sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O Dia da Vingança


— Brasa do inferno! Pára! — berrou o barão de Santamorte alucinado. Far-te-ei lacerar as carnes pela roda de ferro, ou devorar pelos meus cães! Traz-me o meu filho! O meu filho! O meu filho!

Só se ouvia uma longa risada de escárnio e depois uma voz terrível descendo do alto da torre que dizia:

— Por todas as dores, os sofrimentos, as humilhações que infligiste a teus semelhantes, pelas infâmias que cometeste, hoje é o dia da vingança!


Existe ainda hoje entre os píncaros das montanhas do Cortonese, em terras de Florença, o pitoresco Castelo de Montecchio, todo ele enfeitado oe torres e de ameias altas, que lhe emprestam aquele seu ar de soberania que há séculos vem impressionando o transeunte e o turista curioso. Muitos foram os seus senhores desde o capitão de aventuras, o inglês Hawkwood, que trazia gravado em seu escudo o triste mote: “Inimigo de Deus e da Misericórdia”, até o feudatário florentino, ainda mais triste, que devido à sua natureza bestial, corpulento, sanguinário e barbudo, havia sido alcunhado “O Lobo de Santamorte”, pois quem lhe caísse nas garras tinha morte de santo, pelas crueldades que lhe eram infligidas.

A sua voz era constantemente irada; as mãos sempre prontas a golpear, a matar, a torturar. Os castigos que mandava administrar em suas terras tinham feito daquele homem uma espécie de monstro, que, em comparação, a fera da qual tinha o nome, bem poderia parecer um cordeiro.

E, no entanto, havia também ternura e bondade em sua alma negra, sentimentos, porém, que se tinham esgotado, secado e como que absorvido numa inesgotável revolta contra a sorte, quando lhe morreu a esposa idolatrada, jovem delicada e sensível, que morrera e o deixara abandonado em sua ira impotente contra tudo e contra todos, quando dera à luz o seu único filho Baldo, que o Barão de Santamorte passou a adorar com toda a força de sua alma selvagem e intransigente, reunindo na criança toda a sua faculdade de amar.

As primeiras vítimas de sua revolta contra um destino cruel foram o médico, as enfermeiras e as aias que não souberam defender contra a morte implacável a querida de seu coração e no dia do batizado do pequeno Baldo, ainda pendiam das torres do castelo, os corpos enforcados dos subalternos impotentes que não tinham sabido conservar em vida a suave esposa do seu bárbaro senhor. 

E a sua natureza foi dia a dia mais se enfurecendo e o único raio de sol em sua triste vida era o pequenino Baldo linda criança, inteligente e suave, que lhe lembrava a esposa desaparecida.

Certa madrugada do mês de setembro de 1385, um grupo de cavaleiros e de servos a pé, armados e segurando com força as correias das maltas de cães ganindo, subia por ásperos penedos entre bosques de árvores seculares, os montes do Cortonese.

Era o senhor de Montecchio que mais uma vez se ia entregar à sua preferida distração. Caçar o javali e o cabrito montês. Ao lado do barão cavalgava o pequeno Baldo, de nove anos apenas de idade, e um pouco atrás deles seguia, montando uma mula branca, uma linda jovem chamada Viola, florida camponesa já noiva de Quinto Borghetti (monteiro-mor do barão de Montecchio) e que este havia feito raptar na própria manhã de suas núpcias, pois o barão, prepotente e invejoso, havia declarado ao rapaz que “as mulheres bonitas em suas terras eram para ele e não para os seus súditos”.

Viola vivia assim no Caste1o de Montecchio com as regalias e as mortificações de uma cortesã e o sentimento desesperado de uma escrava impotente contra as odiosas exigências de um senhor execrando.

Depois dos guardas, à testa dos batedores e dos servos que conduziam os cães, marchava a singular figura de um homem moço, traços enérgicos, alto e espadaúdo. Era Quinta Borghetti, o “mestre-caçador”, ex-noivo da linda Viola.  O posto era importante para um rapaz tão novo ainda, mas ele tinha realmente grande capacidade e Lupo Montecchio lhe tinha dado também para recompensá-lo do rapto de Viola, embora o Barão de Santamorte pensasse (conforme a mentalidade da época) ter honrado o seu súdito roubando-lhe a noiva!

Era certamente uma brincadeira de muito mau gosto e pelos campos fora, nas granjas e nos casebres montanheses, todos admiravam que um rapaz forte e cheio de ardil como Quinto, se tivesse tão facilmente resignado sob tamanha afronta. Este, porém, procurava esconder até a própria expressão do olhar, sempre esquivo e isolado, sem falar com pessoa alguma, parecia só se ocupar da missão que lhe haviam confiado.

