terça-feira, 31 de maio de 2016

Cadáveres Incorruptos

Bernadette Soubirous morreu em 1879, aos 35 anos.

Ao som da última trombeta, os mortos ressuscitarão incorruptíveis.— 1 Coríntios 15:52

Definição: A incorruptibilidade é a ausência de decomposição em cadáveres humanos ou partes de corpos por semanas, meses e até mesmo anos (algumas vezes, séculos), mais notavelmente em corpos enterrados sem embalsamamento e em covas onde se esperaria uma rápida deterioração.

O que os crentes dizem: Cadáveres incorruptos são um sinal de Deus com respeito à santidade do falecido e também um chamado para que os devotos busquem essa santidade.

O que os céticos dizem: A incorruptibilidade é uma combinação de vários fatores mundanos, biológicos e geológicos, nenhum dos quais de natureza divina. A temperatura, a quantidade de oxigênio e a ausência ou presença de fungos e bactérias representam seu papel no tempo que um corpo leva para se decompor. Além disso, é possível que a Igreja Católica tenha embalsamado em segredo muitos dos "incorruptos" a fim de promover uma grande aceitação de sua divindade.

Qualidade das provas existentes: Moderada.

Probabilidade de o fenômeno ser autêntico: Moderada.

A carne apodrece.

Assim que a essência da vida é removida de um corpo, a precipitação rumo à decomposição é inevitável. Tão logo o fluxo de sangue quente, cheio de oxigênio, para de fluir, e os órgãos do corpo são privados de sua condição sine qua non, não tarda para que o corpo seja absorvido pela biosfera, dessa vez pelo lado inanimado do paradigma vida e morte.

Com certeza, essa decomposição pode ser evitada pelo embalsamamento, refrigeração e sepultamento em túmulos livres de oxigênio. Alguns corpos exumados, enterrados há milhares de anos, mostram uma preservação notável.

Mas a carne apodrece. E, no final, tudo o que vive um dia irá morrer, e tudo o que está morto se tornará pó. Pode levar éons ou até mais, como podemos ver ao encontrarmos corpos intactos de mastodontes pré-históricos, preservados apenas por terem sido rapidamente congelados logo após a morte.

Há muito, a Igreja Católica permite a veneração de corpos, e até mesmo de partes, como mãos ou corações de santos já falecidos.

Um dos incorruptos mais venerados é santa Bernadete Soubirous, a santa para quem, segundo os registros, a Virgem Maria apareceu em Lourdes, na França, em 1858. Bernadete morreu em 1879, aos 35 anos. Ela foi enterrada do modo como morreu, sem ser embalsamada ou preservada de forma alguma.

O corpo de Bernadete foi exumado em 1909, 30 anos após sua morte. Segundo testemunhas, quase não havia sinal de decomposição, além do fato de o corpo estar um pouco "emaciado". Seus lábios haviam encolhido ligeiramente, de modo que os dentes ficavam parcialmente visíveis, e o nariz também encolhera um pouco. Segundo os registros, suas mãos estavam perfeitamente conservadas e a pele era de um branco fosco. O rosário que ela segurava havia enferrujado. Suas roupas estavam úmidas, mas o corpo não exalava nenhum cheiro de putrefação. As freiras removeram sua indumentária, lavaram o corpo e vestiram-na com um hábito limpo. Ela então foi novamente enterrada, junto com um documento detalhando as especificidades da exumação.

Dez anos depois, com o processo da canonização de Bernadete correndo a todo vapor (ela foi, por fim, canonizada em 1925), seu corpo foi mais uma vez exumado. Ele encontrava-se no mesmo estado que dez anos antes, exceto por uma leve descoloração do rosto, fato atribuído à lavagem durante a primeira exumação. Bernadete foi novamente enterrada na presença do bispo.

Em 1925, o ano de sua canonização, o corpo de Bernadete foi exumado pela última vez.

Dessa vez, ele não seria novamente enterrado, mas exibido para que todos os devotos pudessem vê-la e venerá-la.

Uma fina máscara de cera foi colocada sobre seu rosto e mãos, visto que os olhos e as bochechas haviam encolhido um pouco. Há também rumores de que injetaram fluido embalsamador em seu corpo para prevenir uma futura decomposição, embora não haja provas quanto a isso. Tampouco as declarações sob juramento de médicos, freiras e testemunhas, coletadas após as exumações, mencionam qualquer espécie de proteção, afora a lavagem do corpo.

No entanto, além da lavagem e da preparação do corpo para exibição, os médicos, a pedido do bispo de Nevers, realizaram também uma autópsia em Bernadete. Eles removeram a parte de trás das quinta e sexta vértebras, pedaços do diafragma e do fígado (o qual, segundo os registros, mostrava-se macio, com uma consistência "quase normal"), as duas rótulas e fragmentos dos músculos externos das coxas. Todos esses pedaços foram considerados relíquias sagradas e entregues à Igreja Católica.

Bernadete foi então colocada sob uma redoma de vidro fechada a vácuo e exposta na capela do Convento de Saint Gildard, em Nevers, na França. Seu corpo permanece ali até hoje, mais de 75 anos depois, ainda em perfeito estado, "incorrupto".

Seria a incorruptibilidade de Bernadete um sinal de Deus?

Os crentes dizem "sem dúvida". Os céticos: "Dificilmente. Sua preservação decorre de condições fortuitas à época do primeiro sepultamento e, para os que acreditam em conspiração, da possibilidade de que 'a simples lavagem' do corpo seja 'qualquer coisa, menos isso'."

Todavia, as explicações científicas não satisfazem totalmente os curiosos. Há relatos de corpos enterrados sob condições extremamente "favoráveis à decomposição" — túmulos escavados em solo úmido, enlameado etc. — e de corpos de santos que permanecem intactos, sem o menor sinal de deterioração.

Os santos católicos não são os únicos que permanecem incorruptos após a morte. Há registros de homens e mulheres considerados santos em outras religiões que foram encontrados em perfeito estado após várias décadas enterrados.

Um sinal de Deus? Ou apenas um acaso feliz da biologia que ainda não entendemos?

A resposta a essa questão depende — quase totalmente — de para quem você pergunta.


Fonte: Os 100 Maiores Mistérios do Mundo - Stephen J. Spugnesi - Difel 2004

O Fígado


Minha primeira lembrança é ter aberto a porta. Parado, com os dois pés sobre o tapete com um irônico “Bem-vindo”, estava um fígado. Mesmo para um órgão do corpo humano, ele não tinha boa aparência, parecendo judiado pela vida. Era um pouco maior que eu e trazia uma das mãos escondida atrás de seu corpo gelatinoso.

— Em que posso ajudá-lo? — perguntei.

— Não me reconhece? — replicou o fígado.

Olhei para ele cuidadosamente e respondi:

— Não, acho que não. Parece ser um fígado completamente acabado, mas acho que nunca vi você em toda a minha vida.

Meu convidado parado à porta pareceu soltar um suspiro desolado. Em seguida, olhou diretamente para os meus olhos. Jamais havia sido encarado por um fígado antes. Um leve tremor percorreu meu corpo.

— Tudo bem, eu já esperava isso — comentou o órgão. — Eu vim aqui para me vingar de todos os maus-tratos que já recebi. Vim aqui para matá-lo.

Fiquei sem saber o que fazer ou responder. Por instantes, tanto eu quanto o fígado permanecemos na mesma posição. Lentamente, ele começou a mover sua mão escondida. Assim que enxerguei o reflexo da luz na faca que ele trazia, dei-me conta de que a ameaça era verdadeira. Ele estava ali para me matar.

Rapidamente, fechei a porta. Mas o fígado jogou-se na minha direção, dando com o ombro na porta. Sua força era descomunal. Fui ao chão, enquanto ele entrava na sala.
Encontrava-me estirado no solo, com um fígado de quase dois metros, segurando uma faca e com raiva mortal de mim, parado na minha frente.

— Por que você quer fazer isso comigo? — perguntei, desesperado.

— Por quê? Por quê? Você ainda tem a coragem de perguntar isso? — exclamava o fígado, completamente alterado.

Notei que tinha feito a pergunta errada. Ele prosseguiu, gritando:

— Que tal anos e anos sem a menor preocupação comigo? Noites intermináveis regadas a cerveja, uísque e tudo o que tivesse álcool? Por que toda essa falta de consideração comigo?

— Mas eu...

— Cala a boca! Cala essa maldita boca! — ele gritava, segurando a faca a poucos centímetros de meu pescoço. Eu estava com medo. Ele respirou fundo e perguntou com calma: — Por que você nunca fumou?

Fiquei pasmo com a questão dele. Tentei disfarçar meu medo e respondi com a voz ainda trêmula:

— Não sei, nunca tive vontade.

— Então! Seu filho de uma puta insensível. Por que o pulmão você sempre tratou bem? Por que cuidava do coração? Rim, pâncreas, tudo funcionando direitinho. Tudo com tratamento VIP. Mas não eu. Não o fígado. Pra mim, a menor bola. Pisando, chutando, maltratando todos os dias. Mas não hoje. Hoje é a minha vez.

Tive que concordar com o fígado parado diante de mim. Não podia culpá-lo por tomar essa atitude. Havia sido negligente com ele e, talvez, merecesse essa retaliação.

— Desculpe, você tem toda razão — tentei ser humilde e reconhecer meu erro.

Ele não disse nada, mas não tinha mais o olhar de ódio. Achei que o momento era favorável e continuei:

— Sei que não dei a você o melhor tratamento do mundo, mas...

— Ah, mas você é hipócrita mesmo. Não deu “o melhor tratamento do mundo”? Olhe pra mim! Estou cheio de cicatrizes, de marcas. Você matou minhas células. Pareço ter o dobro da idade dos outros órgãos. Você acha que isso me faz sentir como? Em conversas com meus companheiros do corpo, sou deixado de lado, tratado como pária. Como um excluído. Até o apêndice, que não serve pra nada, tem mais respeito que eu junto aos outros órgãos. Ah, como eu lhe odeio! Mas isso termina hoje.

O fígado veio para cima de mim. Tentou dar-me uma facada, mas desviei com agilidade. Pus-me em pé e saí correndo pela porta.

Olhei para trás, esperando que ele não aparecesse. Torcia para que ficasse com vergonha de sair correndo na rua. Afinal, não é todo dia que se enxerga um fígado com uma lâmina na mão tentando tirar a vida de seu hospedeiro.

Atravessei a avenida, escapando de ser atropelado por dois carros. Não olhava para trás. Corria com todas as minhas forças. Foi quando descobri que vergonha não é uma característica hepática. Cego pelo ódio, ele me perseguia tenazmente. Esbravejava:

— Volte, seu desgraçado! Vai aprender a me respeitar!

Não sabia a que distância estava dele. Corria pela calçada, desviando das pessoas. Tinha a consciência de que não poderia ficar ali por muito tempo. Teria que achar outro caminho. Virei para a direita, abri a porta do primeiro estabelecimento e entrei.

Era um bar no estilo de um pub irlandês. Nas mesas, no balcão e até em pé, pessoas bebendo cerveja e chope. Percebi que tinha errado em minha escolha, mas agora era tarde. Precisava me esconder.

Corri para uma mesa no canto mais escuro do local. Nesse momento, ouvi a porta se abrir com um estrondo. O fígado entrara.

Sua primeira reação foi de pânico. Olhava em volta de si e enxergava as pessoas bebendo com prazer, deliciando o malte da cerveja. Todos, sem exceção, destruindo seus fígados.

O fígado que me perseguia indignou-se:

— Seus assassinos! Sádicos! Psicopatas! Vou matar cada um de vocês! Arrancarei as unhas dos pés e das mãos de seus filhos – esbravejava, apontando a faca para os frequentadores do local.

Logo em seguida, a expressão da sua face mudou completamente. O fígado entristeceu-se e caiu de joelhos no chão. Para a surpresa de todos, começou a chorar.

Foi uma cena tocante. Jamais havia visto um órgão do corpo humano derramar lágrimas, exceto as próprias glândulas lacrimais. Compungido, ergui-me do meu pretenso esconderijo e me dirigi ao fígado chorão.

