sexta-feira, 22 de julho de 2016

Mary Celeste - Um Debate


Nossa embarcação está em ótimas condições. Espero que façamos uma boa travessia; mas, como nunca viajei nela antes, não sei como irá se comportar. — Benjamin Briggs

Definição: O mistério do Mary Celeste começou com a descoberta do bergantim abandonado boiando no Atlântico Norte; seu capitão, a família dele e a tripulação, desaparecidos. Não havia sinal de pirataria ou crime e o estoque de suprimentos para seis meses do navio estava intacto.

O que os crentes dizem: Algo bizarro aconteceu a bordo do Mary Celeste. O desaparecimento inexplicável da tripulação do navio rivaliza com o desaparecimento da colônia de Roanoke por seu mistério. Soluções paranormais para o enigma devem ser levadas em consideração, entre elas abdução alienígena, ataque de um monstro das profundezas ou algum tipo de distorção temporal.

O que os céticos dizem: O capitão, sua família e a tripulação abandonaram o navio por algum motivo desconhecido e se perderam no mar. Essa é a explicação mais lógica, embora insatisfatória, para que tenham encontrado o navio boiando no Atlântico Norte, com a carga e os equipamentos em perfeitas condições. Talvez nunca venhamos a descobrir o porquê de eles terem usado um pequeno bote salva-vidas, mas procurar a resposta em aliens ou monstros é ridículo.

Qualidade das provas existentes: Moderada.

Probabilidade de o fenômeno ser paranormal: Fraca a Inconclusiva.

O navio conhecido como "Mary Celeste" foi originalmente batizado como "Amazon" e não há outra forma de descrevê-lo que não como um barco azarado.

Uma embarcação pode ser sortuda ou azarada? Um navio pode ser amaldiçoado?

Os marinheiros e os atores compartilham algo em comum: são supersticiosos a respeito de sua profissão e de seus rituais e crenças. Uma pesquisa superficial da história do Mary Celeste rapidamente convenceria um marinheiro de que o navio estava fadado ao desastre.

Sua história é alarmante:

Dois dias após assumir o comando do Amazon, seu primeiro capitão morreu.

Em sua viagem inaugural, ele colidiu com uma barreira de pesca e danificou o casco.

Enquanto o casco estava sendo reparado, houve um incêndio a bordo, provocando ainda mais danos.

Após ser consertado, ele atravessou o estreito de Dover e logo colidiu com outro navio, afundando-o.

O quarto capitão do Amazon fez com que ele encalhasse na ilha do cabo Breton, provocando danos consideráveis.

Após ser resgatado (embora depois da série de calamidades envolvendo o Amazon a gente imagine por que alguém desejaria ter algo mais a ver com ele), ele foi comprado e vendido três vezes, até ir parar nas mãos de J. H. Winchester, que o rebatizou como Mary Celeste. Talvez Winchester tenha pensado que uma troca de nome confundiria os demônios do mar, os quais pareciam particularmente propensos a danificar o navio.

O Mary Celeste partiu de Nova York rumo a Gênova, na Itália, em 5 de novembro de 1872. A bordo, estavam o capitão, Benjamin Spooner Briggs, sua mulher, Sarah, e a filha de dois anos, Sophie Matilda. Uma tripulação de sete homens conduzia a embarcação (embora alguns relatos citem oito membros na tripulação). No porão, havia uma carga de álcool bruto, além de comida e água suficientes para uma viagem de vários meses.

Por 20 dias, a viagem do Mary Celeste correu aparentemente sem incidentes. Mas, no dia 25 de novembro, algo aconteceu, e o que foi isso tem sido objeto de debate (e de livros, sites e artigos) há décadas.

Na véspera de o Mary Celeste partir de Nova York, o capitão Briggs jantou com um amigo, Benjamin Morehouse, capitão do Dei Gratia, o qual se encontrava ancorado ao lado do Mary Celeste no porto de Nova York. Na manhã seguinte, Briggs partiu; dez dias depois, o capitão Morehouse seguiu para a colônia britânica de Gibraltar, na costa da Espanha.

Em 5 de dezembro, o capitão Morehouse avistou o Mary Celeste navegando desgovernado no Atlântico Norte, a meio caminho entre os Açores e a costa de Portugal. Após sinalizar repetidas vezes para o navio, sem receber resposta, ele decidiu mandar seus homens subirem a bordo para investigar.

O que eles encontraram?

Um mistério que perdura até hoje.

E o mais importante: não havia ninguém a bordo. O capitão Briggs, sua família e a tripulação não estavam em lugar algum. Além disso:

Duas velas estavam faltando.

A caixa na qual ficava a bússola do navio (a bitácula) fora aberta e a bússola, esmagada.

Havia água na coberta, mas não o suficiente para afundar o navio.

Os armários da tripulação continuavam trancados e seus pertences, intactos.

O diário de bordo e os instrumentos estavam faltando; o diário do capitão continuava ali.

Os suprimentos de comida e água estavam intactos.

A última entrada no diário do capitão era datada de 25 de novembro e fornecia as coordenadas do navio, as quais revelavam que ele viajara aproximadamente 1.100 quilômetros em dez dias sem ninguém a bordo.

E, finalmente, o bote salva-vidas estava faltando.

Por alguma razão, Briggs e todos os outros haviam abandonado o navio — às pressas — no dia 25 de novembro. Isso foi extremamente intrigante para o capitão Morehouse e seus homens: o Mary Celeste era, sem dúvida, navegável. Não havia chance de ele afundar, então por que todos tinham deixado a segurança da embarcação em troca dos perigos de um bote pequeno em mar aberto?

Eis aqui as teorias mais comumente citadas com relação ao que aconteceu, e os argumentos que as contradizem:

O capitão pensou que o navio estivesse afundando e o abandonou. Por que ele pensaria que o navio estava afundando com tão pouca água na coberta?

A tripulação pegou o álcool bruto, se embebedou, amotinou-se e o capitão fugiu com a família, após o que a tripulação se afogou. O álcool bruto teria deixado os homens doentes, e não bêbados, e os experientes marinheiros do Mary Celeste saberiam disso.

Um tornado (tromba-d'água) acertou o navio e fez o capitão pensar que eles estivessem afundando. Assim, ele teria abandonado o navio. Por que eles achariam que seriam capazes de escapar de uma tromba-d'água num pequeno bote e não no Mary Celeste?

O capitão e seu sócio combinaram de abandonar o navio para pegar o dinheiro do seguro. Eles ganhariam menos dinheiro do seguro do que vendendo o navio direto.

Então só sobra abdução alienígena, certo? Ou teriam eles atravessado um portal do tempo? Ou cometido suicídio em massa?

Até hoje, ninguém sabe a verdade. Houve muita especulação sobre o que aconteceu com o Mary Celeste após a publicação do conto sensacionalista (e totalmente impreciso) de J. Habakuk Jephson, pseudônimo de Arthur Conan Doyle.

O que sabemos é que o Mary Celeste foi abandonado, provavelmente devido ao pânico, e que todos morreram no mar.

"Por quê?" é a pergunta que até hoje não foi respondida.

Diagnóstico da Morte


"Sou menos supersticioso do que alguns de vocês, médicos — homens da ciência, como gostam de ser chamados", disse Hawver, respondendo a uma acusação que sequer fora formulada.

"Alguns de vocês — poucos, é verdade — acreditam na imortalidade da alma e em aparições que não têm a honestidade de chamar de fantasmas. Eu tenho apenas a convicção de que os seres vivos às vezes são vistos onde não estão, mas onde já estiveram — em lugares onde viveram por muito tempo, ou talvez tão intensamente, que deixaram sua marca no ambiente.

Sei, na verdade, que o ambiente onde uma pessoa vive pode ser afetado por sua personalidade, a ponto de emitir, muito tempo depois, a imagem dessa pessoa ante os olhos dos outros. Sem dúvida, não é qualquer personalidade que é assim tão marcante, assim como os olhos que percebem também têm de ser de um tipo especial — como os meus, por exemplo.”

"Sim, o tipo certo de olhos, mas enviando sensações para o tipo errado de cérebro", disse o Dr. Frayley, sorrindo.

"Obrigado. É bom quando nossas expectativas são atendidas. É exatamente essa a resposta que se espera ouvir em nome da civilidade.”

