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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O ladrão de cadáveres


Todas as noites do ano, nós quatro nos reuníamos na saleta do George em Debenham — o agente funerário, o estalajadeiro, Fettes e eu. Às vezes havia mais gente; mas infalivelmente, quer chovesse, nevasse ou geasse, lá estávamos os quatro, cada um instalado em sua poltrona privativa. Fettes era um velho bêbado escocês, obviamente um homem instruído, e de alguns recursos, pois vivia na ociosidade.

Chegara a Debenham anos antes, ainda jovem, e graças ao mero passar do tempo acabara sendo adotado como cidadão. Sua capa de chamalote azul era uma antiguidade local, como a flechado campanário da igreja. Seu lugar na saleta do George, sua ausência da igreja, seus vícios velhos, libertinos e indecorosos eram todos considerados perfeitamente naturais em Debenham. Tinha algumas vagas opiniões radicais e algumas heresias fugazes, que de vez em quando expunha e enfatizava combatidas vacilantes sobre a mesa. Bebia rum — normalmente cinco copos toda noite — e passava a maior parte de suas visitas ao George sentado, o copo na mão direita, num estado de sombria saturação alcoólica.

Nós o chamávamos de doutor, porque supostamente tinha algum conhecimento especial de medicina, e constava que, num aperto, havia reparado um deslocamento ou corrigido uma luxação; além desses detalhes superficiais, porém, nada sabíamos sobre seu caráter e antecedentes.

Numa noite escura de inverno — soaram nove horas pouco tempo antes que o hospedeiro se juntasse a nós — havia um homem doente no George, um importante proprietário das vizinhanças, subitamente derrubado por uma apoplexia quando a caminho do Parlamento; e um telegrama fora enviado ao médico londrino ainda mais importante do que o homem importante, chamando-o à cabeceira deste. Era a primeira vez que semelhante coisa acontecia em Debenham, porque a estrada de ferro fora inaugurada havia pouco, e estávamos todos devidamente impressionados com a ocorrência.

 — Ele veio — disse o hospedeiro, depois de encher e acender seu cachimbo.

 — Ele? — perguntei. — Quem?... não o médico.

 — O próprio.

 — Como se chama?

 — Dr. Macfarlane. Fettes estava adiantado no terceiro copo; estupidamente atordoado, ora cabeceava, ora olhava estupefato a sua volta, mas a esta última palavra pareceu acordar e repetiu o nome — Macfarlane — duas vezes, de maneira bastante calma na primeira, mas com súbita emoção na segunda.

 — Isso mesmo — disse o estalajadeiro —, esse é o nome dele, doutor Wolfe Macfarlane.

Fettes ficou sóbrio imediatamente; seus olhos despertaram, sua voz tornou-se clara, alta e firme, sua linguagem enérgica e séria. Ficamos todos espantados com a transformação, como se um homem tivesse se levantado dos mortos.

 — Desculpem-me — disse. — Não estava prestando muita atenção à conversa dos senhores. Quem é esse Wolfe Macfarlane? — E em seguida, depois de ouvir o estalajadeiro:

— Não pode ser não pode ser — acrescentou. — Mesmo assim, gostaria muito de vê-lo face a face.
 — Conhece esse homem, doutor? — perguntou o agente funerário, arfante.

 — Queira Deus, não! — foi a resposta. — No entanto, esse é um nome raro; seria demais haver dois. Diga-me — perguntou ao hospedeiro —, ele é velho?

 — Bem, com certeza não é jovem, e tem cabelo branco; mas parece mais novo que o senhor.

 — É mais velho, contudo, anos mais velho. Mas — com uma batida na mesa — é o rum que o senhor vê no meu rosto... rum e pecado. Esse homem, quem sabe, talvez tenha uma consciência tranqüila e uma boa digestão. Consciência! Ouvindo-me falar, os senhores pensariam que fui um bom e decente cristão, não é? Mas não; nunca fui de cantilenas hipócritas. Voltaire poderia ter pregado moral se tivesse estado no meu lugar; mas o cérebro — com um piparote na cabeça calva —, o cérebro estava claro e ativo, eu vi e não fiz nenhuma dedução.

 — Se o senhor conhece esse médico — ousei observar, após uma pausa um tanto desagradável —, tenho a impressão de que não partilha da boa opinião que o estalajadeiro tem dele.

Fettes não me deu atenção.

 — Sim — disse, com súbita decisão. — Tenho de vê-lo face a face. Fez-se outra pausa; em seguida uma porta foi fechada de maneira bastante brusca no primeiro andar e ouviram-se passos na escada.

 — É o médico — exclamou o hospedeiro. — Olhe bem, e poderá avistá-lo.

Só dois passos separavam a saleta da porta da velha estalagem George; a larga escada de carvalho terminava quase na rua; havia espaço para um tapete turco e mais nada entre a soleira e os últimos degraus; mas esse pequeno espaço era intensamente iluminado toda noite, não só pela lâmpada sobre a escada e a grande lâmpada que iluminava a tabuleta por baixo, mas pela cálida radiação da janela do bar. Com isso o George anunciava-se feericamente aos que passavam pela rua fria. Fettes caminhou com passos firmes até lá, e nós, parados mais atrás, contemplamos os dois homens, como um deles o expressara, face a face.

O dr. Macfarlane era atento e vigoroso. O cabelo branco realçava-lhe o semblante pálido e plácido, embora enérgico. Estava ricamente vestido com a mais fina casimira e o mais branco linho, e exibia uma magnífica corrente de relógio de ouro, abotoaduras e óculos do mesmo metal precioso. Usava uma gravata branca pontilhada de lilás, de dobras largas, e carregava no braço um confortável sobretudo de pele. Não havia dúvida de que fazia jus a sua idade, exalando riqueza e consideração; e o beberrão da nossa saleta — calvo, sujo e espinhento, metido na sua velha capa de chamalote — fazia um chocante contraste com ele ao confrontá-lo ao pé da escada.

 — Macfarlane! — chamou, um pouco alto demais, mais parecendo um arauto que um amigo. O importante médico estancou abruptamente no quarto degrau, como se a familiaridade do chamado surpreendesse e de certo modo escandalizasse sua dignidade.

 — Toddy Macfarlane! — repetiu Fettes.

O homem de Londres quase cambaleou. Relanceou o homem diante de si por uma fração de segundo, olhou para trás com certo alarme e então, num sussurro sobressaltado:

 — Fettes! Você!

 — Eu mesmo — disse o outro. — Pensou que eu estava morto também? Não nos livramos assim tão facilmente de um conhecido.

 — Psiu, psiu! — exclamou o médico. — Silêncio! Este encontro é tão inesperado... vejo que está nervoso. Tive dificuldade em reconhecê-lo a princípio, confesso; mas estou radiante... radiante com esta oportunidade. Por ora, terá de ser como vai e até logo, porque meu fiacre me espera e não posso perder o trem; mas você... deixe-me ver... sim, você me dará seu endereço, e logo, logo terá notícias minhas. Precisamos fazer alguma coisa por você. Fettes. Algo me diz que está na penúria; mas cuidaremos disso, em memória dos velhos e bons tempos, como costumávamos cantar nas ceias.

 — Dinheiro! — exclamou Fettes. — Dinheiro vindo de você! O dinheiro que recebi de você continua lá onde o joguei, na chuva.

O dr. Macfarlane falara com certo grau de superioridade e segurança, mas a energia incomum dessa recusa lançou-o de volta a sua confusão inicial. Um olhar vil, horrível, perpassou por sua fisionomia quase venerável.

 — Seja como quiser, meu caro; a última coisa que desejo é ofendê-lo. Não quero impor nada a ninguém. Mas vou lhe deixar meu endereço...

 — Não quero seu endereço... Não quero saber que teto o abriga — interrompeu o outro. — Ouvi seu nome; temi que fosse você; desejei saber se, afinal de contas, existia um Deus; agora sei que não. Suma daqui!

Como continuava plantado no meio do tapete, entre a escada e o vão da porta, o importante médico de Londres, para fugir, seria obrigado a rodeá-lo. Era patente que hesitava à idéia dessa humilhação. Por mais lívido que estivesse, havia um brilho perigoso em seus óculos; mas, enquanto continuava indeciso, percebeu que o cocheiro de seu fiacre espiava da rua aquela cena inusitada, ao mesmo tempo que vislumbrou nosso grupinho da saleta, amontoado junto ao canto do bar. A presença de tantas testemunhas fez com que decidisse fugir imediatamente. Agachou-se, roçando no lambri, e investiu como uma serpente rumo à porta. Sua mortificação, porém, não estava de todo terminada, pois, quando passava. Fettes agarrou-o pelo braço e, num sussurro, mas ainda assim discerníveis, estas palavras foram pronunciadas:

 — Você o viu de novo?

O rico e importante médico de Londres soltou um grito agudo, estrangulado; jogou o autor da pergunta do outro lado do espaço vazio e, com as mãos na cabeça, escapou porta afora como um ladrão pego em flagrante. Antes que tivesse ocorrido a algum de nós fazer um movimento, o fiacre já partira com estrépito para a estação. A cena chegara ao fim, como um sonho, mas o sonho deixara provas e rastros de sua passagem. No dia seguinte a criada encontrou os belos óculos de ouro quebrados na soleira, e naquela mesma noite ficamos todos ali parados sem fôlego, junto à janela do bar, e Fettes ao nosso lado, sóbrio e pálido, com uma expressão resoluta.

 — Valha-nos Deus, sr. Fettes! — disse o dono da estalagem, o primeiro a recobrar seus sentidos costumeiros. — Que pode significar tudo isso? Essas coisas estranhas que estiveram falando?

Fettes virou-se para nós; encarou-nos, um após o outro.

 — Tratem de manter o bico calado — disse. — Esse homem, Macfarlane, é perigoso contrariá-lo; os que já fizeram isso se arrependeram tarde demais.

E em seguida, sem sequer terminar seu terceiro copo, muito menos esperar os outros dois, deu-nos adeus e, passando pela lâmpada do hotel, mergulhou na noite negra. Voltamos os três para os nossos lugares na saleta, com o grande fogo vermelho e quatro velas claras; e, à medida que recapitulávamos o que se passara, o primeiro calafrio de nossa surpresa não demorou a se transformar num ardor de curiosidade. Ficamos ali até muito tarde; foi a sessão mais longa que jamais tive no velho George.

Antes de nos separarmos, cada homem formulara sua teoria, que estava decidido a provar; e nenhum de nós tinha qualquer negócio mais premente neste mundo que rastrear o passado de nosso infeliz companheiro e surpreender o segredo que ele partilhava com o importante médico de Londres. Não é para me gabar, mas acredito que me saí melhor em farejar uma história que meus dois companheiros do George; e talvez não haja mais nenhum homem vivo que possa lhes narrar os eventos escabrosos e antinaturais que se seguem.

Na juventude, Fettes estudou medicina nas escolas de Edimburgo. Tinha certo talento, o talento que apreende rapidamente o que ouve e logo o troca em miúdos para si mesmo. Estudava pouco em casa; mas era cortês, atento e inteligente na presença dos mestres. Eles logo o distinguiram como um rapaz que ouvia com atenção e tinha boa memória; ademais, por estranho que isso me tenha parecido quando o ouvi pela primeira vez, naqueles dias ele era bem-apessoado, de aparência agradável.

Havia, nessa época, certo professor de um curso extramuros de anatomia, que designarei aqui pela letra K... Seu nome se tornaria mais tarde demasiadamente conhecido. O homem que o usava caminhava sorrateiro pelas ruas de Edimburgo, disfarçado, enquanto a multidão que aplaudia a execução de Burke (1) pedia em altos brados o sangue de seu empregador. Mas nessa época o sr. K... estava no auge da moda; gozava de uma popularidade de vida em parte a seu talento e perícia e em parte à incapacidade de seu rival, o professor da universidade. Os estudantes, pelo menos, juravam por seu nome e Fettes acreditou, e fez outros acreditarem, que havia lançado as bases do seu sucesso quando ganhou a boa vontade desse homem meteoricamente famoso.

