sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Os demônios das dores de dentes


O medo de dentista é um fenômeno conhecido há centenas de anos. As primeiras crônicas remontam à Idade Média, quando o imaginário popular relegava ao “Tiradentes” um papel inferior e mais ambíguo que o de seus “colegas” médicos. Ele era na maioria das vezes um ambulante: em companhia de ilusionistas, malabaristas e músicos, percorria feiras e mercados, de cidade em cidade, exibindo-se em palcos. Desse modo o público podia admirar a maestria do exercício de sua especialidade. De fato, naquele tempo, havia motivos reais para ter medo do dentista.

As dores de dentes eram atribuídas a três causas principais: demônios dentais, vermes dentais e alterações nos humores (desequilíbrios dos fluídos corporais).  Desta forma, a Odontologia seria mais bem praticada por sacerdotes e com o uso de orações.

Uma explicação sobre as dores de dentes está escrita numa tábua — uma precursora do Ipad? — Encontrada em Nínive, a capital do reino da Assíria, na margem esquerda do rio Tibre, na antiga Mesopotâmia. Nínive, cujo nome significava "bela", encontra-se próxima da atual cidade de Mossul, no norte do Iraque. Na Bíblia conta-se que, Jonas, após voltar do estômago do “peixe grande” que o havia engolido, é enviado a Nínive para converter o seu povo e, assim evitar a sua destruição (Jonas, 3, 1-10).

Voltemos à tábua de Nínive. É conhecida como “A Lenda do Verme Dental” e foi provavelmente uma cópia de um registro chinês mais antigo que falava da mesma causa para o problema. Um texto sumeriano de 5000 anos antes de Cristo descrevia um verme dental como causa das cáries. Há evidências que esta crença também estava nas culturas da Índia, Egito e Japão. Tal pensamento somente foi derrubado, em 1728, por Pierre Fauchard o pai da Odontologia Moderna.

O Nei Ching chinês classificava nove tipos de dores de origem dental que incluíam as dores devido às infecções e cáries. O tratamento chinês antigo para estes problemas era principalmente com drogas: romã, acônito, ginseng, alho, ruibarbo e arsênico. Palitos dentais e substâncias para limpeza eram usados e dentes com mobilidade eram fixados com amarras feitas com bambu. As coberturas com ouro tinham mais efeito estético que protetoras ou protéticas.

O primeiro dentista exclusivo parece ter sido o egípcio Hesi-Re, circa 3000 a.C.   Na sua câmara mortuária estava escrito “o maior entre aqueles que tratavam dos dentes”. Os achados mortuários egípcios mais antigos evidenciam que ocorriam grandes desgastes dentais que chegavam a expor a polpa dental, mas poucas cavidades cariosas. Algumas múmias humanas não tão antigas (ou pré-históricas) mostravam uma história pregressa de infecções, abscessos e cáries. As terapêuticas medicamentosas tentavam eliminar os ”vermes dentais”.

Na época em que Moisés liderava o êxodo dos judeus do Egito, circa 1500 a.C, os egípcios já faziam próteses substituindo dentes com peças semelhantes amarradas aos dentes ainda presentes com fios de ouro.

O papiro de Ebers, da mesma época acima, revelava conhecimentos médicos e odontológicos datados de circa 3000 a.C. Dois dos remédios citados, entre outros 700, eram incenso e mirra referidos entre os presentes que os sábios (ou magos) levaram para Jesus.

O Código de Hamurabi (circa 1900 a.C.) mostra que, em 2500 a.C., a profissão médica (incluindo a odontológica) foi regulamentada pelo governo central. A profissão tinha prestígio considerável e os honorários foram regulamentados pelo governo  baseados na posição social e econômica do paciente.

Sanções foram estabelecidas para negligências profissionais ou tratamentos sem sucesso. A pena final não era a morte, mas a remoção da mão do médico. O código não contém os detalhes do diagnóstico médico e correspondente tratamento. Os cirurgiões, que eram somente médicos estavam mais sujeitos a essas punições. O mesmo não acontecia com os médicos que tratavam com ervas e orações, pois eram também sacerdotes e o Código legislava em questões seculares e não nas questões religiosas.  

Aparentemente, o tratamento odontológico mais estava nas mãos destes tipos de médicos que dos cirurgiões.

Um baixo relevo hindu datado de 2000 a.C. mostra a extração dental executada num gigante feita com um fórceps. Entre os povos hindus antigos a prática da medicina era misturada com os rituais místicos e religiosos. Esta cultura chegou inclusive aos nossos dias.

Pouco antes do nascimento de Jesus, os romanos já usavam coroas de ouro nos dentes. Era uma técnica herdada dos primitivos etruscos. No apogeu romano antigo, uma boa parte dos médicos eram gregos. Na Grécia, Aristóteles, o aluno de Platão, foi o primeiro a fazer um estudo da anatomia comparada dos dentes e mencionou que a extração era feita puxando-se os dentes com um fórceps.

Circa 15 d.C., quando Jesus era um adolescente, o médico romano Archigenes declarou que uma das causas da dor de dente estava no interior do mesmo (pulpite). Ele fez uma broca especial para chegar ao interior da polpa dental e uma de suas recomendações foi a de colocar nela uma pomada constituída por minhocas torradas, nardo (planta medicinal) e ovos de aranhas esmagados dentro da cavidade feita.

Ao redor de 30 d.C., quando Jesus estava apenas começando seu ministério, Celsus, um grande médico romano, foi o primeiro a colocar um preenchimento feito com chumbo nas cavidades dentárias.  Ele não estava fazendo isso para salvar dentes, mas para aumentar suas resistências para poder removê-los sem fraturá-los.

Embora os médicos hebreus conhecessem os princípios médicos da época, pois muitos deles tinham estudado no centro cultural grego estabelecido em Alexandria e também faziam a ponte entre os conhecimentos gregos obtidos nesta cidade e os conhecimentos islamitas da sua região, pouco escritos deixaram relativos aos conhecimentos odontológicos. Sabe-se que os hebreus tinham preocupações quanto ao que chamamos hoje de biossegurança expressadas no Levítico bíblico e no Talmud.

Anos posteriores à morte de Jesus Cristo, em 249 d.C., Apolônia, uma parthenos presbytis (virgem dedicada: uma freira) depois tornada uma santa, foi torturada em Alexandria.  Segundo a lenda, sua tortura incluiu a remoção violenta de todos os seus dentes que foram arrancados ou quebrados. A causa de sua tragédia foi ter-se negado a repetir palavras ímpias, blasfemar contra jesus Cristo e repetir invocações a deuses pagãos.

Após esta tortura foi erguida, fora dos portões da cidade, uma pilha de lenha e seus algozes ameaçaram queimá-la viva. Apolônia, durante uma distração destes, saltou rapidamente para o fogo agora aceso que, milagrosamente, não a queimou. Ela acabou sendo decapitada.

Quase em todas suas imagens pictóricas, Apolônia parece com dentes e/ou fórceps e com um ramo de palmas nas mãos (um símbolo tradicional de sofrimento). Seu dia santo é em 9 de fevereiro.


Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/medo_de_dentista.html; Artigo do cirurgião dentista e estomatologista Prof. Assoc. Jayro Guimarães Jr.