terça-feira, 29 de novembro de 2011

Salvo pelo gongo

Qual seria a origem da expressão “Salvo pelo Gongo”? Existem várias versões para explicar a origem dessa expressão de quando alguém consegue se livrar, no último instante, de alguma situação.

A expressão parece ter sua origem na Inglaterra. Lá, antigamente, não havia espaço para enterrar todos os mortos. Então, os caixões eram abertos, os ossos tirados e encaminhados para o ossário e o túmulo era utilizado para outro infeliz.

Só que, às vezes, ao abrir os caixões, os coveiros percebiam que havia arranhões nas tampas, do lado de dentro, o que indicava que aquele morto, na verdade, tinha sido enterrado vivo.

Assim, surgiu a idéia de, ao fechar os caixões, amarrar uma fita no pulso do defunto, que passava por um buraco no caixão e ficava amarrada em um sino. Após o enterro, alguém ficava de plantão ao lado do túmulo durante uns dias. Se o indivíduo acordasse, o movimento do braço faria o sino tocar. Desse modo, ele seria salvo pelo gongo.

Antigamente, havia casos reais de pessoas que eram enterradas vivas de fato. Isto ocorria principalmente quando o "defunto" em questão sofria de "catalepsia".


A catalepsia é uma doença rara em que os membros e músculos se tornam rígidos e sem contrações, e a pessoas que sofrem desta doença podem passar horas nesta situação em um momento de crise. Até o começo do século 20, os médicos não contavam com meios precisos para distinguir uma crise de catalepsia com um óbito.

Na Inglaterra dos séculos 18 e 19 existia um pânico generalizado na população de sofrer de catalepsia e ser enterrado vivo. Muitos fabricantes de caixões e túmulos haviam inventado uma série de artifícios para uma pessoa poder avisar dentro do caixão, que estava viva de fato.

Atualmente, os especialistas afirmam que o risco de uma pessoa com catalepsia ser confundida com uma pessoa morta é zero, pois já existem equipamentos tecnológicos que, quando corretamente utilizados, não falham ao definir os sinais vitais e permitem atestar o óbito com precisão..

Fontes: Gato Peleque; Edu Eplica.

Os homens sem ossos

Estávamos carregando o Claire Dodge de bananas, em Puerto Pobre, quando um homem pequeno e de aspecto febril subiu a bordo. Todos se afastaram para lhe dar passagem — até mesmo os soldados que guardam o porto, armados de rifles Remington e usando perneiras polidas, apesar de andarem descalços. Eles recuaram porque achavam que aquele homem era um possuído, um louco. Embora não fizesse mal a ninguém, era perigoso e o melhor que se poderia fazer era deixá-lo sozinho e em paz.

Os lampiões de nafta sibilavam e do porão vinha o grito estrondoso do capataz da turma que trabalhava lá embaixo:

— Fruta! Fruta! Fruta!

O chefe da turma que trabalhava no cais gritava a mesma coisa, enquanto seus homens iam jogando para o porão cachos e mais cachos de bananas verdes e brilhantes. Só isso bastaria para que a ocasião fosse memorável — a noite magnífica, o corpo luzidio do capataz negro refulgindo à luz dos lampiões, o verde com jade das bananas, os cheiros diversos do porto. De um dos cachos de banana saiu de repente uma aranha cinzenta e cabeluda que assustou a tripulação e interrompeu a cadeia de carregamento de banana, até que um garoto nicaraguano, com uma risada, matou-a com o pé, afirmando que era inofensiva.

Foi então que o louco subiu a bordo, sem que ninguém o impedisse, e perguntou-me:

— Vão para onde?

Falava com uma voz calma e cuidadosamente controlada, mas havia uma expressão vazia e perdida em seus olhos a me sugerir que eu devia ficar a uma distância cautelosa de suas mãos inquietas, que me faziam lembrar a aranha cinzenta e cabeluda que se alimentava de insetos.

— Mobile, no Alabama — respondi finalmente.

— Posso ir também?

— Isso não é comigo, sinto muito. Sou apenas um passageiro. O capitão está em terra. Acho melhor esperá-lo lá embaixo, no cais. Ele é quem decidirá.

— Será que, por acaso, tem alguma bebida aí com você? 

Dei-lhe um pouco de rum e perguntei:

— Por que o deixaram subir a bordo?

— Pensam que sou louco, mas não é verdade. Sinto um pouco de febre, nada mais. Deve ser malária, dengue, febre das selvas ou febre provocada por mordida de ratos. Este país, aliás, tem muitas febres, como os outros iguais a ele. Mas permita que eu me apresente: meu nome é Goodbody. Sou formado em Ciências pela Universidade de Osbaldeston. Isso significa alguma coisa para você? Não? Digamos então que eu era assistente do Professor Yeoward. E agora, está-se lembrando de alguma coisa?

— Yeoward? Professor Yeoward? Ah! Sim, agora me lembro. Não foi ele que se perdeu no meio da selva, em algum lugar acima das cabeceiras do Rio Amer?

— Exatamente! —  gritou  o  homem que dizia chamar-se Goodbody. — Eu estava com ele quando se perdeu.

Fruta! Fruta! Fruta! Fruta!, continuavam a gritar os homens que estavam no porão. Havia uma aparente rivalidade entre o capataz deles e o estivador negro que estava no cais. Os lampiões faziam barulho, as bananas verdes continuavam a ser jogadas de um lado para o outro. E uma espécie de suspiro maléfico chegou até nós, vindo da selva insalubre. Não era o vento nem uma simples brisa, mas algo semelhante à respiração pútrida da febre alta.

Tremendo de ansiedade e também com os calafrios da febre, o Dr. Goodbody tinha que segurar o copo com as duas mãos para  levá-lo aos lábios — e mesmo assim derramou a maior parte do rum. Implorou-me então:

— Pelo amor de Deus, tire-me deste país! Leve-me para Mobile, escondido em sua cabina.

— Não tenho autoridade para fazê-lo. Mas acho que, como cidadão americano, bastará identificar-se e o cônsul providenciará  sua volta para casa.

— Tem razão, mas isso levará muito tempo. O cônsul também pensa que estou louco. E, se não for embora logo, receio perder efetivamente o juízo. Será que não pode ajudar-me? Estou com muito medo.

— Ora, isso é uma tolice. Ninguém poderá fazer-lhe mal algum enquanto estiver por aqui. Afinal, está com medo de quê?

— Dos homens sem ossos!

Havia algo em sua voz que me arrepiou os cabelos da nuca.

— Os homenzinhos pequenos e gordos que não têm ossos! 

Enrolei-o num cobertor, dei-lhe um pouco de quinino e deixei que suasse e tremesse durante algum tempo. Perguntei, depois,   em tom de brincadeira:

— Que homens sem ossos são esses?

Ele respondeu aos arrancos, no delírio da febre, a razão vacilando entre a sanidade e a insanidade.

— Os homens sem ossos? Na verdade, não há razão para temê-los. Eles é que têm medo da gente. Podemos matá-los com um pontapé ou com uma paulada... Eles parecem feitos de gelatina. Não, não se trata realmente de medo... é nojo, é repugnância o que eles inspiram. É algo que domina, deixa a gente paralisado. Acredite ou não, mas vi um jaguar imenso ficar totalmente paralisado, enquanto eles se atiravam às centenas em cima dele e o devoravam vivo. Vi mesmo, não estou mentindo. Talvez seja algum suco que segregam, algum odor que desprendem... Não sei ao certo...

O Dr. Goodbody começou a chorar e acrescentou:

— Que terríveis pesadelos! É horrível pensar na degradação em que uma criatura nobre pode cair por causa da fome. É horrível!

— Não se trata de alguma forma degenerada de vida que encontrou na região além das cabeceiras do Amer? Alguma espécie de antropóide?

— Não, eles são homens mesmo. Acho que agora se está lembrando da expedição etnológica do Professor Yeoward.

— Ela se perdeu.

— Todo mundo, menos eu. Tivemos muito azar. Perdemos duas canoas nas Cachoeiras Anana, metade dos nossos suprimentos e a  maior parte dos instrumentos que levávamos. Perdemos também o Dr. Terry, Jack Lambert e oito dos nossos carregadores nativos.

“Logo depois chegamos ao território Ahu, onde os índios usam dardos venenosos. Mas fizemos amizade com eles e os convencemos a carregar nossos equipamentos para o oeste, através da selva... Todas as descobertas científicas começam com uma suposição, rumores, histórias contadas por comadres. O objetivo da expedição do Professor Yeoward era investigar uma série de histórias, contadas por diversas tribos de índios, que se ajustavam umas às outras. Eram lendas sobre uma raça de deuses que descera do céu numa grande chama quando o mundo ainda era bastante jovem...

“Pouco a pouco, analisando todas as lendas, o Professor Yeoward foi fazendo descobertas e acabou localizando a região de onde se originavam: um lugar inexplorado que nem nome tem, pois os índios se recusam a dar, considerando-o um lugar ruim.

Os calafrios haviam diminuído e a febre baixara. O Dr. Goodbody passou então a falar calmamente, de forma ordenada e racional. Deu uma risada e continuou:

— Não sei por que, mas sempre que tenho febre lembro-me daqueles homens sem ossos como se estivesse vivendo um pesadelo que volta sempre para encher-me de horror...

“Bem, fomos procurar o lugar onde os deuses haviam descido numa chama em plena noite. Os pequenos índios tatuados levaram-nos até a fronteira do território Ahu, puseram então os fardos no chão e pediram seu pagamento. Não houve argumento que os convencesse a continuar a viagem. Disseram que estávamos indo para um lugar muito ruim. O chefe, que em sua juventude fora um grande homem, disse-nos que já estivera lá e desenhou no chão, com um pequeno galho, um corpo oval com quatro pernas, no qual cuspiu antes de apagá-lo com o pé. Aranhas? perguntamos. Caranguejos? O que, então?

“Fomos forçados a deixar com o chefe o que não podíamos carregar, para apanharmos na volta, e prosseguimos sozinhos, Yeoward e eu, atravessando cinqüenta quilômetros da selva mais insalubre do mundo. Andávamos menos de um quilômetro por dia... é um lugar realmente pestilento. Quando este sopro fétido vem da selva, sinto o cheiro da morte e do pânico...

“Mas finalmente conseguimos chegar a uma colina e escalamo-la lentamente. Lá no alto vimos uma coisa maravilhosa. Devia ter sido uma máquina gigantesca. Originalmente devia ter o formato de uma pêra, tendo pelo menos trezentos metros de comprimento.

Na parte mais larga, o diâmetro devia ser de duzentos metros. Não sei de que metal fora feita, porque restavam apenas o arcabouço da fuselagem coberto de terra e os destroços de alguns mecanismos incrivelmente complicados a demonstrar a sua existência real. Não podíamos imaginar de onde viera, mas o impacto de sua aterrissagem abrira um grande vale no meio do platô.

“Era a descoberta do século, pensamos na ocasião. Era a prova irrefutável de que há muito tempo o nosso planeta fora visitado por gente vinda das estrelas. Num excitamento febril, Yeoward e eu fomos examinar aquela fabulosa ruína. Mas tudo o que tocávamos se desfazia, como se fosse apenas pó.

“Finalmente, no terceiro dia, Yeoward encontrou uma placa semicircular de um metal extraordinariamente duro, coberta com diagramas que nos eram familiares. Limpamo-la e durante vinte e quatro horas, quase sem parar para comer e beber, Yeoward estudou-a. E então, na madrugada do quinto dia, ele acordou-me com um grito e disse que aquela placa era um mapa do céu, indicando a rota de Marte à Terra.

“Mostrou-me como aqueles antigos exploradores do espaço haviam vindo de Marte à Terra, com escala na Lua... E terminaram arrebentando-se neste platô inóspito, no meio da selva, comentei. Mas será que naquela ocasião isso aqui era mesmo uma selva? disse Yeoward. Isso pode ter acontecido há cinco milhões de anos!

"Então observei que, para enterrar Roma, foram necessárias apenas algumas centenas de anos. Como esta máquina tinha onseguido ficar exposta à superfície por cinco mil anos ou cinco milhões, conforme ele estava dizendo? Yeoward disse-me que provavelmente não foi assim que aconteceu, explicando que a terra engole as coisas e depois as vomita. Um pequeno terremoto pode engolir uma cidade e uma simples peristalse nas entranhas do planeta pode fazer com que as suas ruínas aflorem novamente à superfície um milhão de anos depois. Isso é que deve ter acontecido com esta máquina de Marte...

“Falei que estava pensando em quem ia lá dentro. Yeoward disse que provavelmente eram criaturas alienígenas que não podiam suportar a vida na Terra e haviam morrido, se é que haviam conseguido escapar ao impacto. Nenhum esqueleto poderia sobreviver por tanto tempo.

“Acendemos uma fogueira e Yeoward foi dormir. Como eu acabara de acordar, fiquei de vigia. Mas para vigiar o quê? Eu não  fazia a menor idéia. Jaguares? Javalis? Cobras? Nenhum desses animais subia ao platô, porque nada havia ali para eles. Mesmo assim, inexplicavelmente, eu estava com medo.

“Aquele lugar possuía o peso dos tempos. Respeitem o que é velho, costumam dizer à gente... Quanto maior a idade, maior é o respeito, você poderia dizer. Mas acho que não se trata de respeito, pelo contrário: é o receio, o medo do tempo e da morte.. . Devo ter cochilado, pois o fogo estava quase acabando, eu tomara todo cuidado para mantê-lo vivo e brilhante, quando vi pela primeira vez os homens sem ossos.

“Observei, na margem do platô, um par de olhos que brilhava com o reflexo da fogueira quase extinta. É um jaguar, pensei, pegando o rifle. Mas não podia ser um jaguar, porque, ao olhar para a esquerda e para a direita, vi que todo o platô estava cercado por pares de olhos brilhantes, como se fosse um colar de opalas. E veio-me então ao nariz um cheiro de não sei o quê.

