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domingo, 1 de maio de 2016

O Grande Incêndio de Londres

'The Fire of London, September 1666' © National Maritime Museum, London

O grande incêndio de Londres foi uma das maiores catástrofes da capital inglesa, tendo destruído as partes centrais da cidade de 2 de setembro a 5 de setembro de 1666. O incêndio ameaçou destruir o distrito de Westminster, o Palácio de Whitehall e alguns subúrbios, mas não chegou a destruí-los. Destruiu 13.200 casas, 87 igrejas, a Catedral de St. Paul e 44 prédios públicos. 

Entretanto, acredita-se que poucas pessoas morreram. Os registros da época computaram um total de 100 mil desabrigados e nove óbitos. Mas pesquisas atuais afirmam que milhares de pessoas podem ter morrido, já que pessoas mais pobres e da classe média não eram mantidas nos registros.

O fogo começou na padaria de Thomas Farriner (ou Farynor) em Pudding Lane e logo se espalhou. A propagação das chamas foi favorecida pela estrutura medieval da cidade: ruas estreitas e casas de madeira muito próximas umas das outras.

A técnica contra incêndios da época (derrubar construções e assim impedir o espalhamento do fogo) foi atrasada por decisão do Lord Mayor de Londres, Sir Thomas Bloodworth, que subestimou o potencial das chamas. Quando as demolições foram autorizadas, uma tempestade de fogo impediu que fossem feitas. No dia 3 de setembro o fogo se dirigiu à zona norte, rumo ao coração da cidade. No dia 4, destruiu a Catedral de St. Paul. Uma ação contra o incêndio foi mobilizada. Finalmente o fogo foi controlado.

Além do prejuízo estimado em 10 milhões de libras, vários problemas sociais eclodiram. O rei Carlos II temia uma rebelião em Londres e ordenou a reconstrução da cidade. Apesar de críticas, a cidade não foi modernizada, mas reconstruída nos moldes e estilos medievais.

O arquiteto Cristopher Wren liderou os muitos arquitetos que participaram da reconstrução, que deu origem à área conhecida como City of London, hoje um distrito financeiro. A Catedral de São Paulo (século XII) foi completamente destruída. A edificação atual foi desenhada por arquiteto Cristopher Wren. A única parte restante do prédio antigo é um memorial ao poeta John Donne.

A ponte de Londres, parcialmente consumida pelo primeiro incêndio (1663), foi consumida pelas chamas. A biblioteca de teologia do Sion College teve um terço de seus livros queimados. O centro administrativo (Guildhall) - onde ocorriam julgamentos desde o século XIV foi seriamente danificado.

Finalmente, no 5º dia o Duque de York consegue deter o fogo no Temple, a célebre construção que, durante a Idade Média, abrigou a Ordem dos Cavaleiros Templários.


Fonte: Wikipédia - Referência: Londres em chamas, Revista História Viva, nº 38, páginas 22 e 23, dezembro de 2006.

A Grande Praga de Londres

Gravação contemporânea em madeira ilustrando o enterro em massa de vítimas da praga em 1665.

A Grande Praga de Londres foi um surto de peste bubônica. Houve outros antes dela na Inglaterra e ao redor do mundo. O mais conhecido foi a pandemia chamada de Peste Negra, no século 14. Especialistas apontam que ela possa ter dizimado 1/3 da população europeia na época, aproximadamente 75 milhões de pessoas.

A Grande Praga matou um número estimado de 100 mil pessoas, equivalente a 20% da população da capital britânica em 1665. Acredita-se que os focos da doença só tenham sido eliminados em 1666, com o Grande Incêndio, que destruiu grande parte das favelas e lugares mais pobres da cidade.

Temeroso, o Rei Charles II, que havia recuperado o trono apenas cinco anos antes (após a dissolução da monarquia e decapitação de seu pai em frente à Banqueting House do Palácio de Whitehall), deixou a cidade com a família e se estabeleceu em Oxfordshire.

Gravação contemporânea ilustrando a situação de Londres durante o surto da peste bubônica em 1665

Sem o Rei, o medo tomou conta da cidade. Os mais ricos seguiram a Família Real e fugiram de Londres. Os mais pobres, algumas autoridades e os médicos permaneceram. Só que não se sabia exatamente como combater a doença. Muitos gatos e cachorros, por exemplo, foram sacrificados, e outros tantos isolados, devido ao medo de que eles pudessem contribuir com a peste. Essa foi uma péssima decisão, afinal gatos e cachorros controlavam a populaçào de roedores e suas pulgas, os verdadeiros responsáveis pela proliferação da doença.

Nesse período, valas gigantescas foram abertas para abrigar corpos humanos, pois havia o receio de que a peste se espalhasse. Muito tempo depois, quando as autoridades londrinas escavavam a capital para a construção das primeiras estações de metrô, descobriram dezenas dessas covas espalhadas pelo subterrâneo. Algumas continham tantos ossos e eram tão grandes, que obrigaram mudanças na localização original de algumas estações.

O Rei e sua corte retornaram à capital em fevereiro de 1666, quando já era mais seguro transitar pelas ruas da cidade. Ele não tinha ideia de que, alguns meses depois, Londres seria quase destruída.


Fonte: Mapa de Londres

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O Sonho do Filho de Dante Alighieri

Dante e Virgílio se deparam com demônios em sua passagem através do Inferno.

O poema "A Divina Comédia", de Dante Alighieri, é considerado uma das obras primas da literatura universal. No entanto, se não fosse o sonho de Jacopo, filho do poeta já então falecido, o original da obra poderia ter desaparecido para sempre.

Quando Dante morreu, em 1321, Jacopo e seu irmão, Pietro, ficaram desesperados, não apenas pela perda do pai, mas também por causa do original de "A Divina Comédia" que ele deixara completo, porém não se sabia onde. Os dois viraram a casa de cabeça para baixo, procurando entre os papéis, e os textos que completavam o poema do velho Dante não foram encontrados.

Profundamente transtornado, Jacopo teve um sonho. Seu pai entrou em seu quarto, vestido com roupas impecavelmente brancas. Quando o filho perguntou se ele terminara a obra-prima, Dante balançou afirmativamente a cabeça e indicou onde as partes faltantes podiam ser encontradas.

Com um advogado amigo do pai por testemunha, Jacopo entrou no quarto de Dante.

Atrás de pequeno biombo junto à parede, eles encontraram uma pequena janela. No cubículo para o qual ela se abria, ambos localizaram as páginas finais do poema, já cobertas de mofo.

Assim, A Divina Comédia ficou completa, graças ao sonho de um filho cheio de fé.


Fonte: Livro «O Livro dos Fenômenos Estranhos» de Charles Berlitz

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Vampiros e a Idade das Trevas


Por toda a história a lenda do vampiro foi sendo usada para "explicar" outros fenômenos naturais que os povos primitivos sem conhecimentos científicos não conseguiam explicar de outra maneira. Possivelmente a mais espantosa lenda foi a associação dos vampiros com a Peste Negra na Idade Média na Europa.

A Peste Negra, como era conhecida, na verdade era a Peste Bubônica espalhada por ratos e pulgas. A Peste (que, diferentemente dos vampiros, vieram do Oeste) matou 1/3 da população europeia em 1300. O povo da época, porém, associou as mortes com os vampiros. De alguma maneira eles acreditavam que a morte "trabalhava" para os monstros; talvez os vampiros espalhassem a Peste, eles pensavam assim. Em alguns casos as pessoas acreditavam que um doente voltava da morte como vampiro e matava uma vítima (que morreria pela Peste). Alternadamente, acreditavam que um inimigo morto podia retornar e matar alguém, tornando-o um vampiro também. Muitas tumbas foram reabertas e os corpos "suspeitos" foram mutilados para "matar" os vampiros...