"Perdoe-me. Mas você diz que sabe. Isso é muita coisa, não acha? Talvez não se incomodasse em me contar como foi que aprendeu tudo isso.”

"Você vai dizer que é alucinação", respondeu Hawver, "mas não me importo.”

E foi assim que ele contou a história.

"No verão passado, eu fui, como você sabe, passar a temporada quente na cidade de Meridian. O parente em cuja casa pretendia hospedar-me ficou doente, por isso procurei outro local para ficar. Com muita dificuldade, consegui alugar uma casa que estava vazia, tendo sido antes ocupada por um médico excêntrico de nome Mannering, que se fora muitos anos antes. Para onde, ninguém sabia, nem mesmo seu agente. Ele próprio construíra a casa e nela vivera com uma velha criada durante cerca de dez anos. Após algum tempo, renunciara à prática da medicina, à qual já pouco se dedicava. Não apenas isso: na verdade, tornara-se um recluso, abrindo mão de qualquer tipo de vida social.

O médico local, única pessoa com a qual mantinha algum contato, contou-me que durante o período de reclusão ele se dedicara inteiramente a uma determinada pesquisa, cujo resultado expusera em um livro. Este fora desaprovado por seus pares, que na verdade consideravam-no meio louco. Não tive oportunidade de ler o livro, de cujo título sequer me recordo, mas sei que abordava uma teoria muito surpreendente. Ele assegurava ser possível a qualquer pessoa, desfrutando de boas condições de saúde, prever a própria morte com toda a precisão, com muitos meses de antecedência. O limite, creio, era de dezoito meses. Corriam histórias de que o médico exercera essa sua capacidade de fazer prognósticos — ou diagnósticos, como você chamaria. E dizem também que em todos os casos a pessoa, cujos amigos haviam sido avisados, morrera de repente na hora exata apontada por ele, sem qualquer razão aparente. Nada disso, porém, tem a ver com o que quero contar. Só achei que um médico se divertiria ouvindo isso."

"A casa era mobiliada, com os mesmos móveis do tempo em que ele lá vivera. Era na verdade uma casa sombria para alguém como eu, que não era nem recluso nem pesquisador, e acho que talvez me tenha transmitido um pouco dessa sua característica — ou talvez um pouco do caráter de seu ocupante anterior. Porque eu sentia nela uma constante melancolia que não fazia parte do meu temperamento, nem mesmo como consequência da solidão. Nenhum criado dormia na casa, mas eu sempre me senti muito bem em minha própria companhia, como você sabe, gostando muito de ler, embora não de estudar. Fosse qual fosse a causa, o efeito era de desalento, como se alguma coisa maléfica pairasse no ar. A sensação era especialmente forte no gabinete do Dr. Mannering, embora o aposento fosse o mais claro e arejado da casa.

O retrato a óleo do médico, em tamanho natural, ficava pendurado na parede, parecendo dominar toda a sala. Não havia nada de estranho na pintura. O homem tinha bom aspecto, aparentava cerca de cinquenta anos, cabelos grisalhos, rosto bem escanhoado e olhos graves e escuros. Mas algo naquele quadro sempre chamava e prendia minha atenção. A aparência do homem tornou-se familiar para mim e era quase como se me assombrasse."

"Certa noite atravessei a sala em direção a meu quarto, levando nas mãos uma lamparina — não há gás em Meridian. Como sempre fazia, parei diante do retrato que, à luz da lamparina, parecia ganhar uma expressão nova, de difícil definição, mas sem dúvida alguma sobrenatural. Fiquei interessado, mas não perturbado. Movi a lamparina de um lado para o outro, observando os efeitos provocados pelas nuances de luz. Quando o fazia, tive um impulso de virar-me. E, ao fazê-lo, vi que um homem atravessava a sala em minha direção! Assim que chegou perto o suficiente para que a luz lhe iluminasse o rosto, vi que era o Dr. Mannering. Era como se o retrato estivesse vivo."

"'Perdão', falei, com certa frieza, 'mas se o senhor bateu, eu não ouvi.'"

"Ele passou por mim, a um metro de distância, ergueu o dedo indicador da mão direita, como se quisesse fazer-me uma advertência, e sem dizer palavra saiu da sala, embora eu não o visse sair — da mesma forma como não o vira entrar. Claro, nem preciso dizer-lhe que aquilo era o que você chamaria de alucinação e eu de aparição. Aquela sala tinha apenas duas portas, sendo que uma estava trancada. A outra dava para um quarto de dormir, que não tinha outra saída. O que eu senti ao dar-me conta disso não tem real importância para o meu relato."

"Para você, sem dúvida, tudo isso deve ser uma 'história de assombração' das mais comuns — construída com os elementos regulares usados pelos velhos mestres da arte. Se assim fosse, não a teria contado, mesmo sendo verdadeira. O homem não estava morto. Eu o encontrei hoje na Union Street. Passou por mim em meio à multidão.”

Hawver tinha terminado sua história e os dois estavam em silêncio. O Dr. Frayley tamborilava os dedos sobre a mesa, com ar ausente.

"E hoje ele falou alguma coisa?", perguntou. "Alguma coisa que o levasse a crer que não está morto?”

Hawver olhou-o sem responder.

"Talvez", continuou o Dr. Frayley, "tenha feito um sinal um gesto. Erguido o dedo, como se em advertência. É um tique que ele tinha — um hábito, sempre que dizia alguma coisa séria — quando anunciava o resultado de um diagnóstico, por exemplo.”

"De fato, ele fez isso, sim — exatamente como a aparição havia feito. Mas... Deus do céu! Você o conhecia?”

Hawver parecia cada vez mais nervoso.

"Conhecia, sim. Li seus livros, como todos os médicos acabam fazendo um dia. É uma das contribuições mais importantes e fundamentais para a ciência médica deste século. Sim, eu o conhecia. E o atendi quando estava doente, há três anos. Ele está morto.”

Hawver ergueu-se da poltrona, visivelmente perturbado. Começou a andar de um lado para o outro da sala. Depois aproximou-se do amigo e, com a voz trêmula, disse:

"Doutor, o senhor tem alguma coisa a me dizer... como médico?”

"Não, Hawver. Você é a pessoa mais saudável que conheço. Como amigo, aconselho-o a ir para seu quarto. Você toca violino como um anjo. Toque. Toque alguma coisa leve e alegre. E tire essa maldita história da cabeça.”

No dia seguinte, Hawver foi encontrado morto em seu quarto, com o violino em posição, o arco sobre as cordas partitura, à sua frente, aberta na marcha fúnebre de Chopin.


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas; ilustrações Mozart Couto. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

A Alucinação de Staley Fleming

De dois homens que conversavam, um era médico. 

"Mandei buscá-lo, doutor", disse o outro, "mas não acredito que possa ajudar-me. Talvez o senhor pudesse recomendar um especialista em problemas mentais. Acho que estou perdendo a razão.”

"Você parece tão bem", retrucou o médico.

"O senhor é que vai julgar. Estou tendo alucinações. Acordo todas as noites e vejo em meu quarto, olhando-me intensamente, um imenso cão terranova negro, com as patas da frente brancas.”

"Você diz que acorda. Tem certeza? Às vezes, aquilo que chamamos 'alucinações' não passa de sonhos.”

"Acordo, sim. Às vezes fico parado, por muito tempo, olhando para aquele cachorro, com o mesmo olhar intenso com que o animal me fita. E a luz está sempre acesa. Quando já não posso suportar, sento-me na cama... e então vejo que não há nada ali!”

"Hum... qual é a expressão do cão?”

"Parece sinistra. Eu sei que, exceto quando se trata de arte, a face de um animal em repouso tem sempre a mesma expressão. Mas esse não é um animal de verdade. Os terra-novas têm um olhar manso, o senhor sabe. O que será que há com esse?"

"Bem, quanto a isso, meu diagnóstico não teria importância. Não é do cachorro que vou tratar.”

O médico riu do próprio gracejo, mas ao mesmo tempo observava o paciente com o canto do olho. Até que falou:

"Fleming, a descrição desse animal combina com a do cachorro do falecido Atwell Barton.”

Fleming ameaçou levantar-se da cadeira, sentou-se de novo e, querendo mostrar indiferença, falou:

"Eu me lembro do Barton. Acho que ele... dizem que... não houve alguma coisa de suspeito em torno de sua morte?”