— Calma, não fique assim – disse a ele, em tom alentador.

Ele olhou para o meu rosto e falou:

— Não entendo o que eu fiz pra merecer isso. Não entendo.

Sentindo-me culpado por deixá-lo daquele jeito, cheguei mais perto para oferecer consolo. Ajoelhei-me no chão e envolvi o fígado em um abraço.

Nesse exato instante, senti uma dor aguda na barriga. Afastei-me e vi o fígado segurando a faca cheia de sangue.

Ele conseguira me esfaquear. Fui ingênuo demais, caindo em sua armadilha. Pelo pouco que conhecia do corpo humano, dei-me conta de que ele havia me apunhalado na altura do fígado.

Mais do que uma vingança, aquilo era também um suicídio. Um ato de misericórdia.

Enquanto eu, aos poucos, desfalecia, com sangue pelo corpo, vi meu algoz esboçar um sorriso. Ele sangrava a partir de um gigantesco corte que atravessava todo o seu corpo.

Abraçou-me. Tombamos juntos para meu lado direito, com os últimos suspiros em um ritmo cada vez mais lento. Com os olhos quase fechando, consegui vislumbrar os frequentadores do pub.

Alheios ao que acontecia, continuavam deliciando-se com suas bebidas.

por Silvio Pilau


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

Cabeça-de-Arroz


Quando foi perguntada sobre a alimentação, disse que comia bem, mantinha hábitos saudáveis, não fosse o excesso de arroz vez ou outra. O doutor quis saber mais sobre o assunto, pois admirava o tamanho e formato estranhos da barriga da mulher. Os braços gorduchos e as pernas de elefante denunciavam obesidade.

– O problema começou de repente, quando batia a fome.

Doutor Luís não acreditou na história, embora a naturalidade com que Neuci a contasse provocava um medo da coisa ser mesmo real. A mulher continuou falando de seu vício, como quem não se preocupava, não, fora o marido que a empurrara para o médico, caso contrário estaria em casa assistindo à novela das sete e comendo arroz, claro, embora o homem desconhecesse o desvio da esposa. Ela se sentiria muito melhor fora do consultório, longe do médico e de suas perguntas. Ainda assim, aguentou, paciente:

– Eu preciso comer fora das refeições. Arroz com feijão, arroz ao forno, bolinho de arroz e carreteiro não me satisfazem mais.

Qual seria a origem de tudo aquilo? Talvez a falta de instrução, afinal, parecia uma mulher humilde, ou a falta de educação, mas já era adulta, também. Ele não encontrava respostas e a mais óbvia era que nada daquilo fazia sentido, era uma louca, mais uma louca, afirmava o doutor em pensamento.

Na cabeça de Neuci, no entanto, a loucura não era cogitada. A sua melhor amiga tinha o vício do cigarro, muito pior que o dela; a outra colecionava em segredo formigas dentro de um pote para comer depois. Fazia bem aos olhos, acreditava Beatriz. Por fim, tinha a alcoólatra, que perambulava bêbada quando a cachaça invadia o sangue.

– Cigarro acaba com o pulmão da gente, não é, doutor?

Ele confirmou.

– Pois, então, arroz não acaba com ninguém. Só me deixou mais gordinha, admito. Mas, também, depois de dez anos de casada, você quer o que, hein?

Ele respirou fundo, ajeitou-se na cadeira dura. Sonhava tanto com uma poltrona de médico respeitado, aquela não causava imponência. Falou ríspido:

– Comer arroz, tudo bem, minha senhora. Agora, ter como hábito comer arroz cru já me parece um problema. Talvez não nutricional, pois de fato o arroz contém vitaminas, mas um problema psíquico, que deve ser tratado.

Ele estava ansioso por mandá-la embora, e criar um diagnóstico de problema emocional era fácil, fácil. Divertido, até. Mas ele não era médico pilantra, justificou a si mesmo, a mulher bem que deveria ter traumas mentais, e psicólogos tinham paciência para escutar histórias mirabolantes. Onde já se viu, comer arroz cru em quantidades imensuráveis. Além do mais, já passavam das seis, e aturar paciente na última hora do dia era sacrifício que não compensava. Menos ainda quando se tratava de paciente ignorante.

Neuci nem percebeu a distração do doutor, estava concentrada em detalhar como tudo havia começado. Não conseguia mensurar datas, como ele insistia em saber, mas havia anos tinha uma queda especial pelo grão.

– De um tempo para cá, a coisa piorou, ou melhor, melhorou. Comecei a comer arroz a cada duas horas, mais ou menos. Quando não tinha dinheiro para comprar, pegava sacos da dispensa da madame, qual o problema se ela tinha tanto e nem usava?

– Você consegue lembrar desde quando tem esse hábito? – interrompeu o médico.

Pensando nisso, ela notou que pouco guardava lembranças do arroz na infância. Na época, comia as verduras das plantações secas da roça, quando dava fruta também colhia, mas era com arroz que sonhava. Ah, quando tinha arroz dava pulos de alegria, até cair na realidade e precisar dividir com os doze irmãos uma panela só.

– Bem, como cozinheira, eu separava o arroz em copos para abastecer a família grande. Copos e copos de arroz, eu contava. Todo dia tinha arroz, e uma vez eu resolvi terminar com o desperdício. Foi quando comecei a raspar a panela e, depois, os pratos também.

Até aí, tudo normal, saciava a fome da infância na orgia de comer bem – e em boa quantidade. Foi quando, então, sua mente começou a sentir falta de arroz durante o espaço de tempo em que ficava sem comer, do almoço até a janta. Para terminar com o período ocioso, um dia resolveu levar o resto de um saco de arroz na bolsa. Se sentisse vontade, era só saciar comendo um pouquinho. Nem notava que o comia cru, era arroz, afinal.

– Assim foi, doutor. Levo na bolsa sempre um saco de arroz ou um pote mesmo.Já levei até tigela e panela, quando o desejo é grande e não consigo controlar – e abriu a bolsa de pano, mostrando um saco que tomava conta do espaço todo. No fundo da bolsa, ele espiou, grãos espalhados a preenchiam.

Recordou-se então das inúmeras vezes em que fazia isso – todos os dias, já havia meses. Na casa da família, escondia-se logo que chegava ao quarto dos empregados e deliciava-se com o grãozinho duro, fresco, pequeno e fino. Ao morder os pedaçinhos em conjunto, o clec clec das dentadas a excitava. Clec, clec, clec e o som tornava-se uma canção. Era o período do dia em que se aliviava das tensões, jogando-se no conforto do arroz puro.

De volta ao trabalho, sem mesmo notar, já tinha um punhado de arroz escorrendo entre os dedos rechonchudos, caindo da mão enquanto boa parte abastecia a boca esfomeada. Em momentos de extrema necessidade, via-se lambendo o piso gelado, a língua procurando os grãos como se brincasse de bater carta. Um dia, a patroa a viu assim, com o traseiro gigante empinado e o rosto grudado no chão. Foi quando descobriu.

– Notou alterações no organismo?

– Nada, não, doutor.

Na sua casa, todavia, o esposo nunca desconfiara. Ela disfarçava o comportamento estranho justificando que as idas ao banheiro eram por causa de diarreia. Na verdade, corria para o cubículo e abria, afoita, o saco de plástico, metendo a cara dentro. Cuidava para fechar os olhos, era viciada, mas não queria arroz penetrado também na sua pupila. Já bastavam as bochechas entupidas – não de ar. No ônibus, escondia também no bolso da calça e, vez ou outra, metia os dedos procurando o alimento cru.

– E as fezes? Está evacuando bem?

– Ah, faço com menos frequência, me sinto presa, sabe? Antes, tinha diarreia,agora nem isso.

– Dores estomacais, desconforto intestinal?

– Qual a diferença? – perguntou a mulher, fazendo batidinhas na pança gorda.

Naquele momento, pôde-se ouvir um ruído estranho. Doutor Luís tentou associá-lo com algum barulho conhecido e se lembrou das miçangas que caíam aos montes no chão, enquanto as filhas criavam pulseiras e colares e depois deixavam tudo bagunçado na sala.

Para mostrar a localização de cada órgão e perguntar sobre a possível dor, ele aproximou-se da barriga volumosa e a tocou, sentindo-se o homem mais corajoso do mundo. Era um médico de verdade, provava o seu maior sacrifício em prol da profissão.

Com as mãos tensas, ensaiou marteladas rítmicas na barriga de Neuci. Um barulho mais alto foi ouvido na sala fechada e o doutor teve certeza de que vinha, sim, de dentro da mulher. Agora, pareciam-lhe bolas de gude batendo umas nas outras. Ignorou o sentimento de nojo. Fazia parte do ofício de médico encarar os casos mais bizarros. E resolvê-los. Foi quando tomou a decisão:

– Vamos precisar olhar esse troço aí – e apontou assustado para o local de onde saíam os ruídos.

Quando se deu conta de como chamara o corpo da paciente, reformulou a frase, não por arrependimento, mas por normas médicas e jurídicas, não queria ser acionado por danos morais:

– Desculpe, precisaremos fazer uma intervenção cirúrgica. Seu aparelho digestivo não me parece estar funcionando direito, não é normal esse barulho.

Neuci nada falou e pôs-se a bater de novo em cima da barriga que parecia mole, mas na sua textura estava inchada.

– É bom, não é, doutor? Aposto que você nunca ouviu nada igual.

E o barulho ploc ploc ploc repetia-se,para a euforia dela e a apreensão do médico. Que é isso?, perguntava-se ele, inconformado por nunca ter visto – ou melhor, ouvido – sons parecidos saindo de dentro de um ser humano.

Na semana seguinte, aconteceu tudo rápido. Ela chegou ao hospital precário acompanhada do marido. Na preparação para a cirurgia, precisaram de dois aventais daqueles com a bunda de fora para dar a volta no corpo da paciente. A gordura extrapolava o limite não apenas estético, mas físico. A bunda flácida derretia para fora do buraquinho maldito. Duas macas também foram pedidas, o esposo que observava distante só se perguntava, nervoso, se o SUS permitiria assistência em dobro. Já fora milagre conseguir agendar horário num sistema lento como aquele.

O clima na mesa de cirurgia também era de nervosismo. O doutor e mais dois residentes cercavam Neuci para não deixá-la fugir, estava impossível, a mulher não queria anestesia, tinha medo de morrer.

Quando, finalmente, enfiou a mão em suas vísceras, a primeira reação do homem foi a de fechar os olhos, a visão mais nojenta de sua vida o deixara tonto. De olhos cerrados, pela primeira vez na carreira não pôde visualizar a cena, deixou apenas o tato de médico entender o quadro. Então sentiu cócegas, mesmo que a luva se consistisse num filtro, sentiu cócegas, como se afogasse o braço naqueles tonéis profundos de arroz, feijão e milho que são vendidos nas feiras e nos comércios locais.

Abriu os olhos e não controlou, virou para o lado, e o vômito saiu às pressas. Em meio às tripas, inúmeros grãos flutuavam e nadavam sufocados, soltinhos, em milhares, incalculáveis, e batiam-se uns aos outros, competindo por um espaço do mar tomado pelos grãos. Quase não havia líquidos, a água transparente do intestino misturava-se com o verde da bile, e tudo junto se traduzia na visão de um corpo defasado, em plena degeneração.

Doutor Luís chamou os dois assistentes, que olharam apavorados.

– Fixem os olhos nos intestinos. Quem pode me responder onde está o delgado e onde fica o grosso?

Os dois jovens aprendizes ficaram calados. Não podiam distinguir nada do que viam. Nem o doutor conseguia.

