O sr. Hammam Fields é um militar reformado e vive com sua esposa, a Sra. Fields, num antigo apartamento em Coney Island, Brooklyn.
— Hammam querido, olhe como as nuvens estão carregadas.
Hammam assentiu com a cabeça, disse que a chuva viria em boa hora. Os dois olhavam pela varanda aberta como sempre faziam nos fins de tarde. De Coney Island, via-se pouco, mas o suficiente. Uma escura porção do Atlântico que, nos dias de vento como aquele, formava pequenas rugas de espuma branca, e as ondas irrequietas se assemelhavam a barbatanas de tubarão. Na baixa silhueta dos prédios, viam-se janelas sempre velhas, tijolos escuros e letreiros apagados pelos ventos ou pelo descaso.
Um cotovelo da Cyclone Roller-Coaster e mais da metade da Wonder Wheel surgiam de um ponto da Jones Walk encoberto pelos prédios centrais. O parque estava desativado havia cinco meses.
Hammam foi até a cristaleira e aumentou o volume do rádio. As trovoadas e rajadas de vento estão mais intensas no início de Manhattan Beach e em quase toda extensão da praia de Brighton. Preparem o espírito, caros ouvintes, aí vem uma bela tempestade. Hammam caminhou até a cozinha e buscou na geladeira uma garrafa de Duff.
— Clara, eu realmente não entendo essa sua mania de ler receitas.
— Ora, querido, esta revista traz ótimas dicas.
— Em compensação, você sempre faz a mesma droga de pastéis.
— Oh, querido, não seja brusco, sabe que faço o melhor que posso.
Hammam sentou de volta, agora o rádio suficientemente alto para encher a sala. O locutor continuava com os maus presságios. O vento batia nas persianas e fazia um ruído fino e prolongado. A escuridão abarcara-se no céu e, em contraste, relâmpagos eventuais punham o horizonte em branco chapado. De tanto que se debatiam, as bandeirolas do topo da Cyclone Roller-Coaster ameaçavam voar Massachussets adentro.
Uma chuva pontiaguda passou a entrar pela varanda. Clara se levantou para encostar uma das portas de vidro.
— Querido, preciso que me ajude. Não quero que esta chuva o deixe encharcado.
A eletricidade caíra em parte do Brooklyn e, a partir de Coney Island, era possível avistar o grande vulto negro que se espichava ao oeste pelas regiões sem luz. Todo e qualquer vestígio iluminado parecia encoberto, e ninguém estranharia se naquele lado a névoa escura sorvesse os edifícios, as pontes, as pessoas que ainda estavam na rua. Ao leste, o Atlântico em sobressaltos. As cristas de espuma branca cederam lugar a espessos blocos de água cinza, que se entrecortavam como pesadas lâminas de chumbo líquido. As lâmpadas, as poucas e pálidas lâmpadas de Coney Island piscavam em caos, num prenúncio de que logo o bairro também ficaria sem energia.
O rádio chiava, parecia percorrer o tuner por conta própria, buscando uma nova estação sem chegar, sem encontrar voz, canção, sequer um som familiar – e não havia ninguém perto do aparelho. Clara punha na ponta dos dedos e na palma da mão a aflição, quase rasgava as páginas da revista, sentia suas artérias engasgadas de vertigens. Sua boca fina e enrugada pôs-se seca, e os miúdos olhos contorciam-se buscando algo que lhes oferecesse confiança. Estrondos de todos os lados, de perto e longe: explodiam trovoadas, grandes e pesadas massas de ferro pareciam despencar, vidros estilhaçavam.
O rádio parou de chiar, emitia um sinal agudo, contínuo, como o grito de uma ave silvestre antes de ser abatida. As fotografias na parede convulsionavam-se involuntariamente, e quando as esparsas rajadas dos relâmpagos iluminavam a parede, viam-se as condecorações militares penduradas, tortas, trêmulas, prestes a despencar, e o retrato dos Marines do Brooklyn de 57, o quadro da família em piquenique no Queens, a foto do casal quando jovem, em Birston Lake, Oklahoma. Hammam estava sóbrio, sentado, observando a insurreição do clima.
— Hammam querido, fale algo. Estou ficando nervosa.
Hammam buscou do chão a garrafa de Duff, deu um último gole e avisou que iria atrás de mais cerveja. A luz acabara fazia uns poucos minutos, e ele levaria consigo uma lanterna e um abrigo de chuva.
