terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Dagon

Escrevo isso debaixo de uma tensão mental considerável já que esta noite poderei não estar mais vivo. Sem um centavo e no final de meu suprimento da droga que, só ela, consegue tornar minha vida tolerável, já não consigo suportar a tortura e irei atirar-me dessa janela de sótão na rua esquálida lá em baixo.

Não pensem que minha dependência da morfina tenha-me tornado um fraco ou degenerado. Quando houverem lido estas páginas rabiscadas às pressas, poderão imaginar, mesmo sem nunca perceber plenamente, por que preciso do olvido ou da morte.

Foi num dos trechos mais abertos e pouco freqüentados do vasto Pacífico que o paquete onde eu era comissário de bordo foi capturado pelo vaso de guerra alemão. A grande guerra estava, então, em seu início, e as forças marítimas do bárbaro ainda não haviam mergulhado por completo em sua posterior degradação. Sendo assim, nossa embarcação foi tomada como legítima presa, enquanto nós, membros de sua tripulação, fomos tratados com toda a eqüidade e consideração que nos eram devidas como prisioneiros navais. Era tão liberal, de fato, a disciplina de nossos captores, que cinco dias depois de nos tomarem, consegui escapar, sozinho, num pequeno barco equipado com água e provisões para muito tempo.

Quando enfim me vi livre e à deriva, não tinha muita noção de minha localização. Como nunca havia sido um navegador experiente, eu só podia imaginar, vagamente, pelo sol e as estrelas, que estava um pouco ao sul do Equador. Da latitude eu nada sabia, e não havia ilha nem linha costeira à vista. O tempo manteve-se firme e durante dias sem conta eu vaguei sem destino debaixo de um sol escaldante, esperando a passagem de algum navio ou ser atirado às praias de alguma terra habitável. Mas não surgiu navio nem terra e comecei a me desesperar em minha solidão sobre a ondulante vastidão de intermi-nável azul.

A mudança aconteceu enquanto eu dormia. Seus detalhes eu jamais saberei, pois, embora agitado e povoado de sonhos, tive um sono contínuo. Quando afinal despertei, descobri-me meio tragado pela extensão lamacenta de um infernal lodo negro que se estendia à minha volta em monótonas ondulações até onde minha vista alcançava e onde, a certa distância, estava enterrado meu barco.

Embora se possa perfeitamente imaginar que minha pri¬meira sensação seria de espanto com uma transformação tão prodigiosa e inesperada de cenário, eu, na verdade, fiquei mais horrorizado do que espantado, pois havia no ar e no solo putrefato um caráter sinistro que me arrepiou até o âmago de meu ser. A região toda fedia com as carcaças de peixes apodrecidos e outras coisas menos descritíveis que eu vi projetadas da lama abjeta da interminável planície. Talvez eu não devesse esperar transmitir em meras palavras a indizível repugnância que pode existir num silêncio absoluto e numa imensidão estéril. Não havia nada ao alcance do ouvido e da visão, salvo uma vasta extensão de lodo preto, mas ainda assim o caráter absoluto do silêncio e a homogeneidade da paisagem me oprimiram com um medo nauseante.

O sol ardia no alto de um céu sem nuvens que me parecia quase negro em sua impiedade, como se refletisse o pântano escuro que tinha embaixo de meus pés. Arrastando-me para dentro do barco encalhado, percebi que apenas uma teoria poderia explicar minha situação: por algum tipo de erupção vulcânica sem precedentes, parte do leito do oceano devia ter sido impelida para a superfície, expondo regiões que durante incontáveis milhões de anos ficaram submersas debaixo de profundezas aquáticas imensuráveis. Era tão grande a extensão da nova terra que se elevara por baixo de mim, que não consegui captar o mais tênue ruído do oceano, por mais que forçasse os ouvidos. Também não havia qualquer ave marinha para pilhar as coisas mortas.

Durante muitas horas, eu fiquei sentado, pensando e ruminando, no barco que estava caído de lado e produzia um pouco de sombra à medida que o sol ia seguindo seu curso no céu. Com o avanço do dia, o chão foi ficando menos pegajoso, indicando que ficaria seco o bastante para permitir que se andasse sobre ele dentro de pouco tempo. Dormi muito pouco naquela noite e, no dia seguinte, preparei um farnel com água e comida para uma excursão terrestre em busca do mar desaparecido e de um possível resgate.

Na terceira manhã, verifiquei que o solo já estava bem seco e permitiria que se caminhasse sem problemas sobre ele. O cheiro de peixe era enlouquecedor, mas eu estava concentrado de-mais em coisas mais sérias para me importar com desgraça tão pequena, e parti ousadamente para um destino incerto. Caminhei a duras penas durante o dia todo na direção oeste, guiado por um outeiro distante que se destacava em altura dos outros que existiam no deserto acidentado. Acampei naquela noite, e, no dia seguinte, segui avançando para o outeiro, embora aquele objeto pare¬cesse estar pouca coisa mais perto do que da primeira vez em que o vira. Na quarta noite, atingi a base do monte, que se mostrou muito mais alto do que parecera à distância. Um vale interposto destacava seu perfil da superfície geral. Exausto demais para subir, dormi à sombra da colina.

Não entendo por que meus sonhos foram tão agitados naquela noite, mas, antes da curva fantasticamente acentuada da lua minguante ter-se erguido muito alto acima do lado oriental da planície, acordei suando frio, decidido a não me deixar adormecer de novo. As visões como as que havia tido eram demais para suportá-las de novo. E sob o brilho do luar, percebi como foram insensatas as minhas caminhadas diurnas. Sem o ardor do sol escaldante, minha jornada teria-me custado menos energia. Agora, enfim, eu me sentia perfeitamente capaz de realizar a escalada que me havia intimidado ao entardecer. Apanhei então o farnel e encaminhei-me para a crista da elevação.

Já tive a oportunidade de mencionar que a monotonia constante da planície ondulada era-me uma fonte de impreciso horror, mas creio que meu horror ficou maior quando alcancei o cume do monte e olhei para o outro lado, para um imenso vale ou canhão cujos recessos negros a lua ainda não se havia erguido o suficiente para iluminar. Senti-me no limiar do mundo, olhando, por sobre a borda, para um caos insondável de escuridão perpétua. Em meio a meu terror, perpassaram curiosas reminiscências do “Paraíso Perdido ” e da tenebrosa ascensão de Satã pelos reinos informes das trevas.

À medida que a Lua foi subindo no céu, pude notar que as encostas do vale não eram tão perpendiculares quanto eu imaginara. Saliências e afloramentos de rocha forneciam apoios perfeitos para uma descida, além de que, cerca de trinta metros abaixo, o declive tornava-se bastante ameno. Impelido por um impulso que não consigo precisar, fui descendo com dificuldade pelas rochas até parar na encosta menos íngreme abaixo, de onde fitei as pro-fundezas estígias onde nenhuma luz jamais penetrara.

De repente, minha atenção foi atraída por um objeto enorme e singular na vertente oposta erguendo-se abruptamente a cerca de cem jardas à minha frente, um objeto de brilho esbranquiçado sob os raios da Lua ascendente. De início, imaginei que se tratasse de uma simples rocha gigantesca, mas estava pouco consciente de que seu contorno e sua posição não eram uma obra puramente natural. Um exame mais de perto encheu-me de sensações que não consigo exprimir, pois, apesar de seu tamanho imenso e sua posição num abismo que ficara escondido no fundo do mar desde a juventude do mundo, percebi que o estranho objeto era um monolito bem moldado cujo vulto maciço havia conhecido o artesanato humano e, talvez, a adoração de criaturas vivas e pensantes.

Pasmo e assustado, mas não sem um certo frêmito de prazer do cientista ou do arqueólogo, examinei com maior atenção o meu entorno. A Lua, agora perto do zênite, brilhava intensamente, misteriosamente, sobre os penhascos abissais que ladeavam o abismo, revelando um extenso curso d’água que corria sinuoso em seu fundo até se perder de vista em ambas as direções e quase lambia meus pés enquanto eu estava ali, parado, na encosta. Do outro lado do vale, as leves ondulações da água roçavam a base do ciclópeo monolito, sobre cuja superfície eu podia agora distinguir inscrições e entalhes toscos. A escrita estava em um sistema de hieróglifos que eu não conhecia e que era diferente de tudo que eu já vira em livros, consistindo, em sua maior parte, de símbolos aquáticos estilizados como peixes, enguias, polvos, crustáceos, moluscos, baleias, coisas assim. Era patente que diversos caracteres representavam coisas marinhas desconhecidas do mundo moderno, mas cujas formas, em decomposição, eu havia observado na planície erguida do oceano.