Alguns métodos da época beiravam o absurdo. Por exemplo, uma virgem era montada nua num cavalo, e o cavalo era obrigado a passear por entre um cemitério. Se o cavalo (que aparentemente, era mais inteligente que as pessoas) decidisse não passar por determinada tumba, eles assumiam que era uma tumba de vampiro. O corpo era imediatamente exumado e mutilado para "matar" o vampiro e, claro, também para parar a Peste que devastava a região.

Algumas das crenças mais idiotas envolviam métodos usados para matar vampiros ou parar a epidemia do vampirismo. É importante lembrar, porém, que essas crenças parecem idiotas hoje, mas, na idade da ignorância, pessoas desesperadas eram muito suscetíveis ao poder das superstições.

Os corpos às vezes eram enterrados de bruços. Se o corpo se transformasse em vampiro, ele tentaria escavar para sair do seu caixão, e iria escavar o chão abaixo, pois olhava para o lado errado... Estacas de madeira às vezes eram colocadas no chão acima do caixão, e o corpo que se levantasse se espetaria sozinho nas estacas... com um pouco de sorte elas atravessariam seu coração.

Os corpos também, às vezes, eram enrolados em panos e roupas, para dificultar sua saída do caixão. E as pernas e braços eram amarrados com uma corda.

Pedras enormes também eram colocadas em cima dos caixões, para prevenir o retorno do defunto (talvez isso explique a origem das modernas lápides?). E é importante notar que os antigos povos acreditavam que o vampiro era um tipo de fantasma, que transcendia o caixão. Qual a melhor maneira de se manter um fantasma no caixão, do que selá-lo em pedra?

O processo natural da decomposição às vezes convenciam as pessoas de que defuntos podiam se tornar vampiros: os cabelos e unhas continuavam a crescer( indicava a continuidade da vida); o cadáver inchava pela ocorrência natural de gases no corpo, (indicava que ele se alimentava dos vivos); sangue às vezes aparece nos cantos da boca como resultado da decadência do corpo (indicava que ele tinha bebido sangue); a aparência grotesca de um cadáver decomposto e de pele pálida (indicava uma fome vampírica por sangue).

O povo ignorante também usava das superstições para frustrar ataques vampíricos. Duas das mais conhecidas substâncias utilizadas para se afastar os vampiros são o acônito, e, claro, o alho. Uma teoria popular durante a Idade Média acreditava que o cheiro horrível da morte era relacionado com a causa da morte, especialmente durante a Peste Negra, e que a morte tinha relação com os vampiros. Por isso, utilizavam das ervas para contra-atacar o cheiro da morte, e consideravam o aroma potente do alho. Também, durante as eras, o alho era usado como erva medicinal pelos antigos romanos. Ironicamente, a ciência moderna também acredita que o alho pode ajudar as pessoas a se recuperarem, em alguns casos.

As pessoas desenvolviam métodos estranhos quando o assunto era vampirismo. Alguns acreditavam que se um gato preto ou cão pulasse por cima de um corpo, ele se tornaria um vampiro. Em contos bucovinianos, uma estaca de madeira devia ser enfiada no peito dos que se suicidavam; pois o suicídio era uma das causas do vampirismo. Em muitas culturas, incluindo a antiga Inglaterra, as pessoas que cometiam suicídio eram enterradas em encruzilhadas para prevenir que o defunto voltasse como um vampiro.

Vários povos tinham vários métodos para destruir vampiros. Em algumas nações eslavas, uma estaca de madeira, atravessada no peito, matava a criatura - esse era o método favorito de todos, uma estaca através do coração. Em outros lugares, porém, a madeira usada tinha que ser de determinadas árvores. Por exemplo, madeira de carvalho fazia o trabalho na Silésia... enquanto madeira de espinheiro branco era requerida na Sérvia.

Além disso, as cabeças dos defuntos suspeitos de vampirismo eram decapitadas. Às vezes, os corpos também eram jogados dentro de poços d´água ou queimados.

Essas crenças foram baseadas na ignorância geral da população, mas uma das maiores tragédias da lenda dos vampiros, foi a real ascendência da crença e do mito vampiro, que pode ter sido ajudada pelos feitos (crimes) da religião organizada.

A Igreja na Europa durante a Idade Média chegou a reconhecer a existência de vampiros e os transformou de mitos pagãos em criaturas do demônio. O vampiro teve sua credibilidade reforçada pela existência das doutrinas cristãs como vida após a morte, a ressurreição do corpo e a "transubstanciação". Esse era um conceito baseado na Santa Ceia em que o "pão e vinho" durante a Comunhão que se transubstanciou no sangue e corpo do Cristo.

A Igreja durante a Idade Média deu credenciais para a crença nos vampiros, e concluiu também que podiam parar o vampirismo, reforçando essa opinião dois séculos depois, em 1489 como o livro "Malleus Maleficarum" Esse livro foi escrito para se lidar com bruxas, mas também podia ser aplicado contra vampiros malignos. Infelizmente, muitas pessoas inocentes caíram vítimas desse documento, e foram torturadas e executadas. Esse livro, conhecido como "O martelo contra as bruxas na Inglaterra" foi utilizado para identificar e perseguir pessoas que supostamente faziam pactos com o diabo.

Dois séculos depois disso, a evidência de que a Igreja ainda acreditava em vampiros foi encontrada nos escritos do teólogo Leo Allatius. Como estudioso da Igreja, ele estudou os Vrikolakas, os vampiros gregos. Em um documento de 1645 ele conclui que alguns vampiros são resultado da excomungação. A prova de vampirismo grego é a falta de decomposição do corpo, indicando que ele não pode deixar o plano terrestre. Um corpo inchado também era evidência de possível vampirismo. Como alguns corpos não se decompunham rapidamente, pela química do solo ou temperatura do ar, e também alguns inchavam pelo processo natural de produção de gases no organismo morto, muitos cadáveres foram erroneamente nomeados como vampiros. Em contra- partida, a incorruptibilidade - incapacidade do corpo de se decompor - era sinal de santidade do cadáver. A diferença era que o vampiro não apenas se decompunha, mas também ficava grotescamente pálido, enquanto que os "corpos sagrados" permaneciam perfeitamente intactos, como se ainda vivessem. E também, vampiros cheiravam muito mal, enquanto os corpos sagrados não.

Também existia uma crença comum entre os antigos cristãos gregos que um padre ou bispo que excomungasse um agente do mal preveniria o tal corpo da decomposição, uma vez que a alma não estava livre para ascender aos céus, e sim solta na terra para vagar até receber o perdão de seus pecados. Na Igreja do Ocidente essa crença também era seguida. Existiu o caso do Arcebispo de Brehme, no século X, Santo Libentinus. Ele havia dito que excomungou alguns piratas, e o corpo de um deles foi descoberto vários anos depois, sem sinais de decomposição. Aparentemente, é pedido o perdão dos pecados por um bispo antes que o corpo se dissolva em cinzas. Os clérigos eram capazes de fazerem ou matarem um vampiro através de absolvição e excomunhão.

Leo Allatius foi um dos primeiros estudiosos a declarar oficialmente que os vampiros eram crias do demônio e que eles rondavam as noites.