Além de um mestre consumado, o sr. K... era um bon vivant, gostava tanto de uma alusão maliciosa quanto de uma boa preparação. Em uma e outra coisa Fettes fazia por onde ser notado e, na altura do seu segundo ano no curso, ocupava a posição semi-regular de segundo demonstrador ou subassistente de classe. Nessa condição, os cuidados com o anfiteatro e as preleções recaíam em particular sobre seus ombros. Devia responder pela limpeza do local e o procedimento dos outros estudantes, e era parte de suas obrigações prover, receber e seccionar os vários cadáveres. Era para que pudesse se desincumbir deste último assunto — na época muito delicado — que o sr. K... o mantinha alojado no mesmo beco, de fato no mesmo prédio, em que ficava a sala de dissecação.

Ali, após uma noite de prazeres turbulentos, as mãos ainda vacilando, a vista ainda embaçada e confusa, ele era tirado da cama, nas horas escuras que precedem a aurora no inverno, pelo chamado dos sujos e temerários traficantes que abasteciam a mesa. Abria a porta para esses homens, mais tarde famigerados em todo o país; ajudava-os com sua trágica carga, pagava-lhes seu sórdido preço e ficava a sós, depois que partiam, com as inamistosas relíquias da raça humana.

Desse cenário, voltava para mais uma ou duas horas de cochilo, a fim de reparar os abusos da noite e revigorar-se para os trabalhos do dia. Poucos rapazes teriam sido mais insensíveis às impressões de uma vida passada assim, em meio às insígnias da mortalidade. Trazia a mente fechada para todas as considerações gerais. Era incapaz de se interessar pelo destino e a sorte de outrem, escravo de seus próprios desejos e de suas reles ambições. Fundamentalmente frio, leviano e egoísta, possuía aquela pequena dose de prudência, erroneamente chamada moralidade, que afasta um homem da embriaguez inconveniente ou do furto passível de punição. Além disso, ambicionava certo grau de consideração de seus professores e colegas, e não tinha desejo algum de fracassar manifestamente nas esferas externas da vida. Esmerava-se, portanto, em obter alguma distinção em seus estudos e, dia após dia, prestava serviços aparentemente impecáveis ao seu patrão, o sr. K...

Por seu dia de trabalho, indenizava-se ele mesmo com noites de diversão ruidosa e grosseira; e quando esse equilíbrio era alcançado, o órgão que chamava de sua consciência se dava por satisfeito. A provisão de cadáveres era uma inquietação constante para ele, bem como para seu patrão. Naquela turma numerosa e ativa, a matéria-prima dos anatomistas estava sempre acabando; e o negócio que assim se tornava necessário era não só desagradável em si mesmo como expunha a perigosas conseqüências todos os envolvidos. A política do sr. K... era a de não fazer nenhuma pergunta em suas transações com os fornecedores. "Eles trazem o corpo e nós pagamos o preço", costumava dizer, alongando-se na aliteração — quid pro quo.

E frisava, de maneira um tanto profana, para seus assistentes: "Não façam perguntas, em prol da sua própria consciência." Não se cogitava que os cadáveres fossem fornecidos pelo crime de assassinato. Se essa idéia lhe tivesse sido mencionada em palavras, o professor teria recuado com horror, mas a leviandade com que falava sobre assunto tão grave era, em si mesma, uma ofensa às boas maneiras e uma tentação para os homens com quem lidava. Fettes, por exemplo, observara freqüentemente para si mesmo o singular frescor dos corpos. Muitas vezes impressionara-se com a aparência envergonhada, abominável, dos bandidos que o acordavam antes do alvorecer; e juntando claramente uma coisa a outra, com seus botões, talvez atribuísse um sentido demasiado imoral e categórico aos conselhos negligentes do patrão. Compreendia, em suma, que seu dever consistia em três coisas: receber o que lhe era levado, pagar o preço e desviar os olhos de qualquer indício de crime.

Numa manhã de novembro essa política de silêncio foi submetida a uma dura prova. Ele passara a noite acordado com uma dor de dente lancinante, andando de um lado para outro em seu quarto como uma fera enjaulada ou lançando-se em fúria na cama; caíra por fim naquela modorra profunda, desconfortável, que tantas vezes segue uma noite de dor, quando foi despertado pela terceira ou quarta repetição irritada do sinal combinado. Havia um luar tênue e claro; fazia um frio cortante, ventava e geava; a cidade ainda não acordara, mas uma agitação indefinível já prenunciava a algazarra e a atividade do dia. Os ladrões de túmulo haviam chegado mais tarde que de costume e pareciam mais ansiosos para ir embora que de costume. Fettes, zonzo de sono, iluminou a escada para que subissem. Ouviu os resmungos de suas vozes irlandesas através de um sonho; e, enquanto eles retiravam o saco de sua triste mercadoria, recostou o ombro na parede, dormitando; teve de se sacudir para ir procurar o dinheiro dos homens. Ao fazê-lo, bateu os olhos na face morta. Teve um sobressalto; deu dois passos em direção a ela com a vela erguida.

 — Santo Deus! — exclamou. — É Jane Galbraith! — Os homens não responderam nada, mas se arrastaram para mais perto da porta.

— Eu a conheço, eu lhes garanto — continuou. — Estava cheia de vida ontem. É impossível que tenha morrido; é impossível que vocês tenham conseguido este corpo como convém.

 — Com certeza, senhor, está completamente enganado — disse um dos homens.

Mas o outro olhou Fettes nos olhos, sombriamente, e pediu o dinheiro logo. Era impossível não compreender a ameaça ou exagerar o perigo. O rapaz sentiu o coração na boca. Gaguejou umas desculpas, contou a soma e abriu a porta para seus odiosos visitantes. Mal eles haviam saído, apressou-se em confirmar suas dúvidas. Por uma dúzia de sinais inquestionáveis, identificou a moça com quem fizera um gracejo na véspera. Viu em seu corpo, com horror, marcas que podiam por certo indicar violência. Tomado de pânico, refugiou-se em seu quarto. Ali refletiu longamente sobre a descoberta que fizera; considerou com sobriedade o significado das instruções do sr. K... e o perigo que correria se interferisse num negócio tão sério; por fim, em opressiva perplexidade, decidiu esperar o conselho de seu superior imediato, o assistente de classe.

Este era Wolfe Macfarlane, um jovem médico muito apreciado entre todos os estudantes inconseqüentes, um sujeito inteligente, dissipado e inescrupuloso ao extremo. Viajara e estudara no exterior. Tinha maneiras agradáveis e algo petulantes. Era uma autoridade em teatro, hábil sobre o gelo ou no campo de golfe, com os patins ou o taco; vestia-se com requintada ousadia e, para dar o toque final a sua glória, tinha um cabriolé e um vigoroso cavalo trotador. Suas relações com Fettes eram de intimidade; de fato, as posições relativas de ambos requeriam alguma convivência; e, quando havia escassez de cadáveres, a dupla viajava até bem longe no cabriolé de Macfarlane, visitava e profanava um cemitério isolado e voltava com seu butim, antes da aurora, para a porta da sala de dissecação. Naquela manhã particular. Macfarlane chegou um pouco mais cedo que de costume. Fettes ouviu-o e foi ao encontro dele na escada, contou-lhe sua história e mostrou-lhe a causa de seu alarme. Macfarlane examinou as marcas no corpo.

 — De fato — disse, acenando a cabeça — parece suspeito.

 — Bem, e que devo fazer? — perguntou Fettes.

 — Fazer? — repetiu o outro. — Você quer fazer alguma coisa? Eu diria que quanto menos fizer, melhor.

 — Mais alguém poderia reconhecê-la — objetou Fettes. — Era tão conhecida quanto o Castle Rock.

 — Esperemos que não — disse Macfarlane. — E se alguém a reconhecer...bem, você não fez nada, e fim de conversa. O fato é que isso está durando tempo demais. Agite a lama, e vai meter K... na mais terrível enrascada; você mesmo vai se complicar. E eu também, se isso acontecer. Gostaria de saber com que cara apareceríamos, ou que diabo teríamos a dizer em nosso favor em algum banco de testemunhas. A meu ver, você sabe, só há uma coisa certa... que, praticamente falando, todos os nossos cadáveres foram assassinados.

 — Macfarlane! — exclamou Fettes.

 — Ora, ora! — escarneceu o outro. — Como se você mesmo não tivesse desconfiado!

 — Desconfiar é uma coisa...

 — E provar, outra. É verdade, eu sei, e lamento tanto quanto você que isso tenha chegado a este ponto — cutucou o corpo com a bengala. — A melhor coisa para mim agora é não o reconhecer, e — acrescentou serenamente — não reconheço. Se você quiser, que o faça. Não é uma ordem, mas acho que um homem do mundo faria como eu; e posso acrescentar que, a meu ver, é isso que K... esperaria de nós. A questão é: por que ele nos escolheu, nós dois, como seus assistentes? E eu respondo: porque não queria tagarelas.

Esse era, entre todos, o tom ideal para impressionar a mente de um rapaz como Fettes. Ele concordou em imitar Macfarlane. O corpo da pobre moça foi devidamente dissecado, sem que ninguém notasse alguma coisa ou parecesse reconhecê-la. Uma tarde, terminado o dia de trabalho. Fettes entrou numa taberna em voga e encontrou Macfarlane com um estranho. Este era um homem pequeno, muito pálido e moreno, olhos cor de carvão. O talhe de seus traços fazia uma promessa de intelecto e refinamento que suas maneiras não cumpriam, pois num conhecimento mais próximo mostrava-se grosseiro, vulgar e tolo. Exercia, contudo, notável controle sobre Macfarlane; dava ordens como um paxá; inflamava-se à menor discussão ou atraso e comentava rudemente o servilismo com que era obedecido. Essa desagradabilíssima pessoa teve uma simpatia imediata por Fettes, cumulou-o de drinques e homenageou-o com confidências inusitadas sobre sua carreira passada. Se a décima parte do que confessou fosse verdade, seria um patife da pior espécie; e a vaidade do rapaz ficou lisonjeada pela atenção de um homem tão experiente.

 — Sou um sujeito bem mau — observou o estranho —, mas Macfarlane é pior... Eu o chamo de Toddy Macfarlane. Toddy, peça mais um copo para seu amigo. Ou podia ser, Toddy, corra e feche a porta. Toddy me odeia — ele repetia. — Ah, sim. Toddy, você me odeia!

 — Não me chame desse maldito nome — rosnava Macfarlane.

 — Vejam só! Você já viu os atiradores de facas? Ele gostaria de fazer aquilo no meu corpo inteiro — comentou o estranho.

 — Nós médicos temos um sistema melhor — disse Fettes. — Quando não gostamos de um amigo morto, nós o dissecamos.

Macfarlane levantou os olhos subitamente, como se a piada o surpreendesse.

A tarde transcorreu. Gray, pois este era o nome do estranho, convidou Fettes para jantar com eles e pediu um banquete tão suntuoso que lançou a taberna em comoção; quando tudo estava terminado, ordenou a Macfarlane que pagasse a conta. Era muito tarde quando se separaram; o tal Gray estava absolutamente bêbado. Macfarlane, a quem a fúria deixara sóbrio, ruminava o dinheiro que tinha sido forçado a esbanjar e os desaforos que tinha sido obrigado a engolir. Fettes, com várias bebidas dançando na cabeça, voltou para casa com passos sinuosos e a mente inteiramente embotada. No dia seguinte Macfarlane faltou à aula e Fettes riu consigo mesmo, imaginando-o ainda a acompanhar o intolerável Gray de taberna em taberna. Assim que a hora da liberdade soou, passou de lugar em lugar em busca dos companheiros da noite anterior. Não os encontrando em parte alguma, voltou cedo para seus aposentos, meteu-se logo na cama e dormiu o sono dos justos.

Às quatro horas da manhã foi acordado pelo bem conhecido sinal. Ao descer para abrir a porta, ficou pasmo ao dar com Macfarlane e seu cabriolé e, no cabriolé, um daqueles embrulhos horripilantes que lhe eram tão familiares.