Olhando diretamente nos olhos do paciente, o médico disse:

"Há três anos o corpo de Atwell Barton, seu velho inimigo, foi encontrado na floresta, perto da casa dele e da sua. Ele fora esfaqueado e morto. Mas ninguém foi preso. Não havia provas. Algumas pessoas tinham 'teorias'. Eu tinha uma. E você?”

 "Eu? Bem, eu... Deus do céu, o que eu poderia saber do assunto? O senhor sabe muito bem que viajei para a Europa logo depois... quer dizer, algum tempo depois. Nas poucas semanas desde que voltei, não seria capaz de construir uma 'teoria', o senhor não acha? Na verdade, não pensei no assunto. Mas o que tem o cachorro dele?”

"Foi quem encontrou o corpo. E depois ficou montando guarda no túmulo, até morrer de fome.”


Nada sabemos sobre as leis inexoráveis das coincidências. Pelo menos Staley Fleming nada sabia, caso contrário não se teria erguido de um salto quando, através da janela, o vento da noite trouxe consigo o longo ganido de um cão, a distância. Andou de um lado para o outro na sala, sob o olhar fixo do médico. Até que, abruptamente e quase gritando, dirigiu-se a este:

"E o que tudo isso tem a ver com meu problema, Dr. Halderman? O senhor esqueceu a razão pela qual foi chamado?”

Levantando-se, o médico segurou o braço do paciente e, delicadamente, falou:

"Perdão. Não posso diagnosticar seu problema de antemão. Amanhã, talvez. Por favor, vá deitar-se e deixe á porta do quarto destrancada. Vou passar a noite aqui com seus livros. Pode me chamar sem levantar-se?"

"Posso. Tenho uma campainha.”

"Ótimo. Se vir alguma coisa, aperte o botão sem se sentar. Boa noite.”

Confortavelmente instalado numa poltrona, o médico ficou olhando as brasas brilharem enquanto se deixava levar por pensamentos profundos, mas aparentemente sem importância, já que por vezes levantava-se, abria a porta que dava para as escadas e ficava escutando atentamente. E em seguida voltava a sentar-se. Até que acabou adormecendo e quando acordou já passava da meia-noite.

Remexeu o fogo, apanhou um livro que estava na mesinha a seu lado e leu o título. Eram as Meditações, de Denneker. Abriu-o ao acaso e começou a ler:

"Porque embora tenha sido determinado por Deus que toda carne tenha espírito e, consequentemente, poderes espirituais, assim também o espírito tem o poder da carne, mesmo quando dela se desprendeu e vive como algo à parte, como muitas violências perpetradas por fantasmas e espectros têm comprovado. E há quem diga que isso não ocorre somente com o homem, mas que também os animais são movidos por tais propósitos maléficos, e que ..."

A leitura foi interrompida por um estrondo que sacudiu a casa, como a queda de um objeto muito pesado. O médico fechou o livro e saiu correndo, subindo as escadas em direção ao quarto de Fleming. Tentou abrir a porta, mas esta, contrariando suas instruções, estava trancada. Bateu-lhe com o ombro com tal força que a porta cedeu.

No chão, junto à cama em desalinho, vestido com a roupa de dormir, jazia Fleming, à morte.

O médico ergueu do chão a cabeça do moribundo, observando o ferimento em sua garganta.

"Devia ter previsto isto", disse, acreditando tratar-se de suicídio.

Quando o homem, depois de morto, foi examinado, notou-se que havia marcas visíveis das presas de um animal que se tinham cravado fundo na veia jugular. Só que não havia animal algum.


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas; ilustrações Mozart Couto. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

Final para um Conto Fantástico


— Que estranho! — disse a garota, avançando com cautela. — Que porta mais pesada, meu Deus! — E, ao falar, tocou-a e a porta acabou fechando-se de um golpe.

— Deus do céu! — disse o homem. — Não é que não tem maçaneta do lado de dentro? Agora estamos os dois trancados!

— Os dois, não — disse a garota. — Só você.

E passou através da porta e desapareceu.

Conto de I. A. Ireland (1)
Tradução de Flávio Moreira da Costa


Os Melhores Contos Fantásticos - Flavio Moreira da Costa (organizador) - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006


(1) I. A. Ireland, erudito inglês do século XIX (1871-?), publicou "A Brief History of Nightmares" (1899), entre outros livros. O conto mínimo, ou miniconto, escolhido é do livro "Visitations" (1919). Pequeno, mas suficientemente wit e metaliterário, a ponto de encantar Borges, que o incluiu na antologia fantástica que organizou com Bioy Casares e Silvina Ocampo. Leia e releia e veja se o mestre não tem razão.

A Cafeteira


Vi sob sombrios véus 
Onze estrelas nos céus, 
A lua, o sol também, 
Me reverenciando, 
E silenciando,
No meu sono e além. 

I

Ano passado fui convidado, junto com dois amigos de ateliê Arrigo Cohic e Pedrino Borgnioli, para passar alguns dias numa fazenda no interior da Normandia. O tempo, que, na nossa partida, prometia ser maravilhoso, resolveu mudar de repente, e caiu tanta chuva que os caminhos esburacados por onde andávamos eram como o leito de uma torrente.

Afundávamos na lama até os joelhos, uma camada espessa de terra gorda se grudara nas solas de nossas botas, e seu peso retardava tanto nossos passos, que só chegamos no nosso destino uma hora depois do pôr-do-sol. Estávamos exaustos; por isso, nosso anfitrião, vendo o esforço que fazíamos para reprimir os bocejos e manter os olhos abertos, tão logo acabamos de cear, nos mandou levar cada um a seu quarto.

O meu era grande; senti, ao entrar, uma espécie de calafrio, pois me parecia ter entrado em um mundo novo. De fato, tinha-se a impressão de estar na época da Regência, diante da bandeira da porta de Boucher representando as quatro estações, os móveis sobrecarregados de ornamentos rococó de muito mau gosto, e os tremós dos espelhos pesadamente esculpidos.

Nada estava fora do lugar. A penteadeira, coberta de caixas de pentes, de almofadas de pó-de-arroz, parecia ter sido usada na véspera. Dois ou três vestidos furta-cor, um leque pontilhado de lantejoulas em prata cobriam o assoalho bem encerado, e, para meu grande espanto, uma tabaqueira de esmalte aberta sobre a lareira estava cheia de fumo ainda fresco. Só notei essas coisas depois que o empregado, colocando o castiçal na mesa-de-cabeceira, me desejou um bom sono e, confesso, comecei a tremer como uma folha.

Despi-me prontamente, deitei-me, e, para acabar com tais temores bobos, logo fechei os olhos, virando-me para o lado da parede. Mas foi impossível ficar nessa posição: a cama se agitava sob meu corpo como uma onda, minhas pálpebras se retraíam violentamente. Fui obrigado a me virar e ver. O fogo que ardia lançava reflexos avermelhados no aposento, de maneira que se podia distinguir sem esforço os personagens da tapeçaria e os rostos dos retratos enfumaçados pendurados na parede. Eram os antepassados do nosso anfitrião, cavaleiros em armaduras de ferro, conselheiros de peruca e belas senhoras de rosto pintado e cabelos empoados de branco, segurando uma rosa na mão.

De repente, o fogo adquiriu um estranho grau de atividade, um clarão esbranquiçado iluminou o quarto, e vi claramente que o que eu tomara por vãs pinturas era a realidade; pois as pupilas desses seres emoldurados se moviam, cintilavam de forma singular; seus lábios se abriam e se fechavam como lábios de pessoas que falam, mas eu nada ouvia além do tique-taque do relógio e do assobio de vento de outono. Um terror incontrolável se apoderou de mim, meus cabelos se arrepiaram na testa, meus dentes se entrechocaram a ponto de quase quebrar, um suor frio inundou todo o meu corpo.

O relógio bateu onze horas.

A vibração da última badalada retiniu longamente, e quando cessou por completo...

