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terça-feira, 10 de abril de 2018

Para Quê Nos Preocuparmos Com a Morte?

A Morte nas Frases - Suspiro nº 5

"Para quê preocuparmo-nos com a morte? A vida tem tantos problemas que temos de resolver primeiro." - Confúcio

"A vida não passa de uma oportunidade de encontro; só depois da morte se dá a junção; os corpos apenas têm o abraço, as almas têm o enlace." - Victor Hugo

"A fama é para os homens como os cabelos - cresce depois da morte, quando já lhe é de pouca serventia." - Albert Einstein

"Dois amantes felizes não têm fim nem morte, nascem e morrem tantas vezes enquanto vivem, são eternos como é a natureza." Pablo Neruda


Diário da Foice, 22 de agosto de 2016

Médico Legista Opera Quem Já Morreu


A Morte nas Frases - Suspiro nº 4

"O trabalho mais fácil do mundo é o do médico legista. Operar quem já morreu. Qual é a pior coisa que pode acontecer? Se tudo der errado, o máximo que vai acontecer é o coração do defunto voltar a bater."

"Algumas pessoas tornam as outras felizes aonde quer que vão. Outras, quando se vão."

"Evite piada em velório. No seu, você não rirá."

"Se tudo que é bom dura pouco, eu já deveria ter morrido a muito tempo."


Diário da Foice, 19 de agosto de 2016

Pobre Quando Sai da Merda Morre


A Morte nas Frases - Suspiro nº 2

"Na minha lápide podem escrever o seguinte: A partir de agora, não contem mais comigo."

"Eu não tenho medo de morte, eu apenas não quero estar lá quando acontecer."

"Homem nasce sorrindo, vive fingindo, cresce traindo e morre mentindo ..." (autoria: uma mulher).

"Pobre é como lombriga, quando sai da m*rda morre."


Diário da Morte, 5 de agosto de 2016

Flertando Com a Morte


A Morte nas Frases - Suspiro nº 1

"Eu sempre quis ter escrito no meu testamento que, quando eu morresse, o caixão aparecesse uma hora e meia atrasado, e escrito na lateral, tipo em dourado, 'Desculpe pelo Atraso'!” - AXL ROSE

“Não é difícil escapar da morte. Todo soldado sabe, basta sair fugindo. O mais difícil é escapar da maldade, pois ela é mais rápida que nós” - SÓCRATES

“Quando eu morrer todos vão chorar, todos vão sofrer. Mas um louco fazendeiro me transformará em um lindo pé de maconha. Passará por mim me comprará, me fumará. E verá que mesmo depois de morrer, continuo fazendo a cabeça.” - BOB MARLEY


Diário da Foice, 2 de agosto de 2016

Astrid - Paixão Além da Morte


Como vocês bem devem imaginar, sou um cara solitário. Trabalho muito, saio pouco, e tenho pouco tempo para cuidar de minha vida pessoal. Por conta disso sou um cara naturalmente carente e que se apaixona fácil. Assumo isso sem problemas. Já fui do tipo que ligava toda hora, que enviava flores roubadas de velórios, e dava de presente ursinhos de pelúcia segurando pequenas foices de pelúcia também com bilhetinhos onde se lia “Estou mortinho de saudades”. Sim, eu sabia que isso era brega, ridículo, mas, o que eu podia fazer? Eu já fui assim, xonadinho mesmo.


Porém, notem bem o tempo verbal: FUI! Depois de meu último desastre amoroso aprendi a não me entregar tão fácil. Confesso que o meu último relacionamento tornou-me um cara mais duro e frio. E olha que de gente dura e fria eu entendo.

O nome dela era Astrid.

Ela era enfermeira e a conheci em um hospital da Noruega no auge da pandemia de gripe espanhola em 1919, num momento em que eu estava, óbvio, atolado de trabalho. Tanto que se eu cobrasse de Deus as horas extras atrasadas dessa época ficaria rico só com os juros. Eu estava dando cabo de um marinheiro sueco quando ela me puxou pela manga da túnica e perguntou com a sua voz meiga e suave “Reverendo? É o senhor?”.

Normalmente eu odeio quando me confundem com padre e já me viro putaço quando acontece. Daquela vez, entretanto, ao me virar, deparei-me com o mais lindo exemplar da frágil espécie de vocês. Quando Deus desenhou Astrid, ele não estava namorando. Ele deveria estar no Bahamas ou no Café Photo se divertindo ainda mais.

Alta, loura, traços nórdicos, o cabelo preso em trança holandesa, olhos azuis e completamente cega. Astrid era a mulher perfeita para mim. Até o fato de não poder enxergar ajudava, pois evitou que ela saísse gritando e correndo logo de cara, o que acontece em 99,8% dos meus primeiros contatos.

Disse a ela, gaguejando, e já completamente apaixonado, que não era padre, que eu estava ali só para buscar umas encomendas. Óbvio que não disse que encomendas eram. Afinal, apresentar-se como “A Morte” num primeiro encontro queima MUITO o filme.

Papo vai, papo vem, perguntei se ela estaria livre depois do serviço. “Não posso sair hoje”, ela disse, “eu cuido sozinha desse andar do hospital e há muitos doentes precisando de meus cuidados…”

Bem, acho que nem preciso dizer o que fiz. A foice cantou naquele hospital. Em cinco minutos dei conta dos moribundos do andar inteiro. Aproveitei e levei todos do andar de cima e de baixo também, só pra garantir. Empacotei geral. Ah, as pequenas loucuras do amor… Rio muito disso quando lembro hoje.

Eu e Astrid saímos naquela noite e em muitas outras depois. Até hoje muita gente acha que a gripe espanhola matava rápido por causa de uma mutação do vírus, mas não é nada disso: eu é que corria com o serviço para ficar mais tempo com ela. E tudo foi bem até que o meu segredo começou a ameaçar nossa relação. Apesar de cega, Astrid começou a desconfiar de meus horários, meus assuntos, e meus modos. Afinal, não é todo mundo que tem dois metros de altura, viaja pelo mundo inteiro e volta em segundos, e se refere a Deus intimamente como “aquele sujeitinho detestável”. Peguei-me em um conflito insolúvel: eu não encontrava um jeito de contar a verdade a Astrid sem arriscar perdê-la.

Um dia fiz um teste e perguntei a ela naturalmente, como quem não quer nada, se ela ainda me amaria caso eu fosse um ser sobrenatural cruel, assassino, e implacável. Ela não entendeu bem a pergunta, mas disse que me amaria de qualquer jeito, e que não se importaria se eu fosse um assassino demoníaco desde que fosse honesto, honrado, e não matasse sua amada e estimada tia Zelda. Assim que ela disse isso, um frio percorreu minha espinha. Pedi licença dizendo que iria ao banheiro e saí correndo pela janela da sala. Fui fazer uma ligação urgente pra Deus e pedir para ressuscitar a velha que eu tinha empacotado cinco minutos antes sem saber que era a tia dela.

Quem atendeu minha ligação foi Gabriel, já que Deus, como sempre, nunca quer falar com ninguém. O anjo estranhou o pedido, disse que não podia fazer nada. Eu implorei a ele para interceder por mim, me humilhei como nunca fiz antes por ninguém. Gabriel sacou no ato: “tem mulher no meio, não tem?”. Eu disse que sim e ele sorriu safado: “Aí, malandrão, hein? Vou falar com o Chefe e ver o que posso fazer”. Desligou. Dez minutos depois uma velha de 104 anos ressuscitava em Bergen. Foi até notícia no jornal na época.

Passado o susto, nossa relação continuou sem sobressaltos. Mesmo com a sombra do meu segredo pairando sobre nós, nosso amor e nossa paixão cresciam a cada dia. Eu e Astrid passeávamos de carro pela Europa, corríamos por campos verdejantes, ríamos muito, a vida tinha um clima de “Noviça Rebelde”, mas sem as musiquinhas xaropes. Fizemos muitos piqueniques às margens do Danúbio, onde tudo era lindo: enquanto ela colhia flores de um lado, eu colhia uns dois ou três cadáveres afogados do outro. Foi a melhor primavera de nossas vidas. Tanto que, depois de poucos meses de namoro, resolvemos nos casar.

