdade? mas nem por isso elas lhe serão desagradáveis... Pelo menos, é o que me parece! Sou um sujeito cuja vida decorre entre horizontes bem limitados. Por fim consegui alcançar a liberdade e minha curiosidade arrasta-me, apaixonadamente, ao exame cuidadoso das grandes construções ferroviárias. Tais investigações, inteiramente novas para mim, satisfarão minha ignorância com a maior precisão.

Disse-lhe aproximadamente essas palavras. Estou longe de reproduzi-las com absoluta fidelidade. Nunca fui muito forte na arte de entabular conversações e nessa ocasião, menos do que nunca, pois o interpelado tinha certa expressão pouco tranqüilizadora, que me infundia medo.

Voltou-se, para registrar, com exagerada solicitude o lugar em que permanecia fixa a luz vermelha que só alumiava as proximidades do túnel, como se fizesse pouco caso dos outros objetos naquelas ermas paragens.

Por fim, dirigiu-me novamente o olhar.

— Está também a seu cargo a vigilância e cuidado desse sinal? — perguntei-lhe.

Respondeu, em voz calma:

— O quê! Pois não sabia?

Era tão insistente a fixidez do seu olhar e tão intensa a sombra que lhe escurecia o rosto, que me cruzou pela mente uma suspeita singular.

Devia considerar como a um homem aquele ser que estava diante de mim? Não seria um fantasma? Mais tarde pensei que devia sentir-me contagiado pelo seu aspecto. Coube-me então a vez de retroceder um passo. Isso provocou no desgraçado os sinais mais inequívocos de terror. Eu lhe metia medo. Esta descoberta pôs fim às minhas suspeitas extravagantes.

— O senhor me olha — disse-lhe com um sorriso forçado — como se eu lhe fizesse medo.
— Parece-me que já o vi antes.
— Onde?

Indicou com a vista a luz vermelha.

— Ali? — perguntei-lhe.
— Sim — respondeu num gesto mudo de assentimento e sem tirar de mim os olhos ansiosos.
— Mas, bom homem, que é que eu poderia ir fazer ali? Ainda que isso fosse possível, creia que isso nunca me ocorreu e que nunca, em toda minha vida, pus os pés naquele lugar. Posso jurá-lo — disse; — estou bem certo disso e posso jurá-lo.

Por fim, pareceu que estas palavras tinham desfeito o gelo entre nós.

Daí em diante, respondeu com desembaraço às minhas perguntas.

Fez-me entrar na sua casinha, onde tinha um fogão, uma estante para o registro do serviço, um livro em que se estampava determinadas observações e um aparelho telegráfico composto de um mostrador com setas indicadoras e uma campainha de chamada.

O digno e excelente homem ter-me-ia merecido o conceito de empregado competentíssimo nas suas funções se não tivesse suspendido por duas vezes suas respostas, empalidecendo, para olhar para a campainha (que, no entanto, permanecia muda, nesses momentos), e não tivesse aberto a porta de sua vivenda (fechada unicamente para evitar a insalubre umidade), desejoso de olhar de fora a chama vermelha da entrada do túnel.

De ambas as vezes acompanhou o seu regresso para junto do fogão com aquele gesto inexplicável que lhe havia observado, sem poder defini-lo, quando nos olhamos a distância, eu, das minhas alturas, ele, das suas profundidades.

— Alegro-me de acreditar — disse-lhe, ao levantar-me para partir — que encontrei aqui um homem satisfeito com a sua sorte.

Era intenção minha induzi-lo a fazer-me qualquer comunicação.

— Sim, realmente, foi assim em outros tempos — respondeu — mas agora — acrescentou com essa voz apagada que havia empregado antes — estou inquieto, senhor: a inquietação me devora.

Teria querido, talvez retirar as suas palavras, mas já era impossível. Estavam irremissivelmente pronunciadas.

Aproveitei-me delas imediatamente.

— Por quê? Qual a causa da sua inquietação?
— É muito difícil explicá-la, cavalheiro; custa-me indizivelmente falar deste assunto. Se o senhor tornar a visitar-me de novo, tentarei expandir-me.
— Acredito! Desejo vivamente voltar. Quando quer que eu apareça?
— Abandono este posto muito cedo, mas às dez horas da noite estarei de volta.
— Virei amanhã às onze.