Ah! não, não ouso dizer o que aconteceu, ninguém acreditaria em mim e me tomariam por louco. As velas se acenderam sozinhas; o fole, sem que nenhum ser visível lhe imprimisse movimento, pôs-se a soprar o fogo, chiando como um velho asmático, enquanto as pinças remexiam os tições e a pá revolvia as cinzas. Depois, uma cafeteira atirou-se da mesa sobre a qual estava colocada e dirigiu-se, mancando, para o fogo, onde se meteu entre os tições. Em alguns instantes, as poltronas começaram a se mover, e, agitando seus pés retorcidos de maneira surpreendente, vieram se acomodar em volta da lareira.

II

Não sabia o que pensar do que via; mas o que estava por ver era ainda mais extraordinário. Um dos retratos, o mais antigo de todos, de um gordo bochechudo de barba grisalha, parecido, a ponto de ser confundido, com a imagem que eu tinha do velho Sir John Falstaff, tirou, com uma careta, a cabeça de seu quadro, e, depois de muito esforço, tendo passado os ombros e a barriga rotunda por entre as estreitas hastes da moldura, pulou pesadamente no chão. Nem bem tomou fôlego e tirou do bolso de seu gibão uma chave de uma pequenez impressionante, soprou sobre ela, para se assegurar de que a cavidade estaria bem limpa, e a utilizou em todos os quadros, um após outro.

E todas as molduras se alargaram de modo a deixar passar facilmente as figuras que continham. Padrecos janotas; senhoras idosas, secas e amarelas; magistrados com aspecto grave, envoltos em grandes togas negras; jovens fidalgos de meias de seda, calções de lã preta, com a ponta da espada erguida; todos esses personagens apresentavam um espetáculo tão bizarro que, apesar do meu pavor, não pude deixar de rir.

Esses dignos personagens se sentaram; a cafeteira pulou agilmente para a mesa. Tomaram o café em xícaras japonesas de porcelana azul e branca, que acorreram espontaneamente de cima de uma escrivaninha, cada uma delas munida de um torrão de açúcar e uma colherinha de prata. Depois de tomado o café, xícaras, cafeteira e colheres desapareceram ao mesmo tempo e começou a conversa, certamente a mais curiosa que jamais ouvi, pois nenhum desses estranhos interlocutores olhava para o outro ao falar: todos tinham os olhos fixos no relógio. Eu mesmo não conseguia desviar o olhar do relógio e me impedir de seguir o ponteiro, que caminhava para a meia-noite a passos imperceptíveis.

Enfim, soou meia-noite; uma voz cujo timbre era exatamente o do pêndulo, fez-se ouvir e disse:

— Está na hora, é preciso dançar.

Toda a assembleia levantou-se. As poltronas recuaram por si mesmas; então, cada cavalheiro tomou a mão de uma dama, e a mesma voz disse:

— Vamos, senhores da orquestra, comecem!

Esqueci de dizer que o tema da tapeçaria era um concerto italiano de um lado, e do outro uma caça ao cervo na qual vários pajens tocavam trompa. Os picadores e os músicos, que até ali não haviam feito qualquer gesto, inclinaram a cabeça em sinal de assentimento. O maestro levantou a batuta, e uma harmonia viva e dançante ergueu-se dos dois lados da sala.

Dançaram primeiro o minueto. Mas as notas rápidas da partitura executada pelos músicos não combinavam com aquelas reverências graves; por isso, cada casal de dançarinos, após alguns minutos, pôs-se a fazer piruetas como um pião alemão. Os vestidos de seda das mulheres, amassados nesse turbilhão dançante, emitiam sons de natureza peculiar; dir-se-ia o barulho de asas de um voo de pombos. O vento que se engolfava por baixo os inchava prodigiosamente, de modo que pareciam sinos dobrando. O arco dos virtuoses passava tão rápido sobre as cordas, que jorravam centelhas elétricas. Os dedos dos flautistas se erguiam e baixavam como se fossem azougues; as bochechas dos picadores estavam infladas como balões, e tudo isso formava um dilúvio de notas e trinados tão apressados e de gamas ascendentes e descendentes tão intrincadas, tão inconcebíveis, que nem os próprios demônios seriam capazes de seguir tal compasso por dois minutos.

Portanto, dava dó ver todos os esforços daqueles dançarinos para acompanhar a cadência. Eles pulavam, davam cabriolas, faziam semicírculos com as pernas, realizavam jetés battus e entrechats de três pés de altura, a tal ponto que o suor, caindo-lhes da testa sobre os olhos, lhes tirava as pintas e a maquiagem. Mas seu esforço era inútil, a orquestra estava sempre três ou quatro notas a sua frente.

O relógio bateu uma hora; eles pararam. Vi algo que me escapara: uma mulher que não dançava. Estava sentada numa bergère no canto da lareira e não parecia de modo algum tomar parte no que se passava ao seu redor.

Nunca, nem em sonho, algo tão perfeito se apresentara aos meus olhos; uma pele de uma brancura deslumbrante, cabelos de um louro-acinzentado, longos cílios e pupilas azuis, tão claras e tão transparentes que através delas eu via sua alma, tão distintamente quanto uma pedra no fundo de um riacho. E senti que, se algum dia me acontecesse amar alguém, seria ela.

Precipitei-me para fora da cama, de onde até então não conseguira me mover, e me dirigi para ela, guiado por alguma coisa que agia em mim sem que eu pudesse me dar conta; e me vi junto a seus joelhos, uma das suas mãos nas minhas, conversando com ela como se a conhecesse há vinte anos. Mas, por um prodígio bem estranho, enquanto eu lhe falava, ia marcando com uma oscilação de cabeça a música que não havia cessado de tocar; e mesmo estando no cúmulo da felicidade por conversar com uma pessoa tão linda, meus pés ardiam de vontade de dançar com ela. No entanto, não ousava convidá-la.

Parece que ela compreendeu o que eu queria, pois, levantando para o mostrador do relógio a mão que eu não estava segurando, disse:

— Quando o ponteiro chegar ali, veremos, meu caro Théodore.

Não sei como ocorreu, não fiquei em absoluto surpreso ao ouvir ser assim chamado pelo meu nome, e continuamos a conversar. Enfim, a hora indicada soou, a voz com timbre de prata vibrou outra vez no quarto e disse:

— Ângela, você pode dançar com o cavalheiro, se lhe der prazer, mas sabe no que isso vai resultar.

— Pouco importa — respondeu Ângela, amuada. E passou o braço de marfim em volta do meu pescoço.

— Prestíssimo! — gritou a voz.

E começamos a valsar. O seio da jovem tocava o meu peito, sua face aveludada roçava a minha e seu hálito suave flutuava diante de minha boca. Nunca na vida sentira tamanha emoção; meus nervos estremeciam como molas de aço, meu sangue corria nas artérias como torrentes de lava e ouvia meu coração bater como um relógio preso as minhas orelhas. Entretanto, esse estado não tinha nada de penoso. Eu estava inundado de uma alegria inefável e gostaria de permanecer sempre assim, e, coisa admirável, ainda que a orquestra tivesse triplicado a velocidade, não precisávamos fazer esforço algum para segui-la. Os espectadores, maravilhados com a nossa agilidade, gritavam bravo e com toda a força batiam palmas, que não emitiam som algum.

Ângela, que até então valsara com energia e precisão surpreendentes, pareceu cansar-se de repente; pesava sobre meus ombros como se as pernas lhe tivessem faltado; seus pezinhos que, um minuto antes, roçavam o chão, só lentamente dele se desprendiam, como se estivessem carregados com um peso de chumbo.

— Ângela, você está cansada — disse-lhe eu. — Vamos descansar.

— Bem que eu gostaria — respondeu ela, enxugando a testa com o lenço. — Mas, enquanto valsávamos, todos se sentaram; só resta uma poltrona e nós somos dois.

— Que importância tem isso, meu anjo lindo? Vou colocá-la no colo.

III

Sem fazer a menor objeção, Ângela sentou-se, envolvendo-me com os braços como se fossem uma echarpe branca, escondendo a cabeça no meu peito para se aquecer um pouco, pois se tornara fria como mármore. Não sei por quanto tempo ficamos nessa posição, pois todos os meus sentidos estavam absorvidos na contemplação dessa misteriosa e fantástica criatura. Não fazia mais qualquer ideia da hora nem do lugar; o mundo real não existia mais para mim e todos os laços que me unem a ele tinham se rompido; minha alma, liberta de sua prisão de lama, nadava no vago e no infinito; eu compreendia o que nenhum homem pode compreender, os pensamentos de Ângela se revelando a mim sem que ela precisasse falar, pois sua alma brilhava em seu corpo como uma lâmpada de alabastro e os raios que saíam de seu peito traspassavam o meu de lado a lado.