Foram os entalhes decorativos, porém, que mais me extasiaram. Havia um arranjo de baixos-relevos, bem visível acima da água interposta por conta de seu enorme tamanho, cuja temática teria provocado a inveja de Doré. Imagino que aquelas coisas deviam supostamente ilustrar pessoas — ao menos um certo tipo de pessoas, embora as criaturas fossem mostradas divertindo-se como peixes nas águas de alguma gruta marinha ou venerando algum santuário em forma de monolito também ao que tudo indica submerso. De seus rostos e formas, não ouso falar com detalhes; sua mera lembrança me deixa aturdido. De um grotesco além da imaginação de um Poe ou de um Bulwer, tinham um perfil infernalmente humano apesar das mãos e pés palmados, dos lábios chocantemente largos e flácidos, dos olhos saltados e vítreos, e outras feições ainda menos agradáveis de se lembrar. O curioso é que pareciam ter sido cinzelados muito fora de proporção em relação ao cenário de fundo, pois uma das criaturas era mostrada no ato de matar uma baleia representada com um tamanho um pouco maior do que o seu, mas naquele mo-mento eu achei que eram apenas os deuses imaginários de alguma tribo primitiva, navegante e pescadora, alguma tribo cujos derradeiros descendentes teriam perecido muitas eras antes do primeiro ancestral do Homem de Piltdown ou de Neanderthal haver nascido. Extasiado diante da-quele inesperado vislumbre de um passado além da imaginação do mais ousado antropólogo, fiquei ali cismando enquanto a Lua provocava curiosos reflexos no plácido canal à minha frente.

Então, de repente, eu a vi. Com uma leve agitação para indicar sua subida à superfície, a coisa emergiu para fora das águas escuras. Enorme, polifêmica e repugnante, ela disparou como o monstro fabuloso de um pesadelo para o monolito, ao redor do qual arrojou seus gigantescos braços escamosos enquanto inclinava a cabeça horripilante, produzindo sons ritmados. Pensei ter enlouquecido, então.

De minha subida frenética da encosta e do penhasco, de minha delirante jornada de volta para o barco encalhado, pouco me recordo. Creio que cantei muito e ri como louco quando era incapaz de cantar. Tenho vagas recordações de uma grande tempestade algum tempo depois de alcançar o barco. De qualquer forma, sei que ouvi o ribombar de trovões e outros ruídos que a natureza produz somente em seus humores mais terríveis.

Quando sai das trevas, estava num hospital de San Francisco, para onde fora levado pelo capitão de um navio americano que recolhera meu barco no meio do oceano. Em meu delírio, falei muito, mas descobri que não deram muita atenção às minhas palavras. Meus salvadores não sabiam nada a respeito de alguma terra que houvesse aflorado no Pacífico, e eu não julguei necessário insistir em algo em que sabia que eles não poderiam acreditar. Procurei certa vez um famoso etnólogo e o diverti com perguntas curiosas sobre a antiga lenda filistina de Dagon, o Deus-Peixe, mas, percebendo logo que ele era um racionalista incorrigível, não insisti nas perguntas.

É durante a noite, especialmente quando a lua está muito curva e minguante, que eu vejo a coisa. Tentei a morfina, mas a droga deu-me apenas um alívio temporário e arrastou-me para suas garras como um escravo sem esperança. Sim, tendo escrito um relato completo para a informação ou a desdenhosa diversão de meus semelhantes, agora pretendo acabar com tudo.

Muitas vezes me pergunto se tudo não teria passado de pura fantasmagoria — uma simples fantasia febril enquanto eu jazia, castigado pelo sol e delirante, naquele barco descoberto depois de minha fuga do vaso de guerra alemão. Isso eu me pergunto, mas sempre me vem uma visão terrivelmente pavorosa em resposta. Não consigo pensar no mar profundo sem estremecer com as coisas inomináveis que podem, neste exato momento, estar arrastando-se e espojando-se em seu leito lamacento, adorando seus antigos ídolos de pedra e cinzelando à sua própria e detestável semelhança em obeliscos submarinos de granito encharcado.

Sonho com o dia em que elas poderão ascender acima dos vagalhões para arrastar para o fundo, com suas garras fétidas, os remanescentes de uma humanidade debilitada, exaurida pela guerra — o dia em que a terra poderia afundar e o escuro leito do oceano erguer-se em meio a um pandemônio universal.

O fim está próximo. Ouço um ruído à porta, como se um imenso corpo viscoso a estivesse forçando. Ela não me encontrará. Deus, aquela mão! A janela! A janela!

por H. P. Lovecraft

Onde Passar a Noite?

(Um episódio da vida de François Villon)

Foi há muito tempo, em Novembro de 1456. A neve caía sobre Paris com uma rigorosa e implacável persistência; de onde em onde o vento fazia uma sortida e derramava-a em vertiginosos remoinhos; depois voltava uma trégua e os flocos punham-se a cair uns atrás dos outros no negrume da noite, silenciosos, tortuosos, intermináveis. Os pobres que contemplavam a neve, olhando-a por debaixo das sobrancelhas umedecidas, pareciam perguntar-se a si mesmos de onde é que tudo aquilo viria.

Mestre François Villon, junto à janela de uma taberna, propusera, aquela noite, uma alternativa: não seria apenas Júpiter pagão depenando patos no Olimpo? Ou seriam os anjos celestes a mudar a pena? É certo que ele não passava de um pobre mestre de humanidades, prosseguia, e como aquilo era um problema que dizia respeito à divindade não se atrevia a tirar nenhuma conclusão. Um velho e néscio prior de Montargis que se achava no grupo presenteou o maroto do rapaz com uma garrafa de vinho em prêmio do motejo e das momices com que Villon o sublinhara, jurando, pelas suas barbas, brancas que, na idade de Villon, fora um perro tão irreverente como ele.

O ar era frio e cortante, mas não muito abaixo de zero, e os flocos caíam, grandes, úmidos e pegajosos. Toda a cidade parecia embrulhada num lençol. Se naquele momento um exército se pusesse a marchar através dela, ruído algum denunciaria a sua passagem. E, se algum pássaro retardatário andasse pelo ar, veria a ilha como um grande remendo claro, e as pontes afigurar-se-lhe-iam delgados fios brancos esparsos pelo negro fundo do rio.

Lá para o alto, por cima das nossas cabeças, a neve vestia as esculturas da torre da catedral. Muitos nichos estavam cheios de neve; muitas estátuas tinham grandes barretes brancos nas grotescas ou sagradas cabeças. As gárgulas estavam convertidas em enormes narizes que iam pingando na ponta. Os coruchéus dir-se-iam aprumadas almofadas intumescidas de um dos lados. Quando o vento deixava de soprar, ouvia-se o pesado eco das gotas de água caindo sobre as precintas da igreja.

O cemitério de S. João estava modelado em neve. Todas as sepulturas tinham sido decentemente cobertas; os altos topes brancos dos edifícios jaziam, em redor dele, numa ordem solene; há muito que os dignos cidadãos estavam na cama cobertos com os barretes de trevas, tal qual como as suas próprias moradas; não havia uma só luz em todas aquelas redondezas, salvo um réstia de claridade que se furtava da lâmpada que ia oscilando no coro da igreja, fazendo balouçar as sombras ao ritmo da sua oscilação. Soavam dez horas no relógio, quando surgiu a patrulha, batendo as mãos, com as suas alabardas e uma candeia; nada descobriu de suspeito no cemitério de S. João.

No entanto, mesmo junto à parede do cemitério, uma casinha ainda estava desperta, e desperta para o mal, no meio daquelas paragens onde tudo ressonava. Por fora, um quase nada a denunciava: apenas a corrente de vapor que saía da chaminé, uma mancha no telhado, onde a neve se derretia, e, a porta, algumas pegadas quase sumidas. Lá dentro, porém, por detrás dos postigos, Mestre François Villon, na companhia de alguns bandoleiros com quem se reunia, passava a noite, alegremente, fazendo girar a garrafa de mão em mão.