A prova de que a Igreja tinha poder sobre os vampiros (lembre-se de que vampiros fugiam de crucifixos e cruzes sagradas, se bem que os modernos vampiros são menos susceptíveis a esses símbolos) data desde a Inglaterra medieval. Um escritor chamado Willian de Newburgh discutiu o caso de um homem que morreu no séc. XII a.C. Supostamente, ele se reergueu da tumba para desespero de sua esposa. Após causar muita confusão com os moradores do vilarejo e com os clérigos, o bispo da região perdoou por escrito todos os pecados passados do cadáver. O caixão foi aberto, e o documento foi colocado em cima do corpo do "vampiro". As pessoas ficaram surpresas - ou nem tanto - em ver que o corpo estava sem nenhum sinal de decomposição, provando o vampirismo. Mas, para a felicidade geral, assim que o perdão foi colocado no caixão, o vampiro desapareceu. Note que esse método de exorcizar o vampiro com um documento oficial da Igreja é bem mais sutil que os métodos utilizados na época, como a decapitação, queimar o corpo, arrancar o coração ou mesmo atravessá-lo com uma estaca de madeira.

Por volta de 1700 a universidade Sorbonne de Paris se oporia formalmente à prática comum de se mutilar corpos mortos para evitar os vampiros. A Sorbonne (onde o renomado escritor Voltaire uma vez ficou chocado ao ver uma discussão sobre a legitimidade do vampiro mitológico) finalmente tomou uma atitude aparentemente radical alegando que a prática de se mutilar corpos mortos era baseada em superstições irracionais.

A crença em vampiros, contudo, não seguia sem críticas inteligentes. Dom Agostine Calmet, um monge beneditino francês, escreveu um livro em 1746 que desafiava a questão da existência dos vampiros, chamado comumente de "O Mundo Fantasma". Calmet desafiava as superstições da época e pedia provas antes da aceitação das lendas. Ele duvidava especialmente das proezas sobre-humanas dos vampiros, como voltar da morte. Ele também analisou e criticou as supostas "epidemias vampíricas" da Europa, questionando suas bases na realidade.

Então os séculos de ignorância e superstições deram a vez à Idade da Razão, e vieram os métodos científicos. Hoje a medicina pode provar que as pragas, como a Peste Negra, não foram espalhadas por demônios, nem vampiros metafísicos, mas de maneira bem física, diria microscópica, de maneira biológica.


Fontes: Song of the Dark; O Mito dos Vampiros

terça-feira, 20 de março de 2012

Epidemia do Suor Inglês

O suor inglês conhecido como sudor anglicus, atacou a Inglaterra cinco vezes. Foi uma epidemia devastadora que entre 1485 e 1551 matou 3 milhões de pessoas. A epidemia sempre vinha no verão, o suor matava em até 24hrs, as vezes em apenas 3hrs.

O relato feito pelo italiano Polydore Vergílio em 1485, um dos primeiros conhecidos da doença, é assustador:

“Em 1485 uma nova doença atingiu todo o reino…uma pestilência de fato horrível…repentinamente um suor fatal ataca o corpo, devastando-o com dores na cabeça e no estômago agravadas pela terrível sensação de calor. Em decorrência disso, os pacientes retiravam tudo o que os cobria; se estivessem vestidos, arrancavam as roupas, os sedentos bebiam água, outros sofriam dessa febre fétida provocada pelo suor, que exalava um odor insuportável…todos morriam imediatamente ou pouco tempo depois do suor começar; de tal modo, que um em cada centena escapava”.


O relato do médico real John Caius, feito em 1552, logo após a última epidemia, é mais técnico, mas nem por isso menos assombroso:

“Primeiro a dor nas costas e nos ombros, dor nas extremidades, como braços e pernas, com ardor ou espasmo, como se apresentava em alguns pacientes. No segundo momento apareciam as dores no fígado e nas proximidades do estômago. Na terceira fase surgia uma dor de cabeça acompanhada de insanidade. Na quarta, o sofrimento do coração…pacientes respirando aceleradamente e com dificuldade…com a voz ofegante e lamuriosa…não resistiam mais do que um dia.”

Os tratamentos eram inúteis, as pessoas chegaram a "conclusão" que para salvar a pessoa, tinha que faze-la suar ainda mais para "expulsar" a doença. Com isso quando alguém apresentava o primeiro sintoma era coberto por roupas, mantas e cobertores. Em pouco tempo a pessoa tinha febre, muito suor e morria. Os familiares achavam que não tinham começado o "tratamento" a tempo.Lutero foi um dos poucos que contraiu a estranha doença e sobreviveu em 1529Em 1551 a doença desapareceu tão misteriosamente quanto havia se iniciado...

Fonte: Lendas e Mistérios.

sábado, 9 de julho de 2011

Praga da dança

O artista Henricus Hondius (1573-1610) retrata 3 mulheres acometidas pela praga
A 'Praga da dança’ matou centenas de habitantes de Estrasburgo em 1518. Fato que muitos acreditavam não passar de uma simples lenda, mas que recentemente adquiriu força com bases históricas comprovadas pelo historiador John Waller, que inclusive lançou recentemente um livro sobre o assunto.

Em julho de 1518, a cidade francesa de Estrasburgo, na Alsácia (então parte do Sacro Império Romano-Germânico) viveu um carnaval nada feliz. Uma mulher, Frau Troffea (dona Troffea), começou a dançar em uma viela e só parou quatro a seis dias depois, quando seu exemplo já era seguido por mais de 30 pessoas. Quando a febre da dança completava um mês, havia uns 400 alsacianos rodopiando e pulando sem parar debaixo do Sol de verão do Hemisfério Norte.

Lá para setembro, a maioria havia morrido de ataque cardíaco, derrame cerebral, exaustão ou pura e simplesmente por causa do calor. Reza a lenda que se tratava de um bloco carnavaleso involuntário: na realidade ninguém queria dançar, mas ninguém conseguia parar. Os enlutados que sobraram ficaram perplexos para o resto da vida.

Para provar que a epidemia de dança compulsiva não foi lenda coisa nenhuma, o historiador John Waller lançou, 490 anos depois, um livro de 276 páginas sobre o frenesi mortal: “A Time to Dance, A Time to Die: The Extraordinary Story of the Dancing Plague of 1518”. Segundo o autor, registros históricos documentam as mortes pela fúria dançante: anotações de médicos, sermões, crônicas locais e atas do conselho de Estrasburgo.

Um outro especialista, Eugene Backman, já havia escrito em 1952 o livro "Religious Dances in the Christian Church and in Popular Medicine". A tese é que os alsacianos ingeriram um tipo de fungo (Ergot fungi), um mofo que cresce nos talos úmidos de centeio, e ficaram doidões. (Tartarato de ergotamina é componente do ácido lisérgico, o LSD.)

Waller contesta Backman. Intoxicação por pão embolorado poderia sim desencadear convulsões violentas e alucinações, mas não movimentos coordenados que duraram dias.

O sociólogo Robert Bartholomew propôs a teoria de que o povo estava na verdade cumprindo o ritual de uma seita herética. Mas Waller repete: há evidência de que os dançarinos não queriam dançar (expressavam medo e desespero, segundo os relatos antigos). E pondera que é importante considerar o contexto de miséria humana que precedeu o carnaval sinistro: doenças como sífilis, varíola e hanseníase, fome pela perda de colheitas e mendicância generalizada. O ambiente era propício para superstições.

Uma delas era que se alguém causasse a ira de São Vito (também conhecido por São Guido), ele enviaria sobre os pecadores a praga da dança compulsiva. A conclusão de Waller é que o carnaval epidêmico foi uma “enfermidade psicogênica de massa”, uma histeria coletiva precedida por estresse psicológico intolerável.

Outros seis ou sete surtos afetaram localidades belgas depois da bagunça iniciada por Frau Troffea. O mais recente que se tem notícia ocorreu em Madagascar na década de 1840.

Fonte: http://aventureirododesconhecido.blogspot.com

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Giovanni Bocaccio

Giovanni Bocaccio nasceu em Paris (1313) e morreu em Certaldo, Toscana(1375). Filho de um comerciante, Boccaccio não se dedicou ao comércio como era o real desejo de seu pai. Preferiu cultivar o talento literário, que se manifestou desde muito cedo. Com isso produziu uma obra que lhe garante lugar entre os maiores nomes do início da literatura italiana, ao lado de Dante e de Petrarca.