A cotovia cantou, uma claridade pálida cintilou nas cortinas. Assim que Ângela a percebeu, levantou-se precipitadamente, deu-me adeus com um gesto e, após alguns passos, soltou um grito e caiu no chão. Tomado de assombro, acorri para levantá-la...

Meu sangue congela só de pensar: tudo o que encontrei foi a cafeteira quebrada em mil pedaços. Diante dessa visão, persuadido de que tinha sido o joguete de alguma ilusão diabólica, apoderou-se de mim tal pavor que desmaiei.

Quando voltei a mim, estava em minha cama, com Arrigo Cohic e Pedrino Borgnioli de pé a minha cabeceira. Assim que abri os olhos. Arrigo exclamou:

— Ah! Ainda bem! Há quase uma hora estou esfregando suas têmporas com água de colônia. Que diabo você fez essa noite? Hoje de manhã, vendo que você não descia, entrei no seu quarto e o encontrei estirado no chão, vestido à francesa, apertando nos braços um pedaço de porcelana quebrada como se fosse uma moça bonita.

— Por Deus! É a roupa de casamento de meu avô! — disse o outro, levantando uma das abas de seda de fundo rosa com ramagens verdes. — Vejam os botões de strass e filigrana dos quais ele tanto se vangloriava. Théodore deve tê-lo achado em algum canto e o vestiu para se divertir. Mas por que você se sentiu mal? — acrescentou Borgnioli. — Isso é coisa para uma amantezinha de ombros brancos; nós a pomos para descansar, tiramos seus colares, sua echarpe, e ela tem uma bela oportunidade para se fazer de dengosa.

— Foi apenas um desfalecimento que tive; sou sujeito a isso — respondi secamente.

Levantei-me, despojei-me de minha ridícula vestimenta. E depois, fomos almoçar. Meus três amigos comeram muito e beberam mais ainda; não comi quase nada, a lembrança do que se tinha passado me causava estranhas distrações. Terminado o almoço, como chovia a cântaros, não tivemos condição de sair e cada um se ocupou como pôde.

Borgnioli tamborilou marchas guerreiras nas vidraças; Arrigo e o anfitrião jogaram uma partida de damas; eu puxei do meu álbum um pedaço de pergaminho e me pus a desenhar. Os esboços quase imperceptíveis traçados por meu lápis, sem que eu sequer percebesse o que fazia, acabaram por representar com maravilhosa exatidão a cafeteira que desempenhara um papel tão importante nas cenas da noite.

— É impressionante como esse rosto se parece com a minha irmã Ângela — disse o anfitrião que, terminada a partida, me observava trabalhar por cima do meu ombro. De fato, o que ainda há pouco me parecera uma cafeteira era com toda a certeza o perfil doce e melancólico de Ângela.

— Por todos os santos do paraíso! Ela está morta ou viva? — exclamei num tom de voz trêmulo, como se a minha vida dependesse de sua resposta.

— Ela morreu há dois anos, de pneumonia, depois de um baile.

— Que pena! — respondi dolorosamente. E, contendo uma lágrima que estava prestes a cair, recoloquei o papel no álbum.

Acabava de compreender que não mais haveria para mim felicidade sobre a terra!


Conto de Théophile Gautier
Tradução de Pina Bastos


Os Melhores Contos Fantásticos - Flavio Moreira da Costa (organizador) - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006

Quando Deus nos Abandona


As vigorosas batidas que vinham da porta da cabana deixaram o coração de Thérèse em sobressalto. “Quando Deus nos abandona”, pensou Thérèse, “Lebourreau nos assoma.”

– Quem bate? – perguntou Thérèse, embora bem soubesse que Lebourreau, com a lanterna em punho, lançava a sua sombra maligna sobre os umbrais da pobre choupana.

Thérèse apertou ambos os filhos contra os seios, sentindo-lhes a respiração quente e irregular, típica dos moribundos devastados pela peste. E, arrastando-se como podia, recolheu-se ao ângulo mais remoto da parede. “Quando Deus nos abandona”, pensou Thérèse, “Lebourreau nos ilude.” O  vento, que se esgueirava pelas frestas de adobe, trouxe consigo a voz calma e melódica do velho mago:

– Deixe-me entrar. Trago-lhe boas-novas!

De Lebourreau dizia-se, em toda Valônia, que era um bruxo astuto e poderoso. Ouvira da mãe que aquele ente medonho habitava cemitérios desolados, onde há séculos praticava sortilégios. Amiúde comentava-se que,  nas noites de plenilúnio, o mago reunia-se com as bruxas e, de corpos nus, realizavam o sabá. “Quando Deus nos abandona”, dizia-lhe a mãe, “ele vem e nos ludibria!”

Há dois dias o pequeno Jean-Pierre corria livre pelos campos, gozando a imensidão das planícies e a luminosidade intensa do verão. Mas viera a peste, tão súbita quanto cruel, e, com o seu beijo nefando, cobrira o  corpo do garoto de pústulas negras e aquosas, cujo odor desagradável  entranhava-se no ar como se arauto da morte certa. E Cosette, com suas mãozinhas febris, não arredava dos seios maternos. Mas  a  menina  decompunha-se  ainda  viva.  Do  corpo  pequeno  e desconforme fluíam emanações mefíticas, tão nauseantes que somente a mãe podia suportar. Como  era avançado o estado de degeneração da criancinha! A enfermidade avançava célere naquele corpinho disforme. Cosette, silenciosamente, agonizava.

– Pobre Cosette – disse a mãe, beijando-lhe o rostinho cravejado de pústulas e de grosseiras ulcerações.

O vento trazia a voz melódica do velho bruxo:

–Deixe-me entrar. Ainda há esperanças. Trago-lhe uma esperança que o seu Deus esqueceu-se de lhe ofertar.

Jean-Pierre também morreria. Assim como aqueles cruzados que retornaram de Jerusalém. Mais algumas horas e todas as ulcerações eclodiriam num ruído surdo, salpicando, à pressão incontrolável da febre sempre crescente, o líquido asqueroso na atmosfera impregnada de humores deletérios. O corpo, lacerado por ilhas de carne viva, precipitar-se-ia para uma tonalidade roxo-escura e, então, viria a inexorável decomposição da pele, da carne e das entranhas. E Cosette, agora, sangrava por todos os orifícios. Também – e principalmente – pela abertura do olho que lhe faltava. O outro era morto e oboval, projetado para fora como o de um camaleão.

Cosette nascera cega, corcunda e coxa. Pobre Cosette, condenada pelo Senhor a deambular desgraciosamente pelas planícies pedregosas da Valônia, fazendo de sua muleta uma bengala, e, de ambas, a sua sina, enquanto, curvada ao peso da corcova, estendia as mãos implorando migalhas dos viajantes. Não! Melhor assim. Melhor que o bom Deus ceifasse, desde já, um futuro tão hediondo!

– Entre – respondeu, finalmente, Thérèse.

A porta da choupana se abriu. O vento gemeu e rodopiou nas úmidas paredes de adobe. O mago entrou. Trazia numa das mãos uma lanterna que lhe iluminava a sobrepeliz carmim e o capuz escarlate. O luzeiro iluminou-lhe as faces cavernosas. Thérèse tremeu de pavor. O mago continuou, com sua voz mansa, que lhe escapava das ranhuras de uma fileira de dentes amolados:

– Tenho uma proposta.

– Leve-me. Mas cure os meus filhos.

– Não, não a quero. Quero Cosette. Quero a pequena.

– O que ganharei em troca?

– Jean-Pierre viverá.

Thérèse ponderou. Entregou a pequena.

– Decisão sábia – redarguiu o homem com gravidade. E acrescentou, piscando maliciosamente um olho de coruja:

– De que lhe serviria uma criança aleijada, se sobrevivesse?

Após uma pausa – uma longa e meditativa pausa –, o bruxo concluiu, prazerosamente, com as garras em riste para Cosette:

– Hoje sinto uma grande fome. Arranjar-me-ei bem com ela.