Após os grãos duros serem postos para fora com colheres e conchas que os residentes buscaram correndo na cozinha do hospital, uma nova surpresa aconteceu. Embaixo do arroz seco, uma onda de arroz papado, úmido assim devido à água que o cozinhara durante algum incerto tempo, jorrou do corpo da mulher, como a correnteza de um rio furioso, lavou a cama e molhou o avental do médico. Vinha mais e em maior fluxo, grãos por toda a parte, tapando o corpo da paciente, que estava afogada em arroz até o pescoço. No rosto da mulher, um movimento inacreditável paralisou a equipe: sua boca abria e fechava, sem parar, e a onda de arroz entrou pelos lábios, o músculo facial se estendeu e ficou mais flexível. Litros de pasta de arroz entalaram na garganta, cujas amídalas gesticulavam um vaivém de flexões ansiosas. Neuci parecia querer engolir tudo aquilo e, embora ela estivesse dopada, a sua carne pedia arroz, doutor Luís podia ter certeza.

Os médicos não sabiam o que fazer, o nervosismo aumentava, e nem mesmo os maiores baldes da cozinha davam conta de retirar todo o arroz. A sala parecia pequena demais perto do tamanho da massa gosmenta que se formava, um monstro feito de pequeninos grãos, daqueles que as pessoas conhecem e comem todos os dias.

Então, num verdadeiro transbordamento do rio, o arroz entalado na garganta evacuou pelo nariz branco, que agora estava uma bolota vermelha, e saiu pelas orelhas grandes e até pelos olhos. Sim, pelos olhos, os grãos não a pouparam de nada. Parecia que o arroz estava vivo dentro da mulher, consumindo-a.

Ela era arroz e o arroz era ela. 

por Annie Piagetti Müller


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

A Meia-Noite do Fim do Mundo


O mundo acabou. Não que o planeta tivesse se desintegrado. Todas as formas de vida visíveis estavam exterminadas. Ana era a última sobrevivente. Fechada em seu apartamento, ela viu tudo morrer à sua volta. Viu anunciarem na televisão que o terrível vírus estava solto na atmosfera, matando pessoas, animais e plantas em segundos. Viu o apresentador do telejornal, ao vivo e em cores, sangrar pelos poros e morrer em frente às câmeras.

Permaneceu sentada no sofá até a telinha passar a transmitir um chiado fora do ar. Ligou o rádio: estática estalando em todas as estações. Olhou pela janela: pessoas sangrando e morrendo em desespero. Ligou para os amigos: não encontrou ninguém. “Todos mortos”, pensou. Então, os telefones emudeceram e a energia elétrica foi cortada. O silêncio absoluto de um mundo sem vida penetrou em seu corpo e foi aí que ela percebeu que estava só no planeta. Ana era amiga da solidão. Desde a morte do filho, praticamente não saía do apartamento. Sua redoma de vidro.

Até quando sobreviveria com seus estoques de bolachas e água mineral? Essa era a grande questão do presente. Lacrada naquele apartamento decadente, não tinha sido atingida pelo vírus. Mas até quando?

Caiu a noite e com ela a escuridão total. A lua andava sumida. Nuvens negras pairavam. Sentada à janela, Ana refletia sobre o estúpido fim do planeta. Nada de guerras atômicas ou interplanetárias. Apenas um animalzinho invisível que destruiu os outros todos. Criado pelo mais estúpido dos animais, em um de seus estúpidos laboratórios.

O velho relógio de parede bateu doze vezes. Era a meia-noite do fim do mundo. Pensou sobre o tempo e a ausência de sentido dele naquele instante. Quando a última badalada soou, um calafrio percorreu Ana até a medula: uma batida fraca e vacilante vinha da porta da frente. Ela imaginou tratar-se de delírio. Então, tornou a ouvir a batida. Dessa vez mais forte. Acendeu a vela da Virgem Maria e colou o ouvido à porta. O som leve da mão, se chocando contra a madeira, repetiu-se, quase em câmera lenta.

— Quem é? — perguntou ela, com um fio de voz.

— Sou eu, mamãe.

Aquela voz de criança gelou o sangue de Ana. Era seu filho. Impossível! Seu Cristian morrera havia dois anos. Estava louca, sem dúvida. Gritou para ele ir embora, deixá-la em paz.

— Abre mãe, por favor. Está frio aqui fora.

O resto de razão remanescente dizia para ela se afastar dali. Sentimentos que não entendia moveram suas mãos e abriram a porta. Lá estava ele, iluminado pela luz bruxuleante: Cristian, seu menino, lindo como na noite em que morrera. Possessa por emoções, ela puxou o garoto contra o corpo e o abraçou com força. Num átimo, aquele abraço maravilhado transformou-se num momento de horror.

Ana sentiu a pele de Cristian desmanchar-se feito uma espuma pegajosa; o cheiro de fezes e enxofre e o frio cadavérico. Afastou-se dele, num gesto de repulsa. O rosto do garoto era o focinho de um monstro. Ele soltou uma gargalhada sinistra, escancarando os dentes podres.

— Você não é meu filho! — Ana tremia. — Quem é você?

A criatura odiosa aproximou-se da mulher e, em meio a vômitos, começou a falar:

— Quem sou eu? — A voz soava como a dos demônios nos filmes. — Criatura tão patética. Tem a petulância de perguntar quem sou eu. Porém, sua agonia me diverte, assim como de toda essa espécie de insetos pretensiosos chamados de humanos.

Pavor e nojo se confundiam em Ana. À medida que a monstruosidade falava, crescia de tamanho e, ao mesmo tempo, pedaços decompostos se desmanchavam em seu corpo e se espatifavam pelo chão.

— Quem sou eu? O tudo e o nada. O infinito. Habito este planeta infeliz muito antes dos dinossauros. Os antigos, que viram o mundo amadurecer, já me cultuavam em suas escrituras sagradas. Eu era conhecido como Nyarlathotep, o Rastejante Caos. Isso muito antes de eu criar, de um pedaço de meus excrementos, essa subespécie da qual você faz parte. Isso mesmo. Você ouviu bem. Eu os criei. Eu sou o que está descrito nas suas miseráveis escrituras como O Criador. Criei para gozar com seu sofrimento. Matar o tédio com sua dor. Porém, suas capacidades limitadas já não me emocionam mais. Resolvi acabar com a vida neste planeta. Eu os criei. Assim tenho o direito de fazer com vocês o que bem entender. O vírus? Já o exterminei. Meu objetivo é o fim da vida. Por que eu apareci aqui na forma de seu filho?

A mulher sufocou de medo. A criatura lia seus pensamentos.

— Impressionada? — o monstro prosseguia — sim, eu sei o que você está pensando. Quando você rezava em frente a essa ridícula santa, era para mim que você implorava. Chorando de modo desprezível para que seu filho fosse para um lugar melhor. O Paraíso! — E riu, com escárnio. — Seu filho não existe mais. Virou um nada, assim como todos os que habitaram este inferno. Apareci na forma de seu filho, pois queria vê-la sofrer. Achou que podia me enganar? Trancada neste apartamento julgava poder evitar o inevitável? É muita pretensão para verme tão vil. Eu poderia esmagá-la feito um inseto. Não. Desgraçada que é, deve sofrer. Vai morrer. Achava que não? Vai morrer sabendo que a culpa pela morte de seu filho foi sua. Sua e de mais ninguém.

Ana começou a sangrar pelos olhos. Perdeu as forças. E, finalmente, a vida se extinguiu do planeta.

por Fernando Mantelli


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

Funghi


Em segundos, os cogumelos começaram a brotar. Apareciam entre os azulejos, nasciam do rejunte. Foi rápido. As pequenas cabeças de cor clara, peculiarmente manchadas de marrom, cobriram todos os centímetros do piso da cozinha. Minhas mãos se abriram para que meu corpo recebesse todo aquele perfume estranho. Um cheiro quente e úmido, feito um grande corpo quente e úmido. Entrou em mim. Lento, constante.

Os vidros de esmalte e acetona caíram no chão. Metade das minhas unhas roídas estava vermelha. O restante exibia uma pele rubra. Sangue. Um machucado esculpido há dias pelos meus dentes. Isso é quase tudo o que lembro. Isso e a fome que me conduzia com as pernas bambas. Uma vontade de abrir a boca e consumir tudo aquilo. Esmaguei um pouco desse jardim silvestre até o caminho do armário. Creme de cogumelos delicioso, minha boca salivando, minha língua passeando pelos lábios. Ouvi gemidos. E me senti poderosa imprimindo a marca dos meus dedos e calcanhar em todos eles. Invencível como um trovão, um raio, o mar, um vírus letal. Lobista da morte, alta executiva da funerária universal, rainha do lar.

Com a pá numa das mãos, fui golpeando o solo. Com a outra, protegia os olhos dos cacos que voavam como flechas pontiagudas. Os cogumelos colhidos, cuspindo palavrões e impropérios de suas pequenas bocas e seus pequenos dentes, foram acomodados no meu colo. Enrolei a barra do vestido e joguei tudo dentro da panela. Os olhos me vigiavam enquanto eu riscava os fósforos. Um após o outro, a lixa encharcada com o meu suor. Alumínio quente, me acomodei próxima da porta e apreciei o cheiro vivo do funghi. Verdadeiro banquete do meu olfato, insanidade gastronômica, criaturas perdendo a alma e virando refeição.

Pensei em um banho quente antes de preparar prato e talheres. Água e doce acetona na banheira para curar as minhas feridas. Para relaxar. Circulei pelo apartamento. Os cogumelos já estavam por toda a parte. No tapete e sofá da sala. Na cama e no travesseiro amarelado. No banheiro, arrastavam seus torsos porosos para inspecionar a ferrugem da esquadria metálica do boxe. Com seus três pequenos dedos, desmontaram o chuveiro e constataram que a resistência estava queimada. A água estava fria feito o vento da rua, e escura como lama. Era espessa e escorria nas paredes. Tudo cheirava a esgoto, lixo, uma podridão azeda. Talvez por isso estivesse me sentindo tão pesada, tão suja. Tão cansada daquelas roupas jogadas no chão, chutadas no caminho, espremidas atrás do vaso sanitário.

Levantei o rosto e me vi no reflexo do espelho. Uma pessoa em forma de sujeira. Tive vergonha do meu corpo, das minhas costelas aparentes, do meu rosto apagado de olhos quase vítreos. O meu ventre murcho, inútil após tantos anos de tentativas e abandono inevitável. Pobre mulher branca, magra, esquecida de si mesma, eu falei. Abracei meu próprio corpo, escondendo o que pudesse. Senti as crostas de peles endurecidas dos meus cotovelos, a pele gordurosa e flácida.

Feito uma tartaruga medrosa, me encolhi no chão, tentando esconder tudo isso dos meus olhos, do mundo. Estava envergonhada de ter desistido, de ter pausado a existência para ruminar pensamentos destrutivos durante meses. Eu era mesmo a rainha de um lixão de paredes mofadas, e meu cetro de strass descascado e velho não imprimia respeito em ninguém.

Fui me afastando do cheiro do funghi quente. Com o rosto encostado no carpete, me esqueci da fome, deixei a atmosfera me absorver e o alívio me cobrir por completo. Senti as pequenas mãos encostando no meu corpo, limpando minha pele com algodão perfumado. Era isso. Uma salvação difícil de compreender, mas que contaminava como cheiro de rosas. Suspirei enquanto lavavam meu rosto, minhas costas, meus pés.

Sorri ao ver a dedicação dos cogumelos em reciclar também todo o apartamento. Recolhendo papéis, tirando o pó, sumindo com as camadas de poeira e cabelos que se acumulavam nos cantos. Os meus duendes da sorte me renovavam e me deixavam como no nascimento. Sem minhas roupas rasgadas, pura, com uma chance de começar tudo de novo.

Voltei para a cozinha e, próximo da pia, uma xícara fumegante me foi apontada. Um chá quente, saboroso. Bebi em grandes goles, sem me importar com o calor queimando a boca. Eu estava imune, protegida. E, lentamente, meus olhos se fecharam, e todos os meus pensamentos foram apagados. Como se alguém desligasse o botão com o meu nome... O nada... Absoluto, tranquilo, paraíso.

É quase tudo o que lembro. Há alguns minutos acordei. Cordas grossas prendem meus pés e mãos. Impossibilidade de mexer qualquer parte do corpo. Sem forças para emitir todos esses gritos que estão dentro da minha cabeça.