Após os primeiros estudos em Florença, Boccaccio foi enviado a Nápoles para completar sua formação na sucursal dos Bardi, banqueiros para os quais trabalhava seu pai, que insistia em fazê-lo trabalhar no comércio. Aos 18 anos, consegue autorização para abandonar os estudos comerciais, mas o pai impõe-lhe uma nova escolha: direito canônico. Boccaccio aceita o mal menor, e lança-se à literatura com afinco, estudando escritores franceses em tradução italiana, poemas franceses no original e, principalmente, escritores latinos.

Em Nápoles, é introduzido na corte por um amigo e conhece Maria DAquino (ou Giovanna, não se sabe ao certo), que celebraria em suas obras sob o nome de Fiametta. Ao contrário de Dante, seu amor é profundamente sensual; colocando à distância a imagem da mulher idealizada segundo a tradição da lírica medieval. É dessa época sua primeira obra importante: o Filostrato, autêntico relato da paixão sensual.

Terminado seu romance com Fiametta (1339), inicia-se uma fase infeliz para Boccaccio, não só pelas desventuras amorosas, mas pela pobreza que se segue: os grandes bancos florentinos, entre os quais os dos Bardi, haviam sofrido grande golpe, devido a um empréstimo cedido ao rei inglês não reembolsado. Boccaccio perde sua posição social, deixa de freqüentar a corte de Nápoles e passa a morar em um bairro modesto. É quando começa a conhecer o mundo das ruas.

Retorna a Florença em 1341, onde publica Visão Amorosa, elegia em prosa. Entre 1344 e 1346, escreve Ninfale Fiesolano, lenda construída segundo o modelo do escritor latino Ovídio, onde a inspiração da Antiguidade é suplantada pelo tratamento moderno do assunto.

A peste que assola a Europa, chegando a Florença em 1348, dá a Boccaccio o quadro para sua obra mais importante: Decamerão,escrito enre 1348 e 1353. O livro se compõe de cem novelas que refletem a crise das concepções do mundo religioso. Para fugir à peste, dez jovens refugiam-se por dez dias num local solitário, narrando histórias de amor - eis o enredo da obra de Boccaccio.

A idéia central do Decamerão é a de que a natureza dita ao homem as regras fundamentais de sua conduta. Sufocar os sentimentos é desvirtuar a própria vida.Reafirmando a ruptura com os princípios morais e tradições literárias da Idade Média, que defendiam o valor da vida supraterrena e do amor espiritual, insiste na exaltação da beleza e do amor terrenos.

O Decamerão fez de Boccaccio o primeiro grande realista da literatura universal. Em 1355 escreve Corbaccio, sua última obra em dialeto toscano. A partir daí, utilizará somente o latim. Escreveu ainda Mulheres Célebres (1362), uma série de 104 biografias de mulheres conhecidas por seus vícios e virtudes. Pretendia ainda publicar as conferências que realizou sobre Dante: Os Comentários sobre a Divina Comédia. Mas a morte abateu-o, impedindo a conclusão do livro.

A Peste Negra


A peste negra foi a mais trágica epidemia que a História registrou, tendo produzido um morticínio sem paralelo. Assim foi chamada por causa das manchas escuras que apareciam na pele dos enfermos. Como em outras epidemias, teve início na Ásia Central, espalhando-se por via terrestre e marítima em todas as direções.

Em 1334 causou 5.000.000 de mortes na Mongólia e no norte da China. Houve grande mortandade na Mesopotâmia e na Síria, cujas estradas ficaram juncadas de cadáveres dos que fugiam das cidades. No Cairo os mortos eram atirados em valas comuns e em Alexandria os cadáveres ficaram insepultos. Calcula-se em 24 milhões o número de mortos nos países do Oriente.

Em 1347 a epidemia alcançou a Criméia, o arquipélago grego e a Sicília. Em 1348 embarcações genovesas procedentes da Criméia aportaram em Marselha, no sul da França, ali disseminando a doença. Em um ano, a maior parte da população de Marselha foi dizimada pela peste.

Em 1349 a peste chegou ao centro e ao norte da Itália e dali se estendeu a toda a Europa. Em sua caminhada devastadora, semeou a desolação e a morte nos campos e nas cidades. Povoados inteiros se transformaram em cemitérios. Calcula-se que a Europa tenha perdido a metade de sua população.

Esta epidemia inspirou o livro Decamerão, de Giovanni Bocaccio, que viveu de 1313 a 1375. As cenas que descreve no prólogo do livro se passam na cidade de Florença, na Itália:

"Afirmo, portanto, que tínhamos atingido já o ano bem farto da Encarnação do Filho de Deus, de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itália, sobreveio a mortífera pestilência. Por iniciativa dos corpos superiores, ou em razão de nossas iniqüidades, a peste, atirada sobre os homens por justa cólera divina e para nossa exemplificação, tivera início nas regiões orientais, há alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade de pessoas vivas. Incansável, fora de um lugar para outro; e estendera-se, de forma miserável, para o Ocidente.

Na cidade de Florença, nenhuma prevenção foi válida, nem valeu a pena qualquer providência dos homens. A praga, a despeito de tudo, começou a mostrar, quase ao principiar a primavera do ano referido, de modo horripilante e de maneira milagrosa, os seus efeitos. A cidade ficou purificada de muita sujeira, graças a funcionários que foram admitidos para esse trabalho. A entrada nela de qualquer enfermo foi proibida. Muitos conselhos foram divulgados para a manutenção do bom estado sanitário. Pouco adiantaram as súplicas humildes, feitas em número muito elevado, às vezes por pessoas devotas isoladas, às vezes por procissões de pessoas, alinhadas, e às vezes por outros modos dirigidas a Deus.

A peste, em Florença, não teve o mesmo comportamento que no Oriente. Neste, quando o sangue saía pelo nariz, fosse de quem fosse, era sinal evidente de morte inevitável. Em Florença, apareciam no começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou na axila, algumas inchações. Algumas destas cresciam como maçãs; outras, como um ovo; cresciam umas mais, outras menos; chamava-as o populacho de bubões. Dessas duas referidas partes do corpo logo o tal tumor mortal passava a repontar e a surgir por toda parte. Em seguida, o aspecto da doença começou a alterar-se; começou a colocar manchas de cor negra ou lívidas nos enfermos. Tais manchas estavam nos braços, nas coxas e em outros lugares do corpo. Em algumas pessoas, as manchas apareciam grandes e esparsas; em outras, eram pequenas e abundantes. E do mesmo modo como, a princípio, o bubão fora e ainda era indício inevitável de morte futura, também as manchas passaram a ser mortais, depois, para os que as tinham instaladas.

Nem conselho de médico, nem virtude de mezinha alguma parecia trazer cura ou proveito para o tratamento de tais doenças. Ao contrário. Fosse porque a natureza da enfermidade não aceitava nada disso, fosse que a ignorância dos curandeiros não lhes indicasse de que ponto partir e, por isso mesmo, não se dava o remédio adequado. Tornara-se enorme a quantidade de curandeiros, assim como de cientistas. Contavam-se entre eles homens e mulheres que nunca haviam recebido uma lição de medicina. Assim como era certo que poucos se curavam, também é certo que, ao contrário desses, quase todos, após o terceiro dia do surgimento dos sinais referidos acima, faleciam. Sucumbiam uns mais cedo, outros mais tarde; a maioria ia-se para o túmulo sem qualquer febre, nem outra complicação.