Clara decidiu girar sua poltrona para o interior da sala, dando as costas ao temporal. Coberta e agarrada à colcha de lã, ela comprimia as mãos, cerrava os olhos e sussurrava pelos cantos dos lábios uma prece de ajuda. Os vidros oscilavam epileticamente: para dentro, para fora, forçados pelo turbilhão de raios, ventos escuros e a chuva que caía em pesados filetes. Clara fechava os olhos e via um vácuo negro, abria-os e via tudo à volta, mas por frações de segundos, quando os relâmpagos davam a luz escassa, luz de chumbo, e os retratos na parede, e os retratos em que Hammam estava sozinho, como aquele no barco de pesca, sua expressão alegremente perversa. Oh, por que Hammam decidira buscar cervejas justo agora? Decerto ele ficará doente nessa tempestade, isso se não sofrer alguma injúria.
Clara começou a chorar baixo, por que Hammam era assim, afinal? Decidiu tornar o corpo para trás, talvez visse Hammam voltando para casa, explodiu outra bomba de luz no horizonte, e justo na hora em que virava o pescoço, sem querer, pois Clara não queria nada mais do que Hammam a seu lado – sem querer ela avistou no topo da Cyclone Roller-Coaster, agarrado a uma bandeirola verde, como em pesadelos, vestindo uma estranha farda de capitão da marinha francesa, com um toco de madeira no lugar do braço direito, o chapéu em retalhos, uma bainha de espada atravessada no peito, lá em cima, no cume da montanha-russa, nítido, não era assombração, um homem do qual só se viam os olhos, o rosto todo escuro, a mão esquerda deformada e um par de botinas brancas. O homem olhava para ela.
Clara virou-se, oh, não poderia ser, bem agora que Hammam não estava a seu lado, ela vendo uma coisa daquelas, devia ser a idade, e pôs-se a chorar sussurrando um pouco de desespero.
No interior do apartamento, a parede em nacos de luz, listrando em fosco e escuro o sofá, a cristaleira, o rádio, os diversos retratos que, tremendo, pouco a pouco foram despencando, despedaçando-se, um a um, até sobrar um último, que não balançava e ficou só e único na parede: o retrato de Hammam na pescaria, sorrindo, sorrindo, mas os lábios contornados com uma ironia perversa, o olhar malicioso, nunca tinha percebido Hammam assim. Clara abraçou-se, pôs a lã no rosto, mas era melhor tentar ver, assim estaria prevenida. O turbilhão sonoro. O rádio apitando como ave silvestre. As vidraças dobrando-se, histéricas. Trovoadas. As lâminas de chumbo debatendo-se no mar. As bandeiras voando. O capitão francês de rosto apagado olhando-a. Nacos de luz fosca e nacos escuros trocando de lugar.
Clara não sentia mais as pontas dos dedos — apertara-as tanto —, não sentia em si própria nada além da vertigem abismal, da dor que lhe cortava a alma, do desespero. Viu crescerem raízes pelo tapete italiano, viu nascerem trepadeiras nas juntas das paredes, viu formarem-se folhas estranhas, escuras, de bordô-sangue, e viu vinho escorrer pelos rodapés da sala.
Clara chorou sufocada, atirou o livro de receitas contra o caule que crescia junto ao pé da poltrona. Entre os pedaços de luz, projetada como sombra na parede, a silhueta do capitão francês sem rosto, de pé na varanda, atrás do vidro – Clara fechou os olhos e permaneceu a enxergar a imagem, sentiu o pé cortado pelas pontas das folhas, a raiz sufocando a pele, o capitão chegando mais perto e erguendo a mão de pau, as bandeirolas, os blocos de ferro caindo em direção ao teto do apartamento. Um barulho de chaveiro. Enrolada na lã, de olhos fechados, Clara percebeu que alguém abria a porta de casa. Hammam, enfim. Hammam querido. A porta abriu.
— Hammam querido, que bom que você chegou — disse, entre soluços de choro.
Foi quando percebeu: era Hammam, seu perfil desenhado pelo escuro, a mesma roupa, o abrigo para chuva, uma sacola à mão direita – devia ser a cerveja. Mas havia algo de estranho. Clara percebeu o rosto de Hammam: os olhos em vermelho, os dentes afiados como lâminas, o nariz enegrecido e pelos por toda face. Pelos por sobre as narinas, envolvendo-lhe o queixo, circundando as olheiras, rodeando a boca e saltando-lhe das bochechas como se fosse um lobo cinzento.
— Olá, querida — respondeu.
por Rafael Kasper
Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.
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