Escolhemos juntos uma pequena capelinha em Oslo, tudo muito romântico, evento para poucas pessoas, já que a família dela se borrava de medo de mim. Muito provavelmente devido as ameaças que fiz a eles de levar um a um caso alguém contasse a verdade a ela. A única pessoa que compareceu, ironicamente, foi tia Zelda, que também se borrava de medo de mim, mas como a velha já fazia isso naturalmente por causa do Alzheimer, nunca dava para perceber exatamente o motivo pelo qual estava se borrando. Do lado dos meus convidados, quase ninguém foi também. Deus, para variar, furou alegando não ter roupa. Claro que não acreditei no sujeitinho detestável.

A cerimônia foi bonita, mas durou muito pouco. Um pequeno mal entendido, e minha total inexperiência em casamentos, estragou tudo. Quando o padre disse “até que a morte os separe”, eu achei que ele estivesse gorando nossa relação, fazendo intriga mesmo. Tomei como provocação pessoal e quis partir para a briga. Astrid não entendeu nada, mas quando o Padre falou sem querer quem eu era, todo o segredo foi para as cucuias ali.

Magoada, Astrid desistiu de tudo. Disse que até aceitava que eu fosse um abutre do além, carniceiro e implacável, mas que não tolerava que mentissem para ela, e que não queria me ver nunca mais. Eu disse a ela que isso era impossível, que a gente iria ter que se encontrar pelo menos MAIS UMA vez, mas ela não quis saber: atirou o buquê no chão e me abandonou no altar.

Só fomos nos encontrar novamente em um acidente de avião em 1969. Ela fingiu que não me reconheceu, eu também fingi que não a conheci, mas quem estava à nossa volta percebeu que ainda havia um certo calor em nossa troca de olhares. Mas também podia ser por causa da fuselagem em chamas, sei lá.

Só sei que hoje toda vez que penso em Astrid tenho vontade de varrer todas as louras da face da Terra, mas me contenho. Vocês não tem ideia, mas uma caixa de Blondor oferece mais riscos às mulheres do que apenas não acertar o ponto da cor. Daquela relação, e daqueles momentos, eu carreguei apenas a melancolia de um coração vazio.

E, só de raiva, carreguei a Tia Zelda também.

Diário da Foice, 2 de maio de 2010


Fonte: Diário da Foice - WordPress

Relaxe! É Só Uma Cirurgia Simples


Poucas áreas do conhecimento humano são tão pródigas em facilitar o meu trabalho quanto a área médica, a minha preferida depois da indústria bélica. Apesar dos seus profissionais dizerem que tentam o exato contrário, nada supera a medicina no quesito fatalidade. 


Posso estar errado, mas acho que perto de uns 70% de vocês vão para a terra dos pés-juntos ao lado de um homem de branco dizendo que já fez de tudo ou que esqueceu alguma coisa de metal ao lado do seu pâncreas. E poucos momentos e frases são tão emblemáticas de uma área quanto a clássica “Relaxe, é só uma cirurgia simples”.

O problema, é óbvio, não está nas palavras em si, que são claramente uma tentativa de relaxar alguém que está prestes a entrar na faca. Às vezes funciona, às vezes não, e às vezes alguns tentam sair correndo antes de serem sedados à força. Ninguém em sã consciência relaxa ao saber que vai ser aberto como um peru de natal a ser recheado de farofa. Mas como o ser humano é dado a ilusões, e ao auto-engano, para não dizer à burrice mesmo, então dá-lhe bisturi.

Como uma cirurgia é sempre um procedimento de alto risco, e implora para dar errado desde o momento que alguém tem a idéia de realizá-la, a sorte que muitos tem de conseguir sobreviver a uma incursão dessas é a evidência definitiva de que já perdi a forma. Em outras palavras: não é a medicina que está evoluindo, eu é que ando meio preguiçoso mesmo.

O que muitos de vocês não percebem é que esta frase esconde uma pegadinha, ou uma puta sacanagem, como queiram, que ludibria os mais incautos. Há uma palavra que não surge ali, mas que está presente na cabeça do médico, do cirurgião, ou mesmo do leigo que a omitem apenas para tranquilizar o futuro presunto. Quando alguém diz “Relaxe, é só uma cirurgia simples” subentenda-se que logo após há um insinuante “…Espero”. Há mais sabedoria neste curto “espero” não dito do que em todos os compêndios de medicina já escritos.

Não dá nem para dizer que haja dolo nesta pequena omissão. O que o ser humano tenta escamotear com estas últimas palavras é uma falsa sensação de poder sobre uma mentira secular: a lenda de que o corpo humano é uma máquina perfeita e que basta uma pequena regulagem na parte interna para ficar como nova. Não acreditem nisso.

O corpo humano, na real, é um erro de engenharia tão grosseiro que se houvesse uma CPI da criação certamente descobririam algum desvio de verba no projeto. Nada é mais tosco, mal-ajambrado, e ridiculamente frágil do que esta porcaria que vocês usam. O corpo humano só perde o prêmio de pior design da natureza por uma questão de regras. Se os ornitorrincos fossem considerados hors concours o troféu já era de vocês há muito tempo.

O que há de mais irônico em “Relaxe, é só uma cirurgia simples” é que quem diz isto no fundo sempre sabe que não é. O número de coisas que podem dar errado em uma cirurgia sempre supera em cinco ou seis vezes o número do que pode dar certo, e se você estiver usando convênio, o número dobra.

Mas caso não haja escolha e você tenha que entrar para a turma do zíper, peçam para que lhe digam apenas um breve e curto “relaxe”. Porque a única coisa “simples” em uma cirurgia é o meu serviço depois.

Diário da Foice, 10 de maio de 2010


Fonte: Diário da Foice - WordPress

Reunião de Condomínio é Fatal!


Aluguei um apartamento de quarto-e-sala na Tijuca, perto do morro do Borel, ou seja, a cinco minutos a pé de um local onde eu tenho bastante trabalho. O valor do aluguel era baixo, o do condomínio era menor ainda, e eu podia apanhar o pessoal que morria de bala perdida sem sair de casa, só esticando a mão pela janela. Perfeito para mim. Mas, como eu disse, não deu muito certo.


Conviver com traficantes, tiroteios constantes e pessoas morrendo feito moscas é moleza. Duro mesmo é aguentar reunião de condomínio. A única e última da qual participei foi uma experiência tão desagradável que fiquei com vontade de ME mandar para o inferno. Só não fui por medo de encontrar outra reunião de condomínio por lá.

Foi em um salãozinho de festas mequetrefe do prédio, com pouco mais de meia-dúzia de pessoas e sem ar-condicionado. Comecei a me sentir otário já ali, só por ter ido. A sensação de tempo perdido em uma reunião de condomínio foi semelhante a que eu tive durante o dilúvio, quando fiquei 40 dias e 40 noites coçando o saco esperando a água baixar pra começar a trabalhar de novo.

O encontro começou com o síndico lendo a ata da reunião anterior. Um saco. Depois começou-se a discutir algumas reformas no sistema de esgoto, falou-se sobre crianças que depredavam o playground, sobre o cheiro ruim da lixeira do quinto andar, sobre o salário de um zé-mané que fazia tudo… Aquilo parecia tão INTERMINÁVEL que fez os 12 bilhões de anos de formação do Sistema Solar, que eu presenciei em pé, parecer um pulinho na padaria. Mas mal sabia eu que o pior estava por vir: as reclamações. A coisa fedeu pro meu lado.

Uma das moradoras, uma gordinha com cara de fofoqueira se levantou e disse, me olhando meio de lado, que depois que “certas pessoas” se mudaram para lá, tudo andava muito esquisito. Todo mundo olhou para mim, claro. Entendi a indireta, mas fiquei na minha, não passei o recibo.

Outro me acusou de entrar e sair do prédio pelo menos umas dez mil vezes por dia e que não suportava o barulho de abrir e fechar do portão. Eu me defendi dizendo que precisava sair para trabalhar essas dez mil vezes, até mais em caso de dia que tem alguma catástrofe por aí, e que ninguém não tinha nada a ver com a minha vida! Começamos a bater boca ali, barraco geral, o síndico pediu silêncio e nos acalmamos. Alguém até me trouxe um copo d’agua.