“O medo também cheira, como qualquer treinador de animais lhe poderá dizer. A doença também cheira... pergunte a qualquer enfermeira. Esses cheiros levam os animais saudáveis a lutarem ou a fugirem. O que eu sentia era uma combinação dos dois, somada ao fedor de vegetação apodrecida. Disparei contra o primeiro par de olhos que vira. Todos os outros olhos desapareceram então e da selva veio o ruído intenso de macacos e pássaros assustados, como se fosse o eco do meu tiro.

“Foi nesse momento que, graças a Deus, a madrugada começou a surgir. Não gostaria de ver à noite a coisa que eu alvejara entre os olhos. Era cinzenta, flexível e gelatinosa. Contudo, externamente, não se diferenciava muito de um ser humano. Tinha olhos e possuía vestígios, ou rudimentos, de cabeça, pescoço e algo parecido com pernas.

“Yeoward disse-me que eu devia controlar-me e superar minha reação infantil examinando a besta. Mas devo dizer que ele ficou longe quando finalmente comecei a examina-la. Como zoólogo da expedição, este era o meu trabalho e tinha que fazê-lo. Perderamos o microscópio e outros instrumentos delicados com as canoas, por isso trabalhei com uma faca e uma pinça. O que encontrei? Praticamente nada: uma espécie de sistema digestivo envolvido por um tecido gelatinoso, um sistema nervoso  rudimentar e um cérebro do tamanho de uma noz. A envergadura daquele ser era de apenas um metro.

"Se estivesse num laboratório, com um assistente ou dois fazendo-me companhia, poderia ter descoberto mais coisas... Mas do jeito que foi, com uma faca de caça e apenas uma pinça, sem os equipamentos necessários, nem ao menos um microscópio, procurando dominar a minha repugnância, fiz o máximo que podia, memorizando o que encontrava. Mas, quando o sol esquentou, a coisa se liqüefez, derreteu-se, até que, por volta de nove horas, só restava uma poça gelatinosa, com dois olhos verdes boiando nela... E esses olhos, posso vê-los agora, explodiram então, com um som seco, fazendo ondular aquela massa putrefata...

“Afastei-me dali, por bastante tempo. Quando voltei, o sol já queimara quase tudo, restando apenas aquela substância viscosa que a gente vê quando uma água-viva morta se evapora numa praia quente. Yeoward estava pálido quando me perguntou o que era aquilo. Disse-lhe que não sabia, que era algo inteiramente novo em minha experiência de vida até aquele momento. Declarei também que, apesar de ser um cientista, com uma mente analítica e obrigatoriamente indiferente, nada no mundo poderia fazer   com que eu tocasse novamente numa coisa daquelas.

“Yeoward disse-me: Você está ficando histérico, Goodbody. Assuma a atitude correta. Sabe muito bem que não estamos aqui  numa viagem de recreio. A ciência, meu caro, a ciência! Não se passa um dia em que um médico não ponha os dedos em coisas mais asquerosas do que essa. Eu disse: Não pense que é assim tão fácil, Professor Yeoward. Já peguei e dissequei animais bem estranhos, mas o que encontramos aqui é por demais repugnante. Devo admitir que estou bastante nervoso. Talvez devêssemos ter trazido um psiquiatra... Por falar nisso, notei que o senhor se mostra muito preocupado em ficar longe de mim depois que toquei nessa estranha criatura. Atirarei em outra com todo prazer, mas se quiser saber mais alguma coisa, vá examiná-la pessoalmente e compreenderá então o que estou sentindo.

“Yeoward disse que não poderia fazê-lo porque estava muito ocupado com a placa de metal. Não havia a menor dúvida, disse-me ele, de que a máquina que encontráramos viera realmente de Marte. Mas era evidente que ele preferia manter a fogueira entre nós, com medo de contaminar-se, depois que eu tocara naquela repugnante massa gelatinosa.

“Yeoward ficou cada vez mais ensimesmado, investigando as ruínas. Fui tratar da minha parte, que era investigar as diversas formas de vida animal que por ali existiam. Não sei o que poderia ter encontrado, se tivesse... não falo em coragem, pois era coisa que não me faltava... se tivesse, repito, alguém para fazer-me companhia. Sozinho, meus nervos não agüentavam.

“Aconteceu de manhã. Eu entrara na selva que nos cercava, procurando dominar o medo que sentia e afastar a sensação de repugnância que me dava vontade de fugir correndo dali e ao mesmo tempo me fazia recear virar as costas. Talvez você não saiba, mas de todos os animais da selva o mais difícil de se vencer é a preguiça. Ela encontra uma árvore, sobe nela e fica pendurada num galho ao qual se agarra firmemente com as suas doze garras fortíssimas. Ela come folhas e é tão resistente que, mesmo à morte, atingida com um tiro no coração, continua pendurada no seu galho. Sua pele é imensamente dura, coberta por cabelos grossos e emaranhados, formando uma crosta impenetrável. Uma pantera ou um jaguar nada conseguem diante da resistência passiva deste animal. Quando encontra uma árvore, só a deixa depois de comerlhe todas as folhas, procurando sempre para dormir um galho mais forte, que possa suportar o seu peso.

"Naquela selva que eu detestava, durante uma das minhas curtas expedições (eram curtas porque eu ia sozinho e sentia medo) parei para observar uma gigantesca preguiça pendurada no galho mais grosso de uma árvore, já quase sem folhas. Ela estava dormindo, tranqüilamente, indiferente a tudo. E então surgiu uma horda daquelas criaturas gelatinosas. Elas subiram na   árvore e foram até o galho onde estava a preguiça.

“Mesmo a preguiça, que geralmente não se assusta diante de nada, ficou apavorada. Tentou fugir, indo para a parte mais fina  do galho, que terminou quebrando. Ela caiu no chão e foi imediatamente coberta por uma massa de criaturas gelatinosas, todas tremendo. Os homens sem ossos, como sei agora que são, não mordem, eles sugam. E, ao fazê-lo, mudam de cor, passando do cinza para o rosa e depois para o marrom.

“Mas eles têm medo de nós. Deve ser algum problema de memória racial. Sentimos aversão por eles e eles por nós. Quando  notaram a minha presença trataram de se afastar, dissolvendo-se nas sombras da densa floresta. Fui dominado pelo horror e voltei correndo para o acampamento, com o rosto sangrando por ter esbarrado em espinhos e extremamente cansado.

“Yeoward estava lancetando o tornozelo. Embaixo do joelho, amarrara um torniquete. Ali perto, havia uma cobra morta. Ele a matara com a placa de metal, mas só depois que fora mordido. Ele me disse:  Que espécie de cobra é esta? Receio que seja venenosa. Estou sentindo uma dormência no rosto e em torno do coração e não consigo mais sentir as mãos. Informei-o então de que acabara de ser mordido por uma jararaca.

“E o pior é que perdemos todos os suprimentos médicos, comentou ele pesaroso. E ainda há tanto trabalho por fazer... Olhe,  meu caro colega, o que quer que me aconteça, peço-lhe encarecidamente que pegue esta placa e volte imediatamente.

“Entregou-me a placa semicircular, feita de um metal desconhecido, como se fosse um legado sagrado. Morreu duas horas depois. Naquela noite o cerco de olhos luminosos apertou-se. Esvaziei meu rifle várias vezes. De madrugada, os homens sem ossos  desapareceram.

“Cobri o corpo de Yeoward com pedras, para que os homens sem ossos não pudessem pegá-lo. Depois, sentindo-me terrivelmente sozinho e assustado, empacotei minhas coisas, peguei o rifle e tentei seguir a mesma trilha pela qual viéramos. Mas acabei  perdendo-me.

“Uma a uma as latas de comida foram acabando e o fardo que eu levava foi ficando mais leve. Depois larguei o rifle e a munição. Larguei até meu facão de mato. Muito tempo depois até a placa semicircular ficou muito pesada para mim. Amarrei-a com cipó numa árvore e continuei em frente.

“Finalmente alcancei o território Ahu, onde os nativos tatuados me abrigaram e me trataram muito bem. As mulheres chegavam a mastigar a comida para mim, antes de alimentar-me, até que recuperei as forças. Dos fardos que deixáramos ali, tirei  apenas aquilo de que precisava, deixando o resto como pagamento pelos guias e pelos homens que iam levar a canoa rio abaixo. E foi assim que saí da selva...

“Por favor, dê-me mais um pouco de rum.

Sua mão agora estava firme e ele bebeu de um trago, os olhos com uma expressão mais tranqüila. Eu então lhe disse:

— Aceitando a sua história como verdadeira, devo presumir que aqueles homens sem ossos eram, na verdade, marcianos? No entanto, não acha um pouco improvável? Será que os invertebrados podem fundir metais duros e...

— Mas quem falou que eles eram marcianos? — gritou o Dr. Goodbody. — Não é nada disso! Os marcianos chegaram aqui e logo se adaptaram às novas condições de vida. Mas é evidente que mudaram e chegaram a um ponto bem baixo, passando então por todo um processo novo, um lento e difícil processo de evolução. O que estou tentando dizer-lhe, seu tolo, é que Yeoward e eu não descobrimos marcianos. Será que não entende, seu idiota? Aquelas criaturas sem ossos eram homens. Nós é que somos os marcianos!
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Gerald Kersh
-13 Histórias que até a mim assustaram - Antologia organizada por Alfred Hitchcock.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

O Diabo e seus parentes

Sabendo-se (como se sabe) que o diabo não é um só, mas legiões (precisamente — segundo cálculo de antigos e conspícuos demonólogos: 1.758.064.176 capetas...) é natural que se julgue haver, entre tantos demônio, certas relações de parentesco, mais ou menos estreitas.

Tomando porém, o diabo ou um diabo só — também será natural supor tenha até pai e mãe, e — se casado — mulher e filhos. Pelo menos, o povo simples assim o entende, referindo até, em contos, provérbios e expressões usuais, esse parentesco danado.

Num livro interessante, escrito por autor argentino que esteve na Bélgica e lhe vasculhou o folcore, El diablo em Bélgica, de Roberto J. Payrú (Buenos Aires, 1953, p.18) — se divulga uma velha crendice daquele país, segundo a qual "cuando llueve y hace sol, al propio tiempo, para nosotros [os argentinos] 'se casa una vioja', mientras que en Bélgica, 'el diablo azota, a su mujer (o a su madre) y casa a su hija'. En el dicho valón:

S é l'oyal ki bat'si mor
é ki maréy si fèy"

O que significa, em vernáculo: É o diabo que bate na mãe e casa a filha.

Já aí temos, portanto, alguns parentes do diabo: a mãe, a mulher e a filha.

Conheço um provérbio português em que se encaixa também o diabo e sua mãe dele. Vejo-o transcrito num dos livros de Camilo, A corja (Lelo, Lisboa, 1943, p.81), no seguinte passo: "— Pois você que cuidava do barão? Quando eu lhe disser que a burra é preta, olhe-me para o cabelo. Eu não lhe dizia que entre o Macário e a Felícia, que viesse o diabo a escolhesse? Isto tudo é uma corja. Tão bom é o diabo como sua mãe..."

Cá no Brasil, também corre outro adágio alusivo à mãe do diabo. Deparo-o no livro de Guimarães Rosa, Corpo de baile (José Olympio, Rio de Janeiro, 1956, v.1, p.184), referindo-se a um lugar perigoso ou nos cafundós do juda: "O lugar era da mãe do demo".

Dessa mãe do diabo — o povo (que sabe coisas do arco da velha) conhece até o nome!

Ora veja o leitor incrédulo este pequeno conto popular português, que retiro da Revista Lusitana (v.22, Lisboa, 1919, p.125), do estudo que faz José Diogo Ribeiro, acerca do folclore da vila de Turquel (Portugal): "Por divertimento o diabo, uma vez, despediu uma frecha contra sua mãe, e indo-lhe logo no encalço, apanhou-a no ar. Mais tarde inventou ele as armas de fogo; e um dia, pegando, numa dessas armas, apontou à mãe, disparou, e correu no propósito de deter a bala. Mas esta, mais veloz, introduzira-se já no alvo, e era uma vez a 'Faísca-Velha'..."

Em nota a esta Faísca-Velha, diz o autor do estudo: "Segundo o povo, é esse o nome da mãe do Diabo, a qual figurava em tempo — dizem — num retábulo da igreja de Alcobaça".

Sabe-se na Bretanha, que a mãe do diabo era mulher duma força extraodinária, tendo construído, numa só noite, uma grande ponte de pedra sobre um rio. A pedreira, de onde ela tirou os blocos para a construção, ainda se denomina: as pedras da mãe do diabo". (Cfr. Le folklore de la Bretagne, de Paul-Yves Sébillot, Paris, 1950, p.137).

Nesse mesmo livro informativo, temos ciência da existência de mais um parente do diabo — sua avó, mulher tão forçuda como a filha (a Faísca-Velha), segundo a tradição da Bretanha, "elle déposa, dans la forêt de Quéneéan, d'enormes rechers apportés aussi dans son tablier" (id. ib.)

Vimos, acima, que o diabo tem mulher e filha. Naturalmente, presume-se deveria ter também sogra. De fato, teve ele uma sogra tão... sogra que não teve dúvida em passá-la de graça ao primeiro que se apresentou ou se ofereceu para comprá-la.

Vamos ao caso.

Na Espanha corre um provérbio, calcado (segundo se presume) numa pequena história. Quando alguém quer, com empenho, descartar-se de alguma coisa que o aborrece ou lhe é molesta, diz, usando expressão proverbial: "Cuanto por la mula queres? — Vuestra es".

Como se vê, antes mesmo que o interpelante ofereça qualquer dinheiro pela compra da mula, já o vendedor diz, num ímpeto, doido para desfazer-se dela: — Vuestra es.