O mago mergulhou a criança nas rubras abas de sua sobrepeliz e saiu. Atrás de si ficou o farfalhar monótono de uma capa escarlate, sibilante ao vento que se decompunha em silêncio e se fazia silêncio, enquanto a solidão, coroada pelo desespero, ficava irremediavelmente para trás. Então, nesta mesma solidão, que era a imensidão de um casebre, um arrependimento cruciante reverberou na alma de Thérèse.

Cosette! A pequena e indefesa Cosette! Não seria justo que a peste a levasse, com seu corpinho repulsivo e disforme, para os campos sepulcrais? Não seria melhor assim? Se é que esta era a vontade de Deus, haveria por que se rebelar? Cosette já estava morrendo. Morrendo irremediavelmente. Mas entregar Cosette aos dentes anavalhados daquela coisa imunda... Saciar a sede e a fome de tão abjeta criatura com as vísceras e o sangue inocente de sua filha... “Quando Deus nos abandona, Lebourreau vem para nos tentar e iludir...”

– Meu Deus, o que eu fiz? – bradou Thérèse, na fria escuridão de seu antro.

Thérèse arremessou contra a noite. Ganhou os campos e as planícies, clamando pela filha. Atirou-se violentamente aos bosques, caminhando sobre as sendas que se abriam ao fluxo luzidio do luar. E quando finalmente amanheceu e já retornava a casa, corroída pela densidade de um remorso seco e cáustico, Thérèse vislumbrou, ao longe, algo oscilar ao sabor da brisa matinal. Era um trapo. Era o corpinho de sua filha. A garota fora  empalada num galho que, inclinado, deitava reverência ao chão. Traspassada pelo dedo arguto de um arbusto, Cosette trazia a garganta dilacerada por dentes tumultuosos e exibia, mais abaixo, o ventre rasgado por unhas longas e pontiagudas. Restos de entranhas, revolvidas e despedaçadas, estavam derribados ao solo forrado de folhas mortas. Mas algo de surpreendente acontecera! O corpinho de Cosette ganhara uma nova conformação. Dois belos olhos azuis, que poderiam perfeitamente enxergar, agora reluziam na face miúda e bela. A corcova desaparecera e a perna atrofiada recompusera-se em substância e perfeição.

– Lebourreau a consertou, antes de matá-la. Lebourreau ajeitou a minha  menina só para  devorar-lhe o sangue e algo doce de suas entranhas. Pobre Cosette! – Thérèse balbuciou, enquanto a pequena mão de Cosette, impelida talvez pelo vento ou mesmo por uma força sobrenatural, tão obscura quanto extraordinariamente absurda, buscava, pela última vez, o calor do seio materno. Thérèse gritou ao sentir que a mãozinha do cadáver comprimia tenazmente o seu peito. Sentiu que as pernas arqueavam. Que a mente refluía. Que a boca beijava o chão.

Quando voltou a si, depois de um longo pesadelo – que, àquelas alturas, lhe sabia aos lábios como belos sonhos –, seguido de um desfalecimento negro e espesso, já anoitecia.

Foram os gritos de Jean-Pierre que trouxeram Thérèse de volta à consciência. Sim, Jean-Pierre clamava, não muito longe. Gritava pela mãe, Jean-Pierre. E como  gritava! E como eram saudáveis os seus pequenos pulmões, antes impregnados de peste e purulência! Jean-Pierre estava  vivo. Escapara milagrosamente à morte certa. Lebourreau cumprira a sua promessa... “Quando Deus nos abandona, Lebourreau...”

Pôs-se, então, a mulher a correr. Percorreu as sendas com os olhos enevoados por lágrimas tão densas que afundavam nas órbitas e se recusavam a cair. Por um momento, esqueceu-se completamente de Cosette. Teria Jean-Pierre só para si. Teria Jean-Pierre curado, livre da febre e das pústulas nauseantes. Vivo de novo. Novamente vivo e saudável!

“... Lebourreau... nos ajuda!”

Ao chegar à clareira, viu que Jean Pierre equilibrava-se, como um bêbado, à porta da choupana de adobe. O garoto escapara à peste. Mas...

O garoto caiu.

Thérèse parou. Um choque. Seus pelos se eriçaram como se atraídos por uma auréola magnética. Uma auréola que os santos recusam e que os demônios impõem. E um frio violento, vindo de suas trôpegas entranhas, sacudia-lhe o corpo e enredava-lhe a alma infeliz, enquanto ouvia o garoto gritar.

“De que lhe serviria uma criança aleijada, se sobrevivesse?” A voz do mago fulminou a mente de Thérèse, que foi ao chão, com o corpo dominado por longos e dolorosos espasmos.

– Mãe! Mãe, estou cego! – bradava Jean-Pierre.

Thérèse, antes de contorcer-se na lama, vira que o olho direito de Jean-Pierre já não mais existia. E, com pavor, reparara que o olho esquerdo do pequerrucho, sujo e embaçado, saltava-lhe da órbita qual um ovo grotesco.

– Eu não posso andar! – urrava desesperadamente o menino, irremediavelmente coxo e esmagado por uma corcova medonha, uma intumescência que lhe vergava o dorso deformado e lhe estufava o peito à semelhança de um pombo monstruoso.

À semelhança da pequena Cosette!


Histórias Nefastas - Paulo Soriano - Ed. Corifeu, 2008

O Ressuscitado


Eu vi Lázaro retornar dos Vales das Sombras. Vi com os meus olhos. Sob a ordem do Rabi, removemos a grande pedra, e o olor deletério, expulso do intestino da gruta, foi como um murro no estômago. Retrocedi de asco e de pavor.

O Rabi dissera: “Lázaro, vem para fora.” Com os pés e as mãos atados ao sudário, o defunto saiu, desajeitado como uma enguia em terra, arrastando-se pela superfície áspera e pedregosa de seu túmulo.

Os que se seguiram ao retorno de Lázaro foram dias tensos. Ele caiu num mutismo desesperador. Supúnhamos que Lázaro não gostara nada da experiência da morte. Seus olhos transpiravam os horrores que se ocultavam na eternidade prometida. Era evidente que Lázaro não gostaria de a ela retornar.

Certa feita, Lázaro desaparecera. Fora encontrado nas cercanias da herdade, babando como um lunático e rasgando, com os dentes que ainda lhe restavam, o tenro abdome de uma gorda ratazana.

Com que avidez Lázaro, meu patrão, sugava e extraía, alucinadamente,  do ventre do animal, o seu alimento! Lembro-me bem: era véspera do Sabá, e Marta e Maria haviam deixado Betânia às pressas, condoídas pela notícia da prisão do Rabi.

À terceira hora, quando o solo tremeu (a partir de Jerusalém, porque era morto, naquele instante, o Senhor), os serviçais viram um Lázaro alucinado. O homem lacerava as vestes e se contorcia de dor. Sua tez estava pálida e de sua fronte escorriam grossas bagas de um líquido fétido e viscoso. E, das mãos e dos pés sudorosos, vi que fluía uma substância deletéria, de tonalidade verde-musgo. Os suores eram de uma pestilência pungente, que enodoava os grossos lençóis e infiltrava-se até nas ranhuras do chão de ladrilho.

Então, num átimo, Lázaro gritou. Gritou porque suas carnes, de tão podres, se rasgavam; e sua alma, de tão aterrorizada, retornava ao Sheol, de onde nunca deveria ter-se evadido.

Eu, Levi, filho de Benjamim, fui o único que se atreveu a recolher a massa pestilenta em que se convertera o cadáver do ressuscitado.


Histórias Nefastas - Paulo Soriano - Ed. Corifeu, 2008

Aquele que Venceu a Guilhotina


As execuções na vila de Mariano César aconteciam à noite. Lá, a guilhotina já havia separado cinco cabeças de seus corpos, numa única noite. Mas a história da execução de Miguel Verde fugiu à normalidade.

Não me recordo bem o crime que Miguel cometera, contudo me recordo vivamente de sua execução por dois motivos: o primeiro porque fui seu carrasco. O segundo, em que pese ser inacreditável, é verdadeiro e lhes narro ainda sobressaltado.

Seria a única execução da noite. Uma ventania nunca vista antes fustigava os cabelos e as roupas das testemunhas que apareciam para ver o cumprimento da sentença. Quando a carroça parou, o outro carrasco ordenou que o condenado descesse para depois subir ao patíbulo. Miguel trazia uma mordaça à boca e vestia somente uma calça deveras rota. As mãos estavam amarradas atrás das costas e o pescoço com grossos lanhos perceptíveis mesmo a pouca luminosidade.