Quando a comitiva chegou finalmente ao lugar designado, dispôs-se imediatamente em atitude de ataque. A caça no devia estar longe, pois os cães começaram a ladrar desesperadamente e logo fizeram saltar fora do esconderijo um javali medonho, o pelo hirto e os dentes arreganhados. Enxotado pelos homens e perseguido pelos cães, o animal enveredou por um estreito caminho ao cabo do qual o senhor de Mortesanta, ladeado por alguns homens armados, esperava-o com a alabarda em punho.

A fera, no entanto, após ter estripado dois valentes rafeiros que tentaram agarrá-la, virou de repente para o lado direito do caminho e desapareceu entre o capim alto grunhindo desesperadamente. Era evidente a falta do mestre-caça, que havia deixado desguarnecido aquele sítio e o barão de Santamorte, enfurecido, vendo fugir a linda presa, prorrompeu aos berros:

— Por todos os demônios do inferno! Quem deixou abandonada aquela passagem? Onde está o maldito Quinto?

O rapaz saía justamente do mato quando, o barão investiu rudemente contra ele:

— Cão maldito de meus cães! Deixaste então aberta aquela passagem?

— Sim, senhor — respondeu calmo o interpelado.

— Insolente! Atrevido! Perdeste certamente o amor à vida, não?

Quinto, olhos fixos no semblante do amo, sorria com desprezo sem dar resposta.

— Ah! É assim? — E mais enfurecido ainda por aquele mudo desafio, o barão gritou para os servos:

— Agarrem-no e ponham-no de joelhos, o dorso desnudo. — E com um requinte de perversidade, voltando-se para Viola, disse-lhe: — Aqui tens o meu chicote... A ti a honra de desfechar o primeiro golpe... Mas com toda a força... Ouviste?

Quem poderia fugir à diabólica vontade daquele homem em tais circunstâncias?

Pálida como cera, a infeliz Viola desceu de sua montaria e aproximou-se daquele seu infame senhor e dono que lhe entregou o chicote.

Quinto não opunha resistência alguma, ajoelhou-se e esperou resignado, todo recolhido num pensamento só.

— Perdoa-me em nome de Deus! — murmurou a pobrezinha ao chegar perto de Quinto, enquanto abaixava o chicote sobre as costas do rapaz.

O golpe parecia mais ser uma carícia!

— Mãos de manteiga! — gritou Lupo Santamorte com uma risada. — Mas os golpes dos guardas eram rudes e logo o sangue começou a escorrer pelas costas de Quinto.

— Mais! Mais! Mais forte — gritava como um possesso o Senhor de Santamorte, seguindo com os olhos turvos e os lábios espumando, o rítmico levantar e abaixar dos chicotes.

O pequeno Baldo, olhos escancarados, olhava alternadamente para o pai e Quinto, sem compreender o que se estava passando.

Viola, apoiada ao tronco de um carvalho, chorava e gemia, sem poder simular todo o seu horror.

— Basta! — gritou de repente o barão — ajudem-no a levantar-se e vamos voltar!

Quinto ergueu-se sem auxílio, pálido, mas firme e seguiu a comitiva entre os homens de armas.

Chegaram ao castelo quando o sino da capela batia as doze badaladas. O sol a pino escaldava, tirando luzes das águas paludosas do vale. Depois de atravessada a ponte levadiça, a comitiva parou no vasto pátio interior que abraçava a torre altíssima, quadrada, dominando os altos muros do castelo. O barão de Santamorte parou o cavalo e voltando-se para Quinto que se achava ainda entre os guardas, gritou-lhe:

— Chega aqui!

Quando o rapaz se aproximou, de olhos baixos, o senhor perguntou-lhe em tom de escárnio:

— E agora, estás ainda tão seguro de ti?

— Sempre! Respondeu este, sem pestanejar.

Todos se entreolharam consternados ante tamanha audácia. O velho fâmulo que guardava a porta da torre desceu os poucos degraus que conduziam ao interior do edifício, deixando a porta escancarada: queria ver de perto o subalterno que ousava responder ao senhor com tanta segurança.

— Como? — berrou o barão de Santamorte, agitando-se sobre o selim como se uma cobra o tivesse mordido. — Como? Será que chegou o fim do mundo ou eu que entendi mal?

— Não, senhor! Vosmecê ouviu perfeitamente bem! — respondeu Quinto com áspera voz e olhando profundamente Viola, que branca como linho, parecia estar para cair de sua montaria.

Foi como um relâmpago! Quinto subitamente deu um salto de gato e agarrando o pequeno Baldo de sobre o seu cavalinho baio, atirou-o sobre os seus ombros como se fora uma rês a ser levada para a feira e correu para a torre.