Agradeceu-me e acompanhou-me até à porta.

— Porei à vista a minha luz branca — disse-me surdamente, conforme o seu costume — até que o senhor acerte com o caminho. Quando o encontrar, não grite, e ao regressar, quando se encontre no ressalto da trincheira, não o faça também.

As maneiras e o som da sua voz pareciam-me aumentar o aspecto glacial daquele lugar. Limitei-me a responder-lhe:

— Muito bem.
— Não se esqueça — continuou. — Quando vier amanhã à noite, não há necessidade de fazer barulho. Permita-me uma pergunta, para terminar. Por que gritou esta noite: “Olhe cá, ouça!”.
— Garanto-lhe que não sei. Mas, realmente, disse algo parecido com isso.
— Algo parecido, não, foi isso que disse. Conheço perfeitamente esse modo de chamar.
— Oh! não digo que não. Fiz assim simplesmente porque o avistava aqui no fundo.
— Só por esse motivo?
— Que outro poderia ser?
— Não lhe pareceu que alguém lhe ditava essas palavras: que obedecia, de certo modo, a uma influência sobrenatural?
— Não.

Deu-me boa noite e foi-me alumiando o caminho com a lanterna. Continuei andando ao longo da via férrea, fora dos trilhos, sob o peso de uma impressão desagradável. Parecia que tinha um comboio ao meu encalço... Achei finalmente o caminho. Foi-me fácil a subida e acabei por chegar à minha hospedaria, sem nenhum embaraço.

Veio a noite seguinte. Fiel à minha entrevista, punha o pé no primeiro degrau da encosta em ziguezague, ao bater das onze, que se ouvia ao longe.

O homem se achava ao pé da trincheira, espreitando a minha chegada com o seu farol branco ao alto.

— Não murmurei meia palavra — disse, ao chegar junto dele. — Posso falar agora?
— Sem dúvida, cavalheiro!
— Pois então boa noite. Venha de lá um aperto de mão.
— Boa noite, senhor. Aí vai.

Depois do cumprimento, dirigimo-nos, caminhando um ao lado do outro, para a casinhola. Entramos e sentamo-nos junto ao fogo.

— Não vou permitir que se incomode, cavalheiro (começou a dizer, inclinando-se e com voz imperceptível como um suspiro), perguntando-me novamente o motivo do meu desassossego. Ontem à tarde confundi-o com outra pessoa. Era esse o motivo da minha inquietação.

— Aborrece-o esse engano?
— Não é que o senhor me perturbe. O outro é que..
— Quem é esse outro?
— Não sei.
— Parece-se comigo?
— Também não sei. Nunca lhe vi o rosto. Esconde-o com o braço esquerdo, enquanto move rapidamente o direito, assim; veja.

Reparei na sua pantomima muda. Era uma série de gestos descompostos, que queria exprimir, de um modo veemente, convulsivo e apenas com um braço, esta frase: “Pelo amor de Deus! Saia do caminho!”

— Numa noite de luar — acrescentou o homem eu estava aqui, no lugar em que o senhor está agora, quando ouvi uma voz gritando: — Olhe cá, ouça! — Corri para fora. O outro estava de pé, junto ao sinal vermelho, gesticulando como lhe mostrei ainda agora. Estava rouco à força de gritar: Olhe, cuidado, cuidado! Não se calava nem por um segundo. Repetia sem descanso: Olhe, cuidado, cuidado! — agarrei o farol e corri para o homem, perguntando-lhe: — Que aconteceu? É um aviso ou um acidente? Em que lugar? — Parei a dez passos da entrada do túnel; fiquei tão perto dele que percebi, assombrado, que o desconhecido escondia o rosto com o braço esquerdo. Segui direito para ele, estendi a mão para descobrir-lhe o rosto; mas de repente, antes que o conseguisse, desapareceu.
— Pelo túnel? — perguntei.
— Não senhor. Percorri-o em toda a sua extensão de quinhentos metros; parei; levantei o farol em todas as direções; vi perfeitamente os números das cotas do nível e as indicações quilométricas escritas na parede. A umidade deslizava como azeite ao longo das pedras e gotejava pela abóbada; mas, nem sombra de ser humano! Voltei, então, sobre meus passos, mais rapidamente que na ida, porque me inspiravam horror mortal esses lugares. Depois de ter revistado minuciosamente os arredores da luz vermelha, sem abandonar um minuto o meu farol regulamentar, subi até o sinal. Nada! Desci de novo e fui telegrafar. Fi-lo por duas vezes. — Alarma. Que está acontecendo? — E de ambas as vezes me transmitiram a resposta costumeira: — Sem novidade.