Uma grande fogueira de cinzas esbraseadas na chaminé de abóbada espalhava um vivo e rubro calor. Diante dela estava Dom Nicolas, o monge picardo, com as abas do hábito levantadas e as gordas pernas nuas diante do reconfortante calor. A sua grande sombra repartia a sala ao meio e as chamas da fogueira apenas se filtravam por um dos lados da sua desmedida pessoa, fazendo-lhe ao mesmo tempo um pequeno charco entre os pés alargados. Tinha na cara o avinhado1 e pisado semblante de todos os bebedores profissionais; percorria-lhe a face uma rede de veias congestionadas, habitualmente purpúreas, mas, naquele momento, de um violeta pálido, pois, embora de costas para a fogueira, o frio apertava-o do lado oposto. Tinha o capuz descaído para as costas, o que lhe fazia uma grande excrescência de um dos lados do pescoço taurino. E ele ali estava, de pernas abertas, rosnando e fendendo a sala ao meio com a sombra da sua corpulenta estatura.

À direita, Villon e Guy Tabary debruçavam-se sobre um pedaço de pergaminho; Villon compunha uma balada, a que dera o nome de Balada do Peixe Frito, e Tabary, atrás dele, era todo admiração. O poeta parecia um farrapo humano, negro, pequenino, magro, com as faces cavadas e umas finas guedelhas pretas. Vinte e quatro anos de vivacidade febril. A voracidade havia-lhe posto pregas em torno dos olhos, os sorrisos de maldade tinham-lhe enrugado a boca. Havia qualquer coisa de lobo e de porco debatendo-se na sua máscara. O seu aspecto era ao mesmo tempo eloqüente, astuto, torpe e grosseiro. Tinha mãos pequenas e aduncas, com dedos nodosos como cordas, mãos que constantemente agitava numa violenta e expressiva pantomima. Quanto a Tabary, desprendia-se-lhe do nariz achatado e dos babosos lábios uma desmedida, complacente e admirativa imbecilidade; tinha acabado bandoleiro, pela mesma razão que poderia ter acabado o mais pacato dos burgueses, graças ao imperioso destino que tanto governa a vida dos tolos como a dos burros.

Do outro lado do frade, Montigny e Thevenin Pensete jogavam um jogo de vaza. No primeiro havia a sombra de certos antepassados nobres e alguma instrução; dir-se-ia um anjo caído; a sua pessoa tinha qualquer coisa de circunspeto, de flexível e de cortês; na sua cara havia qualquer coisa de aquilino e enigmático. Thevenin, coitado, estava bastante alegre: praticara uma boa velhacaria, aquela tarde, no Faubourg St. Jacques, e toda a noite estivera a ganhar a Montigny. Um sorriso baço lhe iluminava a face. No meio de uma grinalda de caracóis ruivos rebrilhava uma rosada calva; de cada vez que recolhia os ganhos, o proeminente estômago oscilava-lhe enquanto, ele soltava silenciosas gargalhadas.

- Dobras ou ficas-te? - disse Thevenin.

Montigny abanou a cabeça, carrancudo.

- Há os que preferem jantar pomposamente, - escrevia Villon -, pão e queijo em salvas de prata. Ou... ou..., ajuda-me, Guido!

Tabary teve um riso forçado.

- Ou salsa em travessas de ouro, - garatujou o poeta.

O vento refrescara lá fora; levava a neve de rastros diante dele, erguia, por vezes, a voz numa algazarra triunfal e soltava gemidos sepulcrais na chaminé. À medida que a noite avançava, o frio ia-se tornando mais cortante. Villon, estendendo os beiços, imitava a ventania com um misto de assobio e de gemido. Muito detestava o monge picardo aquele estranho e desagradável talento do poeta!

- Não estás a ouvir gemer na forca? - disse Villon. - Estão os enforcados a dançar no espaço a dança dos infernos. Dancem, janotas, que nem por isso hão-de ficar mais quentes! Ui! que ventania! Lá caiu agora um! Uma nêspera a menos na ramada da nespereira! Parece-me, Dom Nicolas, que deve estar um certo friozinho esta noite na estrada de S. Diniz? - murmurou ele.

Dom Nicolas fechou os dois grandes olhos e julgou sentir qualquer coisa a apertar-lhe a maçã de Adão. Montfaucon, a mais temível forca de Paris, ficava nas imediações da estrada de S. Diniz, e o gracejo tinha-o atingido em cheio. Quanto a Tabary, ria desbragadamente, por causa da nêspera; nunca ouvira tão boa piada; e apertava as ilhargas, cascalhando. Villon pregou-lhe um piparote no nariz, e a alegria desfez-se-lhe num ataque de tosse.

- Oh, acaba lá com esse chinfrim, - exclamou Villon, - e pensa numa rima para peixe.

- Ou dobras ou ficas-te, - disse Montigny com aspereza.

- Com todo o gosto, - replicou Thevenin.

- Já não há mais que se beba nesta garrafa? - perguntou o monge.

- Abre outra, - disse Villon. - Esperarás porventura poder encher esse grande tonel, esse corpazil, com garrafinhas dessas? E é assim que esperas ir para o céu? Ora põe na tua imaginação quantos anjos haviam de ser precisos para levarem lá para cima um simples frade da Picardia. Ou julgas-te qual outro Elias e esperas que eles te mandem uma carripana para te levar?

- Hominibus impossibile, - replicou o frade enquanto ia enchendo o copo.

Tabary caíra em êxtase. Villon deu-lhe outro piparote no nariz.

- Se isso te dá prazer, ri-te para aí, - disse ele.

- Boa piada! - replicou Tabary

Villon virou-se para ele.

- Pensa numa rima para peixe, - disse. - Para que é que te serve o latim? No dia do Juízo Final é que te há-de ser útil vão saber dessas coisas, quando o diabo chamar por Guido Tabary, clericus, - o diabo de corcova e garras em fogo. E a propósito de diabo, - acrescentou, em voz baixa, - olha para o Montigny!

Olharam todos três, disfarçadamente, para o jogador. Dir-se-ia que a sorte lhe não dava prazer algum. Tinha a boca um pouco torcida; uma das narinas quase fechada e a outra muito aberta. Trazia às costas o cão preto, como se diz na história, para meter medo às crianças; e arquejava debaixo daquele tão repugnante fardo.

- Está com cara de quem quer esfaquear o outro, - murmurou Tabary, arredondando os olhos.

O frade estremeceu, voltou a cara, e estendeu as mãos abertas para as cinzas flamejantes. Era o frio que fazia estremecer Dom Nicolas, não qualquer excesso de sensibilidade moral.

- Vamos lá, - disse Villon - vamos lá tratar da balada. Como vai isso? - e batendo o compasso com a mão pôs- se a lê-la em voz alta para Tabary.

Na altura da quarta estrofe foram interrompidos por um breve e fatal movimento entre os jogadores. Tinham chegado ao fim da partida, e Thevenin ia abrir a boca para cantar nova vitória quando Montigny, rápido como uma serpente, deu um pulo e o apunhalou em pleno coração. Tão rápida foi a punhalada que ele não teve tempo de soltar um grito, nem sequer se pôde mover. Um ou dois estremecimentos lhe convulsionaram o corpo; as mãos abriram-se-lhe e fecharam-se-lhe; arrastaram-se-lhe os tacões pelo chão; depois a cabeça rolou-lhe para trás, sobre os ombros, com os olhos todos abertos; e a alma de Thevenin Pensete regressou ao seio do Autor dela.

Ergueram-se todos de um salto; mas o assunto ficou arrumado em dois tempos. Os quatro vivos entreolharam-se algo pálidos; o morto fitava um canto do teto com um estranho e terrível olhar.

- Meu Deus! - exclamou Tabary; e começou a rezar em latim.

Villon rompeu numa gargalhada histérica. Deu um passo em frente e fez uma ridícula reverência a Thevenin, rompendo num riso mais pesado ainda. Depois, repentinamente, sentou-se todo numa rodilha, sobre um mocho e continuou a rir, amargosamente, como se se fosse fazer em pedaços.

Montigny foi o primeiro a recuperar a sua compostura.

- Deixa cá ver o que é que ele trazia consigo, - disse; meteu-lhe as mãos nas algibeiras com a presteza de um perito, e repartiu o dinheiro, em cima da mesa, em quatro montes iguais. - Este é para ti, - disse ele.

O frade recebeu a sua parte com um suspiro profundo e um mero olhar furtivo para o defunto Thevenin, que começava a contrair-se e a descair para o lado da cadeira.

- Estamos todos metidos nisto, - gritou Villon, que engolira a boa disposição. - Isto é negócio de forca para qualquer Zé Ninguém como nós - não falando nos que aqui não estão. - Traçou no ar um gesto desagradável com a mão direita erguida, deitou a língua de fora, e deixou tombar a cabeça de lado, imitando o ar de um enforcado. Em seguida meteu na algibeira o seu quinhão do despojo e pôs-se a bater com os pés, como se quisesse restabelecer a circulação.