O momento de calmaria durou pouco, um sujeito de camiseta regata e bermudão começou a me detonar outra vez dizendo que me flagrou dentro do apartamento dele perto da sua avó de 96 anos. E eu disse que só estava fazendo uma pesquisa de mercado no prédio, só conferindo o endereço caso eu tivesse que levá-la uma hora ou outra, na semana que vem para ser mais exato. Pra quê! A discussão voltou geral, ofensa pra todo lado.

Até que uma mulher de bobs no cabelo pediu a atenção e reclamou que desde que eu havia chegado lá TODOS os animais de estimação do prédio haviam morrido. Como eu explicava isso? Olhei para cima, fingi que não era comigo. Mas todo mundo sabe que odeio bichos e qualquer um que tenha um yorkshire que late às três da manhã merecia morrer também. Eu até que PEGUEI LEVE.

A reunião descambou para todo mundo me perguntando sobre várias outras mortes que ocorreram por ali. Eu expliquei que a vida é assim, que às vezes prefiro trabalhar perto de casa, e que num condomínio grande daqueles qualquer um poderia morrer de uma hora pra outra, principalmente ao lado do Borel! Mesmo contrariado, o pessoal concordou. De algumas verdades não dá pra fugir.

Completei dizendo que ali era uma área perigosa, que uma bala perdida poderia atingir qualquer um a qualquer momento, como atingiu o seu Tino do 512. Todos ficaram surpresos “O Seu Tino morreu? Mas onde é que está o corpo?”. Eu suspirei e disse “Sabe o cheiro ruim da lixeira do quinto andar? Pois é, o problema NÃO É a lixeira”. Todos saíram correndo para resolver o assunto e me deixaram sozinho.

Fui embora dali pra nunca mais voltar. Levei comigo a certeza de que se o diabo fosse esperto patentearia esse troço, se é que a idéia já não foi dele. Qualquer dia eu ligo só pra perguntar.

Diário da Foice, 05 de fevereiro de 2010


Fonte: Diário da Foice - WordPress

Aproveita que o Sinal está Amarelo!


Os acidentes de trânsito revelaram-se eventos tão cheios de possibilidades e variações que chega a ser difícil escolher o melhor tipo e o mais funcional. Afinal quase todos me garantem um serviço rápido e sem complicações. Mas se há um tipo que me diverte, confesso, são aquelas cacetadas nas quais vocês dizem, pouco antes de virarem parte das ferragens, a fatal frase “Aproveita que o sinal está amarelo!”, mais um clássico moderno das últimas palavras.


Este tipo de acidente nasceu do maquiavelismo inerente ao ser humano. E por “maquiavelismo inerente” entendam “filha-da-putice da grossa”. Porque o que poucos de vocês sabem é que antigamente os semáforos tinham apenas duas fases, o verde e o vermelho. No verde o motorista avançava, no vermelho ele freava. Nada mais simples do que isso. Funcionava muito bem e o número de acidentes era baixíssimo. Eu tinha tão pouco serviço em acidentes de trânsito nessa época que investia o meu tempo em outras áreas, como Guerras Mundiais, por exemplo.

Ocorreu que a indústria automobilística entrou em crise em determinado período dos anos 20. Os motivos principais eram a durabilidade dos carros e a satisfação dos consumidores em ter apenas um veículo para a vida toda. Desesperada, e precisando aumentar suas vendas de qualquer maneira, a indústria teve a brilhante idéia de fazer os consumidores estragarem seus veículos de forma mais rápida chocando-os uns contra os outros. As grandes montadoras fizeram então um acordo com as prefeituras das cidades, que logo mobilizaram seus engenheiros de tráfego, e criaram o nefasto sinal AMARELO. O que era certeza, então, tornou-se dúvida .

Sim, é para isso que o sinal amarelo serve: deixá-los em dúvida. A frase “Aproveita que o sinal está amarelo!” é fruto da titubeada de alguém, normalmente um braço-duro dos infernos que jamais deveria conduzir um carro (89% de vocês, em média). Ela tanto pode ser dita por quem está ao lado do motorista, apressando alguém meio lerdo, como apenas atravessar rapidamente os pensamentos de quem está ao volante. Em ambos os casos, ela é a última coisa a passar pela cabeça da pessoa. Ou a penúltima, caso o carro não tenha air-bag.

Mas não vejam isso como uma crítica à indústria automotiva, porque, pessoalmente, sou muito grato a ela. Devo à invenção do automóvel os melhores momentos da minha vida profissional no século XX. Assim que Ford inaugurou a primeira linha de montagem em série da história, eu inaugurei a primeira linha de desmontagem em série de vocês. A indústria automobilística, por mais que se considere uma transformadora de matéria-prima em produtos, no fundo não passa de uma mera fornecedora de matéria-prima para mim. Não tenho do que reclamar. Já vocês, me desculpem a sinceridade, não passa de uns manés nas mãos dessa gente.

Portanto quando alguém disser a você as palavras “Aproveita que o sinal está amarelo!” freie caso queira continuar vivendo. Nunca ache que vai dar tempo, porque não dá. Quando acontece de funcionar é porque vocês me pegaram muito ocupado com alguma outra questão em Gaza, ou no Afeganistão, ou em outro lugar assim, e por isso deixei passar batido. Mas se eu estiver perto, perdoem o trocadilho, não deixo passar a batida.

Ao avançarem um semáforo com a luz central acesa saibam que a única coisa amarela certa nesta história será o sorriso de vocês quando me encontrarem. Já eu me aproximarei com o meu mais alvo arreganhar de dentes e direi, como sempre, “BEM FEITO!”.

Diário da Foice, 08 de junho de 2010


Fonte: Diário da Foice - WordPress

Atenção Passageiros Vamos Aterrissar!

Podem perguntar a qualquer piloto que eu ainda não levei: os dois momentos mais arriscados de um voo são a decolagem e a aterrissagem. Geralmente acompanho TODOS os vôos de muito perto e posso confirmar: o negócio é brabo mesmo. Se não fosse o meu trabalho JAMAIS entraria em um avião. Sempre que acompanho uma decolagem e uma aterrissagem acho que alguém como eu virá ME buscar.


Pousos mal-sucedidos são um espetáculo da engenharia humana. Nada impressiona mais que a descida de um avião que começa numa pista de pouso e termina dentro de um supermercado ou um posto de gasolina. Por isto é que quando ouço as simpáticas últimas palavras “Atenção, passageiros, vamos aterrissar” até mesmo eu, a Morte, sente um friozinho na espinha.

Obviamente que há variações como “Atenção, senhores passageiros, apertem os cintos, e atentem para os procedimentos de aterrissagem” . Mas se houvesse uma forma mais completa, estaria seria “Atenção, senhores passageiros, vou tentar depositar 200 toneladas de metal, combustível, e carne humana, à velocidade de 500km/h sobre uma pista de asfalto e seja o que Deus quiser”, mas acho que isso não tranquilizaria muito vocês.

Ninguém poderia imaginar, mas quando Santos Dumont fez o 14 Bis decolar e pousar naquele fatídico ano de 1906, fiquei muito puto. Aquele inventorzinho nanico e afetado conseguiu estragar um dos maiores prazeres da minha vida que era ver vocês tentarem voar (e fracassarem, claro). Vocês tem os seus “Friends”, “Seinfeld”, “Grande Família”, eu não. Para mim nada superou em humor até hoje a história da aviação. Todos os anos eu levava pelo menos uns 300 de vocês em engenhocas cada vez mais ridículas em cenas de empacotamento hilárias! Que saudade…

Porém, em 1908, fui fazer um serviço de rotina buscando um tenente do exército americano que havia quebrado pelo menos 80% dos ossos do corpo. O acidente se deu numa máquina esquisita que eu nunca tinha visto antes. “Aquilo é um avião motorizado de asas fixas”, disse-me ele, “o primeiro modelo da história”. O sorriso então voltou novamente à minha face: o futuro estava nos acidentes aéreos, óbvio! Como eu não havia pensado nisso antes? Havia esperança. Com esta experiência aprendi que quando a vida fecha uma porta, uma janela se abre em algum lugar. E se for a janela de um avião que se abra a dez mil metros de altura, melhor ainda.