 — Quê? — exclamou. — Foi sozinho? Como se arranjou?

Mas Macfarlane calou-o asperamente, pedindo que tratasse do seu serviço. Depois que levaram o corpo para cima e o depositaram sobre a mesa, Macfarlane a princípio fez menção de ir embora. Depois parou e pareceu hesitar em seguida:

 — É melhor você dar uma olhada no rosto — disse, com certo constrangimento. — É melhor — repetiu, enquanto Fettes apenas o fitava, espantado.

 — Mas onde e como você o conseguiu? — insistiu o outro.

— Olhe o rosto — foi a única resposta.

Fettes estava atordoado; estranhas dúvidas o assaltavam. Seus olhos iam e voltavam entre o jovem médico e o corpo. Por fim, num impulso, fez o que ele lhe pedia. Havia quase esperado a visão com que topou, mas apesar disso o choque foi cruel. Ver, fixado na rigidez da morte e nu sobre aquele leito grosseiro de aniagem, o homem que deixara vestido e empanturrado de comida e pecado na porta de uma taberna, despertou, mesmo no estouvado Fettes, alguns dos temores da consciência. Foi um cras tibi que ecoou em sua alma, que duas pessoas que conhecera tivessem vindo se deitar naquelas mesas de gelo. Mas esses foram apenas pensamentos secundários. Sua primeira preocupação dizia respeito a Wolfe. Despreparado para tão enorme desafio, não sabia como encarar o companheiro. Não ousava olhá-lo nos olhos, e as palavras, até a voz, lhe faltavam. Foi o próprio Macfarlane que tomou a iniciativa. Tranqüilo, aproximou-se por trás e pôs a mão suavemente, mas com firmeza, no ombro do outro.

 — Richardson — disse —, pode ficar com a cabeça. Richardson era um estudante que estava ansioso havia muito tempo por dissecar essa parte do corpo humano. Não houve resposta, e o assassino prosseguiu:

 — Falando em negócios, você deve me pagar; suas contas precisam conferir, não é?

Fettes encontrou uma voz, o espectro da sua:

 — Pagar-lhe! — exclamou. — Pagar-lhe por isso?

 — Ora, isso mesmo, é claro que sim. Sem dúvida alguma e por todas as razões, você deve me pagar — replicou o outro. — Não me atrevo a entregá-lo de graça, você não se atreve a recebê-lo de graça; isso comprometeria a nós dois. É mais um caso como o de Jane Galbraith. Quanto mais erradas estiverem as coisas, mais devemos agir como se estivessem certas. Onde o velho K... guarda seu dinheiro?

 — Ali — respondeu Fettes, com voz rouca, apontando para um armário no canto.

 — Então dê-me a chave — disse o outro, estendendo calmamente a mão.

Depois de um instante de hesitação, a sorte foi lançada. Macfarlane não pôde reprimir um espasmo nervoso, a marca infinitesimal de um imenso alívio, ao sentir a chave entre os dedos. Abriu o armário, tirou a pena, a tinta e o livro que estavam num compartimento e separou do dinheiro guardado numa gaveta a soma adequada para a ocasião.

 — Agora, veja bem — disse —, o pagamento foi feito... a primeira prova de sua boa-fé; o primeiro passo para sua segurança. Agora você tem de confirmá-lo com um segundo passo. Registre o pagamento no seu livro, e depois, no que lhe diz respeito, você pode arrostar o diabo.

Fettes refletiu alguns segundos, em agonia; mas, ponderando seus terrores, foi o mais imediato que triunfou. Qualquer dificuldade futura parecia quase bem-vinda se pudesse evitar um desentendimento com Macfarlane naquele instante. Pousou a vela que estivera carregando todo esse tempo e, com o pulso firme, escreveu a data, a natureza e o valor da transação.

 — E agora — disse Macfarlane — é mais do que justo que você embolse o lucro. Já ganhei a minha parte. Aliás, quando um homem do mundo tem um pouco de sorte, alguns xelins extras no bolso... Estou envergonhado de falar disso, mas há uma regra de conduta nesse caso. Nada de festejos, nada de comprar livros texto caros, de saldar velhas dívidas; não empreste, peça emprestado.

 — Macfarlane — começou Fettes, ainda um pouco rouco —, pus meu pescoço na corda para lhe fazer um favor.

— Para me fazer um favor? — exclamou Wolfe. — Ora, convenhamos! Até onde posso ver, fez exatamente o que tinha de fazer em defesa própria. Suponha que eu me meta em dificuldades, como ficaria você? Este segundo probleminha decorre claramente do primeiro. O sr. Gray e a continuação da srta. Galbraith. Você não pode começar e depois parar. Se começa, tem de continuar começando; esta é a verdade. Não há descanso para os maus.

Uma horrível sensação de estar perdido nas trevas e traído pelo destino apossou-se da alma do infeliz estudante.

 — Meu Deus! — exclamou. — Mas que foi que eu fiz? E quando foi que comecei? Tornar-me assistente de classe... mas que mal havia nisso? Service queria essa função; Service poderia tê-la obtido. Teria ele chegado onde eu estou agora?

 — Mas que menino você ë, meu caro! — disse Macfarlane. — Que mal lhe aconteceu? Que mal pode lhe acontecer se ficar de bico calado? Ora, rapaz, sabe o que é a vida? Estamos divididos em dois bandos... os leões e os cordeiros. Se você for um cordeiro, acabará deitado sobre estas mesas como Gray ou Jane Galbraith; se for um leão, viverá e conduzirá um cavalo como eu, como K.... como todo mundo que tem alguma sagacidade ou coragem. Você vacilou no início. Mas olhe para K...! Meu caro, você ë inteligente, tem garra. Eu gosto de você e K... gosta de você. Você nasceu para liderar; e ouça, com minha experiência na vida, dou-lhe minha palavra de honra: daqui a três dias você vai rir de todos esses espantalhos como um escolar numa farsa.

Com isso Macfarlane despediu-se e partiu do beco em seu cabriolé para se abrigar antes que chegasse a luz do dia. Fettes foi assim deixado a sós com seus remorsos. Viu o deplorável perigo em que estava envolvido. Viu, com inexprimível aflição, que não havia limite para sua fraqueza, e que, de concessão em concessão, caíra, de árbitro do destino de Macfarlane, em seu cúmplice pago e impotente. Daria um mundo para ter um pouco mais de coragem naquele momento, mas não lhe ocorreu que ainda pudesse ser corajoso. O segredo de Jane Galbraith e o maldito registro no diário lhe selavam a boca. As horas escoaram; a turma começou a chegar; os membros do infeliz Gray foram distribuídos para um e para outro e recebidos sem comentário. Richardson ficou feliz com a cabeça; e antes que a hora da liberdade soasse Fettes estava trêmulo de alegria ao perceber quanto já haviam avançado na direção da segurança. Durante dois dias ele continuou a observar, com alegria crescente, o pavoroso processo de disfarce.

No terceiro dia Macfarlane apareceu. Estivera doente, disse; mas compensou o tempo perdido orientando os estudantes com grande energia. A Richardson, em particular, concedeu auxílios e conselhos dos mais valiosos, e esse aluno, estimulado pelo elogio do demonstrador, ardeu com ambiciosas esperanças e viu a medalha já a seu alcance.

Antes que a semana terminasse, a profecia de Macfarlane se cumprira. Fettes sobrevivera a seus terrores e esquecera a própria indignidade. Começou a se envaidecer de sua coragem, e arrumara a história em sua mente de tal maneira que podia voltar os olhos para aqueles acontecimentos com doentio orgulho. Pouco via seu cúmplice. Encontravam-se, é claro, nas atividades da classe; recebiam juntos ordens do sr. K... De vez em quando trocavam uma ou duas palavras privadamente, e Macfarlane mostrava-se do começo ao fim particularmente afável e jovial. Estava claro, porém, que evitava qualquer referência a seu segredo comum; e mesmo quando Fettes lhe cochichava que havia tomado o lado dos leões e abjurado os cordeiros, apenas o mandava calar com um sinal e um sorriso.

Por fim surgiu uma ocasião que voltou a pôr a dupla numa união mais estreita. O sr. K... estava de novo com falta de cadáveres; os alunos,impacientes, e era parte das pretensões desse professor manter-se sempre bem abastecido. Ao mesmo tempo, chegaram notícias de um enterro no cemitério rústico de Glencorse. O tempo pouco mudara o lugar em questão. Ficava então, como agora, numa encruzilhada, longe de qualquer morada humana, e muito enterrado na folhagem de seis cedros. Os balidos das ovelhas nos morros vizinhos, os regatos dos dois lados, um a cantar alto entre seixos, o outro a gotejar furtivamente de poço em poço, o rebuliço do vento em imensos castanheiros em flor, e uma vez em sete dias a voz do sino e as antigas cantigas do chefe do coro eram os únicos sons que perturbavam o silêncio em torno da igreja rural.

O "homem da ressurreição" — como o ladrão de cadáveres era chamado na época — não seria desencorajado por nenhuma das relíquias da piedade costumeira. Era parte de seu ofício profanar as volutas e as trombetas de velhos túmulos, as trilhas gastas pelos pés dos devotos e enlutados, e as oferendas e inscrições de consternada afeição. Para paragens rústicas, onde o amor ë mais do que comumente tenaz, e onde alguns laços de sangue e amizade unem toda a sociedade de uma paróquia, o ladrão de cadáveres, longe de ser repelido por respeito natural, era atraído pela facilidade e segurança do serviço.

A corpos que haviam sido depositados na terra em alegre expectativa de um despertar muito diferente, sobrevinha aquela ressurreição apressada, aterrorizada, a golpes de pá e picareta, à luz de uma lanterna. O caixão era arrombado, a mortalha rasgada, e os miseráveis restos metidos num saco de aniagem; por fim, depois de sacolejar horas por desvios ermos, eram expostos a indignidades extremas perante uma classe de meninos boquiabertos.

Mais ou menos como dois abutres investem sobre um cordeiro agonizante, Fettes e Macfarlane se lançariam sobre uma sepultura naquele verde e tranqüilo lugar de repouso. A esposa de um granjeiro, uma mulher que vivera sessenta anos e não fora conhecida por coisa alguma senão boa manteiga e uma conversa devota, seria arrancada de sua sepultura à meia-noite e carregada, morta e nua, para aquela cidade distante que só visitara com a roupa de domingo; o lugar junto a sua família ficaria vazio até o dia do juízo; seus membros inocentes, quase veneráveis, seriam expostos à última curiosidade do anatomista.

Os dois partiram no fim de uma tarde, bem abrigados em capas e munidos de uma formidável garrafa. Chovia sem remissão — uma chuva fria, densa, fustigante. Vez por outra soprava um vento, mas aquelas lâminas de água a cair o aquietavam. Apesar da garrafa, foi uma viagem triste e silenciosa até Penicuik, onde passariam parte da noite. Pararam uma vez, para esconder suas ferramentas num arbusto denso, perto do cemitério, e mais uma vez no Fisher's Tryst, para tomar um drinque diante do fogo da cozinha e variar os tragos de uísque com um copo de cerveja. Ao chegarem a seu destino, o cabriolé foi abrigado, o cavalo alimentado e confortado, e os dois jovens médicos sentaram-se numa sala privada para o melhor jantar e o melhor vinho que a casa podia oferecer. As luzes, o fogo, a chuva açoitando a janela, o trabalho frio e absurdo que os esperava contribuíram para que melhor saboreassem a refeição. A cada copo sua efusividade aumentava. Logo Macfarlane entregou um montinho de moedas de ouro ao companheiro.

 — Uma cortesia — disse. — Entre amigos esses pequenos acertos não devem requerer explicação.

Fettes pôs o dinheiro no bolso e aprovou a idéia calorosamente.

 — Você é um filósofo — exclamou. — Eu era um tolo até conhecê-lo.Você e K.... vocês dois vão fazer de mim um homem.