Esta peste foi de extrema violência; pois ela atirava-se contra os sãos, a partir dos doentes, sempre que doentes e sãos estivessem juntos. Ela agia assim de modo igual àquele pelo qual procede o fogo: passa às coisas secas, ou untadas, estando elas muito próximas dele. A enfermidade ainda fez mais. Não apenas o conversar e o cuidar de enfermos contagiavam os sãos com esta doença, por causa da morte comum, porém mesmo o ato de mexer nas roupas, ou em qualquer outra coisa que tivesse sido tocada, ou utilizada por aqueles enfermos, parecia transferir, ao que bulisse, a doença referida.

É de causar espanto o ouvir aquilo que preciso dizer. Não fosse visto pelos olhos de muitos, assim como pelos meus, aquilo que se passou, dificilmente me atreveria a acreditar no que sucedera, e ainda menos a escrever, por mais merecedora de fé a pessoa pela qual eu o ouvisse contar. Garanto que foi de tal poder a peste mencionada, no capricho de transferir-se de um a outro mortal, que não passava apenas de homem para homem; muitas vezes chegou a fazer, de modo visível, o que se diz mais à frente, e que é muito mais: a coisa do homem doente. ou que morrera de tal doença, quando tocada por outro ser, animal, fora da espécie do homem, não apenas o contaminava como também o matava dentro de muito pouco tempo.

Deste fato tiveram os meus olhos (como há pouco se afirmou), certo dia, entre outras vezes, a seguinte experiência: as vestes rotas de um pobre sujeito, morto por essa doença, foram jogadas à rua. Dois porcos, de início, segundo costumam fazer, bom sacudiram-nas com o focinho, depois as seguraram com os dentes, cada um deles esfregando-as na própria cara. Apenas uma hora depois, após vezes umas convulsões, como se tivessem ingerido veneno, os dois porcos caíram mortos por terra, sobre os trapos em tão má hora jogados à rua.

De tais circunstâncias e muitas outras idênticas a estas, ou mesmo piores, nasciam muitos terrores e muitos lances de imaginação, naqueles que ainda estavam vivos. E quase tudo era dirigido para um fim bastante cruel: o de se ficar enojado dos enfermos e de se fugir das suas coisas, e deles. Agindo assim, cada um supunha estar garantindo a saúde para si mesmo.

Pessoas havia que julgavam que o viver com moderação e o evitar qualquer superfluidade muito ajudavam para se resistir ao mal. Formando o seu grupo exclusivista, tais pessoas viviam longe das demais. Recolhiam-se e trancavam-se em casas onde nenhum doente estivera. Não procuravam viver melhor. Moderadamente faziam uso de alimentos simples, assim como de vinhos muito bons. Fugiam a qualquer ato de luxúria. Não ficavam a palestrar com ninguém, nem queriam ouvir ainda falar de nenhum caso de morte, ou de doença, daqueles que estavam do lado de fora da casa que habitavam. Passavam as horas entretidos com a música e com os prazeres que pudessem ter.

Outras pessoas, levadas a uma opinião diversa desta, declaravam que, para tão imenso mal, eram remédios eficazes o beber abundantemente, o gozar com intensidade, o ir cantando de uma parte a outra, o divertir-se de todas as maneiras, o satisfazer o apetite fosse de que coisa fosse, e o rir e troçar do que acontecesse, ou pudesse suceder. Como diziam, assim procediam, do modo como lhes fosse possível, dia e noite. Iam ora a uma tasca, ora a outra; bebiam imoderadamente e sem modos. E com mais desbragamento agiam na casa alheia. obrigando os donos a escutar o que lhes desse na telha de dizer. E podiam cedo, agir assim sem grandes preocupações, porque cada um - quase como se não houvesse mais viver - já deixara ao léu as suas coisas, assim como deixara ao deus-dará a própria pessoa. Por isso, a maior parte das casas ficou sendo de moradia comum; utilizava-se delas o estranho, que as adentrasse, como delas teria feito uso o próprio dono. E, com este proceder inteiramente bestial, as pessoas punham-se sempre longe dos doentes, tanto quanto possível.

Entre tanta aflição e tanta miséria de nossa cidade, a reverenda autoridade das leis, quer divinas, quer humanas, desmoronara e dissolvera-se. Ministros e executores das leis, tanto quanto os outros homens, todos estavam mortos, ou doentes, ou haviam perdido os seus familiares, e assim não podiam exercer nenhuma função. Em conseqüência de tal situação, permitia-se a todos fazer aquilo que melhor lhes aprouvesse.

Inúmeras pessoas preferiam o caminho do meio, entre os dois acima assinalados. Não evitavam os bons acepipes, como os primeiros, nem, igual aos segundos, entregavam-se à bebida e a outras formas de dissolução. Ao contrário. Usavam todas as coisas, com suficiência e moderadamente, de acordo com o apetite. Não viviam fechados. Vagavam de um lugar a outro, levando, uns, flores nas mãos, ervas odoríferas outros, e outros, ainda, diferentes tipos de especiarias; levavam as ervas ao nariz, considerando excelente coisa o confortar o cérebro com o seu perfume. Era como se todo o ar estivesse tomado e infectado pelo odor nauseabundo dos corpos mortos, das doenças e dos remédios.

Alguns faziam alarde de sentimento mais cruel (como se, porventura, tal sentimento fosse o mais seguro), e diziam que não havia remédio melhor, nem tão eficaz, contra as pestilências, do que abandonar o lugar onde se encontravam, antes que essas pestilências ali surgissem. Induzidos por essa forma de pensar, não se importando fosse com o que fosse, a não ser com eles mesmos, inúmeros homens e mulheres deixaram a própria cidade, as próprias moradias, os seus lugares, seus parentes e suas coisas, e foram em busca daquilo que a outrem pertencia, ou, pelo menos, que era de seu condado. Para eles, era como se a cólera de Deus estivesse destinada não a castigar a iniqüidade dos homens com aquela peste, onde eles estivessem, e sim a oprimir, comovido, somente os que teimassem em ficar dentro dos muros dc sua cidade. Ou como se essa cólera fosse apenas um aviso para que ninguém permanecesse em determinada cidade, por ter chegado a hora derradeira dessa mesma cidade. Como, de tais opinadores, nem todos morriam, e que, assim sendo, nem todos continuavam a viver, muitos sujeitos, de cada cidade, e em toda parte, caíam enfermos e, quase abandonados à própria sorte, definhavam inteiramente. Eles mesmos, quando estavam sãos, deram exemplo aos que continuavam sadios, para que fugissem daqueles que tombavam sob as garras do mal.

Vamos pôr de lado a circunstância de um cidadão ter repugnância de outro; de quase nenhum vizinho socorrer o outro; de os parentes, juntos, pouquíssimas vezes ou jamais se visitarem, e, quando faziam visita um ao outro, ainda assim só o fazerem de longe. Tal inquietação entrara, com tanto estardalhaço, no peito dos homens e das mulheres, que um irmão deixava o outro; o tio deixava o sobrinho; a irmã, a irmã; e, freqüentemente, a esposa abandonava o marido. Pais e mães sentiam- se enojados em visitar e prestar ajuda aos filhos, como se o não foram (e esta é a coisa pior, difícil de se crer).

Em decorrência de tais condições, àqueles para os quais a multidão era inestimável, aos homens e mulheres que ficavam doentes, não restava outro recurso senão a caridade dos amigos (e destes poucos restavam), ou da avareza dos empregados domésticos. A estes eram pagos fabulosos salários, e tinham tratamento superior ao devido, ainda que, apesar disto, muitos patrões não enfermassem. Grande parte dos patrões era formada por homens e mulheres de elevado talento, e a maioria desses serviços não era usada. Os empregados quase não serviam para outra coisa senão apresentar algo que fosse pedido pelos doentes, ou para os fitar, quando eles faleciam. Quando prestavam esses serviços, freqüentemente eles mesmos se perdiam, junto com o ganho alcançado.