Talvez a a forma mais tranquila de se dizer “Atenção, senhores passageiros, vamos aterrissar” fosse a mais curta e mais simples: “Atenção, senhores passageiros, REZEM!”. Mas como mais da metade de vocês já fazem isso automaticamente, talvez, de fato, não seja preciso dizer.

Só sei que todas as vezes que ouço estas últimas palavras, eu saio da cabine de comando e vou para área dos tripulantes. Ali eu estico as pernas, faço um alongamento, um aquecimento, tomo um café. Porque, nunca se sabe, um serviço pode estourar a qualquer momento. Literalmente.

Ah, sim, aproveitando: fiquem tranquilos quando vocês não encontrarem a caixa-preta de um avião. Quando isso acontece é porque eu levei a fita pra estudar em casa, para melhorar minha performance nas próximas. Afinal, depois de tanto esforço pra se matarem, vocês merecem o melhor de mim.

Diário da Foice, 22 de junho de 2010


Fonte: Diário da Foice - WordPress

Um Dia das Mães Inesquecível

Eu não tenho mãe. E ser uma espécie de filho de chocadeira do além não é algo muito agradável, acreditem. Faço análise há quase 87 anos para superar este trauma e não consegui nada até hoje a não ser descobrir que minha foice é uma extensão de um pênis que eu também não tenho. Até aceito, numa boa, ser uma aberração desnaturada, cruel e demoníaca, um arquétipo criado na Idade Média representando todo o mal do mundo, mas ainda assim dói saber que nunca alguém me deu de comer fazendo “olha o aviãozinho”.


Por isto o Dia das Mães para mim é sempre um tormento que vai além de comprar um presente nas Lojas Americanas e ficar horas na fila. Todas as vezes que chega esta data fico mais sensível, principalmente depois de um emocionante e fatídico dia das mães que presenciei anos atrás. Um dia que me fez entender o que é ser filho e o que é ser mãe.

Estava eu num asilo de idosos fazendo uma faxina semanal (bem, creio que não preciso dizer que não falo de varrer o chão…) quando entrei no quarto de uma velha senhora acamada que parecia ter uns 100 anos. Ela estava muito doente e dormindo tão profundamente que cheguei a conferir minha lista duas vezes para ver se eu já não havia passado por ali.

Ao lado da cama, segurando a mão da velha senhora, estava o filho, um homem de sessenta anos com ar de aposentado, cansado e também muito abatido. Assim que ele me viu, assustou-se como se despertasse de um sono, e se aproximou de mim num pulo:

— Ó, não! Por favor, ó ceifador de almas, eu imploro: não leve a minha mãe hoje.

— E quem disse que eu vim buscar a sua mãe? – respondi, enigmático.

— A minha tia Lucrécia saiu para tomar um café – ele continuou, ingênuo – e deve voltar logo.

— Também não vim buscar a sua tia.

— Ah, não? Então veio buscar alguém do quarto ao lado?

— Ô, mané: se eu quisesse levar alguém do quarto ao lado eu teria entrado lá.

— Mas então você veio buscar quem?

— Adivinhe.

O pobre coitado ficou pálido. Não sou muito fã das ironias da vida, mas daquela vez, confesso, achei engraçado.

— Eu? E-eu morri?!

— Tecnicamente ainda não. Mas se você está me vendo é porque, babau, já era!

— M-mas e-eu morri do quê?!

— Bem, falando de um jeito simples: sabe as três pontes de safena que você tem no coração?

— Sei.

— Deveriam ser quatro.

O homem então ficou de olhos vidrados, sentou-se na poltrona do quarto e acendeu um cigarro num gesto mais que automático. Mas quando percebeu que aquilo só justificava ainda mais o motivo de eu estar ali, apagou-o no mesmo instante, constrangido. Ele então se levantou e me puxou para um canto, afastando-me da cama da mãe, e fez o mais comovente pedido que eu já ouvi na vida.

— Morte, por favor, aquela velha senhora ali na cama vai falecer em poucos dias.

— Depois de amanhã – confirmei, bem profissional.

— Pois é isto o que eu quero dizer. Morte, eu sou filho único e vim de longe para passar o domingo com ela. Não é justo que ela me veja morrer na véspera de um dia das mães. Pense bem, foi esta mulher quem me pôs no mundo. Eu sou tudo que ela ama nesta vida e sou tudo o que ela vai deixar aqui. Você não pode tirar dela a única esperança, a única alegria, que ela ainda pode ter. Eu peço, cara Morte, encarecidamente eu imploro por pelo menos menos um dia a mais, um dia só. Que você me permita um último dia das mães com a minha mãe, por favor.

Se eu tivesse um coração talvez ele até tivesse batido uma ou duas vezes neste momento. Juro que eu seria capaz de verter até mesmo uma rara lágrima com aquele discurso, mas me contive. Resignei-me a demonstrar algo parecido com afeto esticando o prazo, algo que raramente faço, e disse que voltaria sem falta à meia-noite do próximo dia para levá-lo. Nem um minuto a menos, nem um minuto a mais. Ele me agradeceu de joelhos.

No dia seguinte, no pequeno almoço de família improvisado no quarto do asilo, a velha senhora e o seu filho tiveram o seu último dia. Os dois abriram presentes, trocaram palavras de carinho, folhearam álbuns com antigas fotos e lembranças de infância e de uma família que não existia mais. O filho lembrou bons momentos do pai já falecido há anos, e de como ele morreu afogado em uma pescaria. A velha concordou que foi muito triste, mas desconversou. Só eu e ela sabíamos que seu ex-marido havia morrido afogado bêbado numa banheira de motel onde havia passado a noite com uma prostituta. Impressionante como todo mundo vira santo depois que morre.

Após a sobremesa, então, a velha senhora ganhou um ar grave e pediu para que o filho se aproximasse dela. Disse que havia um assunto muito importante para conversarem. Ela queria lhe falar de algo que não poderia mais esconder em seu velho coração de mãe, ainda mais que ela sentia que não viveria muito depois daquele dia. Um segredo de família. Então o filho disse que já sabia que o pai havia morrido numa banheira de motel. Ela disse que não era aquele segredo, era outro, e com a maior tranquilidade do mundo emendou: “Filho, você foi adotado”.

Ao ouvir isso, empacotei o cara na hora, claro. Sem chance de papinho, ataque cardíaco fulminante. O sujeito se estatelou no chão sem chance de volta. Sua alma partiu extremamente irritada pra cima de mim:

— Ficou maluco?! O combinado não era até à meia-noite?!

— Sim, mas o combinado valeria se ela fosse a sua MÃE! Ontem você havia me dito que ela havia posto você no mundo e coisa e tal. Parece que não é esse o caso.

— E daí, quem liga pra isso?! Esta mulher cuidou de mim a vida toda. Ela me alimentou, me vestiu, me deu carinho, me levou pra escola, pra passear, ficou do meu lado na hora das doenças, na hora da alegria, me ajudou nos momentos difíceis e me ensinou o que é a vida. Mãe não é só quem bota a gente no mundo, seu imbecil! Mãe é QUEM CRIA!

Aí eu não aguentei. Gritei “chega!” e empacotei a velha também. Pronto. Serviço completo. Porque eu não sou burro e entendi perfeitamente naquele dia o que é ser mãe. Só não sou obrigado a ter paciência com gente que cada hora fala uma coisa.

Diário da Foice, 7 de maio de 2010.


Fonte: Diário da Foice - WordPress.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

O Milagre da Casa 58


"Nevava muito naquela pequena vila inglesa na manhã do Natal de 1911. Eu, a Morte, o ceifador cruel e implacável, o senhor absoluto da vida e das trevas, parei em frente ao pequeno sobrado de tijolos à vista com chaminé e um telhado cinzento coberto de gelo e fuligem. 


Na porta de madeira, pintado à mão, um rústico número 58. Tirei minha lista do bolso e entre flocos de neve conferi a encomenda daquela manhã: “James Winston Smith – sete anos – tuberculose- pra ONTEM”. Sei que não é de bom tom levar crianças na data mais emotiva do ano, Herodes que o diga, mas como não sou eu quem dá as cartas do destino, parti com a minha foice disposto a levar a alma daquele pobre garoto.