Enquanto o guarda-chaves falava, parecia-me que um dedo gelado me percorria lentamente a espinha. Resisti quanto pude a essa sensação, esforçando-me por dar a entender ao infeliz que semelhante aparição fora o resultado de uma ilusão de ótica e que aquele grito imaginário podia bem ter sido causado pelo ruído do ar ao chicotear os fios do telégrafo ou ao chocar-se com as altas paredes, arrancando ao silêncio da noite as suas notas lúgubres de harpa eólia.

Deixou-me acabar, movendo a cabeça, mas sem dar sinais de impaciência.

Depois, ao cabo de alguns instantes, observou-me que conhecia perfeitamente o ruído dos fios vibrados pelo impulso do vento. Ninguém era como ele tão capaz de distingui-lo, pois tinha passado ali, sozinho, em vigília, muitas, muitíssimas intermináveis noites de inverno.

Disse-me, além disso, que não tinha acabado ainda sua narração.

Pedi-lhe que me perdoasse a interrupção; e ele, então apoiando suavemente a mão no meu braço esquerdo, prosseguiu lentamente:

— Seis horas depois da aparição ocorreu um desastre memorável na via; e, ao cabo de outras duas, retiraram os mortos e feridos do túnel, depositando-os no mesmo lugar em que tinha visto o fantasma.

Estremeci, da cabeça aos pés. Contudo, consegui dominar-me.

— Certamente — disse-lhe — não há dúvida de que houve uma coincidência notável, capaz de impressionar profundamente a sua imaginação. Mas é igualmente exato, que muito freqüentemente ocorrem casos parecidos.

Observou-me novamente que ainda não terminara.

— O que lhe contei — prosseguiu pondo-me outra vez a mão no braço e dirigindo-me por cima do ombro um olhar insistente — ocorreu há um ano já. Seis ou sete meses depois, quando não havia voltado a mim ainda da minha surpresa, nem me achava reposto da passada emoção, uma madrugada, ao amanhecer, achando-me no interior da minha barraca, olhando para a luz vermelha, tornei a ver o espectro.

Guardou silêncio por um pouco e cravou em mim o seu olhar.

— Vamos a ver, ocorreu algum outro acidente depois dessa ressurreição?

Tocou-me várias vezes com a ponta dos dedos, movendo sempre a cabeça com uma lentidão de espectro que me gelava o sangue nas veias.

— Naquele mesmo dia, cavalheiro — continuou — à passagem de um trem que saía do túnel, observei num compartimento movimentos descompostos de mãos, de cabeças... numa palavra, uma agitação extraordinária. Dei sinal de parada; o maquinista deu imediatamente contravapor e apertou os freios; o trem, contudo, andou ainda cem ou cento e cinqüenta metros. Deitei a correr e ouvi, efetivamente, gemidos e lamentos desesperados. Uma linda mulher tinha sido assassinada num vagão. Trouxeram-na ao meu posto e deixaram-na aqui onde conversamos agora.

Involuntariamente, puxei minha cadeira para trás e não tirei dele os olhos.

— Cavalheiro, esta é a pura verdade. Conto-lhe o acontecimento com toda a precisão.

Já não conseguia falar nem pensar. Fora, o vento e os fios do telégrafo ajuntavam ao horror da narração o acompanhamento de sua voz lastimosa e prolongada. E o homem concluiu:

— Julgue o senhor se posso ter ânimo sereno; há uma semana reapareceu a visão e, de então para cá, não deixou de apresentar-se diante dos meus olhos, de quando em quando.
— Na luz vermelha?
— Sim, no sinal de perigo.
— E o que faz ali?
— Mais veementemente ainda, se é possível, repete os gestos de angústia, como que dizendo: Pelo amor de Deus, saia do caminho.
— Já conhece agora — acrescentou — a causa do meu desassossego. Não tenho trégua nem descanso. O desconhecido me chama por vários minutos consecutivos, empregando sempre o seu grito desesperado: Ouça cá, cuidado! — Agita o braço e dá alarma com a campainha...