Junto à população e a alguns guardas, o comandante da execução, major Ruiz, perguntou-o se desejaria algo desta vida antes de morrer. Verde meneou a cabeça afirmativamente. Então, o major me mandou tirar a mordaça para que aquele pudesse falar.

- Desejo que após a execução, a vila me considere como um homem livre; que tenha pagado sua dívida com a sociedade. Não desejo mais ser importunado por ninguém – solicitou Miguel Verde.

O major Ruiz riu-se placidamente e virando-se para as pessoas presentes, cuja quantidade grassava, falou:

- A lei não proíbe que após as execuções, os condenados sejam considerados livres, meus senhores. Também é demonstração da piedade que nossa vila pode oferecer. Para mim não há problema. Assim, peço que se alguém se opuser, fale agora.

Todos mantiveram o silêncio.

Então o major determinou, valendo-se de um tom jocoso:

- Após a execução, o estafermo será perdoado.

As pessoas presentes riram pelo adjetivo dispensado ao condenado. Ainda assim, Miguel Verde curvou sua cabeça em agradecimento. A mesma cabeça que seria decapitada! Em seguida, recoloquei a mordaça e dei-lhe voz de comando para aboletar seu pescoço no vão de madeira por onde a lâmina passaria, no que prontamente obedeceu. Enquanto o outro carrasco o vigiava, fechei o madeiro superior envolta do pescoço de Miguel, travando-o com dois ferrolhos inalcançáveis por suas mãos.

Ao sinal do major, soltei a corda que sustinha a afiadíssima lâmina.

O som da morte reboou pela vila. A execução havia terminado, porém algumas pessoas gritaram horrorizadas. Distingui quando uma voz senil e trêmula, esconsa no meio dos espectadores, berrou um premonitório “Santo Deus, isso é impossível”.

Rapidamente compreendi que algo dera errado na execução. Não havia sangue no estrado e o cesto que aparava as cabeças decapitadas estava vazio. Maquinalmente, eu olhei para o decapitado que se mantinha imóvel, a não ser pelo sorriso que estampava por trás da mordaça. A lâmina passara pela sua garganta e ele não produzira um espasmo muscular sequer. O homem havia sobrevivido à execução pela guilhotina. Apavorado, eu me perguntava como.

A despeito dos gritos aterrados da população, o outro verdugo não havia percebido que a guilhotina fora vencida.

Enquanto o major Ruiz olhava incrédulo para o cadafalso, Miguel Verde, num movimento medonho, levantou-se lentamente. Seu pescoço transpassara o madeiro que o segurava.  Já havia desatado o nó das mãos e soltado a mordaça. Então olhou para o público, cujas colunas vergavam-se para trás por puro assombro, e disse:

- Enforquei-me há algumas horas e escondi meu corpo debaixo da cama, na cela. Agora sou uma alma livre, já que nada mais devo a vocês. Enterrem-me dignamente!

Em seguida, o fantasma pulou do estrado para o chão, espantando um sem-número de pessoas, e encetou um caminhar rápido para a saída da vila. Perturbadoramente, seu corpo foi se tornando mais e mais diáfano até desaparecer por completo.

Por ordem do major, alguns guardas diligenciaram à cela onde o condenado estava detido e encontraram seu cadáver com uma corda presa ao pescoço, sob o catre.


Autor: Pedro Pantoja / Ilustração: Ramon Rodrigues (xilografia)


O Autor e a Pintura


A loja de antiquários da Rua Itapecerica tinha o mesmo cheiro dos velhos casarões e das igrejas de Ouro Preto ou de Lisboa. Alguns santos quebrados, uma velha mobília, castiçais e quadros empoeirados ainda conservavam os mesmos aspectos de séculos passados.

Com a ponta do dedo indicador, eu examinava alguns quadros de onde uma aranha solitária se deslocava, através de sua teia, indo parar numa mobília de jacarandá.

– Bonita peça! Verdadeira relíquia – falei balançando a cabeça.

Aproximou-se de mim uma moça de braços e pernas volumosos, trajes escuros, folgados, soltos, e um pano de seda vermelho sobre o pescoço indo até os seios. Portava no rosto um sorriso de falsa cigana e ares de libanesa disfarçada.

– Esta cristaleira faz parte do conjunto da sala de jantar – disse, emoldurando mais ainda o sorriso. – E não custa tão caro... e podemos parcelar... e é um conjunto raríssimo... e pertenceu a um bispo... e vale a pena... e...

Minha mente lutava contra os sons e embustes de suas palavras, mas elas foram tão convincentes, tão cheias de sorrisos que venceram. Fiz o pagamento.

Passaram-se alguns dias e a mobília chegou.

Aos poucos fomos desembalando cada peça com muito cuidado. A sala, devagar, ia se compondo e tomando ares de nobreza imperial.

Tocava cada curva do mobiliário, cada florão, ainda pensando na falsa cigana.

– Só falta a mesa – comentei com a esposa, segurando o tampo superior. Repentinamente, senti, entre o tampo e a parte que o apoia, alguma coisa – um quadro. Retiramo-lo. Era  uma pintura de um galo em pose de briga. Sua cor viva contrastava com os azuis, vermelhos e amarelos de nossa sala. Ela sugeriu que o devolvêssemos, mas quando me lembrei do preço que paguei por aquele sorriso falso, desisti da ideia.

– Se veio da mobília, da mobília é e será – respondi com ênfase, tentando fazê-la concordar. Aceitou e o quadro foi para a parede.

O tempo ficou estagnado enquanto admirávamos as cores e formas daquela obra de arte. Não conseguimos ler o nome do autor. Sua assinatura estava confusa: um risco na vertical que seguia pela horizontal com traços indecifráveis.

Os ponteiros do relógio passavam rapidamente e fatos estranhos começaram a fazer parte do nosso cotidiano: barulho de passos miúdos, marcas nos móveis e a constante impressão de estarmos sendo vigiados.

À noite ouvimos o cachorro latir. Pela manhã houve pausa de minutos para o espetáculo horripilante: encontramos o corpo do cão coberto de sangue e dilacerado por algum objeto cortante. Segundo a polícia, o animal fora vítima de um objeto como um pequeno tridente, ao mesmo tempo por outro que se assemelhava a um alicate que produzisse o efeito de segurar, rasgar e puxar.

Minhas madrugadas se transformaram em sons de slept, slept dos meus chinelos – verdadeiro passeio da sala para cozinha, da cozinha para o quarto. Eu olhava para a mobília e ela olhava para mim, olhava para o quadro e ele ficava me olhando.

Os dias se mesclavam com noites sem dormir.

Na redondeza, mais animais eram atacados pelo estranho ser. Coincidentemente, todos os casos ocorreram a uma distância de menos de quinhentos metros da minha residência, o que me deixou apreensivo.

Tais ocorrências poderiam sair da minha própria casa? Seria eu, em momentos de insanidade mental, o autor de tais atos? Ou a minha própria mulher?

Obcecado pela ideia, passei a tomar chá para não dormir e mantinha uma vigilância constante revezada com a esposa.

“A vida coloca a nu o instinto deplorável ou aceita o basta final destas atrocidades”, eu disse com convicção e desafio para mim mesmo.

Dias depois.

“Ainda tenho na pele o contato físico que houve com aquele corpo. Ainda trago na lembrança as marcas daquele dia.”

Estava, à noite, quase dormindo (era o dia da vigília feminina) quando ouvi gritos: era minha companheira. Barulho de asas batendo, cadeiras no chão, gritos.

Vejo um enorme galo em luta corporal com a mulher. Seu bico, como alicate, rasgava sua pele. Ao mesmo tempo, com uma selvageria total, suas esporas cortavam como os três ganchos de um tridente.

Seu tamanho colossal impunha pavor, mas a convicção e o desafio fizeram com que eu apanhasse uma adaga e jogasse meu corpo contra o dele. Foi quando percebi que não havia nada no quadro da parede. O galo tinha saído do campo de imaginação da pintura e se materializado na vida real. Era uma transmutação de espaço e matéria. No lado esquerdo, perto da cristaleira, ela comprimia as mãos contra o rosto esbraseado. O sangue escorrendo sobre a blusa branca, o lábio gretado e as mãos em carne viva, mais o choro soluçado entre o arfar da respiração, isso denotava o pavor que a cena proporcionava.