Tabary foi o último a tirar a sua parte; bateu o dinheiro em cima da mesa e afastou-se para o fundo da casa.

Montigny pegou em Thevenin e pô-lo direito na cadeira; depois arrancou-lhe o punhal, e um jato de sangue lhe jorrou da ferida.

- Rapazes, é melhor porem-se a andar, - disse ele, enquanto limpava a lâmina ao gibão da vítima.

- Parece-me que será melhor, - tornou Villon, num repente. - Maldito seja este cabeçudo, principiou a resmonear. - Pica-me na garganta como se fosse saliva. Que direito tem um homem de ter cabelos ruivos quando está morto? - E deixou-se cair outra vez, feito uma rodilha, em cima do mocho, tapando completamente a cara com as mãos.

Montigny e Dom Nicolas riam com grandes gargalhadas, embora Tabary os acompanhasse sem grande entusiasmo.

- Chora, menino, - disse o frade.

- Sempre me quis parecer que ele era mulher, - acrescentou Montigny com um olhar de desprezo. - Desperta, se és capaz, - continuou, dando outro encontrão ao cadáver. – Pisa-me essa fogueira, Nick.

Mas Nick tinha mais que fazer; sossegadamente aproveitara a ocasião em que Villon se deixara cair no mocho, todo sacudido e trêmulo, no mesmo mocho onde minutos antes estivera a compor a sua balada, e roubara-lhe a bolsa. Mudamente, Montigny e Tabary reclamaram a sua parte no despojo, e o frade, sem dizer palavra, ia prometendo, enquanto tratava de guardar a pequena bolsa no peitoral da garnacha. É bem verdade a sensibilidade artística roubar ao homem o sentido da vida prática.

Assim que o roubo foi consumado, Villon pôs-se de pé e começou a ajudar a espalhar e a apagar as cinzas. Entretanto, Montigny abria a porta e punha-se a espreitar cautelosamente para a rua. A rua estava desimpedida; não havia qualquer intrometida patrulha à vista.
Todavia era mais prudente passarem a noite separados; e como o próprio Villon estava com pressa de se raspar das imediações do defunto Thevenin, e os outros ainda com mais pressa de se verem livres dele, antes que ele desse por falta do dinheiro, foi Villon o primeiro autorizado, por geral consenso, a sair para a rua.

O vento havia ganho a partida, varrendo do céu todas as nuvens. Apenas alguns ligeiros vapores, tão sutis como o luar, vogavam, céleres, por entre as estrelas. Fazia um frio atroz; e, graças a um vulgar efeito de ótica, as coisas dir-se-iam quase mais nítidas do que vistas à mais clara luz do sol. O silêncio era completo na adormecida cidade: uma comunidade de capuzes brancos e um campo eriçado de pequenos Alpes à cintilação às estrelas. Villon amaldiçoou a sua sorte. Era bem melhor que tivesse continuado a nevar! Assim, onde quer que ele fosse, deixaria sempre atrás de si, através das ruas brilhantes, o indelével rasto dos seus pés. Onde quer que se dirigisse, continuaria sempre ligado à casa do cemitério de S. João; onde quer que fosse, continuaria sempre a tecer com os seus próprios pés o fio que o prendia ao crime e o havia de amarrar à forca. O olhar do morto apareceu-lhe agora com outro significado. Deu um estalido com os dedos, como se quisesse fazer das tripas coração, e, escolhendo o caminho ao acaso, rompeu audaciosamente pela neve além.

À medida que ia caminhando, duas coisas o preocupavam: por um lado, o aspecto das forcas em Montfaucon nesta fase tempestuosamente brilhante da sua noturna existência, e, por outro, o olhar do morto, com a sua cabeça calva e a grinalda de caracóis ruivos. Mas sentiu frio no coração e pôs-se a andar mais depressa, como se quisesse escapar aos seus próprios pensamentos apenas estugando o passo. De vez em quando olhava para trás, por cima do ombro, com um súbito choque nervoso; mas ele era a única coisa que se agitava na rua branca, salvo quando, a uma esquina, o vento rodopiava, arremessando ao ar a neve, que começava a endurecer, tal qual um esguicho de poeira cintilante.

Subitamente viu ao longe, na sua frente, um grupo negro e um par de lanternas. O grupo movia-se e as lanternas agitavam-se como levadas por homens em marcha. Era a patrulha. Posto que a patrulha estivesse longe, o poeta julgou mais prudente desaparecer da vista dela tão prontamente quanto pôde. Não estava disposto a desafios, e sabia perfeitamente que os seus pés lá estavam impressos na neve.

Precisamente à esquerda havia um grande edifício com uns torreões e um grande pórtico diante da entrada. Lembrava-se de ser aquela uma casa meio arruinada e há muito vazia. Deu três passos em frente e escondeu-se debaixo do pórtico. Havia uma certa escuridão naquele sítio, em contraste com a luminosidade das ruas nevadas, e ele seguia as apalpadelas, com as mãos estendidas, quando tropeçou com qualquer coisa ao mesmo tempo densa e mole, firme e móvel. Teve um choque no coração e deu dois saltos para trás, fitando horrorizado o obstáculo. Depois soltou uma risadinha de alívio.

Tratava-se apenas de uma mulher, e, para mais, de uma mulher morta. Ajoelhou-se ao lado dela para ver se era verdade. Estava gelada, rígida como um pau. Em torno dos cabelos flutuava-lhe uma fita e tinha as faces carregadamente pintadas de fresco. Não tinha nada nas algibeiras; mas por debaixo das ligas, nas meias, Villon conseguiu encontrar-lhe duas daquelas pequenas moedas a que então se chamavam - brancas. Era quase nada; mas, em todo o caso, alguma coisa era; e o poeta, ao pensar que aquela mulher morrera sem ter tido tempo de gastar o seu dinheiro, sentiu-se agitado por um profundo sentimento de consternação. Isto afigurava-se-lhe um negro e lamentável mistério, e ora olhava para as moedas que tinha na mão ora para a mulher morta, para logo voltar a fitar as moedas, abanando a cabeça perante o enigma da vida humana.

Henrique V de Inglaterra, falecido em Vincennes pouco depois de ter conquistado a França, e aquela pobre rameira ceifada pelo frio no limiar de um tão grande portal, antes de ter tido tempo de gastar as suas moedas - que cruel maneira de governar este mundo! Não teria sido preciso muito tempo para gastar aquelas duas moedas e ao menos assim teria tido um melhor sabor na boca e um melhor gosto nos lábios quando o diabo chegasse para lhe levar a alma e o corpo fosse dado em pasto às aves e a vérmina. Quanto a ele, Villon, desejava bem poder gastar todo o seu cabedal antes da luz se lhe apagar e a candeia se lhe partir.

Enquanto estes pensamentos lhe perpassavam pelo espírito, ia procurando a bolsa com um gesto inconsciente. De súbito, parou-lhe o coração no peito, sentiu uma lâmina fria percorrer-lhe a barriga das pernas e um sopro gelado pareceu envolver-lhe o crânio. Ficou, por momentos, petrificado; depois sentiu, de novo, como que uma agitação de febre; e de novo a idéia do que acabava de perder se lhe estampou no pensamento e todo ele ficou de repente coberto de suores. Para o pródigo o dinheiro é uma coisa tão viva e presente - é como que um véu entre ele e os prazeres! Para o pródigo só há um limite na fortuna - o do tempo. Com algumas moedas na algibeira, o pródigo é como que um imperador de Roma enquanto as moedas duram. Eis por que uma pessoa que perde o seu dinheiro passa por uma das piores vicissitudes; num sopro, cai do céu no inferno, vai do tudo ao nada. E o pior era se ele tinha de meter a cabeça no barraco por causa daquele dinheiro, o pior era se ele no dia seguinte seria levado para a forca por causa daquela bolsa, tão dificilmente alcançada e tão estupidamente perdida.

Villon pôs-se a praguejar; atirou fora as duas moedas; ergueu os punhos para o céu; bateu com os pés no chão e nem horror sentiu de se ver calcando o pobre cadáver. Em seguida, resolveu seguir o seu próprio rasto em direção à casa junto ao cemitério. Esquecera-se de todo da patrulha, que no entanto já tinha passado há muito, não pensando senão na sua bolsa perdida. Procurou debalde de um lado e outro na neve; não via coisa alguma. Não lhe tinha caído na rua. Ter-lhe-ia caído dentro de casa? Teria desejado bem entrar, para ver, mas a idéia do terrível inquilino encheu-o de cobardia. Além disso, ao aproximar-se, viu bem que tinha tentado em vão apagar a fogueira; uma labareda rompera da cinza e uma luz incerta brincava nas gretas da porta e das janelas. Isso lhe fez lembrar o terror das autoridades e da forca de Paris.