 — Claro que vamos — aplaudiu Macfarlane. — Um homem? Ouça, era preciso ser um homem para me apoiar naquela manhã. Há por aí uns covardes grandalhões, briguentos, de quarenta anos, que teriam ficado nauseados à vista da maldita coisa; mas você, não... você manteve o sangue-frio. Eu bem notei.

— Ora, e por que não? — gabou-se Fettes. — Não era assunto meu. De um lado nada havia a ganhar, a não ser transtorno, e do outro eu podia contar com a sua gratidão, não vê? — E bateu no bolso até as moedas de ouro chiarem.

De certo modo. Macfarlane sentiu uma ponta de alarme a essas palavras desagradáveis. Talvez tenha lamentado ter instruído com tanto sucesso seu jovem companheiro, mas não teve tempo de atalhá-lo, porque o outro continuou a se jactar ruidosamente:

 — O importante é não ter medo. Agora, cá entre nós, não quero ir para a forca... uma questão prática; mas por toda essa lenga lenga hipócrita, Macfarlane, eu nasci com desdém. Inferno. Deus. Demônio, certo, errado, pecado, crime, e toda essa velha galeria de curiosidades... elas podem assustar meninos, mas homens do mundo, como você e eu, desprezam-nas. À memória de Gray!

Estava ficando tarde. O cabriolé, segundo a ordem dada, foi levado até a porta com as duas lanternas rebrilhando, e os rapazes tiveram de pagar sua conta e pegar a estrada. Anunciaram que iriam para Peebles, e seguiram naquela direção até deixar as últimas casas da vila para trás; então, apagando as lanternas, voltaram pelo mesmo caminho e tomaram uma estrada secundária para Glencorse. Não se ouvia um som senão o de sua passagem e o troar incessante e estridente da chuva torrencial. Estava escuro como breu; aqui e ali uma porteira branca ou uma pedra branca num muro os guiavam por um curto espaço através da noite; quase todo o tempo, porém, era num ritmo de caminhada, e quase às apalpadelas, que avançavam através da escuridão ressonante rumo a seu solene e isolado destino. Nas matas que cobriam os terrenos baixos, na vizinhança do cemitério, o último lampejo lhes faltou; tiveram de riscar um fósforo e acender uma das lanternas do cabriolé.

Assim, sob as árvores gotejantes e envoltos por sombras imensas e móveis, chegaram à cena de seus profanos trabalhos. Eram ambos experientes naquele serviço e hábeis com a pá; mal fazia vinte minutos que se aplicavam à tarefa quando foram recompensados por uma batida surda na tampa do caixão. No mesmo instante. Macfarlane arremessou imprudentemente sobre a cabeça uma pedra com que ferira a mão. O túmulo, dentro do qual estavam enfiados agora quase até os ombros, ficava próximo da borda do platô do cemitério; para iluminar seus trabalhos, a lâmpada do cabriolé havia sido apoiada contra uma árvore, bem na beira da ribanceira escarpada que descia para o riacho.

A sorte conduziu a pedra com precisão. Ouviu-se um retinir de vidro quebrado; a noite caiu sobre eles; sons alternadamente surdos e ressonantes anunciaram o ricochetear da lanterna ribanceira abaixo, colidindo com uma árvore aqui e ali. Na descida, deslocou uma ou duas pedras, que despencaram ruidosamente atrás dela nas profundezas do barranco; em seguida o silêncio, como a noite, recobrou seu domínio, e, por mais que apurassem os ouvidos, nada podiam escutar, exceto a chuva, ora marchando ao ritmo do vento, ora caindo com insistência sobre milhas de campo aberto. Estavam tão próximos do término de seu repugnante serviço que julgaram mais sensato completá-lo no escuro.

O caixão foi exumado e arrombado; o corpo, enfiado no saco encharcado e carregado entre um e outro até o cabriolé; um subiu para mantê-lo no lugar enquanto o outro, segurando o cavalo pela boca, seguiu às apalpadelas ao longo de muros e arbustos até chegar à estrada mais larga, perto do Fisher's Tryst. Ali havia uma radiação pálida, difusa, que eles saudaram como a luz do dia; imprimiram um bom ritmo ao cavalo e lá se foram chocalhando alegremente na direção da cidade.

Os dois ficaram molhados até os ossos durante suas operações, e agora,enquanto o cabriolé saltava entre os sulcos profundos, a coisa apoiada entre eles caía ora em cima de um, ora em cima de outro. A cada repetição do horrendo contato os dois o repeliam instintivamente com mais força; e o processo, embora muito natural, começou a enervar os companheiros.

Macfarlane fez uma pilhéria feia sobre a mulher do granjeiro, mas ela lhe saiu oca dos lábios e não teve eco. Sua estranha carga continuava a sacudir-se de um lado para outro; ora a cabeça pousava, como que confiantemente, sobre seus ombros, ora a aniagem ensopada dava-lhes palmadas gélidas no rosto. Uma friagem começou a invadir a alma de Fettes. Ele olhou para a trouxa e teve a impressão de que, de algum modo, estava maior que de início. Por toda a região, e de todas as distâncias, os cães das granjas acompanharam a passagem deles com trágicas ululações, e foi crescendo em sua mente a idéia de que um milagre absurdo se realizara, que alguma mudança inominável ocorrera no corpo morto, e que era de medo de sua carga sacrílega que os cães uivavam.

— Pelo amor de Deus — disse, fazendo um grande esforço para articularas palavras —, pelo amor de Deus, vamos acender alguma luz!

Ao que parece. Macfarlane estava igualmente abalado, pois, embora sem responder, parou o cavalo, passou as rédeas para o companheiro, apeou e pôs-se a acender a lanterna que restava. A essa altura haviam chegado apenas à encruzilhada de Auchendinny. A chuva continuava a cair, como se o dilúvio retornasse, e não foi lá muito fácil acender uma lanterna naquele mundo encharcado e escuro.

Quando finalmente a trêmula chama azul fora transferida para o pavio e começou a se expandir e clarear, irradiando um largo círculo de tênue brilho ao redor do cabriolé, os dois rapazes puderam se ver um ao outro e à coisa que carregavam consigo. A chuva moldara o saco grosseiro aos contornos do corpo; a cabeça se distinguia do tronco, os ombros estavam claramente modelados; algo ao mesmo tempo espectral e humano os impedia de desviar os olhos do seu horripilante companheiro de viagem.

Por algum tempo Macfarlane ficou imóvel, segurando a lâmpada. Um pavor sem nome envolveu o corpo de Fettes, como um lençol molhado, e retesou-lhe a pele branca do rosto; um medo sem sentido, um horror do que não podia ser foi-lhe subindo ao cérebro. Mais um segundo e ele teria falado, mas seu companheiro se antecipou.

 — Isso não é uma mulher — disse, numa voz abafada.

 — Era, quando a pusemos aqui — sussurrou Fettes.

 — Segure aquela lâmpada — disse o outro. — Preciso ver o rosto dela.

Quando Fettes pegou a lâmpada, seu companheiro desatou os nós do saco e pôs a cabeça à mostra. A luz incidiu muito clara, sobre os traços escuros e bem moldados e as faces escanhoadas de um semblante muito conhecido dos dois rapazes, freqüentemente contemplado em sonhos por ambos.

Um grito selvagem ressoou na noite; cada um pulou na estrada do seu lado, a lâmpada caiu, quebrou-se e a luz extinguiu-se; o cavalo, terrificado por essa inusitada comoção, deu um salto e partiu a galope para Edimburgo, levando consigo, como único ocupante do cabriolé, o cadáver do havia muito dissecado Gray.

(Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges)

(1) William Burke (1792-1829), ladrão de túmulos e assassino irlandês. (N.T.)



Fonte: Os melhores contos fantásticos / organizador: Flávio Moreira da Costa – Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Onde Passar a Noite?

(Um episódio da vida de François Villon)

Foi há muito tempo, em Novembro de 1456. A neve caía sobre Paris com uma rigorosa e implacável persistência; de onde em onde o vento fazia uma sortida e derramava-a em vertiginosos remoinhos; depois voltava uma trégua e os flocos punham-se a cair uns atrás dos outros no negrume da noite, silenciosos, tortuosos, intermináveis. Os pobres que contemplavam a neve, olhando-a por debaixo das sobrancelhas umedecidas, pareciam perguntar-se a si mesmos de onde é que tudo aquilo viria.

Mestre François Villon, junto à janela de uma taberna, propusera, aquela noite, uma alternativa: não seria apenas Júpiter pagão depenando patos no Olimpo? Ou seriam os anjos celestes a mudar a pena? É certo que ele não passava de um pobre mestre de humanidades, prosseguia, e como aquilo era um problema que dizia respeito à divindade não se atrevia a tirar nenhuma conclusão. Um velho e néscio prior de Montargis que se achava no grupo presenteou o maroto do rapaz com uma garrafa de vinho em prêmio do motejo e das momices com que Villon o sublinhara, jurando, pelas suas barbas, brancas que, na idade de Villon, fora um perro tão irreverente como ele.

O ar era frio e cortante, mas não muito abaixo de zero, e os flocos caíam, grandes, úmidos e pegajosos. Toda a cidade parecia embrulhada num lençol. Se naquele momento um exército se pusesse a marchar através dela, ruído algum denunciaria a sua passagem. E, se algum pássaro retardatário andasse pelo ar, veria a ilha como um grande remendo claro, e as pontes afigurar-se-lhe-iam delgados fios brancos esparsos pelo negro fundo do rio.

Lá para o alto, por cima das nossas cabeças, a neve vestia as esculturas da torre da catedral. Muitos nichos estavam cheios de neve; muitas estátuas tinham grandes barretes brancos nas grotescas ou sagradas cabeças. As gárgulas estavam convertidas em enormes narizes que iam pingando na ponta. Os coruchéus dir-se-iam aprumadas almofadas intumescidas de um dos lados. Quando o vento deixava de soprar, ouvia-se o pesado eco das gotas de água caindo sobre as precintas da igreja.

O cemitério de S. João estava modelado em neve. Todas as sepulturas tinham sido decentemente cobertas; os altos topes brancos dos edifícios jaziam, em redor dele, numa ordem solene; há muito que os dignos cidadãos estavam na cama cobertos com os barretes de trevas, tal qual como as suas próprias moradas; não havia uma só luz em todas aquelas redondezas, salvo um réstia de claridade que se furtava da lâmpada que ia oscilando no coro da igreja, fazendo balouçar as sombras ao ritmo da sua oscilação. Soavam dez horas no relógio, quando surgiu a patrulha, batendo as mãos, com as suas alabardas e uma candeia; nada descobriu de suspeito no cemitério de S. João.

No entanto, mesmo junto à parede do cemitério, uma casinha ainda estava desperta, e desperta para o mal, no meio daquelas paragens onde tudo ressonava. Por fora, um quase nada a denunciava: apenas a corrente de vapor que saía da chaminé, uma mancha no telhado, onde a neve se derretia, e, a porta, algumas pegadas quase sumidas. Lá dentro, porém, por detrás dos postigos, Mestre François Villon, na companhia de alguns bandoleiros com quem se reunia, passava a noite, alegremente, fazendo girar a garrafa de mão em mão.

Uma grande fogueira de cinzas esbraseadas na chaminé de abóbada espalhava um vivo e rubro calor. Diante dela estava Dom Nicolas, o monge picardo, com as abas do hábito levantadas e as gordas pernas nuas diante do reconfortante calor. A sua grande sombra repartia a sala ao meio e as chamas da fogueira apenas se filtravam por um dos lados da sua desmedida pessoa, fazendo-lhe ao mesmo tempo um pequeno charco entre os pés alargados. Tinha na cara o avinhado1 e pisado semblante de todos os bebedores profissionais; percorria-lhe a face uma rede de veias congestionadas, habitualmente purpúreas, mas, naquele momento, de um violeta pálido, pois, embora de costas para a fogueira, o frio apertava-o do lado oposto. Tinha o capuz descaído para as costas, o que lhe fazia uma grande excrescência de um dos lados do pescoço taurino. E ele ali estava, de pernas abertas, rosnando e fendendo a sala ao meio com a sombra da sua corpulenta estatura.