Pelo fato de serem os enfermos abandonados pelos vizinhos, pelos parentes e amigos, tanto quanto pela circunstância de escassearem os criados, apareceu um hábito talvez nunca praticado antes. O hábito foi que nenhuma mulher, por mais pudica, bela ou nobre que fosse, se sentia incomodada por ter a seu serviço, caso adoecesse, um homem, ainda que desconhecido; não importava que tipo fosse de homem, jovem ou não. A ele, sem nenhum pudor, ela mostrava qualquer parte do próprio corpo, do mesmo modo que o exporia a outra mulher, quando a necessidade de sua enfermidade o exigisse. Para as mulheres que escaparam com vida, isto foi, quiçá, motivo de deslizes e de desonestidades, no período que se seguiu à peste.Além disto, sobreveio a morte de inúmeras pessoas, que, certamente, se tivessem merecido ajuda, teriam sobrevivido. Em decorrência da escassez de serviços no momento azado, que os doentes precisavam mas não alcançavam, e também em vista da violência da peste, era tão grande o número dos que faleciam, de dia e de noite, na cidade, que provocava estupefação escutar, e ainda mais ver, o que ocorria. Porque por força das circunstâncias, muitas coisas, que contrariavam os costumes básicos de qualquer cidadão, começaram a existir entre os que permaneciam vivos.

Costumava-se (como ainda hoje o vemos) reunirem-se as mulheres, parentes e vizinhas na residência do que morria. Ali, em companhia das mulheres mais aparentadas ao defunto, elas choravam. De outro lado, diante da casa do morto, vizinhos e inúmeros cidadãos reuniam-se com os seus achegados; de acordo com a categoria do morto, apresentava-se o padre. Desse modo, o falecido era conduzido à igreja que escolhera momentos antes de morrer. Os seus pares levavam-no aos ombros, com pompa fúnebre, de velas e de cantos. Tais cerimônias quase se extinguiram, no todo ou parcialmente, quando principiou a crescer o furor da peste. E muitas novidades vieram substituí-las. Não apenas faleciam as pessoas sem que houvesse grande número de mulheres à volta, como também eram incontáveis as que partiam desta vida sem nenhuma testemunha.

Eram em número reduzidíssimo aqueles aos quais eram concedidos os prantos piedosos e as lágrimas sentidas de seus próprios parentes. Em vez de prantos e de lágrimas, passaram a usar-se, para a maior parte, os risos, as pilhérias, e as festas em boa parceria. Tal costume foi, gostosamente, aceito pelas mulheres, na sua maioria, após terem elas postergado a piedade feminina; e afirmavam que o faziam para salvação da alma dos que haviam partido. Fazia-se raro o caso daqueles cujos corpos tinham, indo para a igreja, o cortejo de dez ou doze de seus vizinhos. O féretro destes era carregado não por honrados e prestimosos cidadãos, porém por uma espécie de padioleiros, que se originaram da gente mais humilde, que recebiam o título de coveiros, e que apenas usavam seus préstimos por um preço combinado com antecedência. Tais padioleiros carregavam os caixões, a passos apressados, não à igreja que os defuntos haviam escolhido antes do passamento, porém, com freqüência, ao templo mais próximo. Os padioleiros caminhavam atrás de quatro ou de cinco clérigos, com raras velas; as mais das vezes iam mesmo sem nenhum clérigo. Estes, quando os havia, não perdiam muito fôlego em seus ofícios solenes; ajudados pelos tais coveiros, depositavam os caixões, de preferência, na primeira cova vazia que encontravam.

O tratamento dado às pessoas mais pobres, e à maioria da gente da classe média, era ainda de maior miséria. Em sua maioria, tal gente era retida nas próprias casas, ou por esperança, ou por pobreza. Ficando, deste modo, nas proximidades dos doentes e dos mortos, os que sobreviviam ficavam doentes aos milhares por dia; como não eram medicados, nem recebiam ajuda de espécie alguma, morriam todos quase sem redenção. Muitos eram os que findavam seus dias na rua, de dia ou de noite. Inúmeros outros, mesmo morrendo em suas residências, levavam os seus vizinhos a não se manifestarem, mais por causa do mau cheiro dos próprios corpos em decomposição, do que por outro motivo. De pessoas assim e de outras, que faleciam em toda parte, as casas estavam cheias.

Um modo único de proceder, o mesmo sempre, era praticado pela maioria dos vizinhos. Procediam estes levados não menos pelo terror de que fossem afetados pela corrupção dos corpos, do que pela caridade que alimentavam quanto aos falecidos. Sós, ou auxiliados por alguns portadores, quando logravam achá-los, retiravam das residências os cadáveres; colocavam os corpos à frente da porta da casa, onde, sobretudo na parte da manhã, eram vistos cm quantidade inumerável pelos que perambulavam pela cidade e que, vendo-os, adotavam medidas para o preparo e remessa dos caixões.

Tão grande era o número de mortos que, escasseando os caixões, os cadáveres eram postos em cima de simples tábuas. Não foi um só o caixão a receber dois ou três mortos simultaneamente. Também não sucedeu uma vez apenas que esposa e marido, ou dois e três irmãos, ou pai e filho, foram encerrados no mesmo féretro. Muitíssimos destes fatos poderiam ter sido narrados.

E infinitas vezes se viu que, indo dois clérigos, com uma cruz, por alguém, atrás do primeiro se colocarem três ou quatro caixões, carregados por seus respectivos portadores; assim sendo, onde supunham os padres ter um morto para enterrar, havia sete ou oito; com freqüência, até mais. Tais mortos excedentes eram, por esta razão, homenageados com alguma lágrima, às vezes, ou alguma vela, ou alguma companhia. A tal estado chegou a coisa, que não mais se tratava, quanto aos homens que morriam, com mais carinho do que se trata agora das cabras. Porque, com clara evidência pareceu ter de se passar, pacientemente, pelo que o curso natural dos eventos não conseguira mostrar, aos mais cultos, com prejuízos pequenos e esquisitos. Geralmente, a grandeza de um mal costuma transmudar os simples, ao que parece, em peritos e negligentes.

Para dar sepultura à grande quantidade de corpos que se encaminhava a qualquer igreja, todos os dias, quase a toda hora, não era suficiente a terra já sagrada; e menos ainda seria suficiente se se desejasse dar a cada corpo um lugar próprio, conforme o antigo costume. Por isso, passaram-se a edificar igrejas nos cemitérios, pois todos os lugares estavam repletos, ainda que alguns fossem muito grandes; punham- se nessas igrejas, às centenas, os cadáveres que iam chegando; e eles eram empilhados como as mercadorias nos navios; cada caixão era coberto, no fundo da sepultura, com pouca terra; sobre ele, outro era posto, o qual, por sua vez, era recoberto, até que se atingisse a boca da cova, ao rés do chão. E, para que não se remexa em cada minúcia de nossas antigas misérias, acontecidas no interior da cidade, afirmo que, mesmo tendo um período adverso passado por ela, riem por isso deixou a peste de poupar algo ao condado.

