terça-feira, 31 de maio de 2016

Cabeça-de-Arroz


Quando foi perguntada sobre a alimentação, disse que comia bem, mantinha hábitos saudáveis, não fosse o excesso de arroz vez ou outra. O doutor quis saber mais sobre o assunto, pois admirava o tamanho e formato estranhos da barriga da mulher. Os braços gorduchos e as pernas de elefante denunciavam obesidade.

– O problema começou de repente, quando batia a fome.

Doutor Luís não acreditou na história, embora a naturalidade com que Neuci a contasse provocava um medo da coisa ser mesmo real. A mulher continuou falando de seu vício, como quem não se preocupava, não, fora o marido que a empurrara para o médico, caso contrário estaria em casa assistindo à novela das sete e comendo arroz, claro, embora o homem desconhecesse o desvio da esposa. Ela se sentiria muito melhor fora do consultório, longe do médico e de suas perguntas. Ainda assim, aguentou, paciente:

– Eu preciso comer fora das refeições. Arroz com feijão, arroz ao forno, bolinho de arroz e carreteiro não me satisfazem mais.

Qual seria a origem de tudo aquilo? Talvez a falta de instrução, afinal, parecia uma mulher humilde, ou a falta de educação, mas já era adulta, também. Ele não encontrava respostas e a mais óbvia era que nada daquilo fazia sentido, era uma louca, mais uma louca, afirmava o doutor em pensamento.

Na cabeça de Neuci, no entanto, a loucura não era cogitada. A sua melhor amiga tinha o vício do cigarro, muito pior que o dela; a outra colecionava em segredo formigas dentro de um pote para comer depois. Fazia bem aos olhos, acreditava Beatriz. Por fim, tinha a alcoólatra, que perambulava bêbada quando a cachaça invadia o sangue.

– Cigarro acaba com o pulmão da gente, não é, doutor?

Ele confirmou.

– Pois, então, arroz não acaba com ninguém. Só me deixou mais gordinha, admito. Mas, também, depois de dez anos de casada, você quer o que, hein?

Ele respirou fundo, ajeitou-se na cadeira dura. Sonhava tanto com uma poltrona de médico respeitado, aquela não causava imponência. Falou ríspido:

– Comer arroz, tudo bem, minha senhora. Agora, ter como hábito comer arroz cru já me parece um problema. Talvez não nutricional, pois de fato o arroz contém vitaminas, mas um problema psíquico, que deve ser tratado.

Ele estava ansioso por mandá-la embora, e criar um diagnóstico de problema emocional era fácil, fácil. Divertido, até. Mas ele não era médico pilantra, justificou a si mesmo, a mulher bem que deveria ter traumas mentais, e psicólogos tinham paciência para escutar histórias mirabolantes. Onde já se viu, comer arroz cru em quantidades imensuráveis. Além do mais, já passavam das seis, e aturar paciente na última hora do dia era sacrifício que não compensava. Menos ainda quando se tratava de paciente ignorante.

Neuci nem percebeu a distração do doutor, estava concentrada em detalhar como tudo havia começado. Não conseguia mensurar datas, como ele insistia em saber, mas havia anos tinha uma queda especial pelo grão.

– De um tempo para cá, a coisa piorou, ou melhor, melhorou. Comecei a comer arroz a cada duas horas, mais ou menos. Quando não tinha dinheiro para comprar, pegava sacos da dispensa da madame, qual o problema se ela tinha tanto e nem usava?

– Você consegue lembrar desde quando tem esse hábito? – interrompeu o médico.

Pensando nisso, ela notou que pouco guardava lembranças do arroz na infância. Na época, comia as verduras das plantações secas da roça, quando dava fruta também colhia, mas era com arroz que sonhava. Ah, quando tinha arroz dava pulos de alegria, até cair na realidade e precisar dividir com os doze irmãos uma panela só.

– Bem, como cozinheira, eu separava o arroz em copos para abastecer a família grande. Copos e copos de arroz, eu contava. Todo dia tinha arroz, e uma vez eu resolvi terminar com o desperdício. Foi quando comecei a raspar a panela e, depois, os pratos também.