Agora, o conto popular — referido pelo folclorista Francisco Rodrigues Marins, em seu livro 12.600 Refranes más (Madri, 1930, p.70): "Así cuentam vendió el diablo su suegra: enchándola a las barbas al primero que le preguntó cuánto queria por ella".

Avó, mãe, mulher, filha e sogra do diabo — são estes os parentes a que no refere o povo, além daquele rapaz que se casou com a filha dele — genro infeliz cujo nome a tradição não registrou.

Cinco mulheres e um homem — parentes do diabo.

Se o leitor conhece mais algum, diga...
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Fonte: Neves, Guilherme Santos. "O diabo e seus parentes". A Gazeta. Vitória, 09 de março de 1958.

Bruxas (em Santa Catarina)


Quando de um casal nascem sete filhas, sem nenhum menino de permeio, a primeira ou a última será, fatalmente, uma bruxa. Para que isso não venha a acontecer faz-se mister que a mana mais velha seja a madrinha de batismo da mais moça. São apontadas como tal certas mulheres magras, feias, antipáticas.

Dizem que têm pacto com o demônio, lançam maus olhados, acarretam enfermidades com os seus bruxedos, etc. Costumam transformar-se em mariposas e penetrar nas casas pelo buraco das fechaduras.

Têm por hábito chupar o sangue das crianças ou mesmo de pessoas adultas, fazendo-as adormecer profundamente. A marca do chupão deixado na pele, chamado o vulgo de "melancolia". Para que as crianças não batizadas não sejam atacadas pela bruxas, deve-se à noite conservar a luz acesa no quarto. Sabe-se que uma mulher é bruxa, quando dá a apertar a mão canhota esquerda.

Para se descobrir a bruxa que chupa o sangue da criança e ela logo apareça, soca-se, em um pilão a camisa da criança ou da pessoa por ela chupada. Ela logo se apresenta e pede para que não façam aquilo.

Existe também uma oração contra elas; quem a possui consegue descobri-la e prendê-la e também não adormece quando ela à noite penetra em casa. A pessoa assim premunida toma, para prendê-la, de um tacho ou uma medida de alqueire e logo que a bruxa entra em casa, emborca o tacho ou a medida e ela fica incapaz de sair.

Há ainda outro processo de identificar uma bruxa: vira-se a lingueta da fechadura de uma canastra. A bruxa, ao entrar em casa, a primeira coisa que faz é pedir para endireitar a lingueta.
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Fonte: BOITEUX, Lucas A. "Achegas à poranduba catarinense". Em Boletim trimestral da sub-comissão catarinense de folclore

Armadilhas contra Bruxas

1. O pai toma a primeira camisa usada pela criança, criva-a de agulhas, coloca-a dentro de um pilão de chumbar café e, com a mão de pilão, soca-a até que as agulhas penetrem na madeira do pilão — ou seja, no corpo da bruxa, que, não podendo resistir à dor, vai procurar a família, para confessar-se culpada, e perde o encanto.

2. Põe-se uma ceroula do pai, disposta em cruz, sobre a criança. Reza-se o creio-em-deus-padre de trás para diante. Sobre a mesa, ou numa cadeira, coloca-se um pires com água benta, conseguida na igreja, ou comum, apanhada na fonte numa sexta-feira antes do nascer do sol; dentro do pires, um bocado de cera virgem e a chave da porta principal. os pais devem ficar acordados e atentos,no escuro. Quandoa criança chorar (sinal de que a bruxa está a chupar-lhe o sangue), os pais devem, com a cera virgem, tapar o buraco da fechadura. Basta aguardar então o desencanto da bruxa, que se dará exatamente quandoo galo preto cantar.

3. Dentro de um baú de folha-de-flandres acende-se uma vela benta; reza-se o creio-em-deus-padre, de trás para diante, sobre a chama da vela e abaixa-se a tampa do baú de tal modo que o ar possa nele penetrar, mantendo viva a chama. Coma casa às escuras, todas as chaves devem ser retiradas das portas e colocadas em cima do baú. Quando a criança chorar, os pais apanham as chaves de cima do baú, introduzem-nas nos buracos das fechaduras e acendem as luzes. Presa, a bruxa, coagida pela oração e pela vela benta, tenta fechar o baú. E, ao sentar-se em cima dele, perde o encanto.

4. Uma variante da anterior. Num meio alqueire de medir farinha, junto à cama da criança, acende-se uma vela benta, sobre a qual se reza o creio-em-deus-padre de trás para diante. A casa deve ficar às escuras, com todas as chaves sobre o meio alqueire. Quando a criança chorar, os pais apanham as chaves, introduzem-nas nas fechaduras e acendem as luzes. A bruxa, sentindo-se presa, procurará sentar-se sobre o meio alqueire, com o que se desencantará.

5. Põe-se uma tesoura, aberta em cruz, numa mesa próxima ao berço da criança. As chaves das portas devem estar num pires com água benta. A casa estará às escuras. Quando a criança chorar, os pais introduzem as chaves nas fechaduras e acendem as luzes. A bruxa, que tem horror a tesouras abertas, perde o encanto.

6. Cozem-se folhas de guiné, cordão-de-frade, limoeiro e arruda, nove dentes de alho e um pouco de mostarda. Com esse cozimento dá-se um banho na criança. Todos os irmãos e todas as pessoas da família, residentes na casa, devem lavar os pés na mesma água, até chegar a vez do pai, que reza o creio-em-deus-padre, de trás para diante, sobre a vasilha. Fecha-se então a porta, deixando-se a chave em falso, quase a cair, pela parte de dentro. Põe-se a vasilha com a água do cozimento abaixo da fechadura. Para penetrar na casa a bruxa deve empurrar a chave, que cairá dentro da vasilha, fazendo com que ela se desencante. Esta armadilha deve ser preparada às sextas-feiras, à hora da ave-maria.

Se estas armadilhas, mais simples, não dão resultado, — há bruxas mais sabidas e mais experientes do que as outras, que não se deixam apanhar com facilidade, — preparam-se outras, mais fortes e mais terríveis, não apenas para desmascarar, mas também para revidar, de algum modo, os poderes maléficos das bruxas, como as duas seguintes:

7. Num prato com água, perto da cama da criança, põem-se nove dentes de alho, numa sexta-feira, à hora da ave-maria, rezando-se o creio-em-deus-padre, de trás para diante. Uma faca bem afiada deve estar sob a cama do doente. Retiram-se todas as chaves das portas, para que a bruxa possa entrar. Quando a criança chorar, dá-se-lhe uma colherinha da água que está no prato e corta-se, com a faca, um pedacinho da ponta de uma fita vermelha, comprida, que surgirá descendo da cumeeira da casa, em direção à boca da criança. Guarda-se o pedaço da fita, sem nada dizer a ninguém. Uma história corrente, relativa a esta armadilha, conta que o pedacinho de fita vermelha se transformou, no bolso do pai, numa orelha humana — a orelha da bruxa, que deste modo pôde ser identificada.

8. À hora da ave-maria, numa sexta-feira, põe-se, numa mesa próxima à cama da criança, um copo de cachaça sobre uma carta (usada) de baralho; com um cigarro de palha, de fumo-de-corda forte, e uma faca afiada e pontiaguda, faz-se uma cruz sobre a mesa. Reza-se o creio-em-deus-padre, de trás para diante. Quando a criança chorar, retira-se o copo de cima da carta de baralho, apanha-se a faca e com ela se golpeia ou decepa qualquer parte de um bicho que aparecerá nas bordas do copo ou em cima do cigarro ou da carta de baralho. Uma estória referente a esta armadilha conta que o pai, tendo cortado a pata de uma rã que se equilibrava na borda do copo, viu-a transformada em dedos humanos — os dedos da bruxa que chupava o sangue do seu filho.

Nestes dois últimos tipos de armadilha, no dia seguinte corre a notícia de que uma mulher da vizinhança foi acidentada. O pai, que deve manter o maior sigilo, terá de procurá-la, para que a armadilha dê o esperado resultado — a transformação mágia, em parte do corpo, das coisas que conseguiu arrancar à bruxa, quando esta cumpria seu triste destino.

Sempre que preparam uma armadilha, os pais devem estar prevenidos com um rabo-de-tatu, conservado no fumeiro da cozinha, para, quando a bruxa reassumir a forma humana, aplicar-lhe uma boa surra, até fazer sangue. Para reforçar a quebra do encanto, as feridas da bruxa devem ser lavadas em salmoura — sal, pimenta e alho ou sal, cachaça e vinagre.
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FONTE: Cascais, Franklin. "As bruxas da ilha de Santa Catarina". Revista Brasileira de Folclore, ano 3, nº 6, maio/agosto de 1963, p.125-130)

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O carro do enterro

Era num sábado. Estava em festas o elegante e suntuoso palacete do visconde, a mais rica habitação que havia no Rio Comprido.

Casava-se a formosa Matilde, filha predileta do dono da casa, e ele festejava esse acontecimento o mais ruidosamente possível.

O palácio achava-se todo ornado por dentro e fora; uma esplêndida banda de música executada no saguão trechos escolhidos das óperas mais em moda, e a criadagem vestida com suas finas librés, circulava de um lado para outro, dispondo os últimos preparativos da ornamentação.

O cortejo havia partido às duas horas da tarde para a igreja, e na rua apinhava uma multidão curiosa de assistir à chegada dos noivos, ao regressarem da cerimônia nupcial.

* * *

Enquanto assim se dispunham as coisas para a folgança no suntuoso palacete do visconde, uma cena muito diferente se desenrolava em uma casa de mais que modesta aparência da mesma rua.

Em cima de uma mesa que havia na sala dessa casa, que era então um pardieiro, quase em ruínas, via-se, num caixão dos mais baratos que a Santa Casa fabrica, o corpo de uma moça amortalhada. Duas velas alumiavam-na, e em redor permaneciam as pessoas da família e alguns vizinhos, todos gente pobre.

Pai e mãe e irmãos dessa criatura morta desfaziam-se em amargo pranto e sentiam a alma rasgar-se pela mais fina das dores, nesse momento em que se ia fechar o caixão e levá-lo a um carro fúnebre parado à porta.

Pobre gente! Essa de quem iam separar-se para sempre era a sua boa Lúcia, filha e irmã mais velha, que todos estimavam tanto! Pobre Lúcia! Ela era o braço direito daquela família. Do seu trabalho vinham os minguados mil réis com que se pagava à venda, depois que o pai ficara aleijado e a mãe entisicara. A boa Lúcia sempre alegre, sempre resignada! Como não deviam sofrer os pobrezinhos, naquele terrível transe por que passavam.


* * *

O pai de Lúcia era um rude operário de obra grossa, um carpinteiro e tivera a infelicidade de quebrar uma perna, caindo de um andaime em que trabalhava.

Essa desventura foi o início de todas as desgraças que assaltaram a família. Conduzido para a Santa Casa, lá esteve quatro longos meses, entre a vida e a morte; e a mulher e os filhos começaram a curtir duras necessidades, pois o pai nada ganhava.

O taverneiro já fechava a cara quando iam às compras, e por mais que a mulher do carpinteiro e Lúcia, sua filha, se matassem numa tina a lavar roupa, o dinheiro não chegava para coisa alguma.

A mãe de Lúcia era uma mulher franzina e muito disposta para moléstias do peito. Com o trabalho excessivo que fazia, logo começou a deitar escarros de sangue pela boca, e dentro em breve nada mais pôde fazer. O carpinteiro tivera alta do hospital, mas não podia ainda trabalhar. Assim a pobre família achou-se na mais negra miséria.

No entanto Lúcia trabalhava cada vez mais. De dia não se arredava da tina de lavar roupa, de noite costurava até o galo cantar. Não pôde resistir por mais tempo à semelhante canseira, e também caiu enferma.

Uma circunstância veio ainda agravar o estado dos infelizes.

A casa em que Lúcia morava pertencia ao mesmo visconde a que já nos referimos, e ele ordenara ao carpinteiro que se mudasse, já que não podia pagar os aluguéis. O visconde, apesar de opulento, era inflexível em questões de dinheiro. De nada valeram os rogos do pobre carpinteiro que a ele se dirigiu, arrastando as muletas e com as lágrimas nos olhos. O visconde manteve a sua ordem.

"Se fosse a ouvir a choradeira de todos", dizia o titular, "bem depressa estaria reduzido a pedir esmola. Não era ele quem fazia as desgraças: era Deus. Pedissem-lhe contas".

O carpinteiro teve que desocupar a casa e fora meter-se no pardieiro de que já falamos e que por piedade lhe cedera um outro carpinteiro, seu amigo e compadre.

Era uma casa de todo imprópria para habitação humana: suja, úmida, acanhada.

Nela os padecimentos de Lúcia foram a mais, e no fim de quinze dias a pobre rapariga entregava a alma a Deus.

* * *

No entanto o cortejo nupcial tinha regressado da igreja, e de uma extensa fila de carros apearam os noivos, radiantes de felicidade, e bem assim a multidão dos convidados, homens e mulheres, abafados nas suas toaletes de uma rigorosa etiqueta.

Logo que os carros despejavam a luxuosa carga que traziam, foram manobrados pelos cocheiros, muito tesos nas suas boléias, soberbos nas suas sobrecasacas de casimira cor de camurça e nas suas finas botas de canhão, e entraram na porta-cocheira, aberta de par em par.

Noivos e convidados começaram a subir os degraus do vestíbulo. A noiva ia de olhos baixos, deliciosa, no seu vestido de seda branca, linda como uma tentação, debaixo de uma grinalda de flores de laranjeira. Da fisionomia do noivo, um guapo mancebo de vinte e poucos anos, transpirava a maior ventura, parecendo tonto pela felicidade.

Quando porém já tinham todos subido os três degraus do vestíbulo, o carro de enterro que transportava a pobre Lúcia ao cemitério chegava bem defronte ao palacete do visconde.