No condado - vamos pôr de parte os castelos, que, em sua pequenez, eram parecidos às cidades -, os operários, míseros e pobres, faleciam. Tombavam sem vida, pelas vilas isoladas e pelos campos, com suas famílias, sem nenhuma ajuda de médico, nem auxílio de servidor; faleciam não como homens, e sim como animais, nas ruas, nas plantações, nas casas, dia e noite, ao deus-dará. Em decorrência disto, os trabalhadores do campo, conturbados em seus hábitos e parecendo transformados em moradores lascivos da cidade, não se importavam com nada, nem desejavam fazer coisa alguma. Como se aguardassem o dia em que seriam levados pela morte, todos se esforçavam, diligentemente, ao máximo, não em auxiliar a produção dos frutos futuros dos animais e das terras, assim como das antigas canseiras, mas sim em dar cabo dos frutos que estavam à mão. Sucedeu, pois, que os bois, os muares, as ovelhas, as cabras, os porcos, as galinhas, e mesmo os cachorros, tão fiéis sempre aos homens, passaram a perambular pelos campos, indiferentemente, por se verem expulsos da moradia de seus donos. As forragens, deixadas ao abandono nos campos, não apenas não tinham sido apanhadas, como nem sequer foram cortadas. Muitos animais, parecidos a seres pensantes, engordavam, pois pastavam bem no decorrer do dia, passavam a noite em suas casas, e não sofriam restrições da parte de nenhum pastor.

O que se poderá dizer ainda - pondo-se de parte o condado, para se tornar a tratar da cidade -, a não ser que a crueza do céu foi de tal monta e tanta, e quiçá também o tenha sido, em parte, a crueldade dos homens, que, no período que vai de março a julho, mais de 100 000 pessoas é certo que foram arrebatadas da vida, no circuito dos muros da cidade de Florença? Nesse número estão incluídos tanto aqueles que foram levados pela força da pestífera doença, como aqueles que, doentes, foram mal atendidos, ou abandonados às contingências, em razão do medo que os sãos alimentavam.

Antes que sobreviesse este mortal evento, ninguém suporia existir tanta gente dentro da cidade. Quantos vastos palácios, quantas casas magníficas, quantas residências nobres, antes cheias de famílias, de senhores e de senhoras, ficaram vagos, perdendo até o derradeiro serviçal! Quantas linhagens memoráveis, quantas heranças importantes, quantas riquezas famosas foram despojadas de sucessor legítimo! Quantos valorosos homens, quantas mulheres belíssimas, quantos galantes moços - que Galeno teria considerado mais do que sadios, assim como Hipócrates, Esculápio e outros - tomaram o seu almoço de manhã com os seus parentes, colegas, amigos, e, em seguida, na tarde desse mesmo dia, jantaram no outro mundo, em companhia de seus antepassados!"

Fontes: "Decamerão" de Bocaccio; Grandes Epidemias da História

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A Máscara da Morte Escarlate

"A 'Morte Escarlate' havia muito devastava o país. Jamais se viu peste tão fatal ou tão hedionda. O sangue era sua revelação e sua marca ? a cor vermelha e o horror do sangue. Surgia com dores agudas e súbita tontura, seguidas de profuso sangramento pelos poros, e então a morte.

As manchas rubras no corpo e principalmente no rosto da vítima eram o estigma da peste que a privava da ajuda e compaixão dos semelhantes. E entre o aparecimento, a evolução e o fim da doença não se passava mais de meia hora.

Mas o príncipe Próspero era feliz, destemido e astuto. Quando a população de seus domínios se reduziu à metade, mandou vir à sua presença um milhar de amigos sadios e divertidos dentre os cavalheiros e damas da corte e com eles retirou-se, em total reclusão, para um dos seus mosteiros encastelados. Era uma construção imensa e magnífica, criação do gosto excêntrico, mas grandioso do próprio príncipe. Circundava-a a muralha forte e muito alta, com portas de ferro. Depois de entrarem, os cortesãos trouxeram fornalhas e grandes martelos para soldar os ferrolhos.

Resolveram não permitir qualquer meio de entrada ou saída aos súbitos impulsos de desespero do que estavam fora ou aos furores do que estavam dentro. O mosteiro dispunha de amplas provisões. Com essas precauções, os cortesãos podiam desafiar o contágio. O mundo externo que cuidasse de si mesmo. Nesse meio-tempo era tolice atormentar-se ou pensar nisso. O príncipe havia providenciado toda a espécie de divertimentos. Havia bufões, improvisadores, dançarinos, músicos, Beleza, vinho. Lá dentro, tudo isso mais segurança. Lá fora, a "Morte Escarlate".

Lá pelo final do quinto ou sexto mês de reclusão, enquanto a peste grassava mais furiosamente lá fora, o príncipe Próspero brindou os mil amigos com um magnífico baile de máscaras.

Era um espetáculo voluptuoso, aquela mascarada. Mas antes vou descrever onde ela aconteceu. Eram sete ? um suíte imperial. Em muitos palácios, porém, essas suítes formam uma perspectiva longa e reta, quando as portas se abrem até se encostarem nas paredes de ambos os lados, de tal modo que a vista de toda essa sucessão é quase desimpedida. Ali, a situação era muito diferente, como se devia esperar da paixão do duque pelo fantástico. Os salões estavam dispostos de maneira tão irregular que os olhos só podiam abarcar pouco mais de cada um por vez. Havia um desvio abrupto a cada vinte ou trinta metros e, a cada desvio, um efeito novo. À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma alta e estreita janela gótica dava para um corredor fechado que acompanhava as curvas da suíte.

A cor dos vitrais dessas janelas variava de acordo com a tonalidade dominante na decoração do salão para o qual se abriam. O da extremidade leste, por exemplo, era azul ? e de um azul intenso eram suas janelas. No segundo salão os ornamentos e tapeçarias, assim como as vidraças, eram cor de púrpura. O Terceiro era inteiramente verde, e verdes também os caixilhos das janelas. O quarto estava mobiliado e iluminado com cor alaranjada ? o quinto era branco, e o sexto, roxo. O sétimo salão estava todo coberto por tapeçarias de veludo negro, que pendiam do teto e pelas paredes, caindo em pesadas dobras sobre um tapete do mesmo material e tonalidade. Apenas nesse salão, porém, a cor das janelas deixava de corresponder à das decorações. AS vidraças, ali, eram escarlates ? uma violenta cor de sangue.

Ora, em nenhum dos sete salões havia qualquer lâmpada ou candelabro, em meio à profusão de ornamentos de ouro espalhados por todos os cantos ou dependurados do teto. Nenhuma lâmpada ou vela iluminava o interior da seqüência de salões. Mas nos corredores que circundavam a suíte havia, diante de cada janela, um pesado tripé com um braseiro, que projetava seus raios pelos vitrais coloridos e, assim, iluminava brilhantemente a sala, produzindo grande número de efeitos vistosos e fantásticos. Mas no salão oeste, ou negro, o efeito do clarão de luz que jorrava sobre as cortinas escuras através das vidraças da cor do sangue era desagradável ao extremo e produzia uma expressão tão desvairada no semblante do que entravam que poucos no grupo sentiam ousadia bastante para ali penetrar.

Era também nesse apartamento que se achava, encostado à parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo oscilava de um lado para o outro com um bater surdo, pesado, monótono; quando o ponteiro dos minutos completava o circuito do mostrador e o relógio ia dar as horas, de seus pulmões de bronze brotava um som claro e alto e grave e extremamente musical, mas em tom tão enfático e peculiar que, ao final de cada hora, os músicos da orquestra se viam obrigados a interromper momentaneamente a apresentação para escutar-lhe o som; com isso os dançarinos forçosamente tinham de parar as evoluções da valsa e, por um breve instante, todo o alegre grupo mostrava-se perturbado; enquanto ainda soavam os carrilhões do relógio, observava-se que os mais frívolos empalideciam e os mais velhos e serenos passavam a mão pela teste, como se estivessem num confuso devaneio ou meditação. Mas, assim que os ecos desapareciam interiormente, risinhos levianos logo se riam do próprio nervosismo e insensatez e, em sussurros, diziam uns aos outros que o próximo soar de horas não produziria neles a mesma emoção; mas, após um lapso de sessenta minutos (que abrangem três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa), quando o relógio dava novamente as horas, acontecia a mesma perturbação e idênticos tremores e gestos de meditação de antes.