O quarto do pequeno Jimmy ficava no segundo andar, mas resolvi entrar pela janela da sala da casa. Acidentalmente, porém, minha túnica enroscou no trinco e me desequilibrei. Caí de forma patética derrubando uma singela árvore de Natal armada no canto da sala causando algum barulho. Depois de praguejar xingando a mãe de alguém no inferno, botei a árvore de volta no lugar. Ainda estava arrumando a cena quando o pequeno Jimmy surgiu na escada e me flagrou ajeitando os presentes.

Nossos olhares se encontraram. Um segundo de estranhamento se deu até que do peito frágil do ainda mais frágil menino brotou uma doce voz que eu jamais esqueceria:

– Papai Noel?

Tomado pela presença daquele serzinho magérrimo, raquítico, ridículo, respirando com dificuldade, no último estágio da tísica, pensei em liquidar logo o serviço. Na boa: seria um alívio para ambos. Mas aquele rosto angelical, os olhos enormes como o do Gato do Shrek, reacendeu algo dentro de mim. Fez-me redescobrir um velho coração de manteiga que não me permitiu concluir minha missão. Sim, eu sabia que eu era a Morte, o ceifador cruel e implacável, mas, puta que o pariu, se vocês vissem a cara daquele menino fariam o mesmo. Sem saber o que responder embarquei na triste brincadeira.

– Sim, Jimmy, s-sou eu. O Papai Noel.

Ele me olhou entre a dúvida e o espanto. Tive que ser mais convincente.

– Ho! Ho! Ho!

Após a risada cretina o garoto veio e me abraçou com seus bracinhos magros sob o pijama de ursinhos azuis.

– Papai Noel! Papai Noel! Que bom que você veio! – ele se afastou estranhando a minha roupa – Mas, Papai Noel… você não era gordo?

Tive que ser rápido. Era impossível resistir aos olhinhos brilhantes do pequeno Jimmy.

– É que eu tô de dieta. Cortei carboidratos.

– E a sua roupa não era vermelha?

– Sujei descendo a chaminé.

– E essa foice? É pra quê?

– Por favor, moleque, não pergunta muito não.

Jimmy começou a tossir. Quem o ouvisse diria que daquele dia ele não passava. Se eu fosse menos bunda mole ele não passaria MESMO. Assim que parou, o desmilinguido petiz puxou-me pela manga.

– Qual dessas caixas é o meu presente, Papai Noel?

– Como é que eu vou saber, guri?

– Você não leu minha carta?

– Não. Só o li o seu boletim.

– Da escola?

– Não. O do hospital.

O garoto, rápido, puxou a lista de nomes do meu bolso.

– Uau, você já levou presente pra todas essas pessoas?!

– M-mais ou menos.

– O que você deu pra elas?

– A paz eterna.

– E por que meu nome está aqui?

– Me devolve isso, Jimmy!

Tomei a lista de sua mão e ele teve outro acesso de tosse. A força de vida daquele garoto emocionaria até um deputado corrupto.

– Puxa, Papai Noel, eu estou tão feliz. O Doutor Oliver disse aos meus pais que eu não passaria do Natal.

– Eu sei. Ele é um ótimo médico.

– Ver você aqui hoje é um milagre de natal! Eu sinto que vou viver mais, não vou?

Jimmy me perguntou isso no exato momento em que eu consultava a minha ampulheta de pulso. O último grão de areia da vida do garoto já havia caído. Eu tinha que fazer o meu trabalho. Porém um sino soou ao longe e uma sensação de paz e de amor envolveu meu espírito. Percebi que a vida pode não ter muito sentido, mas o Natal tem, e não seria eu a estragar tão idílico momento. Resolvi dar mais uma chance de vida àquela pobre criança.

– Sim, Jimmy. Você vai viver mais.

– Eu sabia, Papai Noel, eu sabia! – ele me abraçou ainda mais forte – eu sabia que ia viver mais! Muito mais!

– Esse “muito” já é por tua conta, ok?

– Posso abrir meu presente, agora?

Jimmy abriu a maior caixa de todas e de dentro puxou um reluzente barquinho de metal. O pai de Jimmy, um trabalhador das docas de Southampton, caprichara no presente, pois imaginava que seria o último. Qualquer um imaginaria.

– Uau! Obrigado, Papai Noel! Esse é o melhor presente que você já me deu.

– O SEGUNDO melhor. Vai por mim.

– Brinca comigo?

– Jimmy, não posso, eu tenho muitas casas pra visitar ainda hoje.

– Então diz pro vovô John vir brincar aqui comigo!

– Vovô John?

– É. Você não vai passar na casa dele?

– Só na semana que vem.

– Ué, mas semana que vem não é natal.

Eu poderia ter falado do derrame fulminante já pré-marcado do pobre avô do garoto, mas não quis estragar o clima. Já havia tristeza demais por ali. Nem precisei me explicar muito: assim que ouvi os sons dos passos dos pais de Jimmy descendo a escada, despedi-me do garoto falando “fui” e saí voado pela janela. Eu não tinha mais o que fazer ali.

Estava já a dois quarteirões da casa de Jimmy quando começou a me bater o arrependimento por não ter feito o que deveria. Envergonhado pelo meu ato, resmunguei ao vento e soquei minha testa: “Que merda eu tenho na cabeça? Por que fui fazer isso? Você é a morte, animal, a MORTE! Você não pode vacilar desse jeito!”. Foi então me toquei de que havia esquecido a minha foice. Eu precisava voltar. Aquilo, para mim, era quase um sinal divino, um “se manca” de Deus, de que eu deveria retornar e cumprir minha missão. Parti decidido que assim o faria.

Entretanto, a vida sempre surpreende. E é por isso que eu a detesto. Quando me aproximei da janela casa de Jimmy meu ímpeto mudou. Eu vi o menino contando aos seus pais e seus irmãos que Papai Noel havia estado ali. Todos estavam tão surpresos e emocionados com a sua alegria, e ainda mais surpresos por ele ainda caminhar e andar, que não duvidaram. Ao final todos se abraçaram em um momento único de carinho e começaram a cantar juntos “O Tanenbaum” em uma afinação digna de filmes da Disney. A família mais perfeita e unida que eu já havia visto. Aquilo levou lágrimas aos meus olhos e me deu a certeza de que eu havia tomado a decisão correta.

Na hora de abrir os presentes mais alegria: todos ganharam o que desejavam. Havia sido um bom ano, o pai de Jimmy trabalhara muito na construção de um grande navio e deixou para o final o grande presente, a grande surpresa para todos: ele e a família haviam sido premiados com uma passagem para a viagem inaugural do RMS Titanic no ano seguinte. Quando ouvi “Titanic” consultei minha lista de imediato: magicamente o nome de Jimmy e toda a família pularam para abril de 1912.

Suspirei fundo, peguei minha foice de volta, e fui embora enquanto todos dentro da casa ainda vibravam de felicidade. Eu havia salvado o natal, mas… e daí? Não é só isso o que importa nas histórias de natal? O que mais aprendi naquele dia, de verdade, é que até a morte pode ser legal, pode até perdoar e adiar algumas coisas. Já o destino… que filho-da-puta, hein?!"

 Diário da Foice, 23/12/2011 



Fonte: O Milagre da Casa 58 - Diário da Foice

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Trabalhando Demais

"Realmente, ando trabalhando demais. Ao buscar um fisiculturista fulminado pelo uso excessivo de anabolizantes, a criatura gritava que não queria ir. Depois de empurrar o super-anjo barroco para a "luz", me senti cansada.

Comecei a refletir com minha foice. Precisava de um tempinho também para praticar exercícios. Já estava na academia do tal. Arrumei um tênis e comecei. Como? Aqui neste mundo dos mortais tudo é me dado com fartura.

Mas, espere ... o pessoal dessa academia não é muito receptivo. Não gostaram de meus trapos escuros. Não faz mal, eu não tenho preconceito com pobre, com rico, com preto, com branco, com azul, com vermelho ...  levo todo mundo na amizade ... ihihihihih"

Diário da Foice, 07/08/2016


Dura Lex Sed Lex Sem Jontex


"Querido diário o título da crônica está em latim e muito chique, que condiz muito com o judiciário. Pensei em colocar algo mais simples, tipo 'Advogados Nunca Entram no Céu', mas vou deixar como está, sem jontex ...