À direita, Villon e Guy Tabary debruçavam-se sobre um pedaço de pergaminho; Villon compunha uma balada, a que dera o nome de Balada do Peixe Frito, e Tabary, atrás dele, era todo admiração. O poeta parecia um farrapo humano, negro, pequenino, magro, com as faces cavadas e umas finas guedelhas pretas. Vinte e quatro anos de vivacidade febril. A voracidade havia-lhe posto pregas em torno dos olhos, os sorrisos de maldade tinham-lhe enrugado a boca. Havia qualquer coisa de lobo e de porco debatendo-se na sua máscara. O seu aspecto era ao mesmo tempo eloqüente, astuto, torpe e grosseiro. Tinha mãos pequenas e aduncas, com dedos nodosos como cordas, mãos que constantemente agitava numa violenta e expressiva pantomima. Quanto a Tabary, desprendia-se-lhe do nariz achatado e dos babosos lábios uma desmedida, complacente e admirativa imbecilidade; tinha acabado bandoleiro, pela mesma razão que poderia ter acabado o mais pacato dos burgueses, graças ao imperioso destino que tanto governa a vida dos tolos como a dos burros.

Do outro lado do frade, Montigny e Thevenin Pensete jogavam um jogo de vaza. No primeiro havia a sombra de certos antepassados nobres e alguma instrução; dir-se-ia um anjo caído; a sua pessoa tinha qualquer coisa de circunspeto, de flexível e de cortês; na sua cara havia qualquer coisa de aquilino e enigmático. Thevenin, coitado, estava bastante alegre: praticara uma boa velhacaria, aquela tarde, no Faubourg St. Jacques, e toda a noite estivera a ganhar a Montigny. Um sorriso baço lhe iluminava a face. No meio de uma grinalda de caracóis ruivos rebrilhava uma rosada calva; de cada vez que recolhia os ganhos, o proeminente estômago oscilava-lhe enquanto, ele soltava silenciosas gargalhadas.

- Dobras ou ficas-te? - disse Thevenin.

Montigny abanou a cabeça, carrancudo.

- Há os que preferem jantar pomposamente, - escrevia Villon -, pão e queijo em salvas de prata. Ou... ou..., ajuda-me, Guido!

Tabary teve um riso forçado.

- Ou salsa em travessas de ouro, - garatujou o poeta.

O vento refrescara lá fora; levava a neve de rastros diante dele, erguia, por vezes, a voz numa algazarra triunfal e soltava gemidos sepulcrais na chaminé. À medida que a noite avançava, o frio ia-se tornando mais cortante. Villon, estendendo os beiços, imitava a ventania com um misto de assobio e de gemido. Muito detestava o monge picardo aquele estranho e desagradável talento do poeta!

- Não estás a ouvir gemer na forca? - disse Villon. - Estão os enforcados a dançar no espaço a dança dos infernos. Dancem, janotas, que nem por isso hão-de ficar mais quentes! Ui! que ventania! Lá caiu agora um! Uma nêspera a menos na ramada da nespereira! Parece-me, Dom Nicolas, que deve estar um certo friozinho esta noite na estrada de S. Diniz? - murmurou ele.

Dom Nicolas fechou os dois grandes olhos e julgou sentir qualquer coisa a apertar-lhe a maçã de Adão. Montfaucon, a mais temível forca de Paris, ficava nas imediações da estrada de S. Diniz, e o gracejo tinha-o atingido em cheio. Quanto a Tabary, ria desbragadamente, por causa da nêspera; nunca ouvira tão boa piada; e apertava as ilhargas, cascalhando. Villon pregou-lhe um piparote no nariz, e a alegria desfez-se-lhe num ataque de tosse.

- Oh, acaba lá com esse chinfrim, - exclamou Villon, - e pensa numa rima para peixe.

- Ou dobras ou ficas-te, - disse Montigny com aspereza.

- Com todo o gosto, - replicou Thevenin.

- Já não há mais que se beba nesta garrafa? - perguntou o monge.

- Abre outra, - disse Villon. - Esperarás porventura poder encher esse grande tonel, esse corpazil, com garrafinhas dessas? E é assim que esperas ir para o céu? Ora põe na tua imaginação quantos anjos haviam de ser precisos para levarem lá para cima um simples frade da Picardia. Ou julgas-te qual outro Elias e esperas que eles te mandem uma carripana para te levar?

- Hominibus impossibile, - replicou o frade enquanto ia enchendo o copo.

Tabary caíra em êxtase. Villon deu-lhe outro piparote no nariz.

- Se isso te dá prazer, ri-te para aí, - disse ele.

- Boa piada! - replicou Tabary

Villon virou-se para ele.

- Pensa numa rima para peixe, - disse. - Para que é que te serve o latim? No dia do Juízo Final é que te há-de ser útil vão saber dessas coisas, quando o diabo chamar por Guido Tabary, clericus, - o diabo de corcova e garras em fogo. E a propósito de diabo, - acrescentou, em voz baixa, - olha para o Montigny!

Olharam todos três, disfarçadamente, para o jogador. Dir-se-ia que a sorte lhe não dava prazer algum. Tinha a boca um pouco torcida; uma das narinas quase fechada e a outra muito aberta. Trazia às costas o cão preto, como se diz na história, para meter medo às crianças; e arquejava debaixo daquele tão repugnante fardo.

- Está com cara de quem quer esfaquear o outro, - murmurou Tabary, arredondando os olhos.

O frade estremeceu, voltou a cara, e estendeu as mãos abertas para as cinzas flamejantes. Era o frio que fazia estremecer Dom Nicolas, não qualquer excesso de sensibilidade moral.

- Vamos lá, - disse Villon - vamos lá tratar da balada. Como vai isso? - e batendo o compasso com a mão pôs- se a lê-la em voz alta para Tabary.

Na altura da quarta estrofe foram interrompidos por um breve e fatal movimento entre os jogadores. Tinham chegado ao fim da partida, e Thevenin ia abrir a boca para cantar nova vitória quando Montigny, rápido como uma serpente, deu um pulo e o apunhalou em pleno coração. Tão rápida foi a punhalada que ele não teve tempo de soltar um grito, nem sequer se pôde mover. Um ou dois estremecimentos lhe convulsionaram o corpo; as mãos abriram-se-lhe e fecharam-se-lhe; arrastaram-se-lhe os tacões pelo chão; depois a cabeça rolou-lhe para trás, sobre os ombros, com os olhos todos abertos; e a alma de Thevenin Pensete regressou ao seio do Autor dela.

Ergueram-se todos de um salto; mas o assunto ficou arrumado em dois tempos. Os quatro vivos entreolharam-se algo pálidos; o morto fitava um canto do teto com um estranho e terrível olhar.

- Meu Deus! - exclamou Tabary; e começou a rezar em latim.

Villon rompeu numa gargalhada histérica. Deu um passo em frente e fez uma ridícula reverência a Thevenin, rompendo num riso mais pesado ainda. Depois, repentinamente, sentou-se todo numa rodilha, sobre um mocho e continuou a rir, amargosamente, como se se fosse fazer em pedaços.

Montigny foi o primeiro a recuperar a sua compostura.

- Deixa cá ver o que é que ele trazia consigo, - disse; meteu-lhe as mãos nas algibeiras com a presteza de um perito, e repartiu o dinheiro, em cima da mesa, em quatro montes iguais. - Este é para ti, - disse ele.

O frade recebeu a sua parte com um suspiro profundo e um mero olhar furtivo para o defunto Thevenin, que começava a contrair-se e a descair para o lado da cadeira.

- Estamos todos metidos nisto, - gritou Villon, que engolira a boa disposição. - Isto é negócio de forca para qualquer Zé Ninguém como nós - não falando nos que aqui não estão. - Traçou no ar um gesto desagradável com a mão direita erguida, deitou a língua de fora, e deixou tombar a cabeça de lado, imitando o ar de um enforcado. Em seguida meteu na algibeira o seu quinhão do despojo e pôs-se a bater com os pés, como se quisesse restabelecer a circulação.

Tabary foi o último a tirar a sua parte; bateu o dinheiro em cima da mesa e afastou-se para o fundo da casa.

Montigny pegou em Thevenin e pô-lo direito na cadeira; depois arrancou-lhe o punhal, e um jato de sangue lhe jorrou da ferida.

- Rapazes, é melhor porem-se a andar, - disse ele, enquanto limpava a lâmina ao gibão da vítima.

- Parece-me que será melhor, - tornou Villon, num repente. - Maldito seja este cabeçudo, principiou a resmonear. - Pica-me na garganta como se fosse saliva. Que direito tem um homem de ter cabelos ruivos quando está morto? - E deixou-se cair outra vez, feito uma rodilha, em cima do mocho, tapando completamente a cara com as mãos.

Montigny e Dom Nicolas riam com grandes gargalhadas, embora Tabary os acompanhasse sem grande entusiasmo.

- Chora, menino, - disse o frade.

- Sempre me quis parecer que ele era mulher, - acrescentou Montigny com um olhar de desprezo. - Desperta, se és capaz, - continuou, dando outro encontrão ao cadáver. – Pisa-me essa fogueira, Nick.

Mas Nick tinha mais que fazer; sossegadamente aproveitara a ocasião em que Villon se deixara cair no mocho, todo sacudido e trêmulo, no mesmo mocho onde minutos antes estivera a compor a sua balada, e roubara-lhe a bolsa. Mudamente, Montigny e Tabary reclamaram a sua parte no despojo, e o frade, sem dizer palavra, ia prometendo, enquanto tratava de guardar a pequena bolsa no peitoral da garnacha. É bem verdade a sensibilidade artística roubar ao homem o sentido da vida prática.

Assim que o roubo foi consumado, Villon pôs-se de pé e começou a ajudar a espalhar e a apagar as cinzas. Entretanto, Montigny abria a porta e punha-se a espreitar cautelosamente para a rua. A rua estava desimpedida; não havia qualquer intrometida patrulha à vista.
Todavia era mais prudente passarem a noite separados; e como o próprio Villon estava com pressa de se raspar das imediações do defunto Thevenin, e os outros ainda com mais pressa de se verem livres dele, antes que ele desse por falta do dinheiro, foi Villon o primeiro autorizado, por geral consenso, a sair para a rua.

O vento havia ganho a partida, varrendo do céu todas as nuvens. Apenas alguns ligeiros vapores, tão sutis como o luar, vogavam, céleres, por entre as estrelas. Fazia um frio atroz; e, graças a um vulgar efeito de ótica, as coisas dir-se-iam quase mais nítidas do que vistas à mais clara luz do sol. O silêncio era completo na adormecida cidade: uma comunidade de capuzes brancos e um campo eriçado de pequenos Alpes à cintilação às estrelas. Villon amaldiçoou a sua sorte. Era bem melhor que tivesse continuado a nevar! Assim, onde quer que ele fosse, deixaria sempre atrás de si, através das ruas brilhantes, o indelével rasto dos seus pés. Onde quer que se dirigisse, continuaria sempre ligado à casa do cemitério de S. João; onde quer que fosse, continuaria sempre a tecer com os seus próprios pés o fio que o prendia ao crime e o havia de amarrar à forca. O olhar do morto apareceu-lhe agora com outro significado. Deu um estalido com os dedos, como se quisesse fazer das tripas coração, e, escolhendo o caminho ao acaso, rompeu audaciosamente pela neve além.

À medida que ia caminhando, duas coisas o preocupavam: por um lado, o aspecto das forcas em Montfaucon nesta fase tempestuosamente brilhante da sua noturna existência, e, por outro, o olhar do morto, com a sua cabeça calva e a grinalda de caracóis ruivos. Mas sentiu frio no coração e pôs-se a andar mais depressa, como se quisesse escapar aos seus próprios pensamentos apenas estugando o passo. De vez em quando olhava para trás, por cima do ombro, com um súbito choque nervoso; mas ele era a única coisa que se agitava na rua branca, salvo quando, a uma esquina, o vento rodopiava, arremessando ao ar a neve, que começava a endurecer, tal qual um esguicho de poeira cintilante.

