terça-feira, 10 de abril de 2018

Um Dia das Mães Inesquecível

Eu não tenho mãe. E ser uma espécie de filho de chocadeira do além não é algo muito agradável, acreditem. Faço análise há quase 87 anos para superar este trauma e não consegui nada até hoje a não ser descobrir que minha foice é uma extensão de um pênis que eu também não tenho. Até aceito, numa boa, ser uma aberração desnaturada, cruel e demoníaca, um arquétipo criado na Idade Média representando todo o mal do mundo, mas ainda assim dói saber que nunca alguém me deu de comer fazendo “olha o aviãozinho”.


Por isto o Dia das Mães para mim é sempre um tormento que vai além de comprar um presente nas Lojas Americanas e ficar horas na fila. Todas as vezes que chega esta data fico mais sensível, principalmente depois de um emocionante e fatídico dia das mães que presenciei anos atrás. Um dia que me fez entender o que é ser filho e o que é ser mãe.

Estava eu num asilo de idosos fazendo uma faxina semanal (bem, creio que não preciso dizer que não falo de varrer o chão…) quando entrei no quarto de uma velha senhora acamada que parecia ter uns 100 anos. Ela estava muito doente e dormindo tão profundamente que cheguei a conferir minha lista duas vezes para ver se eu já não havia passado por ali.

Ao lado da cama, segurando a mão da velha senhora, estava o filho, um homem de sessenta anos com ar de aposentado, cansado e também muito abatido. Assim que ele me viu, assustou-se como se despertasse de um sono, e se aproximou de mim num pulo:

— Ó, não! Por favor, ó ceifador de almas, eu imploro: não leve a minha mãe hoje.

— E quem disse que eu vim buscar a sua mãe? – respondi, enigmático.

— A minha tia Lucrécia saiu para tomar um café – ele continuou, ingênuo – e deve voltar logo.

— Também não vim buscar a sua tia.

— Ah, não? Então veio buscar alguém do quarto ao lado?

— Ô, mané: se eu quisesse levar alguém do quarto ao lado eu teria entrado lá.

— Mas então você veio buscar quem?

— Adivinhe.

O pobre coitado ficou pálido. Não sou muito fã das ironias da vida, mas daquela vez, confesso, achei engraçado.

— Eu? E-eu morri?!

— Tecnicamente ainda não. Mas se você está me vendo é porque, babau, já era!

— M-mas e-eu morri do quê?!

— Bem, falando de um jeito simples: sabe as três pontes de safena que você tem no coração?

— Sei.

— Deveriam ser quatro.

O homem então ficou de olhos vidrados, sentou-se na poltrona do quarto e acendeu um cigarro num gesto mais que automático. Mas quando percebeu que aquilo só justificava ainda mais o motivo de eu estar ali, apagou-o no mesmo instante, constrangido. Ele então se levantou e me puxou para um canto, afastando-me da cama da mãe, e fez o mais comovente pedido que eu já ouvi na vida.

— Morte, por favor, aquela velha senhora ali na cama vai falecer em poucos dias.

— Depois de amanhã – confirmei, bem profissional.

— Pois é isto o que eu quero dizer. Morte, eu sou filho único e vim de longe para passar o domingo com ela. Não é justo que ela me veja morrer na véspera de um dia das mães. Pense bem, foi esta mulher quem me pôs no mundo. Eu sou tudo que ela ama nesta vida e sou tudo o que ela vai deixar aqui. Você não pode tirar dela a única esperança, a única alegria, que ela ainda pode ter. Eu peço, cara Morte, encarecidamente eu imploro por pelo menos menos um dia a mais, um dia só. Que você me permita um último dia das mães com a minha mãe, por favor.

Se eu tivesse um coração talvez ele até tivesse batido uma ou duas vezes neste momento. Juro que eu seria capaz de verter até mesmo uma rara lágrima com aquele discurso, mas me contive. Resignei-me a demonstrar algo parecido com afeto esticando o prazo, algo que raramente faço, e disse que voltaria sem falta à meia-noite do próximo dia para levá-lo. Nem um minuto a menos, nem um minuto a mais. Ele me agradeceu de joelhos.

No dia seguinte, no pequeno almoço de família improvisado no quarto do asilo, a velha senhora e o seu filho tiveram o seu último dia. Os dois abriram presentes, trocaram palavras de carinho, folhearam álbuns com antigas fotos e lembranças de infância e de uma família que não existia mais. O filho lembrou bons momentos do pai já falecido há anos, e de como ele morreu afogado em uma pescaria. A velha concordou que foi muito triste, mas desconversou. Só eu e ela sabíamos que seu ex-marido havia morrido afogado bêbado numa banheira de motel onde havia passado a noite com uma prostituta. Impressionante como todo mundo vira santo depois que morre.

Após a sobremesa, então, a velha senhora ganhou um ar grave e pediu para que o filho se aproximasse dela. Disse que havia um assunto muito importante para conversarem. Ela queria lhe falar de algo que não poderia mais esconder em seu velho coração de mãe, ainda mais que ela sentia que não viveria muito depois daquele dia. Um segredo de família. Então o filho disse que já sabia que o pai havia morrido numa banheira de motel. Ela disse que não era aquele segredo, era outro, e com a maior tranquilidade do mundo emendou: “Filho, você foi adotado”.

Ao ouvir isso, empacotei o cara na hora, claro. Sem chance de papinho, ataque cardíaco fulminante. O sujeito se estatelou no chão sem chance de volta. Sua alma partiu extremamente irritada pra cima de mim:

— Ficou maluco?! O combinado não era até à meia-noite?!

— Sim, mas o combinado valeria se ela fosse a sua MÃE! Ontem você havia me dito que ela havia posto você no mundo e coisa e tal. Parece que não é esse o caso.

— E daí, quem liga pra isso?! Esta mulher cuidou de mim a vida toda. Ela me alimentou, me vestiu, me deu carinho, me levou pra escola, pra passear, ficou do meu lado na hora das doenças, na hora da alegria, me ajudou nos momentos difíceis e me ensinou o que é a vida. Mãe não é só quem bota a gente no mundo, seu imbecil! Mãe é QUEM CRIA!

Aí eu não aguentei. Gritei “chega!” e empacotei a velha também. Pronto. Serviço completo. Porque eu não sou burro e entendi perfeitamente naquele dia o que é ser mãe. Só não sou obrigado a ter paciência com gente que cada hora fala uma coisa.

Diário da Foice, 7 de maio de 2010.


Fonte: Diário da Foice - WordPress.

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