Bom, vamos à fúnebre história de hoje:

Era pra ser uma encomenda como outra qualquer. O sujeito chegou em casa, apanhou a esposa com outro na cama, rolou uma discussão, um revólver surgiu, e seis tiros depois tudo acabou: dois corpos assassinados e o de um suicida no mesmo quarto. Ou seja, serviço de rotina.

Mas não quando envolve três talentosos advogados de um dos mais caros escritórios do país. Roubada da grossa. Assim que apontei a direção do poço sem fundo, a mulher tomou a frente.

— Protesto! — disse ela ajeitando os óculos — Eu não vejo por que devo acompanhar o ilustre representante do passamento alheio até as profundezas. Sou uma vítima clara das circunstâncias. Não vejo como pode ser-me imputada alguma culpa nesta situação.

— Ah, não? — Suspirei fundo e puxei meu surrado exemplar dos Dez Mandamentos autografado pelo próprio Moisés na noite de lançamento das tábuas. Fui direto para o sétimo: “Não cometerás adultério”. Guardei o livro no bolso e empurrei os três para fora — Vamos logo que à noite o trânsito pro inferno sempre piora.

— Sem pressa, por favor, meu nobre e implacável ceifador — disse ela de forma tão educada que até me senti prestigiado — Até onde nós sabemos, os Dez Mandamentos são leis divinamente expressas por Deus para quem está sob Sua jurisdição. Se você verificar meu histórico verá que sou atéia, nunca recebi nenhuma espécie de batismo religioso, e sou casada apenas no civil com o meu marido aqui de alma presente. Data venia, não vejo onde, como, e nem por que, esta lei possa ser aplicada a este caso.

Havia furos na argumentação, eu sei. Mas ela falou com tanta certeza e segurança que fiquei na dúvida. Ela tinha O DOM. Decidi que iria levá-la para o limbo até o caso ir para uma revisão posterior. Mas cinco minutos de conversa depois ela me convenceu a levá-la para o paraíso. Segundo ela, conseguiríamos uma liminar em menos de uma hora para isso. Advogado bom é foda!

— Ok, vamos lá, tá decidido. — Eu disse — A mulher aqui vai para o céu. Já vocês dois vão suar os fundilhos nas thermas do capeta. Andando!

— Protesto! — Disse o Ricardão do pedaço — Por que a nobre doutora vai para o paraíso e EU devo ser levado para o inferno?

Puxei o decálogo do bolso outra vez e li, já meio inseguro, o nono mandamento: “Não cobiçarás a mulher do próximo”. Fim de papo.

— Sim. Mas se a minha ex-amante está perdoada por não ser casada religiosamente com o seu marido — disse ele — então, logo, oficialmente, aos olhos de Deus ela não era a sua esposa. Correto?

— Correto… — concordei, já meio confuso.

— E se ela não era a mulher dele, logo não cobicei a mulher do próximo. Na verdade não cobicei nada de ninguém. Portanto, data venia, a pena máxima do inferno para todo o sempre não deve ser aplicada ao meu caso.

Até tentei falar alguma coisa, mas parei no meio, pensativo. Ele tinha razão. Resolvi que não iria levá-lo para o inferno também. E por uma questão de jurisprudência iria encaminhá-lo para o paraíso junto com a mulher. Pareceu-me o mais justo a fazer na hora. Portanto só me restava levar o marido traído para as profundas do sofrimento eterno. Claro que ele chiou. E muito.

— Por que só eu?! Os dois me traíram. Protesto veementemente!

Eu já estava muito cansado daquilo. Somente a boa educação deles fazia com que eu não perdesse a paciência de vez. Puxei o sujeito de lado e fiz um pedido sensato.

— Cara, por favor, não complica. Você assassinou e se suicidou. Se isto não é motivo para eu te levar direto pro colo do tinhoso, o que mais pode ser?

— Mas é preciso levar em conta os meus antecedentes. Eu sou o único aqui que frequentava a igreja todos os domingos!

— É verdade. — disse o Ricardão com um sorrisinho sacana no rosto. A mulher sorriu de lado, cúmplice.

— Estou sinceramente arrependido do que acabei de fazer. — continuou o corno — E quem se arrepende ganha, ipso facto, o reino dos céus. Está na lei divina. Todo mundo sabe como funciona!

Tentei argumentar que ele deveria ter se arrependido em vida, e coisa e tal, mas não consegui. O cara, além de conhecer vários versículos do Novo Testamento que embasavam sua defesa, era mestre na oratória. Os outros dois o auxiliaram e disseram que todos ali poderiam fazer um acordo geral em que ninguém sairia perdendo, todos iriam para o paraíso. Inclusive me garantiram que eu sairia como grande herói da história, algo que contaria pontos no futuro para a minha carreira no além, afinal, Deus adorava estas coisas de misericórdia, perdão, e tudo o mais. Fiquei MUITO tentado a ceder, mas percebi que aquilo precisaria da intervenção de uma instância superior. Mandei os três calarem a boca, peguei o celular, e fiz uma ligação direta para Deus.

Deus me atendeu impaciente como sempre. Expliquei toda a situação, todos os argumentos, que Ele ouviu concordando sem falar nada. Somente quando mencionei que os três eram advogados é que o Todo-Poderoso estourou.

— Advogados?! — berrou Deus — ADVOGADOS?! E você está ensebando pra mandar os três pro inferno POR QUÊ?!

No mesmo instante as três almas sumiram da minha frente e foram para o inferno sem escalas num piscar de olhos. Ainda deu tempo de ouvir o Criador soltando um “será que eu tenho que fazer tudo por aqui?!” e desligando. Fiquei meio ofendido, claro, mas relevei.

E uma coisa ninguém pode negar: Deus é um Cara prático pra cacete. Não está onde está à toa."

Diário da Foice, 18/09/2010


Fonte: Diário da Foice

Eu Também Sou Filho de Deus!


"Diferente do Dia das Mães, eu simplesmente DETESTO o dia dos Pais. Odeio esta data com cada osso do meu ser porque me faz lembrar a dura verdade de que meu pai me renega. Quem é o meu pai? Ora, não me façam cara de surpresa. Estou falando de DEUS, é claro. Se observarem bem temos vários traços parecidos e alguns poderes semelhantes. Sou apenas um pouco mais magro e não uso barba.

Apesar de Deus sempre ter escondido o nosso parentesco, de nunca atender meus telefonemas, de não comparecer aos almoços que faço, de nunca responder meus emails, nem nada, eu sempre tive esperança de que isto mudasse um dia. Durante um bom tempo eu achei, sinceramente, que talvez ele pudesse me assumir como seu filho e que viveríamos bem assim.

Sempre esperei pelo dia em que ele me convidasse para jogar bola, soltar uma pipa no parque, ou para jogar uma partida de War no Oriente Médio, enfim, sempre sonhei com o dia em que desfrutaríamos de uma tarde gostosa entre pai e filho. Mas isto nunca aconteceu. Se para vocês Deus é um ser onipresente, onipotente, e caladão, comigo, acreditem, é pior. Ele me trata como LIXO!

A minha ficha só foi cair de vez em um dia dos pais alguns anos atrás. Aproveitei a data singela e liguei para Ele na esperança de uma aproximação. Qual o quê… Quando Deus atendeu o telefone e ouviu a minha voz, fingiu que NEM ME CONHECIA. A coisa foi ainda mais cruel porque cheguei a ouvir, ao fundo da ligação, a reunião da “familiazinha” toda lá em volta Dele: Maria, o Cristo “queridinho”, Gabriel, São Pedro servindo vinho, todo mundo rindo, todos unidos e felizes. Todos… menos eu. Para piorar, ssim que eu disse “Pai?” Deus desligou o telefone na MINHA CARA me excluindo totalmente de Sua vida. Bati o telefone revoltado, saí correndo pro meu quarto, e chorei a tarde toda sobre a cama ouvindo Carpenters.

Foi depois desse dia que desencanei e decidi fazer análise. Meu primeiro analista foi taxativo: me disse para esquecer essa história de que Deus é meu pai. O segundo analista disse o mesmo. O terceiro disse exatamente o contrário, mas só depois que eu falei que matei os dois primeiros.