Subitamente viu ao longe, na sua frente, um grupo negro e um par de lanternas. O grupo movia-se e as lanternas agitavam-se como levadas por homens em marcha. Era a patrulha. Posto que a patrulha estivesse longe, o poeta julgou mais prudente desaparecer da vista dela tão prontamente quanto pôde. Não estava disposto a desafios, e sabia perfeitamente que os seus pés lá estavam impressos na neve.

Precisamente à esquerda havia um grande edifício com uns torreões e um grande pórtico diante da entrada. Lembrava-se de ser aquela uma casa meio arruinada e há muito vazia. Deu três passos em frente e escondeu-se debaixo do pórtico. Havia uma certa escuridão naquele sítio, em contraste com a luminosidade das ruas nevadas, e ele seguia as apalpadelas, com as mãos estendidas, quando tropeçou com qualquer coisa ao mesmo tempo densa e mole, firme e móvel. Teve um choque no coração e deu dois saltos para trás, fitando horrorizado o obstáculo. Depois soltou uma risadinha de alívio.

Tratava-se apenas de uma mulher, e, para mais, de uma mulher morta. Ajoelhou-se ao lado dela para ver se era verdade. Estava gelada, rígida como um pau. Em torno dos cabelos flutuava-lhe uma fita e tinha as faces carregadamente pintadas de fresco. Não tinha nada nas algibeiras; mas por debaixo das ligas, nas meias, Villon conseguiu encontrar-lhe duas daquelas pequenas moedas a que então se chamavam - brancas. Era quase nada; mas, em todo o caso, alguma coisa era; e o poeta, ao pensar que aquela mulher morrera sem ter tido tempo de gastar o seu dinheiro, sentiu-se agitado por um profundo sentimento de consternação. Isto afigurava-se-lhe um negro e lamentável mistério, e ora olhava para as moedas que tinha na mão ora para a mulher morta, para logo voltar a fitar as moedas, abanando a cabeça perante o enigma da vida humana.

Henrique V de Inglaterra, falecido em Vincennes pouco depois de ter conquistado a França, e aquela pobre rameira ceifada pelo frio no limiar de um tão grande portal, antes de ter tido tempo de gastar as suas moedas - que cruel maneira de governar este mundo! Não teria sido preciso muito tempo para gastar aquelas duas moedas e ao menos assim teria tido um melhor sabor na boca e um melhor gosto nos lábios quando o diabo chegasse para lhe levar a alma e o corpo fosse dado em pasto às aves e a vérmina. Quanto a ele, Villon, desejava bem poder gastar todo o seu cabedal antes da luz se lhe apagar e a candeia se lhe partir.

Enquanto estes pensamentos lhe perpassavam pelo espírito, ia procurando a bolsa com um gesto inconsciente. De súbito, parou-lhe o coração no peito, sentiu uma lâmina fria percorrer-lhe a barriga das pernas e um sopro gelado pareceu envolver-lhe o crânio. Ficou, por momentos, petrificado; depois sentiu, de novo, como que uma agitação de febre; e de novo a idéia do que acabava de perder se lhe estampou no pensamento e todo ele ficou de repente coberto de suores. Para o pródigo o dinheiro é uma coisa tão viva e presente - é como que um véu entre ele e os prazeres! Para o pródigo só há um limite na fortuna - o do tempo. Com algumas moedas na algibeira, o pródigo é como que um imperador de Roma enquanto as moedas duram. Eis por que uma pessoa que perde o seu dinheiro passa por uma das piores vicissitudes; num sopro, cai do céu no inferno, vai do tudo ao nada. E o pior era se ele tinha de meter a cabeça no barraco por causa daquele dinheiro, o pior era se ele no dia seguinte seria levado para a forca por causa daquela bolsa, tão dificilmente alcançada e tão estupidamente perdida.

Villon pôs-se a praguejar; atirou fora as duas moedas; ergueu os punhos para o céu; bateu com os pés no chão e nem horror sentiu de se ver calcando o pobre cadáver. Em seguida, resolveu seguir o seu próprio rasto em direção à casa junto ao cemitério. Esquecera-se de todo da patrulha, que no entanto já tinha passado há muito, não pensando senão na sua bolsa perdida. Procurou debalde de um lado e outro na neve; não via coisa alguma. Não lhe tinha caído na rua. Ter-lhe-ia caído dentro de casa? Teria desejado bem entrar, para ver, mas a idéia do terrível inquilino encheu-o de cobardia. Além disso, ao aproximar-se, viu bem que tinha tentado em vão apagar a fogueira; uma labareda rompera da cinza e uma luz incerta brincava nas gretas da porta e das janelas. Isso lhe fez lembrar o terror das autoridades e da forca de Paris.

Voltou ao edifício do grande pórtico e pôs-se a apalpar na neve em busca do dinheiro que havia lançado fora num momento de cólera infantil. Apenas conseguiu descobrir uma moeda; a outra devia ter resvalado para qualquer lado e enterrara-se naturalmente na neve. Só com uma moeda na algibeira, todos os seus projetos de uma noite animada em qualquer grande taberna se desvaneceram completamente. E não era apenas o prazer que lhe fugia, rindo, por entre os dedos; invadiu-o uma verdadeira desconsolação, uma verdadeira mágoa ao recolher-se tristemente atrás do pórtico. A transpiração havia-se-lhe enxugado no corpo; e posto que o vento tivesse deixado de soprar, uma capa de geada ia caindo, cada vez mais agreste, sentindo-se entorpecido e o coração trespassado. Que fazer agora? Se tentasse bater à porta do pai adotivo, o capelão de S. Bento, pouca esperança podia ter de ser recebido a uma tal hora da noite, em todo o caso tentaria.

Levou todo o caminho a correr; ao chegar, bateu timidamente. Não teve resposta. Bateu, voltou a bater, e a cada nova pancada ia ganhando mais ânimo; por fim, ouviu passos aproximarem-se da porta. No portal chapeado de bronze abriu-se um postigo gradeado, de onde saiu um jorro de luz amarelada.

- Mostre a cara ao postigo, - disse o capelão lá de dentro.

- Sou eu, - murmurou Villon.

- Oh, és tu, não és? - voltou o capelão; e pôs- se a amaldiçoá-lo com imundas e degradantes imprecações por ter sido perturbado a uma hora daquelas e acabou por mandá-lo para o diabo, em cuja companhia por certo andava.

- Tenho as mãos todas roxas até aos pulsos, - suplicou Villon, - tenho os pés dormentes e doridos; o ar corta-me o nariz; o frio chega-me ao coração. Morrerei antes de romper a manhã. Só por esta vez, pai, e por Deus lhe juro que nunca mais volto a aparecer aqui.

- Devias ter vindo mais cedo, - disse o eclesiástico friamente. - É sempre tempo de dar uma lição a um rapaz. - E fechou o postigo, retirando- se deliberadamente para dentro de casa.

Villon estava fora de si; pôs- se a bater na porta com as mãos e os pés, gritando em voz rouca para o capelão:

- Velha raposa piolhosa, - gritava ele, - se te deitasse a mão à sotaina, eras uma vez um homem.

Lá dentro fechou-se uma porta, mas o poeta mal a ouviu, ao fundo de grandes corredores. Depois pôs a mão na boca, em concha, e soltou uma imprecação. Em seguida, ao aperceber-se do cômico da situação, desatou a rir, com os olhos vagamente no céu, onde as estrelas pareciam troçar da sua triste sorte.

Que havia de fazer? Estava condenado a passar a noite nas ruas glaciais. A idéia da mulher morta surgiu-lhe de repente na imaginação, e um grande susto se apoderou dele. O que lhe tinha acontecido a ela, na noite anterior, podia muito bem vir a acontecer-lhe a ele antes de romper a manhã. E era tão novo ainda! E diante dele, um nunca acabar de pandegas! Pensando no seu próprio destino, sentia o seu quê de patético, como se se não tratasse dele próprio, mas de qualquer outra pessoa, acerca de quem estivesse bordando imaginárias considerações, na previsão do que viria a acontecer quando no dia seguinte lhe encontrassem o corpo.

Enquanto ia revirando a moeda entre o polegar e o indicador, passava em revista todos os riscos que o esperavam. Infelizmente, todos aqueles velhos amigos que se teriam compadecido dele em tal situação estavam em más relações com ele. Havia-os satirizado em verso, tinha-os espancado ou defraudado. No entanto, naquele aperto, lembrou-se de que talvez um, pelo menos, se compadecesse dele. Seria uma grande sorte. Mas valia a pena experimentar; iria ver.

No caminho ocorreram dois pequenos incidentes que o fizeram mudar de parecer. Primeiro começou por seguir ao longo do rasto de uma patrulha, durante algumas centenas de metros, embora não fosse o seu caminho. Isto animou-o. Ao menos tinha confundido a sua pista com o rasto da patrulha, pois subsiste nele a impressão de que continuava a ser seguido por todo Paris e que na manhã seguinte seria apanhado. A outra coisa impressionou-o de maneira bem diferente. Passou junto à esquina da rua onde havia tempo mãe e filho tinham sido devorados pelos lobos.

Era exatamente por noites assim que os lobos costumavam entrar em Paris e um homem solitário naquelas ruas desertas corria o risco de lhe acontecer coisa pior que apanhar uma simples beliscadura. Parou e pôs-se a olhar para o tal ponto com uma curiosidade bem pouco aprazível - era um sítio onde se cruzavam várias ruas; e começou a esquadrinhar uma por uma, com a respiração suspensa, para melhor ouvir, receoso de descobrir qualquer coisa escura galopando pela neve ou sentir algum uivo lá para as bandas do rio. Lembrou-se da mãe a mostrar-lhe a mancha e a contar-lhe a história quando ele era pequeno. A mãe! Se ele ao menos soubesse onde ela vivia, podia estar certo de ter um abrigo. E decidiu que no dia seguinte havia de investigar; além disso, iria saber dela e visitá-la-ia, pobre velha! Assim pensando, chegou ao seu destino, a sua derradeira esperança dessa noite.

A casa estava completamente às escuras, tal qual como as casas vizinhas. Depois de ter batido, no entanto, ouviu qualquer ruído por cima da cabeça; uma porta abriu-se e uma voz cautelosa perguntou o que era. O poeta disse o seu nome alto, mas surdamente, e esperou, não sem um certo receio, pelo resultado. Não teve de esperar muito. Subitamente, abriu-se uma janela e do alto despejaram-lhe em cima um balde de água suja. Villon, que não tinha deixado de pensar numa resposta daquele gênero, abrigara-se debaixo do pórtico tanto quanto pudera. Apesar disso, da cinta para baixo ficou num estado deplorável. Os calções começaram logo a cobrir-se-lhe de gelo. A possibilidade de morrer de frio sem abrigo tornou-se-lhe evidente. Lembrou-se de que tinha propensão para tísico e pôs-se a tentar tossir. Mas a própria gravidade da situação lhe sustinha os nervos.

Deteve-se a umas centenas de metros de onde acabava de ser tão rudemente recebido e pondo um dedo no nariz pôs-se a refletir. Apenas um caminho se lhe oferecia para conseguir abrigo; segui-lo-ia. Não muito longe dali, vira uma casa que se lhe afigurara facilmente assaltável, e prontamente tomou o rumo dessa casa; imaginando já, de si para consigo, um quarto ainda quente, e uma mesa repleta de sobras de uma ceia, onde ele passaria o resto daquelas negras horas e de onde sairia, no dia seguinte, com os braços a abarrotar de valiosas pratas. E ia meditando nas iguarias que o esperavam e nos vinhos que preferiria; de si para consigo, ia evocando a lista dos seus manjares favoritos, lembrando-se de peixe assado, com um estranho misto de satisfação e horror.

- Nunca mais acabo a tal balada, - pensou de si para consigo; e, depois, com um novo sobressalto de memória: - Oh, maldita seja esta estúpida cabeça, - exclamou com ardor, cuspindo para a neve.

À primeira vista a casa parecia às escuras; mas quando Villon começou a procurar um ponto mais fácil para o ataque, veio dar-lhe nos olhos uma pequena centelha de luz coada através da janela fechada com uma cortina.