Voltou ao edifício do grande pórtico e pôs-se a apalpar na neve em busca do dinheiro que havia lançado fora num momento de cólera infantil. Apenas conseguiu descobrir uma moeda; a outra devia ter resvalado para qualquer lado e enterrara-se naturalmente na neve. Só com uma moeda na algibeira, todos os seus projetos de uma noite animada em qualquer grande taberna se desvaneceram completamente. E não era apenas o prazer que lhe fugia, rindo, por entre os dedos; invadiu-o uma verdadeira desconsolação, uma verdadeira mágoa ao recolher-se tristemente atrás do pórtico. A transpiração havia-se-lhe enxugado no corpo; e posto que o vento tivesse deixado de soprar, uma capa de geada ia caindo, cada vez mais agreste, sentindo-se entorpecido e o coração trespassado. Que fazer agora? Se tentasse bater à porta do pai adotivo, o capelão de S. Bento, pouca esperança podia ter de ser recebido a uma tal hora da noite, em todo o caso tentaria.

Levou todo o caminho a correr; ao chegar, bateu timidamente. Não teve resposta. Bateu, voltou a bater, e a cada nova pancada ia ganhando mais ânimo; por fim, ouviu passos aproximarem-se da porta. No portal chapeado de bronze abriu-se um postigo gradeado, de onde saiu um jorro de luz amarelada.

- Mostre a cara ao postigo, - disse o capelão lá de dentro.

- Sou eu, - murmurou Villon.

- Oh, és tu, não és? - voltou o capelão; e pôs- se a amaldiçoá-lo com imundas e degradantes imprecações por ter sido perturbado a uma hora daquelas e acabou por mandá-lo para o diabo, em cuja companhia por certo andava.

- Tenho as mãos todas roxas até aos pulsos, - suplicou Villon, - tenho os pés dormentes e doridos; o ar corta-me o nariz; o frio chega-me ao coração. Morrerei antes de romper a manhã. Só por esta vez, pai, e por Deus lhe juro que nunca mais volto a aparecer aqui.

- Devias ter vindo mais cedo, - disse o eclesiástico friamente. - É sempre tempo de dar uma lição a um rapaz. - E fechou o postigo, retirando- se deliberadamente para dentro de casa.

Villon estava fora de si; pôs- se a bater na porta com as mãos e os pés, gritando em voz rouca para o capelão:

- Velha raposa piolhosa, - gritava ele, - se te deitasse a mão à sotaina, eras uma vez um homem.

Lá dentro fechou-se uma porta, mas o poeta mal a ouviu, ao fundo de grandes corredores. Depois pôs a mão na boca, em concha, e soltou uma imprecação. Em seguida, ao aperceber-se do cômico da situação, desatou a rir, com os olhos vagamente no céu, onde as estrelas pareciam troçar da sua triste sorte.

Que havia de fazer? Estava condenado a passar a noite nas ruas glaciais. A idéia da mulher morta surgiu-lhe de repente na imaginação, e um grande susto se apoderou dele. O que lhe tinha acontecido a ela, na noite anterior, podia muito bem vir a acontecer-lhe a ele antes de romper a manhã. E era tão novo ainda! E diante dele, um nunca acabar de pandegas! Pensando no seu próprio destino, sentia o seu quê de patético, como se se não tratasse dele próprio, mas de qualquer outra pessoa, acerca de quem estivesse bordando imaginárias considerações, na previsão do que viria a acontecer quando no dia seguinte lhe encontrassem o corpo.

Enquanto ia revirando a moeda entre o polegar e o indicador, passava em revista todos os riscos que o esperavam. Infelizmente, todos aqueles velhos amigos que se teriam compadecido dele em tal situação estavam em más relações com ele. Havia-os satirizado em verso, tinha-os espancado ou defraudado. No entanto, naquele aperto, lembrou-se de que talvez um, pelo menos, se compadecesse dele. Seria uma grande sorte. Mas valia a pena experimentar; iria ver.

No caminho ocorreram dois pequenos incidentes que o fizeram mudar de parecer. Primeiro começou por seguir ao longo do rasto de uma patrulha, durante algumas centenas de metros, embora não fosse o seu caminho. Isto animou-o. Ao menos tinha confundido a sua pista com o rasto da patrulha, pois subsiste nele a impressão de que continuava a ser seguido por todo Paris e que na manhã seguinte seria apanhado. A outra coisa impressionou-o de maneira bem diferente. Passou junto à esquina da rua onde havia tempo mãe e filho tinham sido devorados pelos lobos.

Era exatamente por noites assim que os lobos costumavam entrar em Paris e um homem solitário naquelas ruas desertas corria o risco de lhe acontecer coisa pior que apanhar uma simples beliscadura. Parou e pôs-se a olhar para o tal ponto com uma curiosidade bem pouco aprazível - era um sítio onde se cruzavam várias ruas; e começou a esquadrinhar uma por uma, com a respiração suspensa, para melhor ouvir, receoso de descobrir qualquer coisa escura galopando pela neve ou sentir algum uivo lá para as bandas do rio. Lembrou-se da mãe a mostrar-lhe a mancha e a contar-lhe a história quando ele era pequeno. A mãe! Se ele ao menos soubesse onde ela vivia, podia estar certo de ter um abrigo. E decidiu que no dia seguinte havia de investigar; além disso, iria saber dela e visitá-la-ia, pobre velha! Assim pensando, chegou ao seu destino, a sua derradeira esperança dessa noite.

A casa estava completamente às escuras, tal qual como as casas vizinhas. Depois de ter batido, no entanto, ouviu qualquer ruído por cima da cabeça; uma porta abriu-se e uma voz cautelosa perguntou o que era. O poeta disse o seu nome alto, mas surdamente, e esperou, não sem um certo receio, pelo resultado. Não teve de esperar muito. Subitamente, abriu-se uma janela e do alto despejaram-lhe em cima um balde de água suja. Villon, que não tinha deixado de pensar numa resposta daquele gênero, abrigara-se debaixo do pórtico tanto quanto pudera. Apesar disso, da cinta para baixo ficou num estado deplorável. Os calções começaram logo a cobrir-se-lhe de gelo. A possibilidade de morrer de frio sem abrigo tornou-se-lhe evidente. Lembrou-se de que tinha propensão para tísico e pôs-se a tentar tossir. Mas a própria gravidade da situação lhe sustinha os nervos.

Deteve-se a umas centenas de metros de onde acabava de ser tão rudemente recebido e pondo um dedo no nariz pôs-se a refletir. Apenas um caminho se lhe oferecia para conseguir abrigo; segui-lo-ia. Não muito longe dali, vira uma casa que se lhe afigurara facilmente assaltável, e prontamente tomou o rumo dessa casa; imaginando já, de si para consigo, um quarto ainda quente, e uma mesa repleta de sobras de uma ceia, onde ele passaria o resto daquelas negras horas e de onde sairia, no dia seguinte, com os braços a abarrotar de valiosas pratas. E ia meditando nas iguarias que o esperavam e nos vinhos que preferiria; de si para consigo, ia evocando a lista dos seus manjares favoritos, lembrando-se de peixe assado, com um estranho misto de satisfação e horror.

- Nunca mais acabo a tal balada, - pensou de si para consigo; e, depois, com um novo sobressalto de memória: - Oh, maldita seja esta estúpida cabeça, - exclamou com ardor, cuspindo para a neve.

À primeira vista a casa parecia às escuras; mas quando Villon começou a procurar um ponto mais fácil para o ataque, veio dar-lhe nos olhos uma pequena centelha de luz coada através da janela fechada com uma cortina.

- Oh, diabo!. - pensou ele. - Gente acordada! Estudante ou santo, maldita raça! Por que diabo é que eles não bebem e não se vão deitar com o vinho? Para que diabo é que serve o toque de recolher e as almas do diabo dos sineiros a puxarem pelo badalo nas torres dos sinos? Que é que se havia de fazer de dia se toda a gente passasse a noite acordada? Ao garrote com eles! - E, ao ver onde a lógica o levava, teve um trejeito. - Que cada um trate da sua vida é o que importa -, acrescentou, - se eles estão acordados, valha-nos Deus, por esta vez posso pregar a peça ao diabo e pedir honestamente que me dêem de cear.