Recobro a consciência e sinto uma dor aguda num dos dedos. Um cogumelo morde com força. O sangue escorre... Agora, estão aqui na minha frente. Na linha dos meus olhos que tremem sem parar. Tantos cogumelos, enfileirados, numa marcha imóvel que aponta para mim. Suas bocas salivam. Eles me olham. E cuidam daquela imensa panela sobre o fogão.

por Luciana Thomé


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

Ventre


Matei minha mãe. Sim, eu a matei com um bisturi cirúrgico. Um corte no ventre com precisão, extraindo-lhe o útero, esse órgão muscular, localizado atrás da bexiga e na frente do reto, cuja função principal é abrigar o óvulo para nutrir e protegê-lo em suas etapas de embrião e feto. Foi meu primeiro crime, a primeira vez que senti o sangue quente em minhas mãos, prazer que cultivaria por muitos anos.

Desde criança, ela me destratava, me chamava de guri imprestável, porco, nojento. Dizia que meu pai dava mais atenção ao filho que à esposa. Coitado dele, estava sempre em congressos viajando, era médico. Acabei com a vida do homem. Não queria prejudicá-lo, mas foi a única forma de me livrar dela. Arquitetei o plano em detalhes, sabia até a hora em que o “doutor” ia entrar em casa naquele dia. Ele se matou na prisão, jurando amar a “mulher”. Foi condenado por homicídio triplamente qualificado. Os vizinhos escutaram seus gritos enlouquecidos e chamaram a polícia, que encontrou o pai com o bisturi na mão, histérico, banhado num mar vermelho.

Eu estava sentado num canto da sala; assim me encontraram. Fui manchete dos jornais. O filho de doze anos, órfão de mãe, ausente de pai. Fui criado por um tutor após o assassinato. Não localizaram o útero. Eu o escondi, banhado em formol, com as técnicas que aprendi estudando os livros de medicina da biblioteca de casa. Sempre fui autodidata. O útero está na minha coleção pessoal. O ventre daquela vaca foi arrancado para que ela não pudesse mais ter filhos. E, consequentemente, nenhum sinal de vida.

Na fria sala da delegacia, olho espantado as fotos em cima da mesa. As vítimas, mulheres de trinta anos, loiras, olhos azuis; estabelecendo um padrão, foram encontradas sem útero, costuradas cirurgicamente, sem nenhum sangue. Que psicopata teria intenção de deixar suas vítimas em perfeito estado, sem a parte essencial da procriação? O que ele estaria fazendo com isso? Experiências? Releio as anotações, observo a postura das vítimas, vinte e cinco delas, uma a cada bimestre, todas com uma rosa vermelha encontrada sobre o sexo, sem sinal de estupro. Há quase cinco anos o persigo. Como delegado deste distrito, não desisto de buscá-lo. Queria conhecê-lo ao menos para entender seu objetivo. Quando analiso esse caso, lembro-me de minha mãe, coitada, que morreu tão jovem, com a idade das mulheres congeladas nessas fotos.

Quero livrar o mundo do caos antes do juízo final. Essas vagabundas que andam na noite, dançando, exibindo seus corpos – não merecem viver. Minha mãe fazia assim: bastava meu pai viajar a trabalho e ela caía na noite, voltava fedendo a cigarro, com cheiro de sexo no corpo. E me batia, aquela puta, me esbofeteava a cara quando eu perguntava aonde ela tinha ido:

— Não te interessa, guri. Tu não vais contar nada para o teu pai. Senão, eu te mato!

Uma noite, ela me disse isso pela última vez. Eu a cortei em forma de cruz, como se fizesse um haraquiri, enfiei a mão e puxei aquele pedaço redondo de carne quente.

Hoje, ando pela noite e conheço várias mulheres iguais a ela. As solteiras, sem filhos, acho que têm o direito de se divertir. As vagabundas que me comentam que o filho está dormindo em casa, eu envolvo, seduzo, levo para o meu apartamento. Lá, a sala cirúrgica está preparada. Assim que uma entra, eu tapo a boca e o nariz dela com formol. Não me contento em extrair o útero; deixo ela morrer. O filho que espera a puta em casa será cuidado por algum parente, alguém que se importe mais com ele do que uma vaca da noite. Faço questão de deixar o corpo em algum gramado da cidade para que todos vejam. Coloco uma rosa, entre o ventre e o sexo, como uma metáfora; o maior símbolo dos amantes, só para lembrar os momentos de paixão que trazem ao mundo filhos indesejados.

Minha vida está neste distrito. Ando tão cansado que, muitas vezes, mal lembro onde estive. Vivo apático, tento mostrar punho quando meus subordinados estão à volta. Desloquei uma equipe para prender esse assassino. Não tenho tempo para sexo, para prazeres. Já não sei mais o que é isso. Estou quase assexuado. Também não lembro se algum dia senti prazer com uma mulher. Não sou homossexual. Mas o cansaço, o estresse do trabalho, me deixa sem vontade de nada. Tomo café compulsivamente para ficar acordado. Fumo duas carteiras de cigarro por noite. Sou elogiado pelos colegas, considerado por meus superiores, adorado na mídia. Estou em alta na sociedade, influencio quem eu quiser. Faço meu trabalho, tenho a ética de não abusar do poder que me foi dado.

“O Colecionador de Ventres” resolveu me provocar. Após a entrevista que concedi na televisão, ele agora me manda um buquê de rosas por semana. Estaria apaixonado por mim? Ou ele apenas deixa pistas querendo ser encontrado? Eu tomo cuidado quando estou em público. Tento resguardar minha vida. E, principalmente, quero preservar a das futuras vítimas. Se eu não mobilizasse essa busca frenética, ele não teria mais limites, as mortes seriam incontáveis.

Aquele delegado imbecil resolveu colocar a boca na mídia. Acha que vai conseguir me localizar fazendo escândalo. Não sabe o bem que estou fazendo à sociedade, livrando o mundo dessas mulheres sujas. Onde está escrito o que é bom ou mau, certo ou errado? Foi essa sociedade medíocre que decretou isso. Não conseguem limpar nem a própria imundície, quanto mais purificar alguma coisa. Eu só faço o meu trabalho. Uma a menos para deixar as crianças abandonadas no mundo. Quando caminho à noite em direção aos bares, vejo as crianças atiradas nas ruas, passando frio e fome. De dia, estão nas sinaleiras, pedindo esmolas para abastecer a necessidade de álcool das mães bêbadas em casa. Eu faço justiça com meu próprio bisturi, o mesmo que roubei de meu pai há muitos anos. Ele continua intacto, a lâmina fria, cortante. Aquele delegadozinho, que não tem nem a coragem de mostrar a cara na tevê, acha que pode fazer o que quer. Vou perturbar a vida dele.

Mandarei uma flor ao dia, não... quem sabe um buquê por semana?

Ele está passando dos limites. Não contente em me mandar rosas, deixa mensagens escritas a sangue destinadas a mim – primeiro, perto das vítimas e, agora, mais abusado que nunca, sujou a minha sala na delegacia escrevendo na parede: “Moretti, sua bicha! Pecado é privar-se do prazer!”. Ele resolveu fazer isso depois que dei uma entrevista na tevê falando que o que ele fazia com as vítimas era um pecado, um sacrilégio.

Cinco anos de faculdade e eu optei pelo Direito Penal, talvez por culpa de não ter impedido a morte da minha mãe. Resolvi interceder em outros crimes. Quinze anos nesta delegacia e nunca vi um caso parecido. Esse homem acha que está contribuindo para a sociedade, que nada faz de errado. Quer que eu o encontre – não para ser preso, mas para nos enfrentarmos. Deixou um último bilhete com um endereço, pede que eu vá sozinho. Decido ir sem minha equipe, revoltado por ter sido chamado de veado. Coloco a arma na cintura e saio em sua busca.

Há algumas horas, deixei um bilhete para que ele viesse ao meu encontro. É a única forma de descobrir quem eu sou, ou assumir quem realmente ele é.

Essa veiculação toda, notícias no jornal; estão me chateando, me chamam de “Colecionador de Ventres”. Eu não os coleciono, apenas os guardo em meu apartamento, enfileirados em prateleiras, para se conservarem intactos, sem função. Devo ter uns cinquenta deles. Vou sair e deixar aquele delegadozinho de merda passear pelo meu apartamento e fuçar tudo o que deseja. Quero ver se, depois de visitar este lugar, ele não vai me dar razão, parar de questionar meus atos.

Paro o carro em frente ao prédio. Olho para os lados e verifico minha arma. Hoje é o dia do fim. Vou matá-lo assim que o vir. Não quero nem levá-lo preso. Esses psicopatas de bosta só incomodam. Não vão presos, alegam insanidade e só dão despesa. Entro no prédio, subo as escadas. Estou em frente ao seu apartamento, a porta está apenas encostada. O cheiro de formol é forte e nauseante. As estantes na sala distribuem os troféus lado a lado. Encontro uma sala com material cirúrgico: bisturi, tesoura, linha e uma maca com lençol branco.

No quarto, uma fita de vídeo em cima da cama, etiquetada, com meu nome. Assisto a uns quinze crimes documentados. Ele filmou quase todos. Nauseado, vomito. Não acredito no que vejo.

Vim decidido a matá-lo. Vou até o espelho e me olho incrédulo. Em poucos segundos, eu o matarei. Encosto a arma na cabeça. Atiro.

por Roberta Larini


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

Tempestade em Coney Island


O sr. Hammam Fields é um militar reformado e vive com sua esposa, a Sra. Fields, num antigo apartamento em Coney Island, Brooklyn.

— Hammam querido, olhe como as nuvens estão carregadas.

Hammam assentiu com a cabeça, disse que a chuva viria em boa hora. Os dois olhavam pela varanda aberta como sempre faziam nos fins de tarde. De Coney Island, via-se pouco, mas o suficiente. Uma escura porção do Atlântico que, nos dias de vento como aquele, formava pequenas rugas de espuma branca, e as ondas irrequietas se assemelhavam a barbatanas de tubarão. Na baixa silhueta dos prédios, viam-se janelas sempre velhas, tijolos escuros e letreiros apagados pelos ventos ou pelo descaso.

Um cotovelo da Cyclone Roller-Coaster e mais da metade da Wonder Wheel surgiam de um ponto da Jones Walk encoberto pelos prédios centrais. O parque estava desativado havia cinco meses.

Hammam foi até a cristaleira e aumentou o volume do rádio. As trovoadas e rajadas de vento estão mais intensas no início de Manhattan Beach e em quase toda extensão da praia de Brighton. Preparem o espírito, caros ouvintes, aí vem uma bela tempestade. Hammam caminhou até a cozinha e buscou na geladeira uma garrafa de Duff.

— Clara, eu realmente não entendo essa sua mania de ler receitas.

— Ora, querido, esta revista traz ótimas dicas.

— Em compensação, você sempre faz a mesma droga de pastéis.

— Oh, querido, não seja brusco, sabe que faço o melhor que posso.

Hammam sentou de volta, agora o rádio suficientemente alto para encher a sala. O locutor continuava com os maus presságios. O vento batia nas persianas e fazia um ruído fino e prolongado. A escuridão abarcara-se no céu e, em contraste, relâmpagos eventuais punham o horizonte em branco chapado. De tanto que se debatiam, as bandeirolas do topo da Cyclone Roller-Coaster ameaçavam voar Massachussets adentro.

Uma chuva pontiaguda passou a entrar pela varanda. Clara se levantou para encostar uma das portas de vidro.

— Querido, preciso que me ajude. Não quero que esta chuva o deixe encharcado.

A eletricidade caíra em parte do Brooklyn e, a partir de Coney Island, era possível avistar o grande vulto negro que se espichava ao oeste pelas regiões sem luz. Todo e qualquer vestígio iluminado parecia encoberto, e ninguém estranharia se naquele lado a névoa escura sorvesse os edifícios, as pontes, as pessoas que ainda estavam na rua. Ao leste, o Atlântico em sobressaltos. As cristas de espuma branca cederam lugar a espessos blocos de água cinza, que se entrecortavam como pesadas lâminas de chumbo líquido. As lâmpadas, as poucas e pálidas lâmpadas de Coney Island piscavam em caos, num prenúncio de que logo o bairro também ficaria sem energia.