Ao ouvir estas palavras, interrompi-o:

— Diga-me o senhor se a campainha tocou ontem à tarde, quando me aproximava daqui, à hora em que o senhor saiu.
— Duas vezes.
— Duas vezes? — repliquei. — Isso prova o quanto a sua imaginação está desorientada. Eu era todo olhos e ouvidos; pois bem, tão certo como eu estar vivo, a campainha não tocou essas duas vezes. Não, nem tocou dessa vez nem das anteriores, está claro que toca, mas quando se comunicam com o senhor dos postos vizinhos.

Meneou a cabeça.

— Não me engano nisso, cavalheiro — replicou. — Nunca confundi a chamada do fantasma com a de meus companheiros. A vibração daquela é especial, não se transmite pelos fios. Não digo que ele toque a campainha; mas que soa, não há dúvida. Não há nada de singular em que o senhor não a tenha ouvido. Eu, por minha parte, ouvia-a exatamente como a ouço sempre: muito bem.
— E quando saiu para fora, viu a aparição?
— Vi.
— As duas vezes?
— As duas — afirmou, com plena convicção.
— Quer sair comigo e olhar agora?

Mordeu os lábios, mas levantou-se.

Abri a porta, detendo-me um momento no limiar. Meu interlocutor ficou a alguma distância. Tudo permanecia no seu respectivo lugar: a luz do sinal, a abóbada do túnel, a parte enorme impregnada de umidade... tudo permanecia o mesmo, à luz das estrelas. — Vê qualquer coisa de anormal? — perguntei, fixando-lhe atentamente o rosto. — Tinha os olhos muito abertos, talvez não tanto como os meus, que ergui, ao mesmo tempo que ele, na direção temida.
— Não — respondeu — não vejo nada.
— Bem — disse eu. — Estamos de acordo!

Entramos novamente e tomamos lugar junto ao fogo. Pensava eu em como tirar melhor partido do bom êxito obtido, se assim podia chamar-se o resultado negativo de nossa inspeção ocular, quando o nosso homem reatou a sua narrativa no mesmo ponto em que a havia interrompido, convindo na afirmação de que os fatos repetidos, objeto de nossa narrativa, não podiam seriamente constituir base para um alarma. Foi um novo embaraço para mim.

— Isso aumenta, cavalheiro, a espantosa confusão em que me acho. Não cesso de perguntar-me: o que quererá anunciar o fantasma?
— Não sei — disse — se compreende claramente...
— Contra que risco vou prevenir-me? — continuou dizendo com ar pensativo, cravando o olhar ora no fogão, ora em mim. — Que perigo está ameaçando? Onde acontecerá? Porque, sem dúvida nenhuma, está-se aproximando da linha um perigo qualquer. Uma terceira desgraça nos ameaça... quem poderá negá-lo, dados os precedentes dos fatos anteriores! Assim, ao que parece, o senhor me julga meio doido! Posso, acaso, evitá-lo? Que devo resolver? Que fazer?

Tirou o lenço e enxugou o suor da fronte.

— Se telegrafo para baixo ou para cima, ou em ambos os sentidos, que fundamento posso alegar? acrescentou, enxugando as palmas das mãos como tinha enxugado a fronte momentos antes. — Só criarei confusão, a mesma que experimento eu, sem vantagem nenhuma em favor do próximo. E hão de julgar-me louco... Veja o senhor! dar-se-ia o seguinte. Telegrama: “Perigo, atenção.” Resposta: “Que perigo? Onde?” Telegrama: “Não sei; mas pelo amor de Deus, estejam de sobreaviso.” Despedir-me-iam do emprego. Poderia suceder outra coisa?