Até aí, tudo normal, saciava a fome da infância na orgia de comer bem – e em boa quantidade. Foi quando, então, sua mente começou a sentir falta de arroz durante o espaço de tempo em que ficava sem comer, do almoço até a janta. Para terminar com o período ocioso, um dia resolveu levar o resto de um saco de arroz na bolsa. Se sentisse vontade, era só saciar comendo um pouquinho. Nem notava que o comia cru, era arroz, afinal.

– Assim foi, doutor. Levo na bolsa sempre um saco de arroz ou um pote mesmo.Já levei até tigela e panela, quando o desejo é grande e não consigo controlar – e abriu a bolsa de pano, mostrando um saco que tomava conta do espaço todo. No fundo da bolsa, ele espiou, grãos espalhados a preenchiam.

Recordou-se então das inúmeras vezes em que fazia isso – todos os dias, já havia meses. Na casa da família, escondia-se logo que chegava ao quarto dos empregados e deliciava-se com o grãozinho duro, fresco, pequeno e fino. Ao morder os pedaçinhos em conjunto, o clec clec das dentadas a excitava. Clec, clec, clec e o som tornava-se uma canção. Era o período do dia em que se aliviava das tensões, jogando-se no conforto do arroz puro.

De volta ao trabalho, sem mesmo notar, já tinha um punhado de arroz escorrendo entre os dedos rechonchudos, caindo da mão enquanto boa parte abastecia a boca esfomeada. Em momentos de extrema necessidade, via-se lambendo o piso gelado, a língua procurando os grãos como se brincasse de bater carta. Um dia, a patroa a viu assim, com o traseiro gigante empinado e o rosto grudado no chão. Foi quando descobriu.

– Notou alterações no organismo?

– Nada, não, doutor.

Na sua casa, todavia, o esposo nunca desconfiara. Ela disfarçava o comportamento estranho justificando que as idas ao banheiro eram por causa de diarreia. Na verdade, corria para o cubículo e abria, afoita, o saco de plástico, metendo a cara dentro. Cuidava para fechar os olhos, era viciada, mas não queria arroz penetrado também na sua pupila. Já bastavam as bochechas entupidas – não de ar. No ônibus, escondia também no bolso da calça e, vez ou outra, metia os dedos procurando o alimento cru.

– E as fezes? Está evacuando bem?

– Ah, faço com menos frequência, me sinto presa, sabe? Antes, tinha diarreia,agora nem isso.

– Dores estomacais, desconforto intestinal?

– Qual a diferença? – perguntou a mulher, fazendo batidinhas na pança gorda.

Naquele momento, pôde-se ouvir um ruído estranho. Doutor Luís tentou associá-lo com algum barulho conhecido e se lembrou das miçangas que caíam aos montes no chão, enquanto as filhas criavam pulseiras e colares e depois deixavam tudo bagunçado na sala.

Para mostrar a localização de cada órgão e perguntar sobre a possível dor, ele aproximou-se da barriga volumosa e a tocou, sentindo-se o homem mais corajoso do mundo. Era um médico de verdade, provava o seu maior sacrifício em prol da profissão.

Com as mãos tensas, ensaiou marteladas rítmicas na barriga de Neuci. Um barulho mais alto foi ouvido na sala fechada e o doutor teve certeza de que vinha, sim, de dentro da mulher. Agora, pareciam-lhe bolas de gude batendo umas nas outras. Ignorou o sentimento de nojo. Fazia parte do ofício de médico encarar os casos mais bizarros. E resolvê-los. Foi quando tomou a decisão:

– Vamos precisar olhar esse troço aí – e apontou assustado para o local de onde saíam os ruídos.

Quando se deu conta de como chamara o corpo da paciente, reformulou a frase, não por arrependimento, mas por normas médicas e jurídicas, não queria ser acionado por danos morais:

– Desculpe, precisaremos fazer uma intervenção cirúrgica. Seu aparelho digestivo não me parece estar funcionando direito, não é normal esse barulho.

Neuci nada falou e pôs-se a bater de novo em cima da barriga que parecia mole, mas na sua textura estava inchada.