Era um carro dos de ínfima classe, todo preto e de cortinas esmolambadas, guiado por um cocheiro negro, de cartola de oleado amarrotada, libré sebosa, tendo a fisionomia aguardentada, e que, encarrapitado na boléia, chupava com a maior indiferença deste mundo em cigarro de papel.

Aquela mísera seguia para o cemitério sem o menor acompanhamento.

O carro vinha descendo a rua tranqüilamente, ao trote cansado de dois cavalos magros, ossudos. Quando, porém, chegou bem defronte ao palacete, os cavalos que pareciam incapazes de qualquer resistência, encabritaram-se e recusaram avançar. O cocheiro, que não esperava essa revolta dos pacíficos rocins, quase foi levado ao chão; e exasperado, vibrou o pinguelim no dorso das magras cavalgaduras, proferindo as mais cruas obscenidades.

Noivos e convidados, todos voltaram o rosto para ver o que se passava na rua. Os cavalos do coche fúnebre persistiram em não avançar, e o cocheiro, levado ao maior auge da exasperação, desandava os bichos com cabo do pinguelim.

Aquilo parecia mandado pelo diabo. Os cavalos pinoteavam, escouceavam, o cocheiro praguejavam como um possesso. Afinal dando os animais um violento arranco, a poder de pancadas, embicaram o coche para o lado do palacete, e nele o esbarraram. A lança do carro entrou pelo gradil do jardim que adornava a frente do edifício, e ali ficou a traquitana.

Foi preciso que a criadagem do visconde desembaraçasse o carro e auxiliasse o cocheiro a conduzi-lo.

Esse fato impressionou desagradavelmente a todos que faziam parte do cortejo nupcial, e uma senhora já idosa que entre eles se achava, exclamou aterrorizada:

- "Um carro de enterro parar logo aqui, e isso em dia de casamento!... É mau agouro!..."



* * *

Sem que ninguém pudesse explicar a razão, o festim realizado em casa do visconde correu frio.

Os próprios noivos sentiam-se tristes. O fato de ter parado um carro de enterro à porta do palacete, e naquele dia, roubava a alegria a todos. Como que se adivinhava uma grande desgraça.

E esse mal-estar aumentou quando à meia-noite circulou na sala a notícia de que Matilde, a formosa noiva, tinha repentinamente adoecido.

Logo cessaram as danças. As bandas de música calaram-se, e os convidados foram pouco a pouco retirando-se. Daí a meia hora só se achavam no palacete os parentes e amigos mais íntimos.

Matilde estava realmente doente. Subitamente acometera-a uma violenta dor de cabeça, uma aflição, e dentro de uma hora ardia em febre intensa.

O noivo ficou alucinado. O visconde, já terrivelmente impressionado com o caso do coche fúnebre, despachou criados em todas as direções para chamar médicos, que acudiram pressurosos.

No entanto por mais esforços que empregassem os facultativos, não puderam aniquilar a enfermidade que acometera a inditosa moça. Consumia-se a olhos vistos. No dia seguinte já parecia um cadáver, tão pálida e abatida se achava. No terceiro dia não conhecia mais ninguém. No quarto havia perdido a fala. E na manhã do quinto dia, quando os pássaros começaram a trilhar sobre o arvoredo, cujas ramagens adornavam a janela do seu aposento, a pobre moça exalando um suspiro despediu-se da vida.

Bem dissera a respeitável matrona que fizera parte do cortejo nupcial. O carro fúnebre esbarrando no gradil do palacete fora um mau agouro.

O cadáver de Lúcia, a pobre filha do carpinteiro aleijado, viera chamar para a paz do sepulcro a filha do potentado, do opulento, que tirara um teto a seu pai, em momento de aflição e pobreza. Deus assim o quis. Tanto houve luto no casebre esburacado como no rico solar. Era preciso que o desumano titular também sentisse rasgar-lhe a alma o espinho da dor.
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por Viriato Padilha

Fonte: Jangada Brasil - (Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956)

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Lenda da Dama Pé-de-Cabra

A Lenda da Dama do Pé-de-Cabra é uma conhecida lenda portuguesa e foi compilada por Alexandre Herculano no livro Lendas e Narrativas. Existe ainda outra versão, escrita em inglês pelo Visconde de Figanière no seu poema em cinco cantos Elva: a story of the dark ages (Londres, 1878).

D. Diogo Lopes, nobre senhor da Biscaia, caçava nos seus domínios, quando foi surpreendido por uma linda mulher que cantava. Ofereceu-lhe o seu coração, as suas terras e os seus vassalos se com ele se casasse. A dama impôs-lhe como única condição a de ele nunca mais se benzer.

Mais tarde, no seu castelo, D. Diogo apercebeu-se que a dama tinha um pé forcado como o de uma cabra. Viveram muitos anos felizes e tiveram dois filhos: Inigo Guerra e Dona Sol.

Um dia, depois de uma boa caçada, D. Diogo premiou o seu grande alão com um grande osso, mas a podenga preta de sua mulher matou o cão para se apoderar do pedaço de javali. Surpreendido com tal violência, D. Diogo benzeu-se. A Dama de Pé de Cabra deu um grito e começou a elevar-se no ar, com a sua filha Dona Sol, saindo ambas por uma janela para nunca mais serem vistas.

A partir daí, foi confessar e o pajem disse que estava excomungado, sua penitencia foi guerrear os mouros por tantos anos quanto vivera em pecado, tendo ficado cativo em Toledo. Sem saber como resgatar o pai, D. Inigo resolveu procurar a mãe que se tornara, segundo uns, numa fada, segundo outros, numa alma penada.

A Dama de Pé de Cabra decidiu ajudar o filho, dando-lhe um onagro, uma espécie de cavalo selvagem, que o transportou a Toledo. Aí, o onagro abriu a porta da cela com um coice e pai e filho cavalgaram em fuga, mas, no caminho, encontraram um cruzeiro de pedra que fez o animal estacar. A voz da Dama de Pé de Cabra instruiu o onagro para evitar a cruz. Ao ouvir aquela voz, depois de tantos anos e sem saber da aliança do filho com a mãe, D. Diogo benzeu-se, o que fez com que o onagro os cuspisse da cela, a terra tremesse e abrisse, deixando ver o fogo do Inferno, que engoliu o animal. Com o susto, pai e filho desmaiaram.

D. Diogo, nos poucos anos que ainda viveu, ia todos os dias à missa e todas as semanas se confessava. D. Inigo nunca mais entrou numa igreja e crê-se que tinha um pacto com o Diabo, pois, a partir de então, não havia batalha que não vencesse.

Outra lenda

Na atual região da beira alta, mais concretamente na aldeia histórica de Marialva vivia há muitos séculos atrás uma donzela muito formosa. Certo dia um nobre encantado com a sua beleza e querendo desposá-la encomendou os serviços de um sapateiro pedindo-lhe que fizesse uns sapatos para a donzela em questão.

Como se tratava de uma surpresa o sapateiro teria de arranjar uma maneira de conseguir fazer um molde dos pés da donzela para acertar no tamanho do pé, certo dia e sem que esta desse por isso espalhou farinha aos pés da cama da donzela para que quando esta se levantasse, deixasse a marca na farinha espalhada no chão, e assim foi. O sapateiro percebeu pela forma deixada no chão que a donzela tinha "pés de cabra", mas mesmo assim fez uns sapatos adequados.

Quando o nobre entrega o presente à donzela, esta com o desgosto de saber que já todos sabiam do seu defeito se atira da torre do castelo. A donzela chamava-se Maria Alva e ainda hoje, mesmo em ruínas podemos ver a torre do castelo.

Fonte: Wikipédia

A dama pé-de-cabra

Certo dia, D. Diogo Lopez saiu para uma caçada e a meio do seu caminho, depara-se com uma mulher muito formosa, que cantava lindamente.

- Quem sois vós, senhora? Quem sois vós que logo me cativastes? - pergunta D. Diogo Lopez.

Ela sorriu e respondeu:

- Sou uma dama tão nobre como tu.

D. Diogo Lopez, rapidamente se apaixonou perdidamente por ela e disse-lhe:

- Senhora, se casares comigo ofereço-te as minhas terras e os meus castelos.

- Guarda as tuas terras, que precisas delas para cavalgar! - respondeu ela.

- Que posso oferecer-te então para que sejas minha?

Ela não disse nenhuma palavra. De repente, estremeceu:

- A única coisa que me interessa não ma podes dar porque foi um legado da tua mãe.

- E se eu te amar mais do que à minha própria mãe?

Esta lhe disse:

- Nesse caso tens de jurar que não tornas a fazer o sinal da cruz que ela te ensinou em pequeno.

Este estranhou o pedido, mas estava tão apaixonado por ela, que exclamou:

- Seja como queres!

Dito isto D. Diogo levou-a para o castelo. Durante longos anos tudo correu bem, embora D. Diogo tenha reparado que a mulher tinha pés de cabra.

Tiveram dois filhos, D. Inigo e D.ª Sol.

Certa noite ao jantar, devido à morte de um dos cães de caça de D. Diogo provocada pela cadela da sua esposa, D. Diogo esqueceu-se do juramento e benzeu-se...

Foi o suficiente, para a sua esposa se desmanchar em urros pavorosos, ficando a sua pele negra. A mulher parecia um animal horrendo, de boca torta e olhos revirados, erguia-se no ar levando debaixo do seu braço a sua filha D.ª Sol.

D. Diogo estava aterrorizado...

- A minha mulher é o diabo! - exclamou.

Dizendo isto, a mulher soltou o último grunhido e desapareceu por uma brecha junto ao teto.

Desde esse dia nunca mais ninguém no castelo, tornou a pôr a vista em cima da mãe, da filha e da cadela. Desapareceram por artes mágicas.

D. Diogo desolado partiu para a guerra.

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Lenda de Portugal

O ladrão de carcaças

Considerado um dos fundadores da ciência da Anatomia humana, o belga André Vesálio (1514-1564) já nasceu próximo a cadáveres. Da casa de seus pais, na entrada da cidade de Bruxelas, enxergava-se o local onde criminosos executados tinham seus corpos pendurados para que as aves de rapina os devorassem até os ossos.

Seu nome original, Andries van Wesel, foi posteriormente latinizado para Andreas Vesalius. Nasceu em Bruxelas, filho de um boticário. Brilhante aluno de Medicina, com apenas 23 anos Vesálio ocupou a cadeira de Cirurgia Anatômica da Universidade de Pádua, na Itália, a melhor escola médica da época.

Seu grande mérito foi revelar o funcionamento do corpo humano a partir da dissecação de cadáveres, registrando em belos desenhos tudo o que descobria. Para tanto, aproveitava todas as oportunidades, legais ou ilegais, a fim de se abastecer de espécimes. "O meu desejo de possuir aqueles ossos era tão grande que, no meio da noite, sozinho e entre todos aqueles cadáveres, não hesitava em tirar o que desejava", chegou a confessar.

Em 1537 é nomeado professor da universidade italiana e dá aulas também em Pisa e Bolonha. Em 1544 torna-se médico particular de Carlos V e, em 1559, de Felipe II, ambos reis da Espanha. Publica em 1538, em Veneza, as Seis Pranchas Anatômicas, nas quais antecipa a moderna nomenclatura de anatomia. Sete Livros sobre a Estrutura do Corpo Humano, sua obra mais significativa e publicada em 1543, descreve os sistemas muscular e ósseo e contesta os ensinamentos dos médicos antigos.

É condenado à morte pela Inquisição em 1561, por haver dissecado um corpo humano. Felipe II consegue comutar a pena para uma peregrinação a Jerusalém. Morre na volta, quando o navio em que viaja naufraga na ilha de Zante, na costa da Grécia.

Fontes: Superinteressante; Algo Sobre.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

A Mirra

A mirra é um corpo seco de homem que foi amaldiçoado. A terra não come a carne e esta vai ressecando em cima dos ossos.

Um rapaz muito vivo e engraçado entrou num cemitério com seus companheiros e ao sair viu uma mirra. Lembrou-se de dizer, por chiste:

— Está magra de fome. Venha dai cear comigo!

— Irei — disse a mirra, com uma voz fanhosa, toda passando pelo nariz. O rapaz ficou assombrado e foi dali lançar-se aos pés do vigário a quem tudo contou.

— Tens que cumprir o convite. Depois da ceia te convidará e aceitarás sem sinal de medo. Volta cá que te darei outro conselho.

O rapaz preparou a ceia e a mirra foi-lhe bater à porta à meia noite, sentando-se á mesa e comendo até não mais poder. Depois falou para o dono da casa:

— O bem que me recebeste em tua casa, devo retribuir de qualquer modo. Amanhã esperar-te-ei onde me convidaste.

E se foi embora. O rapaz não dormiu e pela manhã estava na casa do vigário que lhe deu um rosário indulgenciado, com o perdão da hora-da–morte e emprestou-lhe a capa com que saía.

O rapaz foi para o cemitério e encontrou a mirra.

— Está bem. Deixa a capa aqui e o rosário de que não tens necessidade lá dentro.

— Não, que está frio e do rosário não me separo!

A mirra teimou e o rapaz não cedeu. Estiveram debatendo esse ponto, quando a mirra declarou:

— Assim não te posso levar para cear comigo Não posso ficar junto da capa dos ministros de Deus e das armas de Nossa Senhora. Vai-te, e não tornes a brincar com os que não vivem…

O rapaz pôs-se fora o mais depressa que pode e nunca mais disse graças com os mortos.

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Fonte: Os melhores contos Populares de Portugal. Organização: Câmara Cascudo. Dois Mundos Editora, 1944.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A Caveira

Onze horas da noite.

Não há luar e a velha cidade de Bartolomeu Bueno é na época iluminada a lampeões de querosene, colocados sobre postes de madeira lavrada, distantes quarenta, cinquenta metros uns dos outros.