O quarto analista então me receitou uns anti-depressivos e me recomendou que corresse atrás dos meus sonhos, que eu resolvesse esse assunto de vez de alguma forma. Decidi então tomar uma atitude radical: pedir um exame de DNA. Se Deus não queria me assumir como filho na boa, então iria me assumir na marra.

O problema é que eu não tinha grana pra pagar um exame, apelei para tudo quanto é lugar, mas o único que quis me bancar, por incrível que pareça, foi o programa do RATINHO. Enviei uma carta para a produção e meses depois me ligaram dando sinal positivo. Confesso que eu já havia até esquecido da carta quando a van do SBT parou na frente da minha casa.

Eles me levaram lá pros estúdios do Anhanguera e me deixaram numa salinha de espera cheio de petisquinhos, um buffet de quinta categoria, muito pior do que o da Ana Maria Braga, que eu conheço também quando fui ao programa dela passar uma receita, mas isso eu conto outra hora. Naquele dia, antes de mim, já haviam passado pelo palco uma briga de casal de anões, um homem que se apaixonou por uma égua, e um estivador que dizia conseguir comer uma dúzia de bananas em um minuto. Gostei muito do nível do programa.

Quando o Ratinho me chamou para entrar em cena, eu me sentei naquelas cadeirinhas no meio do palco, e ele me pediu para contar minha história. E eu comecei: “Olha, seu Ratinho, o que me trouxe aqui foi uma coisa muito chata que aconteceu comigo…” Contei o lance dos telefonemas, do trabalho, da falta de reconhecimento. Contei TU-DO.

A platéia ia reagindo com “ohs” e “ahs”, o Ratinho fazia uma pergunta ou outra, o pessoal da platéia também, mas só me dei conta de que não estava sendo levado a sério quando o Xaropinho fez uma piadinha dizendo         que eu só usava foice porque gostava de pegar no comprido. Comecei a ficar preocupado com o rumo do programa, mas já era tarde. Mal sabia eu que o pior estava por vir.

No clímax do quadro, o Ratinho anuncia a grande surpresa da noite. Ele chama o Deus EM PESSOA para participar do quadro. Rufou os tambores, eu me animei, me enchi de esperanças, meus olhos lacrimejaram, quando então, vocês não vão acreditar, me entra o INRI CRISTO no palco! Vocês não imaginam como aquilo me irritou. Eu disse que aquele programa era uma palhaçada, que aquele cara não era meu pai. Então Inri Cristo disse, na maior cara de pau, que segundo a santíssima trindade ele era Deus, SIM! Depois ele abriu os braços e disse “vem cá, filhinho”.

Aquilo me emputeceu DE VEZ e parti pra cima dele, saí no braço com o cara. A gente rolou no palco, pra cima das câmeras, a produção do programa veio nos separar, quebramos umas duas cadeiras um no outro. A platéia foi ao delírio. O Ratinho só sabia dizer “opa, opa, opa, violência aqui não”. O Xaropinho gritava “Pô-rrada! Pô-rrada!”. Um vexame.

Fui expulso aos pontapés pelos fundos dos estúdio. O programa, não sei por quê, nunca foi ao ar. Não rendeu nem uma notinha no jornal, nada. Hoje eu acho isso tudo muito engraçado. Consegui com um câmera de lá uma cópia em VHS do episódio. Assim que eu passar pra MPG eu posto no YouTube para vocês verem."

Diário da Foice, 08/08/2010


Fonte: Diário da Foice

Trocando de Lavanderia

"A vida, digo, a profissão, o dia-a-dia da Morte anda se complicando ultimamente. Novamente a funcionária que atende às entregas na lavanderia começou a fazer perguntinhas cretinas sobre as manchas de sangue que sempre aparecem na minha única túnica que tenho.

Sim, eu trabalho no pronto-socorro, respondi. Aquele maior do Rio onde também trabalha o Dr. Seixas, cirurgião que criou o 'Manual do baleado'. Esse dr. inclusive dá conselhos e diz que é preciso conhecer fala dos assaltantes. Ao ouvir 'perdeu, perdeu', a vítima deve se acalmar e não reagir.

Mas nessa manhã, cansado de trabalhar a noite inteira sob intenso tiroteio no Morro dos Macacos, esqueci e dei uma desculpa diferente para a fuxiqueira que viu meu traje ensanguentado: falei que trabalhava no banco Satan-der, aquele que tira sangue dos velhinhos aposentados através de consignados para seus netinhos vadios.

A funcionária, criatura vil, que vai se intrometer na vida de todo mundo por ainda 30 anos, 5 meses e 5 dias, vai chamar a Dona Justa, a polícia ...

Então, trocando rapidinho de lavanderia ... hihihihi ..."

Diário da Foice, 05/01/2013



Acho que Errei de Rio

"Após a morte, a alma era levada de barco pelo Caronte, deixando no Rio Aqueronte ... (Virgílio menciona o Aqueronte junto a outros rios infernais em sua descrição do mundo dos mortos no Livro VI da Eneida).

Acho que errei de rio ... devo estar em Termas de Piratuba. Mas, também, com tantas almas para levar diariamente nessa embarcação de remos ...

Aquele turista idiota está debochando de mim, tá me vendo! Aaah, coitado! Nem sabe do próximo encontro ... Não sou Caronte. Caronte é o cassete! Esse já se escafedeu desde 235 A.C., não deu conta do serviço.

('Acho que errei de rio' aka 'Caronte é o cassete!')"

Diário da Foice, 12/05/2017

Pacto é Sinistro


"Por mais paradoxal que isso possa parecer, meu contato com o pessoal do além é mínimo. A minha agenda é tão lotada que nunca me sobra tempo pra fazer uma social decente. Vejo Deus e o Diabo muito raramente e quando a gente se encontra é só para falar de assunto de trabalho.

O capeta até me convida para um drink no inferno de vez em quando, mas sempre dou uma desculpa esfarrapada porque não gosto que me vejam muito na companhia dele. É meio queimação. Ainda mais no inferno.

No entanto, volta e meia nossos caminhos se cruzam. Não há como. Quando pintam umas complicações entre vocês, não tem jeito, somos obrigados a nos falar. Como uma vez em que fui buscar um bandidinho mequetrefe no Complexo do Alemão. O cara havia levado acidentalmente uns 138 tiros. Sei que isto vai contra a idéia de acidente, mas eu avisei que era no COMPLEXO DO ALEMÃO. Cheguei ao local e a alma do bandido saiu do corpo zunindo pra cima de mim, cheio de marra.

— Você não vai me levar! Eu não vou morrer.

Como isso me cansa. Mas ainda assim tentei ser delicado.

— Escuta, ô imbecil: se você está me vendo é porque já foi pro saco.

— Pode falar o que quiser, magrelo. Eu tenho o corpo fechado.

— Jura? Então como é que tem um pedaço do seu fígado no tapete?

— Isso é o de menos. Eu tenho um acerto aí. Com O CARA.

— Que cara? Tem dois que mandam no pedaço.

— Eu tenho um pacto com o DIABO!

— Ah é? E onde está ele agora que não me avisou nada?

No mesmo instante em que eu disse isso, meu celular tocou o seu “Hello Moto!”. Gelei. Olhei no visor e lá estava escrito “CAPETA”.O sujeitinho marrento me deu um sorriso cínico. Soltei um “merda” bem baixinho e me afastei para atender. Lúcifer estava preocupado do outro lado da linha.

— Solta o cara!

— Não dá! — eu disse — Se você tivesse falado antes.

— Ele fez um serviço grande pra mim. Não posso furar.

— Não tem jeito. O corpo está inutilizável.

— Muito?

— Digamos que é uma empada com 138 azeitonas.

— Merda! Espera só um minuto que eu já falo com você.

E desligou. Eu e a alma do bandido ficamos sozinhos, um de cada lado, meio sem assunto, num silêncio meio constrangedor. Mas o cara era marrento demais e resolveu mexer comigo.

— Tomou, saco de osso?! Não falei que eu tinha um acerto com O CARA? Me dei bem!

Comecei a rir. A rir não: gargalhar. Ele ficou puto.