— Pára! Pára! Prendam-no! Berrava o senhor de Montecchio, enquanto tirava uma balestra das mãos de um armeiro.

— Não! Não atirem que ele se cobre com o meu filho! Maldição! Deixa o meu Baldo! Não podes tocá-lo! Olhem, poltrões, que nada sabem fazer! Canalhas! Ele fechou a porta da torre! E assaltado enfim por um pensamento aterrorizador atirou-se de encontro à porta já por dentro trancada, esperando ainda poder perseguir o louco que lhe roubara o filho.

Instantes depois, como se tivesse voado da rês do chão ao alto do edifício sem tocar com os seus pés os mil degraus da interminável escada, Quinto apareceu entre as ameias da torre a mais de cem metros sobre os lajedos do pátio. Tinha Baldo nas mãos, agarrado pelas roupas, suspenso sobre o abismo, ao fim de seus braços estendidos. Ouvira-se o grito, como um gemido sair dos lábios da infeliz criança que se debatia tal um trapo humano:

— Brasa do inferno! Pára! — berrou o barão de Santamorte alucinado. Far-te-ei lacerar as carnes pela roda de ferro, ou devorar pelos meus cães! Traz-me o meu filho! O meu filho! O meu filho!

Só se ouvia uma longa risada de escárnio e depois uma voz terrível descendo do alto da torre que dizia:

— Por todas as dores, os sofrimentos, as humilhações que infligiste a teus semelhantes, pelas infâmias que cometeste, hoje é o dia da vingança!

O barão recomeçou a proferir injúrias e suas palavras loucas, o seu furor, os seus berros arrefeciam o sangue de quem assistia àquela cena dantesca:

— Ouve-me, maldito! Gritou subitamente o senhor de Santamorte como que tresloucado: — Traz-me o meu filho e serás perdoado, juro-te! Queres ouro? Muito ouro? Terás tudo o que me pedires! Queres a tua Viola? Eu a restituirei. Diz-lhe tu a mesma coisa, Viola! Partirei para longe, muito longe, juntos e carregados de ouro! Não nos veremos nunca mais!

A jovem, de olhos esbugalhados na face branca como cera, parecia estar crucificada de encontro ao muro.

— Barão de Santamoorte — recomeçou a voz implacável do alto da torre — Eu já perdi a minha vida, o meu amor e tudo! Mas só quero que Viola vos restitua as chicotadas que me mandastes dar! Ajoelhai-vos, tirai o gibão e a camisa, depressa, ou deixo cair o vosso filho!

Olhos injetados de sangue, tremendo pela ira e o pavor, Lupo de Santamorte ajoelhou- se no meio do pátio, o torso nu, gritando:

— Vem, Viola! Bate-me! Bate-me com toda força! Quero meu filho! Que se me restitua o meu filho!

A jovem parecia não ouvir mais coisa alguma como se estivesse em estado de sonambulismo.

— Anda maldita! Vem depressa! Tragam-na aqui! Que ninguém se recuse a obedecer! Aquele bandido é capaz de manter a palavra!

Dois armeiros levaram Viola para junto do barão, puseram-lhe o chicote na mão, mas ela não tinha a força de bater.

Lupo de Santamorte já nem gritava, uivava:

— Bate, maldita! Anda com isto! E finalmente, Viola como se despertasse de um pesadelo, bateu com o chicote no lombo nu do tirano.

— Forte! Mais forte! -- gritava Quinto do alto da torre. — Quero ouvir os golpes e ver o sangue escorrer como nas minhas costas!

Viola começou então a bater com todas as forças de suas mãos reunidas até cair desmaiada no chão pela emoção e o pavor.

O barão de Santamorte levantou-se cambaleando, o dorso sujo de sangue, mais derrotado pela vergonha e a exasperação do que pelas chicotadas.

No mesmo instante uma risada ainda mais escarnecedora e louca do que as primeiras ecoou no alto da torre e a mesma voz trovejou:

— Tenho fé nas tuas palavras e agora me rendo!

Dois corpos agarrados estreitamente um ao outro, caíram das ameias da torre descendo com a velocidade de uma pedra, vindo esboroar-se sobre as lajes do pátio numa poça de sangue nobre e plebeu!

A partir daquele trágico dia, o barão Lupo de Santamorte, encerrado em seu castelo, só viveu entre orações e esmolas os curtos dias que ainda viveu neste mundo de enganos.


Texto de Itala Gomes Vaz de Carvalho 

Fonte: A Noite Illustrada - Supplemento Semanal - 02/07/1946.