Na última casa da rua da Abadia jogam o trinta-e-um, na sala de frente, em torno de mesa redonda, alumiada por castiçais com velas de sebo.

Circundam a mesa o Brito Queirós, o Seixas, o Emílio Bandeira, Pinheiro de Paiva, José Soares e o Seis-e-Meia, apelido por que era conhecido o Antônio da Luz.

Àquela hora uma partida de sensação prende os olhares dos jogadores às mãos do "pé’, o Seixas, que distribui as cartas.

Há um empate carregado e estão sobre a mesa quatrocentos e tantos mil réis. Jogam.

Uns pedem cartas, empalidecem e "passam"; outros pedem-nas também, "filam-nas" e "ficam". Seixas, o último a pedi-las, conta os pontos e "chama" o pessoal. Trinta pontos! Os outros ficaram de 27, 28 e 29; ganha o Seixas.

— Arre! diabo! — exclama, — saí de um buraco com um saldo de duzentos e cinquenta mil réis. Dou metade àquele que tiver a coragem de ir agora ao Cemitério e me trazer uma caveira.

— "Pronto" grita o Bandeira, "bata o cobre que a caveira vem já".

— "Dou-te mais cinquenta", diz Seis-e-Meia.

— "E mais cinquenta meus", acode Pinheiro de Paiva.

— "Pois é já’. "Não saiam daqui que não demoro quinze minutos", retruca o Bandeira, erguendo-se da mesa. Tomou o chapéu e partiu. Mas antes de êle sair, rumou para o lado do Cemitério o Zé Mamão que, do lado de fora, encostado à janela, ouvira toda a conversação.

* * *

Meia-noite. Emílio Bandeira levanta o aldravãe da porta do cemitério de São Miguel e caminha para o monte de caveiras que está ao pé do cruzeiro grande da Metrópole dos mortos de Goiás; agarra uma e, quando se dispõe a partir, rouquenha voz, que parece vir de vetusto mausoléu, diz: "Larga, essa é minha!"

Bandeira sente que se lhe eriçam os cabelos ao ponto de derribar o chapéu; um frio que nunca havia experimentado se avoluma em sua coluna vertebral. Para um momento, indeciso, deixa a caveira no monte e agarra outra. "Larga, essa é minha!" diz outra voz fanhosamente.

Bandeira já não está em si, lança mão de outra… "Larga, essa é minha…"

Transido de medo, ainda raciocina: "se eu for procurar caveira sem dono, estou arranjado; até as mais antigas devem ter os seus proprietários; portanto, o que tenho a fazer é isto — pega na que está mais à mão e dispara…

E a voz fanhosa também dispara a repetir: Larga, essa é minha! Larga essa é minha!…

O nosso herói passa o portão da necrópole e vem pela estrada a baixo como uma bala.

"Larga, essa é minha; larga, essa é minha!…"

A jogatina continua na casa da rua da Abadia. Seixas acaba de ganhar mais uma bolada; mete no bolso o dinheiro, não sem tirar antes uma cédula de cem mil réis, que deixa" sobre a mesa.

"Esta", diz, "será do Bandeira, se entrar aqui com a caveira".

Pinheiro de Paiva e Seis-e-Meia deixam também junto ao dinheiro a quantia que prometeram dar.

Brito Queirós dá cartas, e outra jogada vai começar.

Nisto a porta da sala se abre com estalo.

Como um furacão, entra Emílio Bandeira, que atira sobre a mesa do jogo uma caveira e exclama: "Cá está a caveira e o dono ai vem atrás".

E mete-se para o interior da casa a derribar tudo o que lhe impede a disparada. Os outros deixam a mesa, dinheiro, baralho e tratam de acompanhá-lo casa a dentro.

Zé Mamão aparece à porta; não vê na sala nenhuma pessoa; enfia num dos bolsos a dinheirama que está sobre a mesa, acende um cigarro na vela de sebo mais próxima e sai.

E desce a rua da Abadia a assobiar a Palomita
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Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Ed. Literat. 1962

O Horla

8 de maio. Que dia lindo! Passei a manhã toda deitado na relva, na frente de casa, sob o enorme plátano que a encobre toda. Gosto desta região, de viver aqui, pois aqui estão velhas recordações, aquelas raízes profundas e delicadas que prendem o homem ao solo onde seus antepassados nasceram e morreram, que o ligam às idéias e costumes do lugar e também, à comida às expressões locais, ao cheiro da terra do próprio ambiente.

Adoro a casa onde cresci. Das janelas, vejo o Sena, correndo ao lado do jardim, no outro lado da estrada, quase atravessando minhas terras, o grandioso e extenso Sena, que vai a Rouen e a Havre, apinhado de barcos que passam para lá e para cá.

Lá embaixo, a esquerda, está a grande cidade de Rouen, com seus telhados azuis e pontiagudas torres góticas. Estas últimas são incontáveis, largas ou estreitas, dominadas pela espiral da catedral e cheias de sinos que tocam no ar azul de belas manhãs, enviando até minha casa seu doce e distante tinido, canção de metal que a brisa impele em minha direção, ora forte, ora débil, conforme a intensidade do vento.Como a manhã estava agradável!Lá pelas onze horas, uma longa fila de barcos. puxados por um rebocador do tamanho de uma mosca, que mal conseguia resfolegar enquanto soltava espessa fumaça, passou em frente a meu portão.Depois de duas escunas inglesas. com a bandeira vermelha ondulando ao vento, passou um magnífico barco brasileiro de três mastros, todo branco, muito limpo e lustroso. Saudei-o, sem saber bem por quê, a não ser que a visão do navio deu-me grande prazer.

12 de maio. Tenho estado um pouco febril nos últimos dias e sinto-me doente, ou antes, desalentado.De onde vêm essas misteriosas influências que transformam a alegria em desânimo e a autoconfiança em acanhamento? Poder-se-ia quase dizer que o ar, o ar invisível, está cheio de forças incompreensíveis, cuja presença misteriosa temos de suportar. Acordo com a melhor disposição, sentindo vontade de cantar. Por quê? Desço até a beira da água e, de repente, depois de andar um pouco, volto para casa infeliz, como se uma desgraça estivesse esperando por mim. Por quê?Seria um calafrio que me passou pela pele e abalou meus nervos, deixando-me desanimado? Seria a forma das nuvens, a cor do céu ou dos objetos ao redor de mim tão inconstante, que perturbou meus pensamentos, quando passaram diante de meus olhos?Quem sabe? Tudo o que nos cerca, tudo o que vemos sem olhar, tudo o que tocamos sem querer, tudo o que manejamos sem sentir, tudo o que encontramos sem ver claramente, tem rápida, surpreendente e inexplicável influência sobre nós e nossos sentidos e, através destes, em nossas idéias e até em nosso coração.Como esse mistério do Invisível é profundo! Não podemos compreendê-lo com nossos sentidos miseráveis, olhos incapazes de perceber o que for muito grande ou muito pequeno, esteja muito perto ou muito longe: nem os habitantes de uma estrela, nem os de uma gota de água. Nem com ouvidos que nos enganam, pois transmitem-nos as vibrações do ar em notas sonoras. São fadas que realizam o milagre de mudar essas vibrações em sons e, por meio dessa metamorfose, fazem surgir a música que transforma o silencioso movimento da natureza… nem com o sentido do olfato, menos aguçado que o de um cão… nem com o sentido do paladar, que mal percebe a idade do vinho!Como seria bom se tivéssemos outros órgãos que realizassem outros milagres a nosso favor! Quantas coisas novas poderíamos descobrir a nossa volta!

16 de maio. Positivamente, estou doente! E estava tão bem no mês passado! Estou com febre, horrivelmente febril, ou melhor, em um estado de debilitação febril, que faz a alma sofrer tanto quanto o corpo. Tenho, continuamente, a horrível sensação de perigo iminente, o receio de alguma futura desgraça ou da morte próxima. Pressentimento que é, sem dúvida, o acesso de uma doença ainda desconhecida, que germina na carne e no sangue.

17 de maio. Acabo de consultar o médico, pois não conseguia mais dormir. Ele disse que o pulso estava rápido, os olhos, dilatados, os nervos, à flor da pele, mas que não encontrou sintomas alarmantes. Devo tomar algumas duchas e brometo de potássio.

25 de maio. Nenhuma mudança! Meu estado é realmente estranho. Quando a noite se aproxima, sou invadido por uma incompreensível sensação de intranqüilidade, como se a noite escondesse alguma catástrofe ameaçadora. Janto às pressas e então procuro ler, mas não compreendo as palavras e mal distingo as letras. Caminho de um lado para outro da sala, acabrunhado por uma sensação confusa de medo irresistível, medo do sono e medo da cama.Lá pelas dez horas subo ao quarto. Assim que entro dou duas voltas à chave e ponho a tranca na porta. Tenho medo… de quê? Até há pouco, não tinha medo de nada… Abro os armários e olho embaixo da cama. Escuto… o quê? Não é estranho que uma simples sensação de mal-estar, a má circulação, talvez a irritação de um filamento nervoso, uma ligeira congestão, um pequeno distúrbio no imperfeito e delicado funcionamento de nosso mecanismo vivo, possa transformar o mais despreocupado dos homens em melancólico e em covarde o mais valente?Vou para a cama e espero o sono como um homem que espera o carrasco. Com medo, espero sua chegada, o coração bate e as pernas tremem e todo o corpo tem calafrios debaixo do calor das cobertas, até que adormeço de repente, como alguém que mergulhasse em uma poça de água estagnada a fim de afogar-se. Não o sinto vir como antigamente, este traiçoeiro sono que está perto de mim, vigiando-me e que vai agarrar-me pela cabeça, fechar meus olhos e aniquilar-me.Durmo… bastante tempo… talvez duas ou três horas… Então um sonho… não… um pesadelo apossa-se de mim. Sinto que estou na cama, dormindo… Sinto e sei disso… e sinto também que alguém se aproxima, olha-me, toca-me, sobe em minha cama, ajoelha-se sobre meu peito, toma meu pescoço entre as mãos e o aperta… aperta com toda a força a fim de estrangular-me.Luto, dominado por aquela terrível sensação de impotência que nos paralisa durante os sonhos. Tento gritar… mas não consigo. Quero mover-me… não consigo. Faço os mais violentos esforços, respiro fundo, para tentar virar-me e derrubar essa criatura que está me esmagando, me sufocando… não consigo!E, então, acordo de repente, tremendo e banhado em suor. Acendo uma vela e descubro que estou sozinho. Depois dessa crise, que acontece todas as noites, finalmente caio no sono e durmo em paz até de manhã.

2 de junho. Meu estado de saúde piorou. O que está acontecendo comigo? O brometo não está adiantando de nada e as duchas não produzem resultado. As vezes, a fim de ficar bem cansado, embora já esteja bastante fatigado, vou dar um passeio na floresta de Roumare. Costumava pensar que o ar fresco, leve e suave, impregnado do cheiro de ervas e folhas, instilaria sangue novo em minhas veias e daria nova energia a meu coração. Enveredava por uma larga estrada de caça e então seguia na direção de La Bouille, por uma estreita trilha entre duas fileiras de árvores de uma altura descomunal, que formavam um espesso teto de um verde quase negro entre o céu e eu.Um repentino arrepio percorreu-me a espinha, não de frio, mas um estranho arrepio de agonia. Apressei o passo, apreensivo por estar sozinho na floresta, estupidamente amedrontado sem razão, por causa da completa solidão. De repente pareceu-me estar sendo seguido, que havia alguém nos meus calcanhares, perto, bem perto de mim, próximo o bastante para tocar-me.Voltei-me precipitadamente, mas estava só. Nada vi atrás de mim, exceto a larga trilha reta, vazia, cercada de altas árvores, horrivelmente vazia; à minha frente também se estendia a perder de vista, parecendo sempre a mesma, terrível.Fechei os olhos. Por quê? Comecei a rodar como pião, bem depressa. Quase caí e abri os olhos: as árvores dançavam ao meu redor e a terra girava. Fui obrigado a sentar-me. E, então, que idéia estranha! Não sabia de mais nada. Saí para a direita e voltei à avenida que me conduzira ao centro da floresta.

2 de junho. Passei uma noite horrível. Vou partir por algumas semanas, pois sem dúvida uma viagem me fará bem.