– É bom, não é, doutor? Aposto que você nunca ouviu nada igual.

E o barulho ploc ploc ploc repetia-se,para a euforia dela e a apreensão do médico. Que é isso?, perguntava-se ele, inconformado por nunca ter visto – ou melhor, ouvido – sons parecidos saindo de dentro de um ser humano.

Na semana seguinte, aconteceu tudo rápido. Ela chegou ao hospital precário acompanhada do marido. Na preparação para a cirurgia, precisaram de dois aventais daqueles com a bunda de fora para dar a volta no corpo da paciente. A gordura extrapolava o limite não apenas estético, mas físico. A bunda flácida derretia para fora do buraquinho maldito. Duas macas também foram pedidas, o esposo que observava distante só se perguntava, nervoso, se o SUS permitiria assistência em dobro. Já fora milagre conseguir agendar horário num sistema lento como aquele.

O clima na mesa de cirurgia também era de nervosismo. O doutor e mais dois residentes cercavam Neuci para não deixá-la fugir, estava impossível, a mulher não queria anestesia, tinha medo de morrer.

Quando, finalmente, enfiou a mão em suas vísceras, a primeira reação do homem foi a de fechar os olhos, a visão mais nojenta de sua vida o deixara tonto. De olhos cerrados, pela primeira vez na carreira não pôde visualizar a cena, deixou apenas o tato de médico entender o quadro. Então sentiu cócegas, mesmo que a luva se consistisse num filtro, sentiu cócegas, como se afogasse o braço naqueles tonéis profundos de arroz, feijão e milho que são vendidos nas feiras e nos comércios locais.

Abriu os olhos e não controlou, virou para o lado, e o vômito saiu às pressas. Em meio às tripas, inúmeros grãos flutuavam e nadavam sufocados, soltinhos, em milhares, incalculáveis, e batiam-se uns aos outros, competindo por um espaço do mar tomado pelos grãos. Quase não havia líquidos, a água transparente do intestino misturava-se com o verde da bile, e tudo junto se traduzia na visão de um corpo defasado, em plena degeneração.

Doutor Luís chamou os dois assistentes, que olharam apavorados.

– Fixem os olhos nos intestinos. Quem pode me responder onde está o delgado e onde fica o grosso?

Os dois jovens aprendizes ficaram calados. Não podiam distinguir nada do que viam. Nem o doutor conseguia.

Após os grãos duros serem postos para fora com colheres e conchas que os residentes buscaram correndo na cozinha do hospital, uma nova surpresa aconteceu. Embaixo do arroz seco, uma onda de arroz papado, úmido assim devido à água que o cozinhara durante algum incerto tempo, jorrou do corpo da mulher, como a correnteza de um rio furioso, lavou a cama e molhou o avental do médico. Vinha mais e em maior fluxo, grãos por toda a parte, tapando o corpo da paciente, que estava afogada em arroz até o pescoço. No rosto da mulher, um movimento inacreditável paralisou a equipe: sua boca abria e fechava, sem parar, e a onda de arroz entrou pelos lábios, o músculo facial se estendeu e ficou mais flexível. Litros de pasta de arroz entalaram na garganta, cujas amídalas gesticulavam um vaivém de flexões ansiosas. Neuci parecia querer engolir tudo aquilo e, embora ela estivesse dopada, a sua carne pedia arroz, doutor Luís podia ter certeza.

Os médicos não sabiam o que fazer, o nervosismo aumentava, e nem mesmo os maiores baldes da cozinha davam conta de retirar todo o arroz. A sala parecia pequena demais perto do tamanho da massa gosmenta que se formava, um monstro feito de pequeninos grãos, daqueles que as pessoas conhecem e comem todos os dias.

Então, num verdadeiro transbordamento do rio, o arroz entalado na garganta evacuou pelo nariz branco, que agora estava uma bolota vermelha, e saiu pelas orelhas grandes e até pelos olhos. Sim, pelos olhos, os grãos não a pouparam de nada. Parecia que o arroz estava vivo dentro da mulher, consumindo-a.

Ela era arroz e o arroz era ela. 

por Annie Piagetti Müller


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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