Apesar disso tudo, que festa alegre e magnífica! Os gosto do duque eram estranhos. Sabia combinar cores e efeitos. Menosprezando a mera decoração da moda, seus arranjos mostravam-se ousados e veementes, e suas idéias brilhavam com um esplendor bárbaro. Alguns podiam considerá-lo louco, sendo desmentidos por seus seguidores. Mas era preciso ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo para convencer-se disso.

Para essa grande festa, ele próprio dirigiu, em grande parte, a ornamentação cambiante dos sete salões, e foi seu próprio gosto que inspirou as fantasias dos foliões. Claro que eram grotescas. Havia muito brilho, resplendor, malícia e fantasia ? muito daquilo que foi visto depois no Hernani. Havia figuras fantásticas com membros e adornos que não combinavam. Havia caprichos delirantes como se tivessem sido modelados por um louco. Havia muito de beleza, muito de libertinagem e de extravagância, algo de terrível e um tanto daquilo que poderia despertar repulsa. De um ao outro, pelos sete salões, desfilava majestosamente, na verdade, uma multidão de sonhos. E eles ? os sonhos ? giravam sem parar, assumindo a cor de cada salão e fazendo com que a impetuosa música da orquestra parecesse o eco de seus passos. Daí a pouco soa o relógio de ébano colocado no salão de veludo. Então, por um momento, tudo se imobiliza e é tudo silêncio, menos a voz do relógio. Os sonhos se congelam como estão. Mas os ecos das batidas extinguem-se ? duraram apenas um instante ? e risos levianos, mal reprimidos, flutuam atrás dos ecos, à medida que vão morrendo.

E logo a música cresce de novo, e os sonhos revivem e rodopiam mais alegremente que nunca, assumindo as cores das muitas janelas multicoloridas, através das quais fluem os raios luminosos dos tripés. Ao salão que fica a mais oeste de todos os sete, porém, nenhum dos mascarados se aventura agora; pois a noite está se aproximando do fim: ali flui uma luz mais vermelha pelos vitrais cor de sangue e o negror das cortinas escuras apavora; para aquele que pousa o pé no tapete negro, do relógio de ébano ali perto chega um clangor ensurdecido mais solene e enfático que aquele que atinge os ouvidos dos que se entregam às alegrias nos salões mais afastados.

Mas nesses outros salões cheios de gente batia febril o coração da vida. E o festim continuou em remoinhos até que, afinal, começou a soar meia-noite no relógio. Então a música cessou, como contei, as evoluções dos dançarinos se aquietaram, e, como antes, tudo ficou intranqüilamente imobilizado. Mas agora iriam ser doze as badaladas do relógio; e desse modo mais pensamentos talvez tenham se infiltrado, por mais tempo, nas meditações dos mais pensativos, entre aqueles que se divertiam. E assim também aconteceu, talvez, que, antes de os últimos ecos da última badalada terem mergulhado inteiramente no silêncio, muitos indivíduos na multidão puderam perceber a presença de uma figura mascarada que antes não chamara a atenção de ninguém. E, ao se espalhar em sussurros o rumor dessa nova presença, elevou-se aos poucos de todo o grupo um zumbido ou murmúrio que expressava a reprovação e surpresa ? e, finalmente, terror, horror e repulsa.

Numa reunião de fantasmas como esta que pintei, pode-se muito bem supor que nenhuma aparência comum poderia causar tal sensação. Na verdade, a liberdade da mascarada dessa noite era praticamente ilimitada; mas a figura em questão ultrapassava o próprio Herodes, indo além dos limites até do indefinido decoro do príncipe. Existem cordas, nos corações dos mais indiferentes, que não podem ser tocadas sem emoção. Até para os totalmente insensíveis, para quem a vida e morte são alvo de igual gracejo, existem assuntos com os quais não se pode brincar. Na verdade, todo o grupo parecia agora sentir profundamente que na fantasia e no rosto do estranho não existia graça nem decoro. A figura era alta e esquálida, envolta do pés a cabeça em veste mortuárias. A máscara que escondia o rosto procurava assemelhar-se de tal forma com a expressão enrijecida de um cadáver que até mesmo o exame mais atento teria dificuldade em descobrir o engano. Tudo isso poderia ter sido tolerado, e até aprovado, pelos loucos participantes da festa, se o mascarado não tivesse ousado encarnar o tipo da Morte Escarlate. Seu vestuário estava borrifado de sangue ? e sua alta testa, assim como o restante do rosto, salpicada com o horror escarlate.

Quando os olhos do príncipe Próspero pousaram nessa imagem espectral (que andava entre os convivas com movimentos lentos e solenes, como se quisesse manter-se à altura do papel), todos perceberam que ele foi assaltado por um forte estremecimento de terror ou repulsa, num primeiro momento, mas logo o seu semblante tornou-se vermelho de raiva.

- Quem ousa... ? perguntou com voz rouca aos convivas que estavam perto ? quem ousa nos insultar com essa caçoada blasfema? Peguem esse homem e tirem sua máscara, para sabermos quem será enforcado no alto dos muros, ao amanhecer!

O príncipe Próspero estava na sala leste, ou azul, ao dizer essas palavras. Elas ressoaram pelos sete salões, altas e claras, pois o príncipe era um homem ousado e robusto e a música se calara com um sinal de sua mão.

O príncipe achava-se no salão azul com um grupo de pálidos convivas ao seu lado. Assim que falou, houve um ligeiro movimento dessas pessoas na direção do intruso, que, naquele momento, estava bem ao alcance das mãos, e agora, com passos decididos e firmes, se aproximava do homem que tinha falado. Mas por causa de um certo temor sem nome, que a louca arrogância do mascarado havia inspirado em toda a multidão, não houve ninguém que estendesse a mão para detê-lo; de forma que, desimpedido , passou a um metro do príncipe e, enquanto a vasta multidão, como por um único impulso, se retraía do centro das salas para as paredes, ele continuou seu caminho sem deter-se, no mesmo passo solene e medido que o distinguira desde o inicio, passando do salão azul para o púrpura ? do púrpura para o verde ? do verde para o alaranjado ? e desse ainda para o branco ? e daí para o roxo, antes que se fizesse qualquer movimento decisivo para dete-lo.

Foi então que o príncipe Próspero, louco de raiva e vergonha por sua momentânea covardia, correu apressadamente pelos seis salões, sem que ninguém o seguisse por causa do terror mortal que tomara conta de todos. Segurando bem alto um punhal desembainhado, aproximou-se, impetuosamente, até cerca de um metro do vulto que se afastava, quando este, ao atingir a extremidade do salão de veludo, virou-se subitamente e enfrentou seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo ? e o punhal caiu cintilando no tapete negro, sobre o qual, no instante seguinte, tombou prostrado de morte o príncipe Próspero. Então, reunindo a coragem selvagem do desespero, um bando de convivas lançou-se imediatamente no apartamento negro e, agarrando o mascarado, cuja alta figura permanecia ereta e imóvel à sombra do relógio de ébano, soltou um grito de pavor indescritível, ao descobrir que, sob a mortalha e a máscara cadavérica, que agarravam com tamanha violência e grosseria, não havia qualquer forma palpável.

E então reconheceu-se a presença da Morte Escarlate. Viera como um ladrão na noite. E um a um foram caindo os foliões pelas salas orvalhadas de sangue, e cada um morreu na mesma posição de desespero em que tombou no chão. E a vida do relógio de Ébano dissolveu-se junto com a vida do último dos dissolutos. E as chamas dos braseiros extinguiram-se. E o domínio ilimitado das Trevas, da Podridão e da Morte Escarlate estendeu-se sobre tudo."



por Edgar Allan Poe