2 de julho. Voltei, completamente curado e ainda fiz ótima viagem. Fui ao Mont-Saint-Michel, que ainda não conhecia.Que vista, quando se chega a Avranches como eu, quase no fim do dia! A cidade está sobre uma colina e fui conduzido ao jardim público, nos limites da cidade. Dei um grito de assombro! Uma enorme baía estendia-se diante de mim, até onde os olhos alcançavam, entre duas colinas que a neblina impedia de serem vistas. No meio dessa imensa baía, sob um claro céu dourado, erguia-se uma estranha colina, sombria e pontiaguda, no meio da areia. O sol acabara de se pôr e, no horizonte ainda flamejante, aparecia o contorno do fantástico rochedo com um fantástico monumento em seu cume.Quando raiou o dia, fui para lá. Como na noite anterior, a maré estava baixa e vi diante de mim a admirável abadia, cada vez mais próxima. Depois de andar algumas horas, alcancei a enorme massa de rochas sobre a qual se localiza a cidadezinha, dominada pela grande igreja. Depois de subir a rua íngreme e estreita, entrei no mais admirável edifício gótico já construído para Deus na terra, grande como uma cidade, cheio de salas de teto baixo que parecem enterradas sob abóbadas e de grandiosas galerias sustidas por delicadas colunas.Entrei nessa gigantesca jóia de granito, leve como renda, coberta de torres, com esguios campanários de escadas em caracol, que erguem as estranhas cabeças eriçadas de quimeras, de demônios, de animais fantásticos, com flores monstruosas, para o céu azul durante o dia e negro à noite, e são ligados por arcos finamente entalhados.Quando cheguei ao ponto mais alto da abadia, disse ao monge que me acompanhava:Padre, como devem ser felizes aqui! Ao que respondeu:- Venta muito, monsieur!Começamos a conversar, enquanto assistíamos à subida da maré, que corria pela areia, e parecia cobri-la com uma couraça de aço.O monge contou-me histórias, todas as velhas histórias do lugar, lendas, nada mais que lendas.Uma delas impressionou-me bastante. Os camponeses, aqueles que fazem parte do lugar, dizem que à noite podem-se ouvir vozes nas areias e depois duas cabras balindo, uma com voz forte, a outra com voz fraca. As pessoas incrédulas afirmam que é apenas o grito das aves do mar, que às vezes parecem balidos e, outras, lamentos humanos. Todavia, pescadores que se atrasaram para voltar juram ter encontrado um velho pastor vagando, entre uma maré e outra, pelas areias ao redor da cidadezinha. Traz a cabeça totalmente coberta por um manto e é seguido por um bode com cara de homem e uma cabra com cara de mulher, ambos com longos cabelos brancos, falando sem parar e discutindo em uma língua desconhecida. Calam-se de repente e começam a balir a plenos pulmões.- Acredita nisso? – perguntei ao monge.- Não sei ao certo – retrucou.Continuei:- Se existem outras criaturas na terra além de nós, como ainda não as conhecemos e por que vocês ainda não as viram? Como é que eu ainda não as vi?Respondeu:- Será que vemos a centésima milésima parte do que existe? Olhe aqui, aí está o vento, a maior força que existe na natureza, que derruba homens e edifícios, destrói penhascos e joga grandes navios contra os rochedos, o vento que mata, que assobia, que suspira, que ……. já o viu? Pode vê-lo? Apesar disso, no entanto, ele existe!Calei-me diante desse raciocínio tão simples. Aquele homem era um filósofo ou, talvez, um tolo. Não saberia dizer qual, exatamente, por isso fiquei quieto. O que dissera, eu já havia pensado muitas vezes.

3 de julho. Dormi mal. Certamente há alguma influência febril aqui, pois meu cocheiro está sofrendo exatamente como eu. Ontem, quando voltei para casa, notei que estava muito pálido e lhe perguntei:- O que tem, Jean?- Não consigo repousar, e as noites devoram meus dias. Desde que partiu, monsieur, parece que estou enfeitiçado. Entretanto, os outros criados estão todos bem. Estou com muito medo de ter outro ataque.

4 de julho. Estou de novo doente, pois meu antigo pesadelo voltou. A noite passada, senti alguém inclinando-se sobre mim e sugando minha vida por entre meus lábios. Sim, estava sugando-a de minha garganta, como uma sanguessuga. Depois, levantou-se, saciado, e acordei, tão cansado, esmagado e fraco que não conseguia mover-me. Se isso continuar por mais alguns dias, viajarei novamente.

5 de julho. Será que estou louco? O que aconteceu a noite passada é tão estranho que perco a cabeça só de pensar!Trancara a porta, como faço todas as noites, e, tendo sede, bebi meio copo de água, notando, por acaso, que a garrafa de água estava cheia até o gargalo.Fui para a cama e passei por um de meus sonhos terríveis, do qual acordei cerca de duas horas depois, com um choque ainda maior.Imagine um homem adormecido sendo assassinado e que acorda com uma faca no pulmão e cuja respiração está arquejante, coberto de sangue, que não consegue mais respirar, está quase morrendo e não compreende… aí está.Tendo recuperado os sentidos, senti sede novamente, por isso acendi uma vela e fui até a mesa onde estava a garrafa de água. Ergui-a e virei-a sobre o copo, mas nada saiu. Estava vazia! Completamente vazia! A princípio não consegui entender absolutamente nada. Mas, de repente, tive uma sensação tão horrível que precisei sentar-me, ou melhor, caí numa cadeira! Saltei da cadeira e olhei à volta, sentei-me de novo, tomado de espanto e medo, em frente à garrafa de cristal. Encarava-a, tentando adivinhar, e minhas mãos tremiam. Alguém bebera a água, mas quem? Eu? Eu, sem dúvida. Só poderia ter sido eu. Nesse caso era sonâmbulo. Vivia, sem saber, a misteriosa vida dupla que nos faz pensar que talvez existam duas criaturas dentro de nós ou que um ser estranho, incompreensível e invisível, anima nosso corpo cativo que o obedece como a nós e mais do que a nós, quando nossa alma está entorpecida.Quem entenderá minha terrível agonia? Quem entenderá a emoção de um homem, são de espírito, completamente acordado, cheio de bom senso, que procura através do cristal de uma jarra um pouco de água que desapareceu enquanto dormia?Fiquei nessa posição, até o dia surgir, sem me arriscar a voltar para a cama.

6 de julho. Estou ficando louco. Mais uma vez todo o conteúdo da jarra de água foi tomado durante a noite… ou melhor, eu o bebi!Mas será que sou eu? Sou eu? Quem poderia ser? Quem? Oh, meu Deus! Estou ficando louco? Quem me salvará?

10 de julho. Acabo de passar por surpreendentes experiências. Decididamente, estou louco! Todavia…A 6 de julho, antes de ir para a cama, coloquei vinho, leite, água, pão e morangos sobre a mesa. Alguém bebeu, eu bebi, toda a água e um pouquinho do leite, mas o vinho, o pão e os morangos não foram tocados.Em 7 de julho, repeti a mesma experiência, com os mesmos resultados, e em 8 de julho não deixei água nem leite, e nada foi tocado.Por fim, 9 de julho, deixei sobre a mesa apenas água e leite, tomando o cuidado de envolver os frascos em musselina branca e de amarrar as tampas. Esfreguei os lábios, a barba e as mãos com grafita e me deitei.Um sono irresistível se apossou de mim, seguido de um terrível despertar. Não me movera, não havia marcas de grafita nos lençóis. Corri até a mesa. A musselina ao redor dos frascos estava intacta. Desamarrei as tampas, tremendo de medo. Toda a água fora bebida, assim como o leite! Meu Deus! Preciso partir imediatamente para Paris.Paris,

12 de julho. Devo ter perdido a cabeça nos últimos dias. Devo ser joguete de minha imaginação exacerbada, a menos que seja realmente sonâmbulo ou que tenha estado sob o poder daquelas influências até agora sem explicação, chamadas sugestões. Em todo caso, meu estado mental chegava às raias da loucura, e vinte e quatro horas em Paris bastaram para restaurar meu equilíbrio.Ontem, depois de resolver alguns negócios e fazer algumas visitas que instilaram em minha alma ar novo e revigorante, terminei a noite no Théâtre-Français. Estava sendo apresentada uma peça de Alexandre Dumas, filho, e sua imaginação ativa e poderosa completou minha cura. É certo que a solidão é perigosa para as mentes ativas. Precisamos de homens que saibam pensar e conversar. Quando ficamos sozinhos por muito tempo, povoamos o espaço com fantasmas.Pelos bulevares, voltei ao hotel muito bem-humorado. No meio dos empurrões da multidão, pensava, não sem uma ponta de ironia, em meus terrores e conjeturas da semana anterior, porque acreditara (sim, acreditara) que uma criatura invisível vivia debaixo de meu teto. Como nosso cérebro é fraco, como se assusta à toa e é induzido a erro por um pequeno fato incompreensível! Em vez de dizer apenas: “Não entendo porque não conheço a causa”, imaginamos imediatamente mistérios terríveis e forças sobrenaturais.

14 de julho. Festa da República. Passeei pelas ruas, entusiasmado com os fogos e as bandeiras, como uma criança. Ainda assim, é tolice ficar alegre em data marcada, obedecendo a um decreto do governo. O populacho é um imbecil rebanho de carneiros, de uma paciência estúpida ou com uma revolta feroz. Digam-lhe: “Divirtam-se”, e o povo se diverte. Digam-lhe: “Vão lutar com o vizinho”, e o povo vai e luta. Digam-lhe: “Votem pelo imperador”, e o povo vota pelo imperador. Então digam-lhe: “Votem pela República”. e o povo vota pela República. Os que dirigem o povo também são estúpidos, só que, ao invés de obedecer aos homens, obedecem aos princípios que só podem ser estúpidos, estéreis e falsos, pela simples razão de serem princípios, isto é, idéias consideradas como certas e imutáveis, neste mundo, onde não se tem certeza de nada, já que a luz é uma ilusão, já que o barulho é uma ilusão.

16 de julho. Ontem vi uma coisa que me deixou muito preocupado.Jantava em casa de minha prima, Mme. Sable, cujo marido é coronel no 76° Batalhão de Caçadores, em Limoges. Estavam lá duas jovens, uma delas casada com um médico, Dr. Parent, especialista em doenças nervosas e que dá muita atenção às notáveis manifestações causadas pela influência do hipnotismo e da sugestão. Contou-nos com alguns detalhes os maravilhosos resultados obtidos por cientistas ingleses e médicos da escola de Nancy, e os fatos que expôs pareceram-me tão estranhos que me declarei completamente incrédulo. — Estamos prestes a descobrir um dos mais importantes segredos da natureza, isto é, um dos mais importantes segredos nesta terra, pois certamente existem outros, de outra espécie de importância, lá em cima, nas estrelas — disse ele. — Desde que o homem começou a pensar, desde que conseguiu expressar e anotar os pensamentos, tem-se sentido próximo a um mistério inacessível a seus sentidos incompletos e imperfeitos. Procura, então, suprir a ineficiência dos sentidos por meio do intelecto. Enquanto o intelecto manteve-se em um estágio rudimentar, as aparições dos espíritos invisíveis assumiam formas comuns, embora assustadoras. Daí surgiu a crença popular no sobrenatural, as lendas das almas penadas, fadas, gnomos, fantasmas, posso mesmo dizer, a lenda de Deus, pois nossa concepção do artífice-criador, seja qual for a religião que no-la transmitiu, é certamente a mais vulgar, estúpida e inacreditável invenção que já saiu do cérebro amedrontado dos seres humanos. Nada é mais verdadeiro do que o dito de Voltaire: “Deus criou o homem à Sua imagem, mas o homem pagou-lhe na mesma moeda”. Entretanto — continuou o Dr. Parent –, há cerca de um século, os homens parecem pressentir algo novo. Mesmer e outros conduziram-nos a uma trilha inesperada e, principalmente nos últimos dois ou três anos, conseguimos resultados realmente surpreendentes. Minha prima, também muito incrédula, sorriu, e o Dr. Parent disse-lhe: — Gostaria que eu tentasse fazê-la dormir, madame? — Sim, certamente. Ela sentou-se em uma poltrona, e ele começou a olhá-la fixamente, como se quisesse encantá-la. Comecei a sentir-me pouco à vontade, com o coração batendo e uma sensação sufocante na garganta. Vi os olhos de Mme. Sable tornarem-se pesados, a boca crispar-se e o peito arfar. Em dez minutos estava dormindo. — Fique atrás dela — disse-me o médico. Sentei-me atrás dela. Pôs um cartão de visitas entre as mãos dela e lhe disse: — Isto é um espelho. O que vê nele? Ela respondeu: — Vejo meu primo. — O que ele está fazendo? — Torcendo o bigode. — E agora? — Está tirando uma fotografia do bolso. — Fotografia de quem? — Dele mesmo. Era verdade. A fotografia fora-me entregue no hotel aquela noite. — Como é a foto? — Ele está em pé, com o chapéu na mão. Enxergava, pois, naquele cartão, naquele pedaço de papelão branco, como se olhasse através de um espelho. As jovens ficaram assustadas e exclamaram: — Chega! Já chega! Mas o médico ordenou a Mme. Sable: — Levante-se amanhã às oito horas, vá visitar seu primo no hotel e peça-lhe cinco mil francos emprestados que seu marido está precisando e que exigirá da senhora quando partir para a próxima viagem. Depois disso, o médico acordou-a. Na volta ao hotel, fui meditando sobre essa curiosa sessão. Enchia-me de dúvidas, não quanto à absoluta e sincera boa-fé de minha prima, pois conhecia-a como a uma irmã desde criança, mas quanto a um possível truque da parte do médico. Não teria, talvez, um espelho escondido na mão, mostrando-à jovem adormecida, ao mesmo tempo que mostrou o cartão? Os mágicos fazem coisas desse tipo. Cheguei ao hotel e fui para a cama. Esta manhã, mais ou menos às oito e meia, o criado de quarto acordou-me e disse-me: Mme. Sable pede para vê-lo imediatamente, monsieur. — Vesti-me às pressas e fui recebê-la. Sentou-se um tanto preocupada, de olhos baixos e, sem erguer o véu do chapéu, disse-me: — Caro primo, vim pedir-lhe um grande favor. — Que favor, minha prima? — Não quero pedir-lhe, mas tenho de fazê-lo. Preciso urgentemente de cinco mil francos. — O quê? Você? — Sim, eu, ou melhor, meu marido pediu-me para consegui-los. Fiquei tão atônito que gaguejava as respostas. Perguntava-me se ela não estaria zombando de mim, juntamente com o Dr. Parent, se tudo não seria apenas uma bem ensaiada farsa. Olhando-a atentamente, entretanto, todas as minhas dúvidas desapareceram. Estava trêmula de desgosto, pois essa atitude lhe era penosa, e percebi que a garganta lhe travava os soluços. Sabia que era muito rica, por isso continuei: — Como? Seu marido não tem cinco mil francos à disposição? Vamos, pense. Tem certeza de que ele a encarregou de consegui-los? Hesitou alguns segundos, como se fizesse grande esforço de memória e respondeu: — Sim… sim, tenho certeza. — Ele lhe escreveu? Hesitou novamente e refletiu. Percebi a tortura de seus pensamentos. Não sabia. Sabia apenas que tinha de conseguir comigo cinco mil francos emprestados para seu marido. Assim, mentiu: — Sim, escreveu-me. — Rogo-lhe que me diga quando ele o fez. Não falou sobre isso ontem. — Recebi a carta hoje pela manhã. — Pode mostrá-la para mim? — Não… não… continha assuntos íntimos… coisas muito pessoais… Queimei-a. — Então seu marido está endividado? Hesitou mais uma vez e murmurou: — Não sei. Disse-lhe sem cerimônia: — No momento não posso dispor de cinco mil francos, cara prima. Deu um grito, como se estivesse sentindo alguma dor e disse: — Oh, suplico-lhe, rogo-lhe que os consiga para mim…Parecia perturbada e juntava as mãos como a implorar-me! Sua voz mudou de tom. Chorava e gaguejava, inquieta e dominada pela ordem irresistível que recebera. — Por favor, imploro-lhe… se soubesse o que estou sofrendo… preciso do dinheiro hoje. Fiquei com pena: — Você terá daqui a pouco, juro. — Obrigada, obrigada. Agradeço-lhe muito. — Lembra-se do que aconteceu em sua casa ontem à noite? — continuei. — Sim. — Lembra-se de que o Dr. Parent fez você dormir? — Sim. — Muito bem então. Mandou que viesse procurar-me esta manhã e pedisse cinco mil francos emprestados. Neste momento, você está obedecendo a essa sugestão. Refletiu por alguns momentos e respondeu: — Mas é como Se meu marido precisasse deles…Durante uma hora tentei convencê-la, sem conseguir. Quando se foi, procurei o médico. Estava de saída, ouviu-me com um sorriso e disse: — Acredita, agora? — Sim, não tenho outra saída. — Vamos à casa de sua prima. Ela já estava meio adormecida em uma espreguiçadeira, vencida pelo cansaço. O médico tomou-lhe o pulso, observou-a por algum tempo, com a mão erguida em frente aos olhos dela. Sob a irresistível influência de sua força magnética, fechou os olhos. Quando adormeceu, o médico disse: — Seu marido não precisa mais dos cinco mil francos. Deve, portanto, esquecer que os pediu emprestado a seu primo e, se ele tocar no assunto, não entenderá de que se trata. Acordou-a. Peguei a carteira e disse: — Aqui está o que me pediu esta manhã, cara prima. Ficou tão surpresa, que não me atrevi a insistir. Contudo, tentei fazê-la lembrar-se do que acontecera. Negou energicamente, achando que me divertia às suas custas e, no fim, quase perdeu a paciência. Pronto! Acabo de chegar e não consegui almoçar, pois essa experiência deixou-me completamente abalado.