Causava dó a agitação do infeliz. Ao vê-lo assim entendi que, por uma questão de caridade e por assim o exigir a segurança do público, o que havia a fazer, em primeiro lugar, era acalmar o pobre homem. Deixando, pois, para outra ocasião discutirmos se era real ou ilusória essa necessidade, procurei persuadi-lo de que todo empregado fiel e perito no cumprimento de seus deveres procede sempre corretamente e que, tendo ele perfeita consciência de sua obrigação, devia ficar tranqüilo e sem inquietar-se pelo inexplicável das aparições. Minha tática deu melhor resultado que a oposição às suas supersticiosas convicções. Acalmei-o. As exigências do serviço e os incidentes próprios de tais ocasiões reclamavam-lhe todo cuidado. Eram duas horas da madrugada. Deixei-o então, não sem haver-me oferecido antes para ficar em sua companhia até o amanhecer, mas ele não consentiu nisso.

No dia seguinte, estava tão linda a tarde que me apressei a sair, depois do jantar, para aproveitar-lhe a beleza. Ia caindo o sol quando tomei o caminho que, através dos campos, levava até à encosta que dava acesso à via férrea. “É questão de mais uma hora”, pensei. “Em trinta minutos chegarei até ali e em outros trinta terei regressado do meu passeio, que não terá durando grande coisa. Conto falar com o meu guarda-chaves no momento mais propício.”

Antes de terminar o meu caminho, assomei ao parapeito da trincheira e olhei maquinalmente para o fundo, exatamente no mesmo lugar em que interpelei, pela primeira vez, tão estranha personagem. Como descrever o sentimento de horror que me petrificou ao observar que um ser homem ou fantasma, colocado rente à entrada do túnel, agitava vivamente o braço direito, enquanto com o esquerdo escondia o rosto! O indizível espanto que esta visão me produziu durou um momento só; pois não demorei em ver que não era ilusão nenhuma, como o dava a entender um grupo de indivíduos, aos quais se dirigia a personagem que primeiro avistei; esta, naturalmente, com os seus gestos, pretendia explicar-lhes o acontecido. Ainda não se percebia o luzir vermelho do sinal. Divisava vagamente do lado do poste uma espécie de barriquinha construída com espeques de madeira e uma tela de lona embreada. O seu vulto não era maior que uma cama pequena.

O rápido pressentimento de uma desgraça cruzou-me pela mente. Corri para a vereda em ziguezague e desci por ela, com toda a precipitação que pude.

— Que aconteceu? — perguntei.
— Um guarda-chaves, cavalheiro, que foi morto esta manhã.
— Não será o desta casinha?
— Sim, senhor.
— Aquele que eu conhecia?
— Fácil lhe será reconhecê-lo — disse o homem que respondia às minhas perguntas.

Tirou gravemente o chapéu e levantando uma ponta da tela:

— Não está desfigurado — acrescentou.
— Deus meu! Mas como aconteceu a desgraça? Que se passou aqui? — Repeti, indo de um lado para outro, apenas caiu o negro sudário.
— Cavalheiro, a máquina o feriu. Ninguém conhecia nem desempenhava melhor suas obrigações; mas hoje, sabe-se lá por quê? não soube acautelar-se. Era já dia claro; trazia ainda o farol aceso. Um trem saía do túnel; o guarda estava ali, de costas. Foi derrubado. É este o maquinista. Ele lhe dirá o que aconteceu, com todos os pormenores... — Tom, dê a este cavalheiro todos os detalhes...

O maquinista, foi até a boca do túnel.

— Vou explicar-lhe como se passou, cavalheiro. Da curva que faz a via, ali dentro, vi o guarda-chaves junto à saída como se vê um homem por um binóculo. Não havia tempo para apertar os freios; mas não me inquietei por isso. Tive-o sempre por homem cauteloso. Contudo, como me pareceu que não o preocupava o silvo da locomotiva, soltei vapor... Estávamos já em cima dele... Chamei-o com toda a força dos pulmões.
— Que foi que o senhor disse?
— Gritei: “Olha lá! Oh! Oh! Fuja, fuja! Saia da linha!”

Estremeci.

— Ah, senhor! Foi um rude transe! Não parei de chamá-lo. Ocultei o rosto com este braço e nem um momento deixei de agitar nervosamente o outro. Nada consegui!

Assim terminou, com essa morte trágica, tão extraordinária aventura, cujo mistério jamais consegui decifrar.

por Charles Dickens