O rádio chiava, parecia percorrer o tuner por conta própria, buscando uma nova estação sem chegar, sem encontrar voz, canção, sequer um som familiar – e não havia ninguém perto do aparelho. Clara punha na ponta dos dedos e na palma da mão a aflição, quase rasgava as páginas da revista, sentia suas artérias engasgadas de vertigens. Sua boca fina e enrugada pôs-se seca, e os miúdos olhos contorciam-se buscando algo que lhes oferecesse confiança. Estrondos de todos os lados, de perto e longe: explodiam trovoadas, grandes e pesadas massas de ferro pareciam despencar, vidros estilhaçavam.

O rádio parou de chiar, emitia um sinal agudo, contínuo, como o grito de uma ave silvestre antes de ser abatida. As fotografias na parede convulsionavam-se involuntariamente, e quando as esparsas rajadas dos relâmpagos iluminavam a parede, viam-se as condecorações militares penduradas, tortas, trêmulas, prestes a despencar, e o retrato dos Marines do Brooklyn de 57, o quadro da família em piquenique no Queens, a foto do casal quando jovem, em Birston Lake, Oklahoma. Hammam estava sóbrio, sentado, observando a insurreição do clima.

— Hammam querido, fale algo. Estou ficando nervosa.

Hammam buscou do chão a garrafa de Duff, deu um último gole e avisou que iria atrás de mais cerveja. A luz acabara fazia uns poucos minutos, e ele levaria consigo uma lanterna e um abrigo de chuva.

Clara decidiu girar sua poltrona para o interior da sala, dando as costas ao temporal. Coberta e agarrada à colcha de lã, ela comprimia as mãos, cerrava os olhos e sussurrava pelos cantos dos lábios uma prece de ajuda. Os vidros oscilavam epileticamente: para dentro, para fora, forçados pelo turbilhão de raios, ventos escuros e a chuva que caía em pesados filetes. Clara fechava os olhos e via um vácuo negro, abria-os e via tudo à volta, mas por frações de segundos, quando os relâmpagos davam a luz escassa, luz de chumbo, e os retratos na parede, e os retratos em que Hammam estava sozinho, como aquele no barco de pesca, sua expressão alegremente perversa. Oh, por que Hammam decidira buscar cervejas justo agora? Decerto ele ficará doente nessa tempestade, isso se não sofrer alguma injúria.

Clara começou a chorar baixo, por que Hammam era assim, afinal? Decidiu tornar o corpo para trás, talvez visse Hammam voltando para casa, explodiu outra bomba de luz no horizonte, e justo na hora em que virava o pescoço, sem querer, pois Clara não queria nada mais do que Hammam a seu lado – sem querer ela avistou no topo da Cyclone Roller-Coaster, agarrado a uma bandeirola verde, como em pesadelos, vestindo uma estranha farda de capitão da marinha francesa, com um toco de madeira no lugar do braço direito, o chapéu em retalhos, uma bainha de espada atravessada no peito, lá em cima, no cume da montanha-russa, nítido, não era assombração, um homem do qual só se viam os olhos, o rosto todo escuro, a mão esquerda deformada e um par de botinas brancas. O homem olhava para ela.

Clara virou-se, oh, não poderia ser, bem agora que Hammam não estava a seu lado, ela vendo uma coisa daquelas, devia ser a idade, e pôs-se a chorar sussurrando um pouco de desespero.

No interior do apartamento, a parede em nacos de luz, listrando em fosco e escuro o sofá, a cristaleira, o rádio, os diversos retratos que, tremendo, pouco a pouco foram despencando, despedaçando-se, um a um, até sobrar um último, que não balançava e ficou só e único na parede: o retrato de Hammam na pescaria, sorrindo, sorrindo, mas os lábios contornados com uma ironia perversa, o olhar malicioso, nunca tinha percebido Hammam assim. Clara abraçou-se, pôs a lã no rosto, mas era melhor tentar ver, assim estaria prevenida. O turbilhão sonoro. O rádio apitando como ave silvestre. As vidraças dobrando-se, histéricas. Trovoadas. As lâminas de chumbo debatendo-se no mar. As bandeiras voando. O capitão francês de rosto apagado olhando-a. Nacos de luz fosca e nacos escuros trocando de lugar.

Clara não sentia mais as pontas dos dedos — apertara-as tanto —, não sentia em si própria nada além da vertigem abismal, da dor que lhe cortava a alma, do desespero. Viu crescerem raízes pelo tapete italiano, viu nascerem trepadeiras nas juntas das paredes, viu formarem-se folhas estranhas, escuras, de bordô-sangue, e viu vinho escorrer pelos rodapés da sala.

Clara chorou sufocada, atirou o livro de receitas contra o caule que crescia junto ao pé da poltrona. Entre os pedaços de luz, projetada como sombra na parede, a silhueta do capitão francês sem rosto, de pé na varanda, atrás do vidro – Clara fechou os olhos e permaneceu a enxergar a imagem, sentiu o pé cortado pelas pontas das folhas, a raiz sufocando a pele, o capitão chegando mais perto e erguendo a mão de pau, as bandeirolas, os blocos de ferro caindo em direção ao teto do apartamento. Um barulho de chaveiro. Enrolada na lã, de olhos fechados, Clara percebeu que alguém abria a porta de casa. Hammam, enfim. Hammam querido. A porta abriu.

— Hammam querido, que bom que você chegou — disse, entre soluços de choro.

Foi quando percebeu: era Hammam, seu perfil desenhado pelo escuro, a mesma roupa, o abrigo para chuva, uma sacola à mão direita – devia ser a cerveja. Mas havia algo de estranho. Clara percebeu o rosto de Hammam: os olhos em vermelho, os dentes afiados como lâminas, o nariz enegrecido e pelos por toda face. Pelos por sobre as narinas, envolvendo-lhe o queixo, circundando as olheiras, rodeando a boca e saltando-lhe das bochechas como se fosse um lobo cinzento.

— Olá, querida — respondeu.

por Rafael Kasper


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

O Assassinato de Rasputin


O "conde" Louis Harmon, mais conhecido por seu nome artístico de Cheiro, famoso clarividente e quiromante, era amplamente cortejado pela nobreza do início do século XX por suas previsões incrivelmente precisas.

Em 1905, por exemplo, durante uma reunião com o controvertido Grigori Yefimovitch Rasputin, místico russo conhecido como "O Monge Louco", Cheiro advertiu-o sobre o destino que o aguardava.

- Vejo para você um fim violento dentro do palácio - disse ele. - Você será ameaçado por veneno, punhal e por balas. Finalmente, vejo as águas geladas do Neva se fechando sobre você.

A subsequente carreira diversificada de Rasputin, como guia espiritual da czarina Alexandra Fiodorovna e de sua família, certamente resultou em vários inimigos na corte imperial russa. Mesmo assim, ele não desconfiou quando o príncipe Felix Yusupov o convidou a ir ao seu palácio para jantar, na noite de 29 de dezembro de 1916, prometendo-lhe um encontro com uma mulher da corte que gostaria de conhecê-lo.

Recusando vinho e chá, Rasputin comeu alguns pedaços do bolo ao qual o príncipe adicionara cianeto de potássio. Yusupov ficou surpreso ao ver Rasputin consumir vários pedaços sem demonstrar nenhum efeito.

O príncipe então sacou de uma pistola e disparou nele pelas costas. Enquanto estava curvado sobre o corpo, os olhos de Rasputin se abriram e seguiu-se uma luta desesperada. Outros conspiradores vieram ajudar o príncipe. Um deles, chamado Purishkevich, disparou mais duas balas no corpo de Rasputin. Yusupov então atingiu o "monge" caído com uma barra de aço.

O príncipe e seus ajudantes amarraram os braços de Rasputin e carregaram seu corpo, aparentemente já sem vida, até o Neva. Fazendo um furo no gelo, eles enfiaram o corpo no rio, mas Rasputin voltou à vida, outra vez. Seu último ato foi fazer o sinal-da-cruz. Em seguida, foi para o fundo das águas geladas, cumprindo a profecia de Cheiro e uma de suas próprias.


Antes de seu assassinato, Rasputin advertira a família real:

- Se eu for morto por assassinos comuns, vocês não terão nada a temer. Mas, se eu for assassinado por nobres, e se eles derramarem meu sangue, suas mãos ficarão maculadas. Irmãos matarão irmãos, e não restará nenhum nobre no país.

Naquele mesmo ano, os bolcheviques preparavam a Revolução Russa. No dia 16 de julho de 1917, o czar e sua família foram assassinados em Ekaterinburgo. E os nobres descobriram que permanecer na Rússia era altamente perigoso à saúde.


Fonte: Livro «O Livro dos Fenômenos Estranhos» de Charles Berlitz

A Maldição da Cigana

O cavalo "Windsor Lad", vencedor do Derby de Epson de 1934.

Durante anos, segundo a lenda, o Derby de Epsom - distrito de Surrey, Inglaterra - foi importunado por uma maldição, cortesia de uma cigana chamada Gypsy Lee.

Certo ano, ao que parece, ela previra que um cavalo chamado Blew Gown venceria o grande prêmio, escrevendo sua previsão em um pedaço de papel para que todos vissem. Um dos proprietários no hipódromo, no entanto, arrogantemente declarou que o nome do cavalo era Blue Gown, e não tinha nenhum "w" no primeiro nome.

Indignada com a ideia de parecer idiota, Gypsy Lee rogou uma praga: nenhum cavalo com um "w" em seu nome venceria o Derby de Epsom, enquanto ela vivesse. E nenhum jamais venceu.

Mas quando Gypsy Lee morreu, em 1934, sua própria família apostou todo o dinheiro em Windsor Lad, e o cavalo ganhou, pagando 7 por 1.


Fonte: Livro «O Livro dos Fenômenos Estranhos» de Charles Berlitz

sábado, 21 de maio de 2016

O Caso de Renata


O psiquiatra da antiga Tchecoslováquia (agora República Tcheca) Stanislov Grof, especialista no uso de alucinógenos, trabalhava nos 1980 no famoso Esalen Institute em Big Sur, EUA. Antes de partir de sua pátria, Stanislov tratou de uma jovem dona de casa chamada Renata, em avançado processo de autodestruição.

Grof pediu a sua paciente que recordasse seu doloroso passado com o auxílio de LSD (Dietilamida do Ácido Lisérgico) e, em pouco tempo, ela começou a relatar cenas da cidade de Praga no século 17. Descreveu corretamente a arquitetura, o vestuário, e até mesmo as armas daquele período. Ela guardava lembranças vividas da invasão da Boêmia pelo Império Austro-Húngaro dos Habsburgo. E chegou inclusive a descrever a decapitação de um jovem nobre pelos Habsburgo.

Grof tentou entender as visões com todas as ferramentas terapêuticas de que dispunha, mas não conseguiu encontrar nenhuma explicação psicológica. Ele partiu para os EUA antes que o caso pudesse ser solucionado. Mas, dois anos mais tarde, recebeu uma carta de sua antiga paciente. Acontece que Renata encontrara seu pai, a quem não via desde a infância.

O cerco e a luta na cidade de Praga, Boêmia, atacada pelas forças austro-húngaras (século 17).

Durante suas conversas, ela ficara sabendo que seu pai fizera um estudo genealógico da família até o século 17 - chegando a um nobre decapitado pelos Habsburgo durante a ocupação do que nos dias de hoje era a Tchecoslováquia.

Como Renata conseguiu "lembrar" essa informação continua um mistério, pois seu pai, aparentemente, fez essas descobertas após abandonar sua família. Renata acredita que suas impressões emergiram de alguma forma de lembrança "herdada". O próprio Grof afirma que as lembranças de Renata originam-se de uma vida anterior em Praga.


Fonte: Livro «O Livro dos Fenômenos Estranhos» de Charles Berlitz

A Maldição do Faraó

O arqueólogo Howard Carter encontra a lendária tumba (17/02/1922).