19 de julho. As pessoas a quem contei essa aventura riram-se de mim. Não sei mais o que pensar. Diz o sábio: “Pode ser!”

21 de julho. Jantei em Bougival e passei a noite em um baile de barqueiros. Decididamente, tudo depende do local e do ambiente. Seria muita tolice acreditar no sobrenatural quando se está na Île de la Grenouilliére… mas, e no Mont-Saint-Michel?… e na Índia? Somos terrivelmente influenciados pelo que nos rodeia. Na semana que vem, voltarei para casa.

30 de julho. Voltei ontem para casa. Tudo vai bem.

2 de agosto. Nada de novo. O tempo está esplêndido e passo os dias a olhar o Sena.

4 de agosto. Desavenças entre os criados. Alegam que à noite os copos são quebrados nos armários. O criado acusa o cozinheiro, que acusa a costureira, que acusa os outros dois. Quem é o culpado? Só alguém muito esperto poderia dizer.

6 de agosto. Desta vez não estou louco. Eu vi… eu vi… não posso mais duvidar… eu o vi!As duas horas, em pleno sol, passeava entre as roseiras… entre as rosas de outono que começam a cair. Quando parei para olhar um géant de bataille, com três rosas esplêndidas, vi perfeitamente a haste de uma das rosas perto de mim inclinar-se, como se uma mão invisível a forçasse a quebrar-se, como se estivesse sendo colhida! Então, a flor ergueu-se, seguindo a curva que a mão teria feito ao levá-la até a boca e permaneceu suspensa no ar, sozinha e imóvel, terrível mancha vermelha, quase diante de meus olhos. Em desespero, corri para agarrá-la. Nada achei, ela desaparecera! Fiquei com muita raiva de mim mesmo, pois um homem sério e razoável não deveria ter tais alucinações.Mas seria uma alucinação? Voltei-me para olhar a haste e encontrei-a imediatamente, na roseira, quebrada de pouco, entre duas rosas que continuavam no galho. Voltei para casa, bastante perturbado, pois estou certo agora, como certo estou da alternância entre o dia e a noite, de que existe perto de mim uma criatura invisível, que vive a leite e água, pode tocar objetos, pegá-los e mudá-los de lugar, sendo, portanto, dotado de natureza material, embora seja imperceptível a nossos sentidos. Vive como eu, debaixo de meu teto…

7 de agosto. Dormi tranqüilamente. Ele bebeu a água da garrafa, mas não perturbou meu sono. Pergunto a mim mesmo se não estarei louco. Agora mesmo, passeando ao sol à beira do rio, tive dúvidas quanto a minha sanidade. Não dúvidas vagas como as que tive ultimamente, mas dúvidas absolutas e precisas. Já vi gente louca e conheci alguns loucos que são inteligentes, lúcidos, até mesmo perspicazes em tudo, exceto em um ponto. Falavam pronta, clara e profundamente sobre todos os assuntos, até que, de repente, a mente ia de encontro aos escolhos de sua loucura, partia-se ali e se dispersava e debatia naquele mar furioso e terrível, cheio de ondas agitadas, de neblina e pés-de-vento, que se chama Loucura. Com certeza eu deveria pensar que estava louco, completamente louco, se não estivesse consciente, não conhecesse perfeitamente meu estado, não o analisasse com a mais completa lucidez. De fato, devo ser apenas um homem racional, sofrendo uma alucinação. Deve ter surgido em minha mente algum distúrbio desconhecido, um dentre aqueles que os fisiólogos modernos tentam observar e confirmar. Esse distúrbio deve ter causado profunda brecha na minha mente e na seqüência lógica das idéias. Fenômenos semelhantes acontecem nos sonhos que nos levam a imaginar coisas irreais, sem nos causar surpresa, porque o aparelho de verificação, nosso órgão de controle está adormecido, enquanto a faculdade da imaginação está acordada e ativa. Não é possível que uma das imperceptíveis unidades do teclado cerebral tenha ficado paralisada em mim? Alguns homens perdem a lembrança de nomes próprios, de verbos ou números, os simplesmente de datas, como conseqüência de algum acidente. A localização de todas as variações de pensamento já está estabelecida atualmente. Por que, então, seria surpreendente se minha faculdade de controlar a irrealidade de algumas alucinações estivesse temporariamente adormecida? Pensava em tudo isso, enquanto andava pela beira da água. O sol brilhava intensamente sobre o rio e tornava a terra agradável, enchendo-me de amor pela vida, pelas andorinhas cuja agilidade sempre encanta meus olhos, pelas plantas à beira do rio, de cujas folhas o farfalhar é um prazer aos ouvidos. Aos poucos, entretanto, uma indefinível sensação de mal-estar se apossava de mim. Parecia que uma força desconhecida estava me entorpecendo e detendo, impedindo-me de seguir adiante e chamando-me de volta. Senti aquele penoso desejo de voltar que nos oprime quando deixamos um doente querido em casa e somos tomados por um pressentimento de que piorou. Assim, voltei contra a minha vontade, certo de que encontraria alguma má noticia à espera, talvez uma carta ou telegrama. Não havia nada, e fiquei mais surpreso e inquieto do que se tivesse tido outra visão fantástica.

8 de agosto. Ontem, passei uma noite horrível. Não se mostra mais, porém, sinto-o perto de mim vigiando-me, olhando-me, penetrando-me, dominando-me, e mais temível quando se oculta dessa forma do que se manifestasse sua presença constante e invisível através de fenômenos sobrenaturais. Entretanto, consegui dormir.

9 de agosto. Nada, mas estou com medo.

10 de agosto. Nada. O que acontecerá amanhã?

11 de agosto. Nada ainda. Não consigo ficar em casa com este medo pairando sobre mim e estes pensamentos na cabeça. Vou embora.

12 de agosto. Dez horas da noite. O dia todo tentei partir e não consegui. Gostaria de realizar este simples e fácil ato de liberdade – sair -, entrar em meu carro e partir para Rouen… e não consigo. Por que razão?

13 de agosto. Quando somos atacados por certas doenças, todas as molas de nosso corpo parecem estar quebradas, todas as nossas energias, destruídas, todos os nossos músculos, relaxados. Nossos ossos amolecem como carne, e o sangue vira água. Estou tendo essas sensações em minha existência moral de modo estranho e angustioso. Não tenho mais força, coragem, autocontrole, nem mesmo o poder de exercer minha vontade. Não tenho mais vontade de nada, mas alguém a tem por mim e eu lhe obedeço.

14 de agosto. Estou perdido. Alguém possui minha alma e a domina. Alguém ordena todos os meus atos, todos os meus movimentos, todos os meus pensamentos. Não sou mais nada, exceto espectador escravizado e amedrontado de tudo o que faço. Quero sair, não posso. Ele não quer, e assim permaneço, trêmulo e perplexo, na poltrona onde ele me mantém sentado. Desejo apenas levantar-me e me animar, mas não posso! Estou preso à cadeira, e esta adere ao chão de tal maneira que não existe força capaz de mover-nos.De repente, sinto que devo, preciso ir ao fundo do quintal colher morangos e comê-los, e lá vou eu. Colho os morangos e como-os! Meu Deus! Meus Deus! Deus existe? Se existe, libertai-me! Salvai-me! Socorrei-me! Perdão! Piedade! Misericórdia! Salvai-me! Quanto sofrimento! Que tormento! Que horror!

15 de agosto. Então era desse modo que minha pobre prima se encontrava, e era controlada, quando veio pedir-me os cinco mil francos emprestados. Estava sob o poder de uma estranha vontade que entrara dentro dela, como outra alma, como outra alma parasita e dominadora. Será que o mundo está para acabar? Mas quem é ele, este ser invisível que me governa? Este ser irreconhecível, este pirata de raça sobrenatural? Existem, então, seres invisíveis! Por que não se manifestaram desde o começo do mundo, precisamente como fazem comigo? Nunca li nada parecido com o que acontece em minha casa. Oh, se pudesse deixá-la, se pudesse ir embora, fugir e nunca mais voltar! Estaria salvo, mas não posso.

16 de agosto. Hoje consegui escapar por duas horas, como um prisioneiro que, por acaso, encontra a porta da masmorra aberta. De repente, senti que estava livre e que ele estava muito longe; assim, dei ordens para atrelar os cavalos o mais depressa possível e partir para Rouen. Como é agradável conseguir dizer a um homem que nos obedece: — Vá… a Rouen! Mandei parar em frente à biblioteca e pedi que me emprestassem o tratado do Dr. Hermann Herestauss sobre os habitantes desconhecidos do mundo antigo e moderno. Ao voltar para o coche, pretendia dizer: “Para a estação!”, em vez disso gritei… não disse, gritei, tão alto que os passantes voltaram-se: — Para casa! — e caí para trás, na almofada do carro, tomado de angústia. Ele voltara a me encontrar e retomara a posse de mim.

17 de agosto. Ah, que noite! Que noite! E contudo parece-me que devia alegrar-me. Li até a uma da manhã! Herestauss, doutor em Filosofia e Teogonia, escreveu a história da manifestação todos esses seres invisíveis que pairam em volta dos homens ou com quem os homens sonham. Descreve sua origem, domínio, poder, mas nenhum se assemelha ao que me assedia. Pode-se dizer que, desde que começou a pensar, o homem pressente um novo ser, mais forte, seu sucessor neste novo mundo e que, sentindo sua presença e não conseguindo prever a natureza desse mestre, criou toda uma raça de seres ocultos, de vagos fantasmas, nascidos do medo. Depois de ler até a uma da manhã, sentei-me à janela aberta, a fim de refrescar a fronte e os pensamentos, no ar calmo da noite agradável e quente. Como teria apreciado semelhante noite em outros tempos! Não havia lua, mas as estrelas lançavam sua luz no céu escuro. Quem habita esses mundos? Que formas, que seres vivos, que animais existem lá em cima? O que sabem os pensadores naqueles mundos distantes que não sabemos? O que podem fazer, e nós não? O que vêem que não conhecemos? Será que um deles, algum dia, atravessando o espaço, aparecerá na Terra para conquistá-la, exatamente como os escandinavos cruzaram o mar a fim de conquistar nações mais fracas do que eles? Somos tão fracos, tão indefesos, tão ignorantes, tão pequenos, nós que vivemos nesta partícula de lama que gira em uma gota de água! Adormeci assim, sonhando no fresco ar da noite, e depois de dormir cerca de três quartos de hora abri os olhos sem me mexer, acordado por não sei que confusa e estranha sensação. A princípio não vi nada, mas de repente tive a impressão de que uma página do livro que ficara aberto sobre a mesa virou-se sozinha. Nenhuma aragem passara pela janela, por isso, surpreso, esperei. Depois de uns quatro minutos, eu vi, eu vi, sim, vi com meus próprios olhos, outra página levantar-se e cair sobre as outras, como se um dedo a tivesse virado. A poltrona estava vazia, parecia vazia, mas sabia que ele estava lá. Sentado em meu lugar e lendo. Com um pulo, o pulo furioso de um animal selvagem enraivecido, que salta sobre o domador, atravessei a sala para agarrá-lo, estrangulá-lo, matá-lo! Porém, antes que pudesse alcançá-la, a cadeira virou-se como se alguém tivesse fugido de mim… a mesa balançou, a lâmpada caiu e se apagou e a janela fechou-se, como se um ladrão tivesse sido surpreendido e fugido noite afora, fechando-a atrás de si. Então ele fugira. Tivera medo, medo de mim! Mas… mas… amanhã… ou mais tarde… algum dia… conseguirei agarrá-lo e esmagá-lo contra o chão! Às vezes os cães não mordem e estraçalham o dono?