— Tá rindo do quê?

— Você não sabe que não adianta fazer pacto com o demônio, ô panaca? Isso nunca dá certo. NUNCA! Ninguém se dá bem com ele.

— Eu não acredito nisso.

— É sério, faz parte do esquema. Todo pacto com o diabo tem alguma pegadinha irônica. É sempre assim: se ele promete a vida eterna, você pega prisão perpétua. Se você fica milionário, ele te manda pra uma ilha deserta. Se ele lhe promete talento pra ser um gênio da guitarra, você morrerá engasgado com o próprio vômito num quarto de hotel. Não adianta, mané: pacto com o diabo é sempre ROUBADA!

— Fica na tua, ô motoboy do além. Tá tudo dentro do combinado: quem mandou me apagar agora acha que eu tô morto. Só que eu vou continuar VIVO. E mais: vou sair dessa montado na bufunfa! Escondi uma grana boa de uma parada aí. Vou pegar o dinheiro e sumir pro Nordeste. Vou passar o resto da vida só comendo camarão e pegando as mulherzinha lá.

— Se é o que você acha…

Meu celular tocou de volta.

— É o seguinte — disse o pé-fendido pelo telefone — conversei com o Criador e Ele confirmou que não dá pra ressuscitar esse idiota, disse que até milagre tem limite. Mas como eu prometi fechar o corpo do cara preciso deixar ele vivo de algum jeito.

— Como?! O que sobrou dele não serve nem para fazer autópsia.

— O plano é o seguinte: tem um rapaz de 18 anos se suicidando AGORA a três barracos de onde vocês estão. A idéia é você pegar a alma do suicida e sumir com ela. Aí o outro que está aí do seu lado reencarna no corpo bom. Diz pra ele que é pegar ou largar.

Achei o plano uma loucura. Baldeação de alma nunca dá certo. Mas o marrentinho topou, pois percebeu que não tinha muita escolha, e fomos andando até o barraco do suicida que ficava realmente muito próximo dali.

Chegando lá nos deparamos com um corpo humano em EXCELENTE estado deitado numa cama em um bem arrumado quarto. Estranhei tudo. O rapaz que havia acabado de se matar tomando comprimidos era um moreno alto, bonito, de vidrados olhos verdes, malhado, um ex-ator de cinema que havia feito uma ponta no filme “Cidade de Deus”. Achei mais esquisito ainda. O sujeitinho marrento se animou.

— Este vai ser o meu novo corpo?! Urrú! Beleza! Me dei bem! Tchau pra você, magrelo! Fui!

Ele então encarnou no corpo caído e saiu batido pro hospital mais próximo para fazer uma lavagem estomacal.

Sem entender nada, perguntei à alma do suicida, que estava sentado quieto ali por perto, se ele se importava com aquilo. O desanimado ectoplasma deu de ombros. Não estava nem aí para nada. Perguntei, curioso, por que alguém tão jovem e cheio de vida se mataria daquele jeito. Ele relutou em dizer, até que cedeu:

— Eu me matei por desespero, tá legal? Eu tinha feito uma operação de troca de sexo que deu muito errado: fiquei sem o pau e ainda por cima não tinha ganhado uma vagina.

Suspirei aliviado. O velho Lu continuava o mesmo sacana de sempre."

Diário da Foice, 11/06/2010


Fonte: Diário da Foice

Garoto Afobado

"Querido filho, gostei muito dessa tua iniciativa, porém esse velhinho aí ia morrer só amanhã ...

Lembre-se: a morte deve ser por fatores naturais, terrenos, não podemos no envolver, ok? Só trabalhamos com o transporte dos desencarnados, entendeu, "Carontinho"?

Puxa, filhote, você cagou no pedaço, mas te amo!"

Diário da Foice, 03/06/2017


Enchendo a Caveira – Parte 6


"Depois de uma turnê de sucesso cujo saldo foi levar dois roqueiros de grande porte e três acidentes de avião com apenas nove sobreviventes, e 304 mortos, a MORTE consegue respirar e encontrar um tempo para fazer alguma coisa mais agradável que NÃO É responder as perguntas de vocês. Mas continuem enchendo a paciência da Morte que ela sempre dará um jeito. Enviem as questões pelo Twitter @realmorte ou para o email realmorte@gmail.com.

1 – Vou viajar de avião amanhã e dá pra dizer se amanhã é o meu dia? (BrenoLuz-SP, via email)

Não. Amanhã é o dia do piloto. Mas quem estiver perto pode ir no pacote.

2 – Tomei a vacina da gripe A ontem. Dizem que 0,1% dos vacinados morreriam. Sinto um mal estar. A senhora teria alguma informação? @eduardosdaniel

Tenho. Mas a gente conversa sobre isso pessoalmente.

3 – RealMorte, eu tenho quanto tempo de vida? (LéoCaldas, via email)

Seis, cinco, quatro, três, dois, um…. VAMBORA!

4 – Pô, Dona Morte tava sentindo umas pontadas no peito ontem a tarde, o que que era? @cristopherjonas

Neguinho abusa do pão de alho no churrasco depois fica me enchendo. Toma um Luftal que passa.

5 – É verdade que a garotinha Madeleine está viva?  (Juliana Castilho, via email.)

Sim. Ela reencarnou na Bolívia quinta-feira passada.

6 – Você pode me adiantar se eu sobreviverei até a data do meu casamento? Estou sendo enrolada há tanto tempo!!! @BetaFigueiroa

Minha querida, alguns homens tem mais medo de casar do que me encontrar. Parta pra outro antes de partir comigo.

7 – Você que fez a Gorete ficar a cara da Marcia Goldesmith, né? @paulamagessi

Não. Se fosse eu teria deixado ela a cara da Sonia Abraão.

8 – Onde tem mais serviço procê: Iraque ou Rio de Janeiro? @oSagazz

Aí vareia. No Iraque o serviço é mais concentrado: quando um carro-bomba leva 18 de uma vez, é tudo num lugar só, resolvo tudo no local. No Rio de Janeiro não: quando morrem 18 de bala perdida, é um em cada canto da cidade, tenho que me deslocar mais, é mais trabalhoso. Mas na quantidade é quase igual.

9 – Não rola você tomar lugar de Deus e promover alguém ao seu cargo? @fesegato

Existe um plano de carreira no Além, mas meu tempo já foi. Tem muita gente na minha frente. Acho que se rolar promoção, vai para São Pedro, o anjo Gabriel, alguém assim, gente que tem sala mais próxima da sala do Chefe, sabe? Sem contar que existe um bando de anjos puxa-sacos que ficam levando cafezinho o dia todo pro Criador e elogiando qualquer merda que Ele faça. Mas como o céu é uma empresa familiar, certamente Deus vai querer deixar o “filhinho protegido” dele no lugar. Nepotismo é isso…

10 – Calma aí, se o mundo acabar em 2012 a senhora vai perder o emprego! E como fica? @darthmaycon

Bem, meu filho, eu tenho bastante tempo de serviço, uns milhões de anos aí, e o fundo de garantia vai me garantir uma pequena bolada. Sem contar que, se eu fizer acordo, e pedir pra ser mandado embora antes do final de 2012, posso conseguir os 40% a mais da demissão que é de lei. Juntando tudo, mais a grana de três meses de seguro-desemprego, eu consigo comprar uma pequena chácara em algum outro canto da galáxia e criar umas galinhas para me manter. Um lugar onde à tardinha eu possa sair de pijama pra jogar dominó na praça com alguns velhos colegas. Sei que a grana do INSS vai mirrar com o tempo, mas também posso plantar pra sobreviver,  afinal sou bom no roçado, tenho prática com foice. Dureza nessa altura da vida ter que me virar assim, né?"

Diário da Foice, 26/05/2010


Fonte: Diário da Foice

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Não é Halloween

"A vida ou a morte tem alguns lances que, às vezes, me deixam despreparada. E isso acontece faz 50 séculos. Velhinhas simpáticas no leito da morte em hospitais sempre me emocionaram. Essa eu vim buscar num hospital de Seattle, Washington, EUA. No Brasil, o povo do SUS morre no corredor, sem leito. Mas, sobre isso, é inútil comentar ..."

Diário da Foice, 05/06/2017