Embora as grandes pirâmides do Egito tenham permanecido intocadas durante séculos, no início dos anos 20 muitas das estruturas e tumbas dos faraós foram saqueadas por arqueólogos aventureiros e caçadores de tesouros.

Uma tumba, no entanto, permaneceu intocada: a do famoso Faraó Tutancâmon. Segundo a lenda, a tumba, repleta de tesouros, foi guardada por uma maldição que condenava à morte qualquer um que ali entrasse. Mas isso não impediu que George E. S. M. Herbert, conde de Carnarvon, fosse ao Egito pela primeira vez esperando que o clima seco curasse sua doença respiratória.

Mesmo sem ter experiência anterior em arqueologia, Herbert tinha o dinheiro necessário para financiar expedições. E, em pouco tempo, ele e o arqueólogo Howard Carter partiram para encontrar a lendária tumba.

Após muitas escavações durante vários anos, eles finalmente encontraram alguns fragmentos de peças que traziam o nome de Tutancâmon. E as peças os levaram à sala do tesouro, onde repousava o tão longamente procurado faraó.

Um grupo de vinte pessoas serviu como testemunha de que Carter entrou naquela sala no dia 17 de fevereiro de 1922, mas lorde Carnarvon viveu pouco tempo para apreciar a descoberta. Ele morreu em abril no Hotel Continental no Cairo, depois de contrair uma súbita e não diagnosticada febre, que debilitou seu corpo durante doze dias. Poucos minutos após sua morte, houve falta de energia elétrica no Cairo. E o cachorro de Carnarvon, em Londres, morreu no mesmo dia.

Antes de terminar aquele ano, doze outros membros do grupo original de vinte homens também morreram. Mas outros morreriam, também. George Jay Gould, filho do financista Jay Gould, e amigo de Carnarvon, viajou ao Egito após a morte de seu amigo para visitar o lugar pessoalmente. Ele morreu de peste bubônica, 24 horas após visitar a tumba.

Em 1929, dezesseis outros pesquisadores que, de alguma forma, entraram em contato com a múmia do faraó também morreram. Entre as vítimas estavam o radiologista Archibald Reid, que preparara os restos de Tutancâmon para radiografar a múmia do faraó, a mulher de lorde Carnarvon, e Richard Bethell, seu secretário particular. Até o pai de Bethell morreu, suicidando-se.

A mística dessa famosa múmia, tema de filmes de terror de segunda classe, foi provavelmente um grande fator para o sucesso avassalador de Tesouros do Rei Tutancâmon, roteiro de viagem empreendido pelas agências de turismo dos EUA. Mas, como as dezenas de milhares de pessoas que viram a múmia podem atestar, a maldição parece ter chegado ao fim - pelo menos por enquanto.

Mas cuidado! Logo na entrada da tumba, observe os hieróglifos escritos no brasão. Eles dizem: "A morte virá rapidamente àquele que violar a tumba do faraó".


Fonte: Livro «O Livro dos Fenômenos Estranhos» de Charles Berlitz

O Número de Azar do Capitão McLeod

Navio mercante SS Marquette & Bessemer Nº. 2

Hugh McDonald McLeod tornou-se capitão quando tinha 19 anos de idade, mas foi o sinistro número "7" que pareceu figurar proeminentemente em sua vida. E deveria mesmo, pois ele era o sétimo filho de um sétimo filho.

Nascido de uma família de marujos, McLeod tinha dois irmãos que também eram capitães. Na verdade, no dia 7 de dezembro de 1909, seus irmãos zarparam como capitão e primeiro imediato no navio mercante Marquette & Bessemer Nº. 2, com destino a Port Stanley, Ontário. Mas o navio não chegou ao seu destino, desaparecendo com toda a tripulação.

Quatro meses depois, no dia 7 de abril, Hugh foi notificado de que o corpo de seu irmão John fora encontrado, congelado, nas águas do rio Niágara. No dia 7 de outubro de 1910, o corpo de seu outro irmão foi encontrado na praia, em Long Point.

Quatro anos mais tarde, no dia 7 de abril de 1914, o capitão MacLeod, na ocasião mestre de um navio cargueiro chamado John Ericsson, rebocava uma barcaça no lago Huron. O nevoeiro era tão intenso que ele não conseguia ver a embarcação que estava puxando - o Alexander Holly. Finalmente, conseguiu divisar a bandeira do Holly tremulando a meio pau. O capitão diminuiu a velocidade e puxou o cabo de reboque, quando ficou sabendo que no dia anterior o capitão da barcaça fora varrido do convés por uma onda.

Não deveria ser surpresa o fato de que McLeod finalmente aposentou-se no dia 6 de dezembro de 1941. No dia seguinte, os japoneses bombardearam Pearl Harbor, do outro lado da linha equinocial internacional.


Fonte: Livro «O Livro dos Fenômenos Estranhos» de Charles Berlitz

Immanuel Velikovsky e suas Teorias


Os gregos, assim como os carianos e outros povos do litoral do mar Egeu, contavam sobre uma época em que o Sol desviara-se de seu curso e desaparecera por um dia inteiro … A perturbação no movimento do Sol durou um dia, durante o qual ele não apareceu hora nenhuma. Ovídio continua: "Se formos acreditar nos registros, um dia inteiro se passou sem sol. Só que o mundo ardente continuou a brilhar."

Definição: Velikovsky declarou que as antigas histórias mitológicas eram relatos metafóricos de eventos cosmológicos reais.

O que os crentes dizem: O trabalho de Velikovsky é legítimo; ele abriu novos caminhos, mas foi injustamente criticado pela comunidade científica.

O que os céticos dizem: O trabalho de Velikovsky não tem embasamento científico e nada mais é do que especulação fantasiosa sem nenhuma evidência que lhe dê suporte. Seus seguidores são bajuladores mal informados.

Qualidade das provas existentes: Fraca.

Probabilidade de o fenômeno ser autêntico: Nenhuma.

Parece uma trama ruim de um filme de ficção científica.

Há 3.500 anos, parte de Júpiter desprendeu-se do planeta e saiu voando pelo espaço como um cometa gigantesco. Esse cometa atravessou nosso sistema solar esbarrando nos planetas, tirando-os de suas órbitas, fazendo-os adquirir novas rotações, e passou perto o suficiente da Terra, a ponto de nos envolver em sua cauda gasosa. A poeira da cauda do cometa Vênus provocou incêndios e pragas na Terra, e, por fim, sua gravidade fez com que nosso planeta parasse de girar sobre o próprio eixo e só recomeçasse tempos depois. Como se pode esperar de um evento cosmológico tão devastador, a Terra vivenciou maremotos, terremotos, erupções vulcânicas e cataclismos geológicos, incluindo o naufrágio da Atlântida e a implosão de gigantescas montanhas. Além disso, em sua trajetória, o cometa Vênus também tirou Marte de sua órbita, fazendo com que ele quase colidisse com a Terra diversas vezes. Esses eventos galácticos inacreditáveis fizeram o Sol desaparecer e os dias e noites durarem muito mais do que o normal.

O cometa Vênus então se solidificou, transformando-se num orbe planetário, passou pela Terra e fixou sua órbita onde hoje se encontra o segundo planeta do sistema solar.

No entanto, nada disso foi retirado de um romance ou filme de ficção científica. Esse relato sobre a formação de nosso sistema solar foi apresentado como fato científico por Immanuel Velikovsky, exceto que os argumentos de sustentação dessa teoria bizarra são qualquer coisa, menos científicos. Velikovsky utilizou lendas antigas, mitos e a tradição escrita para chegar a conclusões que literalmente chocaram o mundo e criaram enormes controvérsias no universo científico.

Segundo a teoria geológica do catastrofismo, grandes alterações na crosta terrestre decorrem de catástrofes súbitas — terremotos, erupções vulcânicas, deslocamento das placas tectônicas etc. —, e não de mudanças e processos evolucionários graduais. Essa teoria foi apresentada originalmente no século XVIII pelo barão Georges Cuvier, um naturalista francês, mas, por volta do século XIX, foi descartada por muitos em prol da crença nos processos lentos e progressivos como os responsáveis pelas principais alterações geológicas na Terra.

Immanuel Velikovsky (1895-1979), médico, psicanalista e astrônomo nascido na Rússia, ressuscitou o catastrofismo em 1950 ao publicar seu primeiro livro, "Worlds in Collision". Ele aplicou a teoria ao Cosmo, especificamente aos eventos que resultaram na formação de nosso sistema solar tal como o conhecemos hoje.

Em seu best-seller, Velikovsky diz que o planeta Vênus não existia até 1500 a.C. e que originalmente ele fora um cometa que se desprendera do planeta Júpiter.

Velikovsky estudou escritos muito antigos, inclusive o Velho Testamento e os mitos da China, Índia, Grécia e Roma, e chegou a conclusões científicas interpretando os eventos descritos nessas lendas e mitos como ambiciosas tentativas dos antigos em descrever eventos cosmológicos reais.

Por exemplo, a mitologia grega conta a história de Atena, a deusa da sabedoria e da guerra, que saiu já adulta da cabeça de Zeus, o soberano dos céus. Velikovsky chegou à dúbia conclusão de que Atena era o planeta Vênus, Zeus, o planeta Júpiter, e a lenda, uma metáfora usada pelos antigos gregos para descrever o cometa que se desprende de Júpiter e acaba fixando sua órbita como Vênus.

Robert Todd Carroll, ao escrever seu "Dicionário do cético", resume o problema das teorias rebeldes do russo:

"A essência da irracionalidade de Velikovsky está no fato de que ele não oferece nenhuma prova científica para suas alegações mais absurdas. Elas se baseiam na hipótese de que a mitologia descreve fatos cosmológicos. Em geral, ele não oferece evidência alguma que sustente sua teoria além de argumentos engenhosos oriundos de uma mitologia comparada. Sem dúvida, o cenário pintado é logicamente possível, no sentido de que não apresenta contradições. Para ser cientificamente plausível, porém, a teoria de Velikovsky precisa apresentar alguma razão convincente para que a aceitemos, além do fato de que ela ajuda a explicar alguns dos eventos descritos na Bíblia, ou por associar as lendas maias às egípcias."

A comunidade científica não respondeu muito bem à publicação de "Worlds in Collision".

O livro foi publicado originalmente pela Macmillan, uma editora com uma divisão de livros didáticos. Muitos dos autores de livros didáticos e editores da Macmillan boicotaram a empresa depois da publicação do livro de Velikovsky, recusando-se a trabalhar com livros didáticos até que ela rejeitasse o cientista. A editora voltou atrás e cedeu o contrato de Velikovsky à Doubleday, a qual não tinha uma seção de livros didáticos.

Teorias e ideias controversas são lugar-comum na arena científica, e as de Velikovsky poderiam ser fácil e calmamente descartadas pelos especialistas do campo, exceto por um detalhe inesperado: o grande sucesso de seus livros. Com "Worlds in Collision" ocupando o primeiro lugar na lista de mais vendidos do mundo, ele não podia ser tão facilmente descartado. Suas teorias ainda são objeto de debate, e mesmo seus mais ferrenhos opositores admitem, irritados, que ele acertou em algumas coisas, inclusive no fato de Júpiter emitir ondas de rádio, de as rochas lunares serem magnéticas e de Vênus girar sobre o próprio eixo em sentido contrário.

Um grande amigo meu visitou Velikovsky em sua casa em 1979, o ano da morte do cientista russo. Meu amigo se lembra de que o estudioso, então com 84 anos, era um homem quieto, quase taciturno, um intelectual diligente que parecia estar fazendo um inventário de sua vida e obra, um desafiador das convenções que mantinha uma profunda fé e confiança em suas crenças. Talvez as décadas de zombaria estivessem cobrando o preço de Velikovsky no ocaso de sua vida. "Não me lembro de tê-lo visto sorrir nem uma única vez durante minha visita", disse meu amigo. 