18 de agosto. Estive pensando o dia todo. Sim, vou obedecer-lhe, seguir seus impulsos, realizar seus desejos, mostrar-me humilde, submisso, covarde. Ele é o mais forte, mas há de chegar a hora…

19 de agosto. Eu sei… eu sei… eu sei tudo! Acabei de ler o seguinte, na Revue du Monde Scientifique: “Curiosa noticia chega-nos do Rio de Janeiro. Loucura, uma epidemia de loucura, comparável à loucura contagiosa que atacou a população da Europa, na Idade Média, está, neste momento, grassando na província de São Paulo. Os habitantes, aterrorizados, abandonam suas casas, dizendo que estão sendo perseguidos, possuídos, dominados como gado humano por seres invisíveis, mas tangíveis, uma espécie de vampiro, que se alimenta da vida deles enquanto estão dormindo, e que, além disso, bebe água e leite, sem aparentemente tocar nenhum outro alimento. “O professor Pedro Henrique, acompanhado por vários médicos, foi à província de São Paulo, a fim de estudar a origem e as manifestações dessa surpreendente loucura, no local, e propor ao imperador as medidas que lhe pareçam mais cabíveis para fazer com que a população recupere a razão. “Ah! ah! lembro-me agora daquele belo navio brasileiro de três mastros que passou em frente às minhas janelas, subindo o Sena no dia 8 de maio passado! Achei que parecia tão formoso, tão branco e brilhante! Aquele Ente estava a bordo, vindo de lá, onde sua raça se originou. E me viu! Viu minha casa, também branca, e saltou do navio para terra. Oh, céu misericordioso! Agora sei, posso adivinhar. O reino do homem acabou, e ele chegou. Ele, que era temido pelo homem primitivo, ele, que padres preocupados exorcizavam, que feiticeiras evocavam em noites escuras, sem tê-lo visto aparecer, a quem a imaginação dos senhores provisórios do mundo emprestavam todas as monstruosas ou graciosas formas de gnomos, espíritos, gênios, fadas e almas familiares. Depois dos conceitos imprecisos baseados no medo primitivo, homens mais sensíveis anteviram-no mais claramente. Mesmer o pressentiu, e, há dez anos, médicos descobriram, com precisão, a natureza de sua força, antes mesmo que ele a exercesse. Divertiram-se com essa nova arma do Senhor, o domínio de uma vontade misteriosa sobre a alma humana que se tornara escrava. Chamaram-no de magnetismo, hipnotismo, sugestão… sei lá! Vejo-os divertindo-se, como crianças imprudentes, com essa força terrível! Ai de nós! Ai dos homens! Ele chegou, o… o… como se chama… o… Imagino que está gritando seu nome e não consigo ouvi-lo… o… sim… está gritando… estou ouvindo… Não consigo… Ele o repete… o… Horla… ou,… o Horla… ele chegou! Ah! O abutre devorou a pomba, o lobo devorou o cordeiro, o leão devorou o búfalo de chifres pontiagudos. O homem matou o leão com a flecha, com a espada, com a pólvora. Mas o Horla fará do homem o que fizemos do cavalo e do boi: objeto, escravo e alimento, só porque é sua vontade. Ai de nós! Contudo, às vezes, o animal revolta-se e mata o homem que o subjugou. Eu também gostaria de… serei capaz de… mas preciso conhecê-lo, tocá-lo, vê-lo! Os cientistas afirmam que os olhos dos animais, sendo diferentes dos nossos, não distinguem os objetos da mesma forma que nós. E meus olhos não conseguem distinguir esse recém-chegado que me oprime. Por quê? Agora me lembro das palavras do monge do Mont-Saint-Michel: “Será que vemos a centésima milionésima parte do que existe? Veja, lá está o vento, a maior força da natureza, que derruba homens e edifícios, desenraiza árvores, faz o mar erguer-se como montanhas de água, destrói penhascos e joga grandes navios contra as ondas. O vento que mata, que assobia, que suspira, que ruge… já o viu? Consegue vê-lo? Contudo, ele existe”. E continuei a pensar: “Meus olhos são tão fracos, tão imperfeitos, que nem mesmo distinguem corpos sólidos, se estes forem transparentes como o vidro! Se não houver um papel prateado atrás de um vidro em meu caminho, colidirei com ele, da mesma forma que um pássaro, voando para dentro de uma sala, bate a cabeça contra a vidraça”. Existem mil coisas que enganam o homem e o induzem ao erro. Por que haveria de ser surpreendente o fato de não conseguir perceber um corpo desconhecido que a luz consegue atravessar?Um novo ser! Por que não? Com certeza estava destinado a vir! Por que deveríamos ser os últimos? Não o distinguimos mais do que todos os outros criados antes de nós! Isso acontece porque sua natureza é mais perfeita, tem o corpo mais apurado e mais bem acabado que o nosso, tão fraco, de construção tão desajeitada, atravancado de órgãos que estão sempre cansados, sempre tenso como um mecanismo muito complicado, que vive como planta e como animal, nutrindo-se com dificuldade de ar, ervas e carne, máquina animal vitima de doenças, má-formação, decadência; arquejante, mal-regulado, simples e extravagante, originalmente malfeito, obra ao mesmo tempo grosseira e delicada, esboço irregular de uma criatura que poderia tornar-se inteligente e grandiosa. Somos apenas alguns, tão poucos neste mundo, da ostra ao homem. Por que não poderîa haver mais um, uma vez passada a época que separa as sucessivas aparições de todas as espécies diferentes? Por que não mais um? Por que não, também, outras árvores com flores imensas e esplêndidas, perfumando regiões inteiras? Por que não outros elementos além do fogo, ar, terra e água? Existem quatro, só quatro, amas-secas de seres diferentes! Que pena! Por que não existem quarenta, quatrocentos, quatro mil? Como tudo é pobre, mesquinho e miserável! Produzido de má vontade, construído irregularmente, inabilmente feito! Ah, o elefante e o hipopótamo, que graça! E o camelo, que elegância! Mas a borboleta, dirão, uma flor voadora? Sonho com uma tão grande como cem universos, com asas cuja forma, beleza, e movimentos não consigo nem mesmo exprimir. Porém a vejo… esvoaça de uma estrela a outra, refrescando-as e perfumando-as com a aragem leve e harmoniosa de seu vôo! E as pessoas lá em cima olham-na quando passa em um êxtase de prazer! O que está acontecendo comigo? É ele, o Horla, que me persegue e que me faz pensar essas tolices! Está dentro de mim, está se transformando em minha alma. Pretendo matá-lo!

19 de agosto. Vou matá-lo. Eu o vi! Ontem, sentei-me à mesa e fingi escrever com bastante atenção. Sabia muito bem que viria rondar-me, bem perto de mim, tão perto que, talvez, conseguisse, tocá-lo, agarrá-lo. E então… então eu conseguiria a força do desespero. Teria as mãos, os joelhos, o peito, a fronte, os dentes para estrangulá-lo, esmagá-lo, morde-lo, fazê-lo em pedaços. E o aguardava com todos os sentidos alerta. Acendera as duas lâmpadas e as oito velas de cera sobre a lareira, como se com toda essa luz pudesse descobri-lo. À minha frente, estava a cama, a velha cama de colunas de carvalho; à direita, a lareira; à esquerda, a porta, fechada cuidadosamente, depois que a deixei aberta algum tempo, a fim de atrai-lo; atrás de mim, estava o guarda-roupa, muito alto, com o espelho diante do qual fazia a barba e me vestia todos os dias e no qual costumava ver-me de relance, da cabeça aos pés, toda vez que passava diante dele. Fingia estar escrevendo a fim de enganá-lo, pois ele também me vigiava e, de repente, senti… tinha certeza de que estava lendo por cima de meu ombro, que estava lá, roçando minha orelha.Levantei-me com as mãos estendidas e virei-me tão depressa que quase caí. Quê! Bem? Estava claro como se fosse o meio-dia, mas não conseguia ver meu reflexo no espelho! Estava vazio, claro, profundo, cheio de luz! Só que minha imagem não estava refletida nele… E eu, eu estava na frente do espelho! Examinei o grande e claro espelho, de cima a baixo, olhei-o com olhos vacilantes. Não ousei aproximar-me, não me arrisquei a fazer um movimento sequer, sentindo que ele estava ali, mas que novamente me escapara, ele cujo corpo imperceptível absorvera meu reflexo.Como eu estava amedrontado! E então, subitamente, comecei a ver-me através de uma névoa no fundo do espelho, uma névoa que parecia um lençol de água. Parecia-me que a água escorria mais clara a todo momento. Era como o fim de um eclipse. O que quer que ocultasse minha imagem não parecia possuir contornos definidos, mas uma espécie de transparência opaca que ia clareando aos poucos.Afinal, consegui distinguir meu reflexo completamente, como acontece todos os dias quando me olho no espelho. Eu o vira! O horror dessa visão ficou comigo e, mesmo agora, faz-me tremer.

20 de agosto. Como poderia matá-lo, se não consegui agarrá-lo? Veneno? Mas ele me veria misturá-lo à água, e então teria nosso veneno algum efeito em seu corpo impalpável? Não… não há dúvida sobre isso… Então… então…

21 de agosto. Chamei um ferreiro de Rouen e encomendei venezianas de ferro para meu quarto, iguais às que alguns hotéis de Paris têm no andar térreo, para impedir a entrada de ladrões, e ele também vai fazer-me uma porta de ferro. Estou parecendo covarde, mas não me importo!

10 de setembro. Rouen, Hotel Continental. Está feito… está feito… mas será que está morto? O que vi deixou-me a mente completamente abalada.Bem, ontem, depois que o serralheiro colocou as venezianas e a porta de ferro, deixei tudo aberto até a meia-noite, embora estivesse esfriando. De repente, senti que ele estava lá, e uma alegria, uma louca alegria apossou-se de mim. Levantei-me silenciosamente e andei algum tempo de um lado para outro, para que ele não suspeitasse de nada. Tirei as botas e calcei os chinelos despreocupadamente, fechei as venezianas de ferro, fui até a porta, tranquei-a rapidamente com um cadeado e guardei a chave no bolso. Percebi de súbito que ele se movia nervosamente a minha volta, que, por sua vez, estava amedrontado e ordenava-me que o deixasse sair. Quase lhe obedeci. Em vez disso, entretanto, com as costas contra a porta, abri-a apenas o suficiente para poder sair de costas e, como sou muito alto toquei a esquadria com a cabeça. Estava certo de que ele não tinha conseguido escapar e deixei-o fechado sozinho, completamente sozinho. Que felicidade! Conseguira prende-lo. Então corri para baixo, para a sala de visitas que ficava embaixo do meu quarto. Peguei os dois lampiões e despejei todo o querosene no tapete, na mobília, em toda parte. Toquei fogo e fugi, depois de trancar cuidadosamente a porta. Escondi-me no fundo do quintal, em uma moita de louros. Como parecia demorar! Tudo estava escuro, silencioso, imóvel, sem a mais leve brisa, sem uma estrela, somente camadas de nuvens, que não se podia ver, mas que pesavam, oh, como pesavam, em minha alma. Fiquei esperando, olhando para a casa. Como demorava! Começava a pensar que o fogo se apagara sozinho, ou que ele o extinguira, quando uma das janelas do andar térreo cedeu sob a violência das chamas e uma longa, suave, acariciante e rubra língua de fogo subiu pela parede branca e envolveu-a até o telhado. O clarão atingiu as árvores, os galhos e as folhas, e um arrepio de medo também os invadiu! Os pássaros acordaram, um cachorro começou a uivar, e pareceu-me que o dia estava nascendo! Quase imediatamente, duas outras janelas se arrebentaram e vi que toda a parte de baixo da casa era apenas uma fornalha incandescente. Um grito, horrível, estridente, de partir o coração, um grito de mulher, soou dentro da noite, e duas janelas do sótão se abriram! Esquecera-me dos criados! Vi os rostos apavorados e os braços agitando-se freneticamente. Tomado de pavor, comecei a correr para a cidade, gritando:- Socorro! Socorro! Fogo! Fogo! — Encontrei algumas pessoas que já vinham correndo e voltei com elas. Nessas alturas, a casa não era mais que uma horrível e imponente pira funerária, monstruosa pira funerária que iluminava tudo, pira funerária onde homens ardiam, e ele também estava sendo queimado. Ele, ele, meu prisioneiro, o novo Ser, o novo Senhor, o Horla! De repente, o telhado desabou entre as paredes, e um vulcão de chamas voou até o céu. Pelas janelas abertas naquela fornalha, vi as chamas disparando e pensei que ele estivesse lá, naquele forno, morto. Morto? Talvez?… Seu corpo? Não seria seu corpo, transparente, indestrutível pelos meios que conseguiam matar os nossos? E se ele não estivesse morto?… Talvez só o tempo tenha poder sobre esse Ser Invisível e Terrível. Qual a razão desse corpo transparente e irreconhecível, esse corpo pertencente a um espírito, se também tem de temer doenças, fraquezas e ruína prematura? Ruína prematura? Todo o terror humano tem aí sua origem! Depois do homem, o Horla. Depois daquele que pode morrer todo dia, a toda hora, a todo momento, de qualquer acidente, veio o que morreria apenas na hora, no dia e no minuto apropriado, porque tocara os limites de sua própria existência! Não… não… sem dúvida… não está morto… Então… então… acho que terei de me matar!…



por Guy de Maupassant