Caminhou atrevidamente para a porta e bateu com firmeza. As duas outras vezes batera timidamente e com certo receio de chamar a atenção; mas agora, que tinha posto de lado a idéia de uma entrada fraudulenta, bater a uma porta afigurava-se-lhe a coisa mais simples e inocente deste mundo. O som das suas pancadas ecoou com um frio e fantástico eco, como se a casa estivesse completamente vazia; mas, mal o eco desapareceu, ouviram-se aproximar uns passos medidos, ranger os ferrolhos e um postigo abrir-se largamente, como se quem estava lá dentro nada receasse. Uma grande figura de homem, magro e musculoso, embora um pouco curvado, apareceu diante de Villon. Tinha uma cabeça maciça, mas delicadamente esculpida; o nariz era grosso na ponta, se bem que afilado para cima, no sítio onde se uniam as grossas e dignas sobrancelhas; cercavam-lhe a boca e os olhos delicados sinais e toda a face assentava numa espessa barba branca ostensivamente talhada em quadrado. Vista assim, à luz de uma candeia oscilante, parecia talvez mais nobre do que realmente era; em todo o caso tratava-se de uma bela máscara, onde havia mais dignidade do que inteligência: uma cara forte, simples e honrada.

- É tarde para bater, senhor -, disse o velho em tom sonoro e cortês.

Villon mostrou-se adulador e proferiu algumas servis palavras de desculpa; numa crise daquelas o pedinte vinha nele à superfície enquanto o homem de gênio se escondia, confuso.

- Tendes frio -, tornou o ancião, - e fome? Bem, subi. - E fê-lo entrar em sua casa com um gesto cheio de nobreza.

- Algum grande fidalgo -, pensou Villon, enquanto o seu anfitrião, pousando a candeia no lajeado pavimento da entrada, colocava outra vez as trancas no seu lugar.

- Perdoai-me, se vou adiante, - disse ele, depois de fechar os ferrolhos; e sempre na sua frente conduziu o poeta para o andar superior, introduzindo-o numa grande sala onde havia uma lareira e um grande candeeiro pendente do teto. A mobília escasseava; havia apenas algumas salvas de prata a um dos lados; alguns livros; e entre as janelas um armário com armaduras. Lindas tapeçarias pendiam das paredes: numa, via-se a crucificação de Nosso Senhor, na outra, uma cena com pastores e pastoras a beira de um riacho. Por cima da chaminé havia uma panóplia de armas.

- Quereis ter a bondade de vos sentardes -, disse o ancião, - e perdoar-me se vos deixo? Estou sozinho em casa esta noite, e se vos quiser dar qualquer coisa a comer, eu próprio terei de ir tratar disso.

Mal o anfitrião saiu, Villon pulou da cadeira em que se sentara e, furtiva, apaixonadamente, tal qual como um gato, pôs-se a examinar a sala. Pegou nos vasos de ouro, abriu os infólios, examinou as armas na panóplia e o estofo de que as cadeiras eram forradas. Ergueu a cortina das janelas e viu que as portas eram guarnecidas com ricos vidros de cor, cheios de figuras, pelo menos, ao que lhe pareceu, de assunto marcial. Depois deteve-se no meio da sala, respirou fundo, e retendo o fôlego, com as faces inchadas, olhou em toda a volta, girando sobre os calcanhares, como se quisesse imprimir na memória todos os pormenores daquela habitação.

- Sete peças de prata, - disse ele. - Se fossem dez, ainda me arriscaria. Uma tão bela casa e um tão simpático amo, assim me valham todos os santos da corte celeste!

Nesse mesmo instante, ouvindo o velho fidalgo caminhar ao longo do corredor, voltou a sentar- se na cadeira e pôs- se, humildemente, a aquecer as pernas molhadas diante da fogueira de brasas.

O fidalgo trazia um prato com comida numa das mãos e na outra um jarro de vinho. Pousou o prato em cima da mesa, convidou Villon a aproximar a cadeira e dirigindo-se ao aparador, pegou em duas taças, que encheu.

- Bebo pelas vossas prosperidades, - disse ele, grave, tocando com a sua taça na de Villon.

- Para que nos conheçamos melhor, - murmurou o poeta, ganhando confiança. Um simples homem do povo ter- se ia sentido intimidado pela cortesia do velho fidalgo, mas Villon estava acostumado àquelas coisas: não era a primeira vez que se divertia na companhia de grandes fidalgos e sempre os achara tão refinados velhacos como ele próprio. E assim se lançou às vitualhas com um apetite voraz, enquanto o fidalgo, inclinando- se para trás, o fitava com olhos firmes e curiosos.

- Tendes sangue nas costas, cavalheiro, - disse ele.

Ao sair de casa, Montigny devia ter-lhe enxugado às costas a mão direita ensopada. No seu foro íntimo amaldiçoou Montigny.

- Não foi derramado por mim, - tartamudeou.

- Nunca supus tal coisa, - tornou o anfitrião, tranqüilamente. - Qualquer rixa?

- Sim, qualquer coisa desse gênero, - admitiu Villon com um estremecimento.

- Algum companheiro assassinado, não?

- Oh, não, nada de assassínios, - disse o poeta cada vez mais confuso. - Apenas uma brincadeira - morte por acidente. Não tive mão nele, juro-vos! - acrescentou com veemência.
- Um vagabundo a menos, provavelmente, - observou o dono da casa.

- É muito possível, - concordou Villon, infinitamente aliviado. - Um malandro como não havia outro daqui a Jerusalém. Ficou-se mansinho como um cordeiro. Mas era uma coisa abjeta de ver. Estou certo que haveis visto homens mortos no vosso tempo, não, meu fidalgo? - acrescentou, relanceando os olhos para a panóplia.

- Muitos, - disse o velho. - Andei em guerras, como é de supor.

Villon pousou a faca e o garfo em que acabava de pegar outra vez.

- Algum calvo? - perguntou.

- Oh, sim, e alguns com os cabelos tão brancos como os meus.

- Não tenho preferência pelos brancos, - disse Villon. - Os dele eram ruivos. - E viu-se obrigado a afogar num grande trago de vinho um acesso de riso e certos estremecimentos. - Cada vez que penso nisto, sinto-me um bocadinho perturbado, - continuou. - Conhecia-o - que malvado! E depois o frio faz com que um homem se lembre destas coisas - ou lembrar-se um homem destas coisas faz frio, não sei porquê.

- Trazeis algum dinheiro convosco?

- Trago uma branca, - tornou o poeta, rindo. - Achei-a no cadáver de uma rameira morta para aí num portal. Estava tão morta como César e tão fria como uma igreja, pobre meretriz! Tinha uns bocados de fita amarrados à cabeça. O inverno neste mundo é duro para os lobos, para as meretrizes e para os pobres vagabundos como eu.

- Eu, - disse o ancião, - sou um Enguerrand de la Feyillée, senhor de Brisetout, bailio de Patatrac. E vós de onde vindes e quem sois?

Villon levantou-se e fez uma conveniente mesura.

- Eu sou aquele a quem chamam François Villon, - disse ele, - um pobre mestre de humanidades da nossa Universidade. Sei um pouco de latim e muito do vício. Sei fazer canções, baladas, lais, virelais e ritornelos, e sou perdidinho pela pinga. Nasci numa água furtada e é muito possível que venha a acabar na forca. E devo acrescentar, meu fidalgo, que, desta noite em diante, me confesso o mais humilde dos vossos servos, às ordens de Vossa Excelência.

- Meu servo, não, - disse o cavaleiro; - meu hóspede por esta noite e nada mais.

- Um hóspede profundamente reconhecido -, disse Villon com toda a polidez; e numa muda pantomima bebeu à saúde do seu anfitrião.

- Sois astuto -, principiou o velho, batendo na testa; - muito astuto; tendes estudos; sois letrado; e apesar disso sois capaz de tirar uma moeda do cadáver de uma mulher que encontrais na rua? Não será isso uma espécie de roubo?

- É uma espécie de roubo muito praticado na guerra, meu fidalgo.

- As guerras são o campo da honra, volveu o velho com altivez. Na guerra o homem joga a vida; combate em nome do seu senhor, o Rei, do seu senhor, Deus, e no de todos os seus ilustres anjos e santos.

- Imaginai, - disse Villon, - que eu era, de fato, um ladrão, não jogaria eu também a vida e em mais duras pelejas?

- Pelos lucros, não pela honra.