Fonte: Os 100 Maiores Mistérios do Mundo - Stephen J. Spugnesi - Difel 2004

Fantasmas, Poltergeists, Lugares Assombrados e Aparições


Que fantasma acenando, seguindo a sombra do luar, 
Convida os meus passos e aponta para uma longínqua clareira? 
— Alexander Pope

Definição: Um fantasma ou um poltergeist é o espírito de uma pessoa morta; um lugar assombrado é um local frequentado por fantasmas; uma aparição é a imagem visual de um fantasma vista pelos mortais habitantes da Terra.

O que os crentes dizem: Fantasmas são reais e estão em todos os lugares. As pessoas os veem há éons e é bem improvável que todos os relatos sejam falsos.

O que os céticos dizem: Fantasmas não existem.

Qualidade das provas existentes: Muito Boa.

Probabilidade de o fenômeno ser paranormal: Alta.

O visitante noturno

— Perdoe-nos por acordá-lo, senhor, mas viemos por causa de um assunto muito importante.

O velho, de pijama, encarou os dois jovens que haviam batido à sua porta no meio da noite.

— Quem são vocês? — perguntou ele, com um misto de irritação e medo na voz.

— Sou Jacopo Alighieri, filho do poeta Dante. Este é meu amigo.

O rosto do homem abrandou à menção do nome do grande poeta.

— Ah, signore Alighieri. Meus pêsames pela perda de seu pai. Sempre considerei uma honra viver na casa onde ele passou tantos anos.

— Obrigado, senhor — respondeu Jacopo, de modo respeitoso. — E por esta ter sido a casa de meu pai que viemos visitá-lo agora à noite.

— Entrem, entrem.

Os dois rapazes entraram na casa, e Jacopo então contou ao homem sobre seu sonho:

— Meu bom senhor, meu pai, Dante, apareceu para mim em meus sonhos hoje. Ele estava vestido de branco e seu rosto brilhava com uma luz resplandecente. Perguntei-lhe se estava vivo, e ele respondeu: "Estou, mas vivo uma vida verdadeira, não como a sua."

O homem permaneceu em silêncio, uma expressão de assombro estampada no rosto.

— Perguntei-lhe então se tinha completado toda a sua obra antes de passar para a vida verdadeira, e ele me disse: "Sim, terminei." Em seguida, perguntei o que havia acontecido com os últimos 13 cantos de sua Divina Comédia, os quais estão faltando no manuscrito.

O homem anuiu. A Comédia de Dante era bem conhecida.

— Meu pai então me pegou pela mão e viemos até o quarto onde ele dormia aqui nesta casa. Isso mesmo, meu bom senhor, estive aqui hoje à noite, embora não da forma como o senhor está me vendo agora.

O homem engasgou, mas não disse nada.

— Meu pai tocou uma das paredes do quarto e me disse: "O que procuras com tanto afinco está aqui." Em seguida, acordei. Chamei meu amigo e, bom, aqui estamos.

O homem permaneceu em silêncio por um momento e depois falou:

— Você quer ir até o quarto.

Jacopo fez que sim e o homem o guiou até o quarto principal.

Jacopo seguiu direto até a parede que seu pai havia tocado e encontrou um tapete pendurado. Levantou o tapete. O dono da casa levou a mão ao peito e fez o sinal-da-cruz.

— Meu Deus! — exclamou, baixinho. Sem dúvida, ele não sabia da existência do compartimento secreto. Jacopo enfiou a mão e puxou uma pilha de folhas, as quais percebeu imediatamente serem os cantos perdidos.

Graças ao fantasma de Dante, A Divina Comédia agora estava completa.

A crença em fantasmas é tão antiga quanto a noção de que o homem tem uma consciência bicameral.

É provável que os primitivos habitantes das cavernas imaginassem os espíritos de seus familiares falecidos observando-os da escuridão.

Pessoas de todas as culturas da Terra tentam se comunicar com os mortos; alguns cientistas veneram os espíritos de seus ancestrais, rezam para eles e lhes pedem ajuda.

Fantasmas são reais?

Os espíritos dos mortos visitam nosso universo terreno?

Existem lugares assombrados?

Se os fantasmas não são reais, então como podemos explicar os registros de atividade poltergeist, como cadeiras voando pela sala, quadros girando nas paredes e pratos caindo no chão sem que ninguém tenha encostado neles?

Como podemos explicar as fotos de fantasma restantes após descartarmos as falsificações, os erros de câmera e os fenômenos naturais?

As aparições de fantasmas são semelhantes às dos OVNIs. Muitas pessoas os veem, seria abusar da boa vontade crer que 100 por cento delas estão erradas.

O que são os fantasmas e por que eles insistem em permanecer aqui na Terra?

Há várias teorias sobre a natureza e o propósito dos fantasmas. Alguns permanecem na Terra e fazem contatos com os vivos a fim de avisá-los sobre algum perigo. Outros ficam por aqui porque foram assassinados de forma repentina e seus eus astrais ainda não tiveram tempo de assimilar a transição deste plano de vida terreno para o universo dos mortos. Em essência, esses fantasmas precisam receber permissão para se livrarem de seus apegos terrenos e seguirem em frente.

Alguns fantasmas são maléficos e tentam deliberadamente machucar ou assustar os vivos até deixá-los de cabelo em pé. Alguns desses seres se manifestam através da atividade poltergeist. Eles jogam cadeiras, giram quadros, fazem sangue pingar do teto e criam outras ocorrências inquietantes, mas não permitem que os vejamos.

Existe uma pequena sobreposição entre os conceitos de possessão demoníaca e de infestação fantasmagórica. A maior diferença é que os fantasmas em geral apresentam uma aparência semelhante à que tinham em vida. Os demônios são mais maléficos e normalmente não utilizam uma aparência humana ao surgirem na frente das pessoas.

Nunca vi um fantasma. Já vi um OVNI e algo que acredito ser um autêntico círculo numa plantação, mas nunca um visitante espectral. Stephen King admitiu certa vez ter visto o fantasma de um velho no quarto de uma casa que acabara de visitar, ao entrar para pegar seu casaco e o da esposa.

Hoje em dia, há inúmeros livros detalhando a localização de lugares assombrados ao redor do mundo.

Nada disso significa coisa alguma para os céticos. A crença em fantasmas é totalmente rejeitada como nada além de um pensamento delirante.

Suponho que essas pessoas encontrem conforto na crença de que estão 100 por cento certas — de que sabem com absoluta certeza tudo o que existe e não existe.

Saber tudo o que há para saber e ser capaz de dizer aos outros por que eles estão errados é um feito e tanto, não acha?


Fonte: Os 100 Maiores Mistérios do Mundo - Stephen J. Spugnesi - Difel 2004

A Terra é Oca


"Tenho a intenção de apresentar provas científicas que comprovem que a Terra, em vez de ser uma esfera sólida com o centro ardente de metal derretido, como todos supõem, é, na verdade, oca, com aberturas nos polos. Além disso, em seu interior existe uma civilização avançada, responsável pela criação dos discos voadores." — Dr. Raymond Bernard

Definição: Segundo a crença, o planeta Terra é uma esfera oca e seu interior é cheio de câmaras, túneis e galerias, como uma colmeia; além disso, ele possui sua própria atmosfera, ecossistema e vegetação. Alguns defensores, os hollow earthers, também acreditam que o interior do planeta é povoado por seres que talvez sejam os responsáveis por todas as aparições de OVNIs aqui na Terra.

O que os crentes dizem: Há um mundo dentro do nosso mundo.

O que os céticos dizem: Bobagem. A Terra não é oca e apenas sua superfície é habitada.

Qualidade das provas existentes: Desprezível.

Probabilidade de o fenômeno ser paranormal: Nenhuma.

A edição de agosto de 2002 da revista Discover publicou um artigo sobre a possibilidade de existir uma fonte de energia nuclear natural — uma gigantesca mina subterrânea de urânio sólido — no centro da Terra, a quase 6.500 quilômetros abaixo da superfície.

É provavelmente seguro apostar que os hollow earthers não tenham ficado satisfeitos com esse artigo e que tenham rejeitado totalmente a tese.

A Terra é, afinal de contas, oca, então como pode haver um centro sólido num espaço vazio?

A teoria da Terra oca é uma das mais extravagantes da ufologia.

Segundo ela, a Terra é, na verdade, uma esfera oca e dentro deste gigantesco globo existem rios, montanhas, florestas e, o mais importante, civilizações inteligentes — "superraças" —, responsáveis por muitas das aparições dos OVNIs vistos nos céus de nosso planeta.

Da mesma forma que com outras teorias marginais ligadas à ufologia, como a do Pé Grande, entre outros, existem também "especialistas" nesse assunto. Um dos mais notáveis é o supracitado dr. Raymond Bernard (pseudônimo de Walter Siegmeister), autor de uma das obras mais importantes.

A ciência já provou que o centro da Terra é liquefeito e que não pode haver vida dentro do planeta. Ainda assim, os hollow earthers citam uma pletora de "provas" contrárias a essa descoberta. Eles acreditam do fundo do coração que os governos do mundo sabem a verdade e que as "descobertas científicas" a respeito do centro liquefeito da Terra nada mais são do que falsas informações apresentadas intencionalmente pelas autoridades.

Eis aqui dois trechos — os 13 princípios — detalhando as especificidades dessa teoria bizarra. Essa lista foi retirada do livro do dr. Bernard e recebeu o seguinte título: "O que Este Livro Busca Provar."

1. A Terra é oca, e não uma esfera sólida como geralmente se supõe, e seu oco interior comunica-se com a superfície através de uma abertura nos polos.

2. As observações e descobertas do contra-almirante Richard E. Byrd, da Marinha dos Estados Unidos, o primeiro a entrar nas aberturas polares, o que fez percorrendo uma distância total de 6.500 quilômetros no Ártico e na Antártica, confirmam a exatidão de nossa teoria revolucionária sobre a estrutura da Terra, assim como o fazem as observações de outros exploradores que estiveram no Ártico.

3. Segundo nossa teoria geográfica de que os polos da Terra, onde estão as aberturas para seu oco interior, são côncavos, e não convexos, podemos dizer que os polos Norte e Sul nunca foram alcançados porque não existem.

4. A exploração do desconhecido Novo Mundo que existe no interior da Terra é muito mais importante do que a exploração do espaço sideral, e as expedições aéreas do almirante Byrd mostram o quanto ainda precisa ser explorado.

5. A nação que alcançar primeiro este Novo Mundo existente no interior oco da Terra — o qual possui uma área maior do que a superfície do planeta —, o que pode ser feito reconstituindo os voos do almirante Byrd para além dos hipotéticos polos Norte e Sul até as aberturas polares no Ártico e na Antártica, irá se tornar a mais poderosa do mundo.

6. Não há motivo algum para que o interior oco da Terra, o qual tem um clima mais quente que o da superfície, não abrigue plantas, animais e vida humana; assim, é bem possível que os misteriosos discos voadores sejam produtos de uma civilização avançada residente no interior da Terra.

7. Caso ocorra uma guerra nuclear no mundo, o interior oco da Terra proporcionará a continuidade da vida humana depois que as partículas radioativas exterminarem com toda a vida na superfície, e poderá servir como um refúgio ideal para a evacuação dos sobreviventes da catástrofe, de modo que a raça humana não seja destruída por completo, mas possa sobreviver.


Após anunciar suas intenções nesses sete itens, o dr. Bernard continua fornecendo provas para suas teorias, usando fatos e hipóteses científicas, escritos antigos e fotografias da Nasa. Ele conclui seu livro resumindo sua teoria em seis pontos:

1. Os polos Norte e Sul não existem. No lugar onde eles supostamente se localizam, há,na verdade, amplas aberturas que conduzem ao interior oco da terra.

2. Os discos voadores saem do interior oco da Terra por essas aberturas polares.

3. O interior oco da terra, aquecido por um Sol no meio (a fonte da aurora boreal), possui um clima subtropical ideal, cerca de 24o Celsius, nem muito quente nem muito frio.