- Oh, diabo!. - pensou ele. - Gente acordada! Estudante ou santo, maldita raça! Por que diabo é que eles não bebem e não se vão deitar com o vinho? Para que diabo é que serve o toque de recolher e as almas do diabo dos sineiros a puxarem pelo badalo nas torres dos sinos? Que é que se havia de fazer de dia se toda a gente passasse a noite acordada? Ao garrote com eles! - E, ao ver onde a lógica o levava, teve um trejeito. - Que cada um trate da sua vida é o que importa -, acrescentou, - se eles estão acordados, valha-nos Deus, por esta vez posso pregar a peça ao diabo e pedir honestamente que me dêem de cear.

Caminhou atrevidamente para a porta e bateu com firmeza. As duas outras vezes batera timidamente e com certo receio de chamar a atenção; mas agora, que tinha posto de lado a idéia de uma entrada fraudulenta, bater a uma porta afigurava-se-lhe a coisa mais simples e inocente deste mundo. O som das suas pancadas ecoou com um frio e fantástico eco, como se a casa estivesse completamente vazia; mas, mal o eco desapareceu, ouviram-se aproximar uns passos medidos, ranger os ferrolhos e um postigo abrir-se largamente, como se quem estava lá dentro nada receasse. Uma grande figura de homem, magro e musculoso, embora um pouco curvado, apareceu diante de Villon. Tinha uma cabeça maciça, mas delicadamente esculpida; o nariz era grosso na ponta, se bem que afilado para cima, no sítio onde se uniam as grossas e dignas sobrancelhas; cercavam-lhe a boca e os olhos delicados sinais e toda a face assentava numa espessa barba branca ostensivamente talhada em quadrado. Vista assim, à luz de uma candeia oscilante, parecia talvez mais nobre do que realmente era; em todo o caso tratava-se de uma bela máscara, onde havia mais dignidade do que inteligência: uma cara forte, simples e honrada.

- É tarde para bater, senhor -, disse o velho em tom sonoro e cortês.

Villon mostrou-se adulador e proferiu algumas servis palavras de desculpa; numa crise daquelas o pedinte vinha nele à superfície enquanto o homem de gênio se escondia, confuso.

- Tendes frio -, tornou o ancião, - e fome? Bem, subi. - E fê-lo entrar em sua casa com um gesto cheio de nobreza.

- Algum grande fidalgo -, pensou Villon, enquanto o seu anfitrião, pousando a candeia no lajeado pavimento da entrada, colocava outra vez as trancas no seu lugar.

- Perdoai-me, se vou adiante, - disse ele, depois de fechar os ferrolhos; e sempre na sua frente conduziu o poeta para o andar superior, introduzindo-o numa grande sala onde havia uma lareira e um grande candeeiro pendente do teto. A mobília escasseava; havia apenas algumas salvas de prata a um dos lados; alguns livros; e entre as janelas um armário com armaduras. Lindas tapeçarias pendiam das paredes: numa, via-se a crucificação de Nosso Senhor, na outra, uma cena com pastores e pastoras a beira de um riacho. Por cima da chaminé havia uma panóplia de armas.

- Quereis ter a bondade de vos sentardes -, disse o ancião, - e perdoar-me se vos deixo? Estou sozinho em casa esta noite, e se vos quiser dar qualquer coisa a comer, eu próprio terei de ir tratar disso.

Mal o anfitrião saiu, Villon pulou da cadeira em que se sentara e, furtiva, apaixonadamente, tal qual como um gato, pôs-se a examinar a sala. Pegou nos vasos de ouro, abriu os infólios, examinou as armas na panóplia e o estofo de que as cadeiras eram forradas. Ergueu a cortina das janelas e viu que as portas eram guarnecidas com ricos vidros de cor, cheios de figuras, pelo menos, ao que lhe pareceu, de assunto marcial. Depois deteve-se no meio da sala, respirou fundo, e retendo o fôlego, com as faces inchadas, olhou em toda a volta, girando sobre os calcanhares, como se quisesse imprimir na memória todos os pormenores daquela habitação.

- Sete peças de prata, - disse ele. - Se fossem dez, ainda me arriscaria. Uma tão bela casa e um tão simpático amo, assim me valham todos os santos da corte celeste!

Nesse mesmo instante, ouvindo o velho fidalgo caminhar ao longo do corredor, voltou a sentar- se na cadeira e pôs- se, humildemente, a aquecer as pernas molhadas diante da fogueira de brasas.

O fidalgo trazia um prato com comida numa das mãos e na outra um jarro de vinho. Pousou o prato em cima da mesa, convidou Villon a aproximar a cadeira e dirigindo-se ao aparador, pegou em duas taças, que encheu.

- Bebo pelas vossas prosperidades, - disse ele, grave, tocando com a sua taça na de Villon.

- Para que nos conheçamos melhor, - murmurou o poeta, ganhando confiança. Um simples homem do povo ter- se ia sentido intimidado pela cortesia do velho fidalgo, mas Villon estava acostumado àquelas coisas: não era a primeira vez que se divertia na companhia de grandes fidalgos e sempre os achara tão refinados velhacos como ele próprio. E assim se lançou às vitualhas com um apetite voraz, enquanto o fidalgo, inclinando- se para trás, o fitava com olhos firmes e curiosos.

- Tendes sangue nas costas, cavalheiro, - disse ele.

Ao sair de casa, Montigny devia ter-lhe enxugado às costas a mão direita ensopada. No seu foro íntimo amaldiçoou Montigny.

- Não foi derramado por mim, - tartamudeou.

- Nunca supus tal coisa, - tornou o anfitrião, tranqüilamente. - Qualquer rixa?

- Sim, qualquer coisa desse gênero, - admitiu Villon com um estremecimento.

- Algum companheiro assassinado, não?

- Oh, não, nada de assassínios, - disse o poeta cada vez mais confuso. - Apenas uma brincadeira - morte por acidente. Não tive mão nele, juro-vos! - acrescentou com veemência.
- Um vagabundo a menos, provavelmente, - observou o dono da casa.

- É muito possível, - concordou Villon, infinitamente aliviado. - Um malandro como não havia outro daqui a Jerusalém. Ficou-se mansinho como um cordeiro. Mas era uma coisa abjeta de ver. Estou certo que haveis visto homens mortos no vosso tempo, não, meu fidalgo? - acrescentou, relanceando os olhos para a panóplia.

- Muitos, - disse o velho. - Andei em guerras, como é de supor.

Villon pousou a faca e o garfo em que acabava de pegar outra vez.

- Algum calvo? - perguntou.

- Oh, sim, e alguns com os cabelos tão brancos como os meus.

- Não tenho preferência pelos brancos, - disse Villon. - Os dele eram ruivos. - E viu-se obrigado a afogar num grande trago de vinho um acesso de riso e certos estremecimentos. - Cada vez que penso nisto, sinto-me um bocadinho perturbado, - continuou. - Conhecia-o - que malvado! E depois o frio faz com que um homem se lembre destas coisas - ou lembrar-se um homem destas coisas faz frio, não sei porquê.

- Trazeis algum dinheiro convosco?

- Trago uma branca, - tornou o poeta, rindo. - Achei-a no cadáver de uma rameira morta para aí num portal. Estava tão morta como César e tão fria como uma igreja, pobre meretriz! Tinha uns bocados de fita amarrados à cabeça. O inverno neste mundo é duro para os lobos, para as meretrizes e para os pobres vagabundos como eu.

- Eu, - disse o ancião, - sou um Enguerrand de la Feyillée, senhor de Brisetout, bailio de Patatrac. E vós de onde vindes e quem sois?

Villon levantou-se e fez uma conveniente mesura.

- Eu sou aquele a quem chamam François Villon, - disse ele, - um pobre mestre de humanidades da nossa Universidade. Sei um pouco de latim e muito do vício. Sei fazer canções, baladas, lais, virelais e ritornelos, e sou perdidinho pela pinga. Nasci numa água furtada e é muito possível que venha a acabar na forca. E devo acrescentar, meu fidalgo, que, desta noite em diante, me confesso o mais humilde dos vossos servos, às ordens de Vossa Excelência.

- Meu servo, não, - disse o cavaleiro; - meu hóspede por esta noite e nada mais.

- Um hóspede profundamente reconhecido -, disse Villon com toda a polidez; e numa muda pantomima bebeu à saúde do seu anfitrião.

- Sois astuto -, principiou o velho, batendo na testa; - muito astuto; tendes estudos; sois letrado; e apesar disso sois capaz de tirar uma moeda do cadáver de uma mulher que encontrais na rua? Não será isso uma espécie de roubo?

- É uma espécie de roubo muito praticado na guerra, meu fidalgo.

- As guerras são o campo da honra, volveu o velho com altivez. Na guerra o homem joga a vida; combate em nome do seu senhor, o Rei, do seu senhor, Deus, e no de todos os seus ilustres anjos e santos.

- Imaginai, - disse Villon, - que eu era, de fato, um ladrão, não jogaria eu também a vida e em mais duras pelejas?

- Pelos lucros, não pela honra.

- Lucros? - repetiu Villon com um encolher de ombros. - Lucros! Se um pobre diabo precisa de cear, tem de tratar da vida. Assim fazem os guerreiros em campanha. Para quê, para que todas essas petições em que ouvimos tanto falar? Se não há ganhos para aqueles que os tomam, nem por isso deixa de haver perdas para os outros. Os guerreiros vão bebendo sentados ao pé de uma boa lareira, enquanto os burgueses roem as unhas para comprar vinho e lenha para eles. Tenho visto, por esses campos, não poucos lavradores a balouçar nas árvores. Sim, vi trinta em cima de um olmeiro, e que triste figura eles faziam! Pois quando perguntei por que é que toda aquela gentinha havia sido enforcada, disseram-me que era por não terem podido juntar as coroas necessárias para satisfazer os mercenários.

- Essas coisas são uma necessidade da guerra, e a gentalha não tem outro remédio senão aguentá-las com paciência. É certo que há capitães duros; em todas as classes há espíritos insensíveis à piedade; e não nego que na carreira das armas haja homens pouco melhores que brigões.

- Vede, disse o poeta, - vede como não podeis separar o guerreiro do brigão; e um ladrão não é mais que um brigão de boas maneiras combatendo sozinho. Eu surrupio um par de costeletas de carneiro sem perturbar o sono de ninguém. Os aldeãos rosnam o seu bocado, mas nem por isso deixam de comer de perfeita saúde o que eu deixei. E vós? Vós surgis atroando os ares com as vossas trombetas, lançais mão de todos os carneiros, e ainda por cima aplicais uma sova impiedosa ao aldeão. Cá por mim não uso trombetas; sou apenas Pedro, Paulo ou Martinho, sou um vagabundo e um perro para quem a forca é uma rica coisa - muito obrigado; mas perguntai ao aldeão qual de nós ele prefere, perguntai-lhe por qual de nós é que ele passa as noites frias em claro rogando pragas!

- Ponde os olhos em nós, - disse o fidalgo. - Eu sou velho, forte e considerado. Se me visse amanhã expulso da minha casa, centenas de pessoas se sentiriam orgulhosas de me dar abrigo. Bastava que eu mostrasse desejo de estar só, para os pobres saírem de suas próprias casas, prontos a passarem a noite na rua na companhia dos filhos. E vós andais por ai vagueando sem lar, e roubando uns míseros reais a uma mulher morta para aí a um canto. Não temo os homens, não temo nada; enquanto que vós, vi-vos tremer há pouco e perder a calma a uma só palavra. Espero que Deus me chame à sua presença, tranqüilamente, na minha cama, ou, se aprouver a El-Rei chamar-me outra vez, esperarei esse momento no campo de batalha. Vós esperais pela forca; esperais por uma morte repentina e cruel, sem esperança nem honra. Achais então que não há diferença entre nós?

- Tão grande como entre o sol e a lua, - voltou Villon aquiescendo. - Mas seria menor a diferença se eu tivesse nascido senhor de Brisetout e vós o pobre escolar François Villon? Não estaria eu aqui a aquecer os joelhos a esta lareira e vós não andaríeis às apalpadelas na neve em cata de um real? Não seria eu o guerreiro, e vós o ladrão?