- Lucros? - repetiu Villon com um encolher de ombros. - Lucros! Se um pobre diabo precisa de cear, tem de tratar da vida. Assim fazem os guerreiros em campanha. Para quê, para que todas essas petições em que ouvimos tanto falar? Se não há ganhos para aqueles que os tomam, nem por isso deixa de haver perdas para os outros. Os guerreiros vão bebendo sentados ao pé de uma boa lareira, enquanto os burgueses roem as unhas para comprar vinho e lenha para eles. Tenho visto, por esses campos, não poucos lavradores a balouçar nas árvores. Sim, vi trinta em cima de um olmeiro, e que triste figura eles faziam! Pois quando perguntei por que é que toda aquela gentinha havia sido enforcada, disseram-me que era por não terem podido juntar as coroas necessárias para satisfazer os mercenários.

- Essas coisas são uma necessidade da guerra, e a gentalha não tem outro remédio senão aguentá-las com paciência. É certo que há capitães duros; em todas as classes há espíritos insensíveis à piedade; e não nego que na carreira das armas haja homens pouco melhores que brigões.

- Vede, disse o poeta, - vede como não podeis separar o guerreiro do brigão; e um ladrão não é mais que um brigão de boas maneiras combatendo sozinho. Eu surrupio um par de costeletas de carneiro sem perturbar o sono de ninguém. Os aldeãos rosnam o seu bocado, mas nem por isso deixam de comer de perfeita saúde o que eu deixei. E vós? Vós surgis atroando os ares com as vossas trombetas, lançais mão de todos os carneiros, e ainda por cima aplicais uma sova impiedosa ao aldeão. Cá por mim não uso trombetas; sou apenas Pedro, Paulo ou Martinho, sou um vagabundo e um perro para quem a forca é uma rica coisa - muito obrigado; mas perguntai ao aldeão qual de nós ele prefere, perguntai-lhe por qual de nós é que ele passa as noites frias em claro rogando pragas!

- Ponde os olhos em nós, - disse o fidalgo. - Eu sou velho, forte e considerado. Se me visse amanhã expulso da minha casa, centenas de pessoas se sentiriam orgulhosas de me dar abrigo. Bastava que eu mostrasse desejo de estar só, para os pobres saírem de suas próprias casas, prontos a passarem a noite na rua na companhia dos filhos. E vós andais por ai vagueando sem lar, e roubando uns míseros reais a uma mulher morta para aí a um canto. Não temo os homens, não temo nada; enquanto que vós, vi-vos tremer há pouco e perder a calma a uma só palavra. Espero que Deus me chame à sua presença, tranqüilamente, na minha cama, ou, se aprouver a El-Rei chamar-me outra vez, esperarei esse momento no campo de batalha. Vós esperais pela forca; esperais por uma morte repentina e cruel, sem esperança nem honra. Achais então que não há diferença entre nós?

- Tão grande como entre o sol e a lua, - voltou Villon aquiescendo. - Mas seria menor a diferença se eu tivesse nascido senhor de Brisetout e vós o pobre escolar François Villon? Não estaria eu aqui a aquecer os joelhos a esta lareira e vós não andaríeis às apalpadelas na neve em cata de um real? Não seria eu o guerreiro, e vós o ladrão?

- Um ladrão? - exclamou o fidalgo. - Eu um ladrão! Se medísseis o alcance das vossas palavras, arrepender-vos-íeis. - Villon afastou as mãos com um gesto de inimitável impudência. - Se Vossa Excelência me tivesse dado a honra de seguir os meus argumentos. - disse ele.

- Grande honra vos concedo já em suportar a vossa presença, - disse o cavaleiro. - Aprendei a dobrar a língua quando vos dirigis a velhos e honrados homens ou a alguém mais precipitado do que eu capaz de vos reprovar de uma maneira mais severa. - Dizendo o que, se levantou e pôs-se a passear na parte mais retirada da sala, agitado pela cólera e pela raiva. Villon, sub-repticiamente, voltou a encher a taça, sentou-se mais confortavelmente, cruzou as pernas e deixou cair a cabeça contra a mão cujo cotovelo apoiava às costas da cadeira. Sentia-se agora saciado e quente; e não tinha qualquer receio do seu anfitrião, depois de haver medido tanto quanto possível os seus dois tão diferentes caracteres. A noite ia quase passada e apesar de tudo passara-a com bastante conforto; e ele sentia-se moralmente certo de que poderia partir descansado no dia seguinte.

- Dizei-me uma coisa, disse o velho, que interrompera o seu passeio. - Sois realmente um ladrão?

- Reclamo os sagrados direitos da hospitalidade, - tornou-lhe o poeta. - Sou, sim, senhor.

- Sois tão novo, - continuou o cavaleiro.

- Nunca teria chegado a esta idade, - replicou Villon, mostrando os dedos, - sem a ajuda destes dez talentos. Posso considerá-los minha mãe e meu pai.

- Ainda estais a tempo de vos arrependerdes e mudardes.

- Arrependo-me todos os dias, disse o poeta. - Não conheço ninguém tão disposto a arrepender-se como o pobre François. Quanto a mudanças, deixai que alguém mude as condições da minha vida. Um homem precisa de continuar a comer, quanto mais não seja para poder continuar a arrepender-se.

- É pelo coração que deve começar a mudança, - voltou o fidalgo com solenidade.

- Meu caro senhor, - retorquiu Villon, - estais de fato convencido de que eu roubo por prazer? Detesto tanto roubar como fazer qualquer outro trabalho ou correr qualquer outro risco. Sinto os dentes ranger quando vejo uma forca. Mas preciso de comer, preciso de beber, tenho necessidade de aparecer na sociedade. Que diabo! O homem não é um animal solitário - Cui Deus foeminam tradit. Fazei de mim padeiro-mor de El-Rei ou abade de S. Diniz; fazei de mim bailio de Patatrac; e então vereis como eu mudo de fato. Mas enquanto continuar a ser o pobre escolar François Villon, sem cheta, evidentemente que continuarei a ser o que sou.

- A graça de Deus é infinita!

- Seria herético se perguntasse, - disse François Villon, - se foi ela que vos fez Senhor de Brisetout e bailio de Patatrac enquanto se limitou a dar-me a mim esta vivacidade de espírito que aqui tendes, estes dez dedos das minhas mãos. Dais licença que me sirva de vinho? Agradeço-vos respeitosamente. Graças a Deus a vossa colheita é bem vantajosa.

O senhor de Brisetout passeava de um lado para o outro com as mãos atrás das costas. Parecia não se resignar àquele paralelo entre ladrões e guerreiros, talvez Villon o prendesse por qualquer fio de simpatia, talvez o seu espírito se sentisse apenas perturbado por tão invulgares argumentos. Fosse qual fosse a causa, a verdade é que havia nele qualquer anseio de dirigir o moço para um melhor caminho e por isso se não decidida pô-lo outra vez na rua.
- Há nisto tudo qualquer coisa mais que eu não posso compreender, disse ele, por fim. - Tendes a boca cheia de sutilezas, e o diabo desencaminhou-vos de todo; mas, perante a verdade de Deus, o diabo não passa de um fraco espírito e todas as suas sutilezas se desvanecerão a uma só palavra sua, tal qual como as trevas quando chega a manhã. Escutai-me uma vez ainda. Há muito que me ensinaram que um fidalgo deve viver cavalheirescamente e com toda a dignidade perante Deus, o seu Rei e a sua dama; e posto já tenha visto coisas muito extraordinárias, até agora sempre me tenho esforçado por me manter dentro destes princípios. Se vos derdes ao cuidado de bem ler, verificareis que eles não estão escritos apenas em todas as nobres histórias, mas em todos os corações. Falais em comer e beber e eu bem sei que a vossa é uma dura prova a suportar; mas não dizeis palavra acerca das demais necessidades humanas; nada dizeis da honra, da fé em Deus e nos homens, da cortesia, do amor sem mácula. É possível que eu não seja muito sábio - embora esteja convencido de que o sou - mas afigura-se-me que haveis perdido o rumo e andais cometendo um grande erro na vida. Dais toda a atenção às pequenas necessidades, e haveis completamente esquecido as grandes, as únicas reais, como um homem preocupado com uma dor de dentes no dia de Juízo Final. A honra, o amor e a fé são não só mais nobres que o comer e beber, mas estou sinceramente convencido de que precisamos mais delas e sofremos mais agudamente a sua falta. Falo-vos da maneira que julgo mais fácil poder por vós ser compreendido. Não estareis vós, enquanto tratais de encher o ventre, fazendo por esquecer qualquer outro desejo do vosso coração, um desejo que vos corrompe o prazer da vida e seja causa de toda a vossa desgraça?

Villon parecia sensivelmente irritado com todo este sermão.