4. Os exploradores do Ártico perceberam que a temperatura subia à medida que seguiam para o norte; eles encontraram outros mares abertos; encontraram animais viajando para o norte no inverno, em busca de comida e calor, em vez de seguirem rumo ao sul; perceberam que a agulha da bússola assumia uma posição vertical em vez de horizontal e girava de forma bastante incomum; quanto mais ao norte chegavam, viam pássaros tropicais e outras formas de vida animal; viram borboletas, mosquitos e outros insetos no extremo norte, animais que só são encontrados abaixo do Alasca e do Canadá; viram a neve pontilhada com coloridos de pólen e poeira negra, o que foi piorando à medida que rumavam mais para o norte. A única explicação para o surgimento da poeira seriam os vulcões ativos no interior das aberturas polares.

5. Existe uma grande população habitando o interior côncavo da crosta terrestre, uma civilização muito mais avançada do que a nossa no tocante a progressos científicos, a qual provavelmente descende dos continentes perdidos da Lemúria e da Atlântida. Os discos voadores são apenas um exemplo de suas muitas realizações. Poderíamos tirar vantagem de um contato com esses antigos irmãos da raça humana, aprender com eles e acolher sua ajuda e conselhos.

6. A existência de uma abertura polar e de terra para além dos polos deve ser do conhecimento da Marinha dos Estados Unidos, para quem o almirante Byrd trabalhava ao fazer seus dois voos históricos, os quais provavelmente são um segredo internacional.

Há registros de várias entradas para esse mundo subterrâneo. Elas estão espalhadas pela Terra e algumas das mais conhecidas são:

Entradas secretas nos polos Norte e Sul.

No Zimbábue, no lugar das lendárias minas do rei Salomão.

No monte Epomeo, na Itália.

No monte Shasta, na Califórnia (segundo os registros, a cidade aghartana de Telos existe sob este monte).

Em algum lugar de Manaus, no Brasil.

Em algum lugar de Rama, na Índia (aparentemente, a lendária cidade subterrânea também chamada de Rama situa-se sob essa cidade indiana).

Em algum lugar das cavernas de Dero (Indonésia?).

Em algum lugar das pirâmides de Gizé, no Egito.

Em algum lugar da fronteira entre a Mongólia e a China mongol (segundo os registros, a cidade subterrânea de Shingwa existe em algum lugar sob a fronteira).

Nas montanhas do Himalaia, no Tibet (supostamente, a entrada para a cidade subterrânea de Shonshe está escondida nessas montanhas e é vigiada por monges hindus).

Nas Cataratas do Iguaçu, na fronteira entre o Brasil e a Argentina.

Na Caverna do Mamute, no centro-sul do Kentucky, nos Estados Unidos.

Na planície mato-grossense, no Brasil (segundo os registros, a cidade de Posid situa-se sob o Mato Grosso).

A noção de uma Terra oca já apareceu em inúmeros romances, contos e filmes, sendo o mais notável a "Viagem ao Centro da Terra", de Júlio Verne. A ciência pode refutar completamente a possibilidade de tal lugar existir, mas, ainda assim, como em geral ocorre com o fanatismo delirante, os fatos jamais atrapalham as crenças daqueles que defendem as teorias. 


Fonte: Os 100 Maiores Mistérios do Mundo - Stephen J. Spugnesi - Difel 2004

quarta-feira, 18 de maio de 2016

O Homem dos Ratos

“Seu amor – ou, antes, seu ódio – era, em verdade, subjugador; foram precisamente eles que criaram os pensamentos obsessivos, cuja origem ele não era capaz de compreender e contra os quais lutou em vão para se defender.” – Sigmund Freud

Não vou contar a história de Carlos desde o princípio. Apesar de alguns especialistas dizerem que reside nos primórdios da sua vida o núcleo de todos os problemas futuros, não vou me ater a esta parte. Vou começar a contar a história quando a doença iniciou, ou, na verdade, quando já estava desenvolvida, mas passou a ser percebida por todos.

Carlos parecia ser um homem comum, tinha algum dinheiro de família e uma vida saudável. Ainda jovem, conheceu Marta, uma menina não muito bonita que morava perto de sua casa. Logo namoraram, noivaram e casaram, tudo sem perturbações ou problemas maiores dos que enfrentam outros casais.

Porém, no dia do casamento com Marta, os pais de Carlos sofreram um acidente e morreram e dizem que foram estes acontecimentos que deflagraram a doença de Carlos, ou um, ou outro, ou até mesmo ambos. Ele demonstrou uma grande tristeza com o acontecido. Após alguns dias, decidiram mudar para onde Carlos morava com os pais. Era uma casa grande, com aposentos espaçosos. O pátio era amplo e, segundo Carlos, “cabia muita coisa naquele terreno.”

Como disse, foi neste momento que a doença começou a surgir, mas sem lhe causar preocupações ou maiores constrangimentos. Carlos, aos poucos, passou a não querer se desfazer de pertences antigos, como roupas e sapatos velhos ou papéis sem serventia. Isto, todavia, não incomodava Marta, pois a vida deles como casal era ótima.

Carlos, entretanto, foi piorando e começou a guardar em casa potes de xampus, tubos de pasta de dente, escovas antigas e outros objetos de higiene, e foi neste momento que sua doença foi percebida. Carlos entrava no banheiro e lá ficava por horas. Não falava com ninguém e não respondia aos chamados da mulher. Depois, se ouvia a descarga, e ele saía, com um olhar distante e muito triste. Sua mulher, por vezes, o perguntou a respeito do que estava acontecendo, mas ele nunca respondeu, aparentava estar de fato abatido e vazio, alguma coisa parecia ter sido tirada dele.

Levaram-no a especialistas, vários, e cada um dava um diagnóstico diferente. Um deles disse para proibirem-no de entrar no banheiro, outro disse que se tratava de algo passageiro e outro, ainda, que era um problema decorrente de sua infância, e da demissão de sua babá, quando este tinha por volta de três anos. O fato é que nenhum tratamento funcionou, até porque Carlos não saía mais de casa e evitava ter contato com outras pessoas, a não ser com Marta, a qual fazia questão de ter sempre por perto. Ela gostava disso, gostava da necessidade dele de tê-la sempre por perto, se sentia amada, se sentia necessária. Amava ele também, amava ele por tudo que ele era e passava por cima de sua doença como se esta fosse apenas um pequeno defeito que pertence à personalidade de qualquer um.

Os meses se passavam, e a doença de Carlos piorava cada vez mais. Ele começou a guardar todo o lixo que era produzido em casa. Sacos se acumulavam na garagem. Aos poucos, tomaram conta da sala de jantar. O cheiro se tornou insuportável e animais surgiram na casa. Ratos e baratas eram constantes, e quando Marta matava um desses bichos, ele fazia questão de protegê-los, de modo a não permitir que ela os jogasse fora. Assim, eles apodreciam dentro da casa, onde quer que estivessem, colaborando ainda mais para o cheiro insuportável.

O local estava inabitável, não havia lugar para se acomodar e algumas portas não podiam mais ser fechadas ou abertas, uma vez que as pilhas de lixo ocupavam toda a casa. Montanhas saíam pelas janelas e, do lado de dentro, um estreito corredor formado por uma aglomeração dessas “coisas” malcheirosas construía uma estreita trilha, por onde ainda se podia chegar ao quarto, à cozinha e aos banheiros. Isto, contudo, de nada adiantava, uma vez que estes aposentos não tinham mais muita utilidade nem espaço para suas funções. Além disso, as portas haviam sido obstruídas e não era mais possível entrar ou sair.

A vida de Marta se tornou insuportável. O ar dentro dos aposentos era quente e fedorento. Marta, por instantes, tentava prender a respiração para não sentir aquele cheiro, mas, momentos depois, tinha que respirar e o fazia com força para recuperar novamente o ar. Então, sentia o cheiro forte e azedo, passava mal, ficava enjoada e vomitava. Apesar disso, ela não conseguia ir embora. Amava Carlos e gostava de estar com ele. Mas como era terrível amar alguém que não a respeitava, que a fazia morar em um lugar como aquele! Ela passava os dias chorando, tentando buscar coragem para ir embora, mas não conseguia: seu amor por ele era maior do que o amor por ela mesma.


Carlos já não tomava banho fazia meses e se justificava dizendo que não poderia deixar a água escorrer pelo ralo (mesmo este já estando há muito obstruído) e ainda que a água, passando em seu corpo, tiraria dele sua pele, alguns pelos e os animais microscópicos que lá viviam. Eu não posso me desfazer disto, dizia ele com sinceridade. Ou, quando Marta tentava jogar algo fora – você não pode tirar isso de mim, gritava angustiado. De fato não podia, sua doença não deixava. Essas frases eram repetidas dezenas, centenas, milhares de vezes durante um dia e Marta já não aguentava mais.

Certo dia, ela precisou ir ao banheiro, mas como o do seu quarto estava obstruído pelas “coisas”, ela teve que ir ao outro, que ficava no final do corredor e só era utilizado por ele. Ao abrir a porta do banheiro, ainda com extrema dificuldade, sentindo que algo impedia seu movimento, Marta viu uma montanha malcheirosa de fezes e urina que ocupava todo o ambiente. Devia fazer meses que seu marido guardava seus excrementos naquele banheiro. Marta ficou tonta, nauseada, perdeu as forças, desmaiou e foi acudida por Carlos.

Ela acordou deitada sobre alguns sacos de lixo pretos, no meio da sala de estar.

Estava furiosa, não entendia como seu marido podia fazer aquilo com ela, e muito menos com ele mesmo. Eles brigaram. Ela disse que ele tinha que jogar tudo fora senão ela mesma o faria. Eu não posso me desfazer disto, dizia ele, e você não pode tirar isso de mim! Marta não entendia. Esse monte de sujeira, esse monte de lixo, restos de comida e esta montanha de merda? – questionava ela. Mas isso tudo é seu, é tudo para você, são meus presentes para você, respondia Carlos chateado com a incompreensão da mulher. No fundo, sabia que não era verdade, ou em parte não era verdade. Sabia que muito além de um presente para ela, aquilo era um presente para ele mesmo, reter tudo aquilo era, antes de tudo, um presente para si mesmo. Mas isso é sujeira, é lixo, é merda – repetia ela – é sujeira, é lixo, é merda...

Carlos ficou embravecido, e sua irritação se tornou cada vez maior e mais incontrolável. “Sujeira, lixo, merda...” essas palavras ressoavam na cabeça de Carlos e já não faziam mais sentido, apenas se repetiam, iam e vinham, já sem significado. “Suj, Lix, Mer, Suj, Lix, Mer...” as palavras rodavam em sua cabeça. “S, L, M, S, L, M, S, L, M...” Marta falava sem parar, mas as palavras não chegavam mais à consciência de Carlos, ele não estava conectado com a realidade, ou com as palavras de Marta. “S, L, M, S, L, M, S, L, M...” as letras se repetiam em sua mente e Marta continuava e gesticular e a mexer os lábios, mas nada penetrava nos pensamentos de Carlos.

Isso não é Sujeira, isso não é Lixo, isso não é Merda – repetia ele enquanto olhava o caos em que havia se transformado a residência do casal.

Então, de repente, a sua mente se abriu para uma frase de Marta, a qual era mais importante do que qualquer outra: chega, vou embora!, gritou ela enfurecida.

A irritação de Carlos tomou proporções gigantescas e mesclou-se com um pavor imenso, que cresceu e tomou conta dele, de sua mente, de seus atos. “Sujeira, Lixo, Merda, Ir Embora”. Não, ela não poderia ir embora! Carlos investiu com rapidez contra Marta, agarrou-a pelo pescoço e apertou forte por alguns instantes. Para Carlos pareceu apenas um segundo, pois na sua mente não passava o tempo, apenas pensamentos e as palavras de Marta “S, L, M, S, L, M, S, L, M...”. Ir embora! Embora! “S, L, M, I, E, S, L, M, I, E, S, L, M, I, E, S, L, M, I, E...”. Já para Marta aquele momento deve ter durado uma eternidade.

Marta caiu no chão sem vida. Carlos sentiu um alívio intenso, pegou o corpo da mulher e jogou em cima da montanha de “coisas”.

Como “ir embora”? – pensou ele.

Eu não poderia me desfazer disto e você não pode tirar isso de mim.

por Rafael Spinelli


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.