- Um ladrão? - exclamou o fidalgo. - Eu um ladrão! Se medísseis o alcance das vossas palavras, arrepender-vos-íeis. - Villon afastou as mãos com um gesto de inimitável impudência. - Se Vossa Excelência me tivesse dado a honra de seguir os meus argumentos. - disse ele.

- Grande honra vos concedo já em suportar a vossa presença, - disse o cavaleiro. - Aprendei a dobrar a língua quando vos dirigis a velhos e honrados homens ou a alguém mais precipitado do que eu capaz de vos reprovar de uma maneira mais severa. - Dizendo o que, se levantou e pôs-se a passear na parte mais retirada da sala, agitado pela cólera e pela raiva. Villon, sub-repticiamente, voltou a encher a taça, sentou-se mais confortavelmente, cruzou as pernas e deixou cair a cabeça contra a mão cujo cotovelo apoiava às costas da cadeira. Sentia-se agora saciado e quente; e não tinha qualquer receio do seu anfitrião, depois de haver medido tanto quanto possível os seus dois tão diferentes caracteres. A noite ia quase passada e apesar de tudo passara-a com bastante conforto; e ele sentia-se moralmente certo de que poderia partir descansado no dia seguinte.

- Dizei-me uma coisa, disse o velho, que interrompera o seu passeio. - Sois realmente um ladrão?

- Reclamo os sagrados direitos da hospitalidade, - tornou-lhe o poeta. - Sou, sim, senhor.

- Sois tão novo, - continuou o cavaleiro.

- Nunca teria chegado a esta idade, - replicou Villon, mostrando os dedos, - sem a ajuda destes dez talentos. Posso considerá-los minha mãe e meu pai.

- Ainda estais a tempo de vos arrependerdes e mudardes.

- Arrependo-me todos os dias, disse o poeta. - Não conheço ninguém tão disposto a arrepender-se como o pobre François. Quanto a mudanças, deixai que alguém mude as condições da minha vida. Um homem precisa de continuar a comer, quanto mais não seja para poder continuar a arrepender-se.

- É pelo coração que deve começar a mudança, - voltou o fidalgo com solenidade.

- Meu caro senhor, - retorquiu Villon, - estais de fato convencido de que eu roubo por prazer? Detesto tanto roubar como fazer qualquer outro trabalho ou correr qualquer outro risco. Sinto os dentes ranger quando vejo uma forca. Mas preciso de comer, preciso de beber, tenho necessidade de aparecer na sociedade. Que diabo! O homem não é um animal solitário - Cui Deus foeminam tradit. Fazei de mim padeiro-mor de El-Rei ou abade de S. Diniz; fazei de mim bailio de Patatrac; e então vereis como eu mudo de fato. Mas enquanto continuar a ser o pobre escolar François Villon, sem cheta, evidentemente que continuarei a ser o que sou.

- A graça de Deus é infinita!

- Seria herético se perguntasse, - disse François Villon, - se foi ela que vos fez Senhor de Brisetout e bailio de Patatrac enquanto se limitou a dar-me a mim esta vivacidade de espírito que aqui tendes, estes dez dedos das minhas mãos. Dais licença que me sirva de vinho? Agradeço-vos respeitosamente. Graças a Deus a vossa colheita é bem vantajosa.

O senhor de Brisetout passeava de um lado para o outro com as mãos atrás das costas. Parecia não se resignar àquele paralelo entre ladrões e guerreiros, talvez Villon o prendesse por qualquer fio de simpatia, talvez o seu espírito se sentisse apenas perturbado por tão invulgares argumentos. Fosse qual fosse a causa, a verdade é que havia nele qualquer anseio de dirigir o moço para um melhor caminho e por isso se não decidida pô-lo outra vez na rua.
- Há nisto tudo qualquer coisa mais que eu não posso compreender, disse ele, por fim. - Tendes a boca cheia de sutilezas, e o diabo desencaminhou-vos de todo; mas, perante a verdade de Deus, o diabo não passa de um fraco espírito e todas as suas sutilezas se desvanecerão a uma só palavra sua, tal qual como as trevas quando chega a manhã. Escutai-me uma vez ainda. Há muito que me ensinaram que um fidalgo deve viver cavalheirescamente e com toda a dignidade perante Deus, o seu Rei e a sua dama; e posto já tenha visto coisas muito extraordinárias, até agora sempre me tenho esforçado por me manter dentro destes princípios. Se vos derdes ao cuidado de bem ler, verificareis que eles não estão escritos apenas em todas as nobres histórias, mas em todos os corações. Falais em comer e beber e eu bem sei que a vossa é uma dura prova a suportar; mas não dizeis palavra acerca das demais necessidades humanas; nada dizeis da honra, da fé em Deus e nos homens, da cortesia, do amor sem mácula. É possível que eu não seja muito sábio - embora esteja convencido de que o sou - mas afigura-se-me que haveis perdido o rumo e andais cometendo um grande erro na vida. Dais toda a atenção às pequenas necessidades, e haveis completamente esquecido as grandes, as únicas reais, como um homem preocupado com uma dor de dentes no dia de Juízo Final. A honra, o amor e a fé são não só mais nobres que o comer e beber, mas estou sinceramente convencido de que precisamos mais delas e sofremos mais agudamente a sua falta. Falo-vos da maneira que julgo mais fácil poder por vós ser compreendido. Não estareis vós, enquanto tratais de encher o ventre, fazendo por esquecer qualquer outro desejo do vosso coração, um desejo que vos corrompe o prazer da vida e seja causa de toda a vossa desgraça?

Villon parecia sensivelmente irritado com todo este sermão.

- Julgais que não tenho o sentimento da honra! - exclamou. - Que sou pobre, Deus bem o sabe! É duro ver os ricos de luvas e nós para aí a soprar nas mãos. Uma barriga vazia é coisa bastante séria e no entanto falais disso com uma leviandade! Se tivésseis andado de barriga vazia tantas vezes como eu talvez usásseis outro tom. De qualquer maneira sou um ladrão - compreendei isso bem - mas não sou um demônio dos infernos, Deus me defenda! Gostaria de vos fazer compreender que também tenho honra, tão boa como a vossa, mas que simplesmente não passo a vida a falar nela, como se fosse um milagre de Deus ter honra. Para mim é uma coisa perfeitamente natural, por isso a deixo estar em descanso, quando não preciso dela. Há quanto tempo estou eu nesta sala convosco? Não me haveis dito estardes sozinho em casa? Olhai para os vossos pratos de ouro! Não digo que não sejais forte, mas sois velho e estais desarmado, enquanto que eu sou novo e tenho aqui a minha faca. Bastava um encontrãozinho e estaríeis vós com uma lâmina fria metida nas tripas, e eu, onde estaria eu, por essas ruas, com uma braçada de taças de ouro? Julgais que não tenho esperteza para ver isto? E, no entanto, condeno esse gesto. Aí estão as vossas malditas taças tão seguras como numa igreja, aí estais vós com o coração aos saltos como se fôsseis um rapaz novo; e aqui estou eu pronto a ir-me embora, tão pobre como vim, apenas com uma única moeda na algibeira, uma moeda que me haveis lançado à cara! E dizeis que não sei o que é honra! - Deus me mate já aqui!

O velho estendeu o braço direito. - Vou dizer-vos quem sois, disse ele. - Sois um velhaco, rapaz, e um impudente, um malandro sem coração, um vagabundo. Passei uma hora na vossa companhia. Oh, acreditai-me, sinto-me desonrado. E haveis comido e bebido à minha mesa. Mas agora estou farto da vossa presença. São horas das aves da noite se recolherem. Quereis partir antes ou depois de mim?

- Como vos agradar mais, - tornou o poeta, levantando-se. - Estou certo de que sois um homem magnânimo. - E, pensativamente, esvaziou a taça. - Desejaria bem poder acrescentar que vos considero inteligente. - Continuou, batendo na cabeça com os nós dos dedos. - Idade! Idade! Miolos entorpecidos, reumatismo.

O fidalgo seguiu diante dele, porque assim lhe era devido; Villon seguiu-o, assobiando, com os polegares no cinturão.

- Deus se amerceie de vós - disse o senhor de Brisetout junto à porta.

- Adeus, papá, - tornou Villon, com um bocejo. - Muito obrigadinho pelo carneiro frio.

A porta fechou-se atrás dele. A aurora rompia por cima dos telhados brancos; Uma gelada, desconfortável manhã, anunciava o dia. Villon parou e espreguiçou-se cordialmente no meio da rua.

- Que grande asno o velhote do fidalgo, - pensou. - Quanto valerão as suas taças?

por Robert Louis Stevenson


Fonte: http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Robert Louis Stevenson

Tido a princípio como ensaísta artificial e afetado, ou mero escritor de livros infantis, somente meio século após sua morte Stevenson passou a ser visto como autor vigoroso e original, que em seus ensaios e romances revela aguda percepção da alma humana.

Robert Louis Balfour Stevenson nasceu em 13 de novembro de 1850 em Edimburgo, Escócia. Filho de renomado engenheiro civil, recusou-se a seguir a profissão do pai e comprometeu-se a estudar direito, mas abandonou o curso para ser escritor.

Em 1873 viajou à França em busca de clima mais adequado ao tratamento dos problemas respiratórios que o atormentavam. Suas freqüentes viagens ao exterior, em especial à França, foram relatadas no livro de crônicas An Inland Voyage (1878; Uma viagem pelo interior) e Travels with a Donkey in the Cévennes (1879; Viagem com um asno nas Cévennes).

Em 1881 fixou residência na Escócia e posteriormente em Bournemouth, na Inglaterra, onde pôde se dedicar inteiramente à literatura. Ainda em 1881 Stevenson publicou Virginibus puerisque (Às donzelas e aos garotos) e, em 1883, Treasure Island (A ilha do tesouro). Com esses livros, angariou prestígio imediato junto ao público pela capacidade de prender a atenção do leitor, graças à maneira habilidosa de contar suas histórias. Em todas as obras de ficção, Stevenson manteve o gosto pela aventura e pelo fantástico, a que se mistura uma notável capacidade de análise psicológica dos personagens.

O livro que lhe deu maior popularidade, no gênero de romance de aventuras, foi Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hide (1886; O médico e o monstro), no qual o autor aborda as duas naturezas antagônicas da alma humana. The Merry Men and Other Tales and Fables (1887; Os homens alegres e outras histórias e fábulas) revela a inclinação de Stevenson pelos temas de terror. Kidnapped (1886; Seqüestrado), que teve seqüência em Catriona (1893), e The Black Arrow: A Tale of the Two Roses (1888; A flecha negra: história de duas rosas) são romances históricos.

Dr. Jekyl And Mr. Hyde - The Transformation - Illustration by William Hole


Em agosto de 1887, ainda com o objetivo de tratar da saúde, foi para Nova York, onde encontrou boa recepção do público. Vários editores interessaram-se pela publicação de suas obras e chegaram a oferecer-lhe contratos lucrativos. Nessa época, escreveu The Master of Ballantrae (1889; O senhor de Ballantrae), outra obra em que trata da ambigüidade moral, num relato impactante prejudicado pelo desfecho artificial.

Em 1888 Stevenson empreendeu viagem com a família pelas ilhas do Pacífico sul, novamente motivado por problemas de saúde. Nesses lugares exóticos, esforçou-se por compreender a vida dos nativos, e como resultado escreveu In the South Seas (1896; Nos mares do sul) e A Footnote to History (1892; Nota de rodapé da história). Decidiu então fixar-se em Vailima, Samoa Ocidental, onde durante o resto da vida contou com a simpatia e a admiração dos nativos.

Seus últimos romances reproduzem, com notável lucidez, a frustração do homem diante do contraste entre o desejo e a realidade. A esse período pertence também a coletânea de poesias Ballads (1890; Baladas). Stevenson morreu em Vailima, Samoa, em 3 de dezembro de 1894.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.