- Julgais que não tenho o sentimento da honra! - exclamou. - Que sou pobre, Deus bem o sabe! É duro ver os ricos de luvas e nós para aí a soprar nas mãos. Uma barriga vazia é coisa bastante séria e no entanto falais disso com uma leviandade! Se tivésseis andado de barriga vazia tantas vezes como eu talvez usásseis outro tom. De qualquer maneira sou um ladrão - compreendei isso bem - mas não sou um demônio dos infernos, Deus me defenda! Gostaria de vos fazer compreender que também tenho honra, tão boa como a vossa, mas que simplesmente não passo a vida a falar nela, como se fosse um milagre de Deus ter honra. Para mim é uma coisa perfeitamente natural, por isso a deixo estar em descanso, quando não preciso dela. Há quanto tempo estou eu nesta sala convosco? Não me haveis dito estardes sozinho em casa? Olhai para os vossos pratos de ouro! Não digo que não sejais forte, mas sois velho e estais desarmado, enquanto que eu sou novo e tenho aqui a minha faca. Bastava um encontrãozinho e estaríeis vós com uma lâmina fria metida nas tripas, e eu, onde estaria eu, por essas ruas, com uma braçada de taças de ouro? Julgais que não tenho esperteza para ver isto? E, no entanto, condeno esse gesto. Aí estão as vossas malditas taças tão seguras como numa igreja, aí estais vós com o coração aos saltos como se fôsseis um rapaz novo; e aqui estou eu pronto a ir-me embora, tão pobre como vim, apenas com uma única moeda na algibeira, uma moeda que me haveis lançado à cara! E dizeis que não sei o que é honra! - Deus me mate já aqui!

O velho estendeu o braço direito. - Vou dizer-vos quem sois, disse ele. - Sois um velhaco, rapaz, e um impudente, um malandro sem coração, um vagabundo. Passei uma hora na vossa companhia. Oh, acreditai-me, sinto-me desonrado. E haveis comido e bebido à minha mesa. Mas agora estou farto da vossa presença. São horas das aves da noite se recolherem. Quereis partir antes ou depois de mim?

- Como vos agradar mais, - tornou o poeta, levantando-se. - Estou certo de que sois um homem magnânimo. - E, pensativamente, esvaziou a taça. - Desejaria bem poder acrescentar que vos considero inteligente. - Continuou, batendo na cabeça com os nós dos dedos. - Idade! Idade! Miolos entorpecidos, reumatismo.

O fidalgo seguiu diante dele, porque assim lhe era devido; Villon seguiu-o, assobiando, com os polegares no cinturão.

- Deus se amerceie de vós - disse o senhor de Brisetout junto à porta.

- Adeus, papá, - tornou Villon, com um bocejo. - Muito obrigadinho pelo carneiro frio.

A porta fechou-se atrás dele. A aurora rompia por cima dos telhados brancos; Uma gelada, desconfortável manhã, anunciava o dia. Villon parou e espreguiçou-se cordialmente no meio da rua.

- Que grande asno o velhote do fidalgo, - pensou. - Quanto valerão as suas taças?

por Robert Louis Stevenson


Fonte: http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros

Horace Walpole

Dois fatos justificam a presença de Walpole na história da literatura inglesa: sua correspondência volumosa, que se tornou um clássico do gênero, e o livro The Castle of Otranto, que deu início à voga dos romances góticos, ou com temas de horror ambientados, a princípio, em tempos medievais.

Horace Walpole, filho do primeiro-ministro Robert Walpole e quarto conde de Orford, nasceu em Londres em 24 de setembro de 1717. Foi educado em Eton e Cambridge. Com o poeta Thomas Gray, viajou pela Itália e a França.

De 1741 a 1768 foi membro do Parlamento, mas não se destacou na vida política. A partir de 1747, fez de Strawberry Hill, sua residência em Twickenham, onde colecionou obras de arte, um ativo centro da revivescência gótica inglesa. Aí instalou também uma impressora, em que imprimiu seus escritos e os dos amigos mais íntimos.

Além de The Castle of Otranto (1765; O castelo de Otranto), escreveu livros sobre história política e sobre história da arte. Sua correspondência completa, com mais de três mil cartas, foi publicada em 42 volumes entre 1937 e 1980.

Horace Walpole morreu em Londres, em 2 de março de 1797.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

Hans Christian Andersen


Com seu extraordinário talento para criar encantadores contos infantis, Andersen conquistou reconhecimento mundial e estimulou a imaginação de um sem-número de crianças e adultos.

Hans Christian Andersen nasceu em Odense, Dinamarca em 2 de abril de 1805, filho de um sapateiro e uma lavadeira. Menino sensível, preferia entreter-se sozinho e inventar histórias a brincar com outras crianças. Quando tinha 11 anos, seu pai morreu.

As dificuldades financeiras forçaram-no a tentar um ofício, mas sua índole introspectiva e delicada tornava-o alvo de zombaria entre os colegas. Aos 14 anos foi para Copenhague, disposto a fazer carreira no teatro, como cantor, dançarino ou ator. Conseguiu um lugar como extra, mas a inaptidão para essas artes levou-o a ser dispensado pouco depois. Nesse meio tempo obtivera a estima de alguns escritores e compositores, que o protegeram nas grandes privações materiais e forneceram-lhe meios, em 1828, de entrar para a universidade e completar os estudos.

Escreveu poemas, peças e romances, que não foram bem recebidos, embora conseguisse publicar dois livros. A situação material mais folgada permitiu-lhe viajar pela Europa e, em 1833, uma ida à Itália proporcionou-lhe a inspiração para Improvisatoren (O improvisador), primeiro romance de sucesso. Escreveu então suas primeiras quatro histórias para crianças, publicadas em 1835 em Eventyr og historier (Contos de fadas e histórias). Até 1872 continuou a publicar contos infantis (um total de 168 em cinco séries), que seriam traduzidos para mais de oitenta línguas e lhe trariam imensa fama.



Com estilo vivo e ágil, recriou em seus contos o folclore da Dinamarca e dos países que visitou. Os elementos fantásticos predominam, mesclados às vezes a um toque de amargura. Se algumas histórias revelam crença otimista na vitória da bondade e da beleza, outras são de profundo pessimismo. Não faltam também o humor e a sátira às fraquezas humanas. O componente autobiográfico apresenta-se na maior delas, como em "O patinho feio" e "O soldadinho de chumbo", embora todas sejam sobre problemas humanos universais.

Com toda razão Andersen deu a uma de suas duas autobiografias o título de Mit lyvs eventyr (O conto de fadas de minha vida). Do período inicial com enormes dificuldades à posição de escritor mundialmente reconhecido e estimado, a trajetória de sua vida lembra suas histórias de meninos pobres e humilhados que se transformam em príncipes. Andersen morreu em Copenhague em 4 de agosto de 1875.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

Gérard de Nerval

Contemporâneo de Victor Hugo, Musset e Lamartine, Nerval nada tem em comum com esses românticos franceses: como Edgar Allan Poe, cresceu de olhos postos na Alemanha de Hoffmann e foi um precursor do simbolismo, de Baudelaire e do surrealismo.

Gérard Labrunie, que adotou o pseudônimo Gérard de Nerval, nasceu em Paris em 22 de maio de 1808. Filho de um médico militar, perdeu a mãe aos dois anos e passou a infância junto ao avô, na região do Valois. Em 1822 foi estudar em Paris, onde freqüentou os círculos artísticos e dissipou a fortuna na boêmia. Aos vinte anos publicou uma tradução do Faust, de Goethe, que fascinou o autor.

Em 1934 Nerval viajou à Itália e, de volta, apaixonou-se pela atriz Jenny Colon, que se transformaria em imagem mítica das futuras obras do poeta. Nerval também viajou pela Alemanha e pelo Oriente Médio.

Na criação de Nerval, a sonoridade da linguagem acentua a magia de seu significado, em que se misturam influências cristãs e gregas, cabalísticas e orientais, sobretudo nos sonetos de Les Chimères (As quimeras), coletânea acrescida aos contos de Les Filles du feu (1854; As filhas do fogo), que incluem Sylvie, evocação transcendente do mundo de beleza e inocência da infância no Valois.

Ainda mais significativo, para muitos, é o romance Aurélia ou Le Rêve et la vie (1855; Aurélia ou O sonho e a vida), em que imagens da amada e da Virgem Maria se mesclam oniricamente. O melhor de sua obra foi realizado nos últimos anos, em que sofreu graves crises mentais e foi várias vezes internado, acabando por enforcar-se em Paris, em 26 de janeiro de 1855.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.