A luta continuou até que os ponteiros se encontraram, à meia-noite, e ele retornou para o seu lugar de origem – o quadro.

Não perdendo mais tempo, peguei o castiçal e, com o pedaço de vela que ainda chamejava, ateei fogo na pintura. Enquanto a imagem ardia entre as labaredas, tal como herege do século XIII na fogueira, pudemos então, nitidamente, ler o nome do artista: Lúcifer.

Por Roberto Márcio Pimenta


sexta-feira, 15 de julho de 2016

O Bracelete de Cabelos Cadavéricos

Eu ia de Estrasburgo às caldas de Louesche e passava por Basileia – dizia-nos o Sr. Alliette –, onde devia largar o coche público e alugar uma carruagem. 

Chegando ao Hotel da Coroa, que me haviam recomendado, procurei uma carruagem e pedi ao dono do hotel que procurasse saber se alguém da cidade queria fazer a mesma viagem que eu. Nesse caso, incumbi-lhe propor a essa pessoa uma associação que tornaria menos dispendiosa e agradável a viagem.

À noite, ele voltou, tendo achado o que lhe havia eu pedido. A mulher de um comerciante, que acabava de perder um filhinho de três meses, a quem ela própria amamentava, tinha, em consequência dessa perda, adoecido, e haviam lhe aconselhado as caldas de Louesche. Era seu primeiro filho e estava casada havia um ano.

Muito lhe tinha custado resolver-se a separar-se de seu marido. Venceram-na, porém, as exigências da sua saúde, que a obrigavam a ir às caldas, e as necessidades do comércio, que exigiam a presença do marido em Basileia. Partiu, pois, comigo no dia seguinte, acompanhada só por uma criada.

Um padre católico, cura de uma aldeola vizinha, tomou o quarto lugar.

No dia seguinte, pelas oito horas da manhã, a carruagem veio receber-me. O padre já se achava nela. Entrei, e fomos receber a senhora e sua criada.

Do interior da carruagem assistimos à despedida do casal que, começada no interior da casa, continuou na loja e só acabou na rua. Sem dúvida tinha a mulher algum pressentimento, pois não podia consolar-se. Parecia que, em vez de partir para uma viagem de cinquenta léguas, partia para dar a volta ao mundo.

O marido parecia mais calmo do que ela. Todavia, estava mais taciturno do seria razoável em uma separação como aquela.

Partimos, por fim. Eu e o padre tínhamos cedido os dois melhores lugares à senhora e à sua criada; estávamos, pois, na frente, e elas no fundo.

Tomamos a estrada de Soleure, e no primeiro dia fomos dormir em Mundischwyll. Durante todo o dia, a nossa companheira havia-se mostrado inquieta e atormentada. À noite, vendo um coche que voltava para Basileia, queria tomá-lo e retornar para casa. Sua criada conseguiu convencê-la a continuar a viagem.

No dia seguinte, pusemo-nos a caminho pelas nove horas da manhã. A jornada seria pequena, pois só devíamos ir a Soleure. Pela tarde, quando íamos avistando a cidade, a nossa enferma estremeceu.

– Ah! – disse.  – Pare!  Estão nos perseguindo!

Inclinando-me, olhei por fora da portinhola.

– A senhora está enganada – disse. – A estrada está perfeitamente desocupada.

– É estranho – insistiu. – Estou ouvindo o galope de um cavalo. Julguei não ter olhado bem. Debrucei-me mais para fora da carruagem.

– Ninguém, senhora – disse-lhe.

Ela mesma quis olhar e viu, como eu, que a estrada estava deserta.

– Eu me enganei – disse-me ela, recostando-se no fundo da carruagem e fechando os olhos, como uma mulher deseja concentrar em si mesma toda a sua reflexão.

Pusemo-nos a caminho na manhã seguinte, bem cedo, pois devíamos ir a Berna. À mesma hora que na véspera – isto é, pela volta das cinco horas –, nossa companheira saiu da sonolência em que estava sepultada e, estendendo os braços para o cocheiro, exclamou:

– Pare!  Desta vez eu estou certa que alguém está nos perseguindo.

– Está enganada, senhora – respondeu esse homem. – Só vejo três camponeses que acabam de cruzar-se conosco, e que vão seguindo o seu caminho.

– Ora, estou ouvindo o galope de um cavalo!

Essas palavras eram proferidas com tanta convicção que não pude deixar de olhar para trás da carruagem. Como na véspera, a estrada estava de todo deserta.

– É impossível, senhora – respondi. – Não vejo cavaleiro algum.

– Como o senhor não vê o cavaleiro, se eu vejo a sombra de um homem e de um cavalo?

Olhei na direção da sua mão e, com efeito, vi a sombra de um homem e de um cavalo. Em vão, porém, procurei pelos corpos que projetavam essas sombras. Fiz com que o padre reparasse nesse singular fenômeno. O clérigo persignou-se. Pouco a pouco essa sombra foi-se esvaecendo, tornando-se menos visível. Finalmente, desapareceu completamente.

Entramos em Berna. Todos esses presságios pareciam fatais à pobre mulher. Dizia continuamente que queria voltar; todavia, continuava o seu caminho. Como resultado da inquietação do seu espírito, ou do progresso natural de sua enfermidade, ao chegar a Thun, ela, de tão debilitada que estava, somente pôde continuar a sua viagem de liteira. Assim atravessou o Kander-Thal e o Gemmi.

Ao chegar a Louesche, irrompeu uma erisipela e, por mais de um mês, ela permaneceu cega e surda. De toda sorte, os seus pressentimentos não a tinham enganado.

Mal havíamos caminhado vinte léguas, o seu marido, em Basileia, fora acometido de uma febre cerebral. Tão rápidos progressos fez a doença que, sentindo nesse mesmo dia a gravidade de seu estado, o marido mandou um homem a cavalo dar a notícia à sua mulher, pedindo-lhe que voltasse. Mas, entre Lauffen e Breinteinbach, o cavalo tropeçou, derrubando o cavaleiro, que, na queda, bateu com a cabeça numa pedra e ficara recolhido em uma estalagem, sem nada poder fazer por quem o enviara, a não ser adverti-lo do acidente que sofrera.

Então o marido despachou outro mensageiro. Sem dúvida, porém, sobre eles pesava alguma fatalidade. Na extremidade de Kander-Thal o emissário deixou a montaria e tomou um guia para subir o Schwalbach, que separa Oberland do Valais. Mas, em meio-caminho, uma massa de neve, desprendendose da montanha, o soterrara. Neste ínterim, a enfermidade do marido fazia terríveis progressos. Haviam-lhe raspado a cabeça, que tinha bastos e compridos cabelos, para aplicar-lhe gelo no crânio. Daí por diante, o moribundo não mais conservou qualquer esperança.

Em um momento de tranquilidade, escrevera à mulher:

“Querida Bertha. Estou morrendo; não quero, porém, separar-me de todo de ti. Manda fazer um bracelete com os cabelos que me acabam de cortar. Nunca o tires do braço; parece-me que assim sempre estaremos juntos. Teu Frédérick.”

Depois entregara essa carta a outro emissário, a quem ordenara que partisse logo que o visse morto. Isso aconteceu nessa mesma tarde, e uma hora depois, o mensageiro partiu. Mais feliz do que os seus predecessores, em cinco dias chegou a Louesche. Porém, encontrou a mulher cega e surda.

Somente um mês depois, graças à eficácia das caldas, essa dupla enfermidade começou a desaparecer. Só daí a um mês, tiveram a coragem de dar-lhe a notícia, para a qual aquelas diversas visões a haviam preparado. Permanecera nas caldas, para se restabelecer de todo, por mais um mês. Finalmente, após três meses de ausência, voltou a Basileia.

Como eu igualmente concluíra o meu tratamento – pois o que me levara às caldas fora reumatismo, de que já me achava aliviado –, pedi-lhe licença para acompanhá-la, o que ela aceitou com gratidão, pois em mim encontrava alguém com quem podia conversar acerca de seu marido, que eu mal entrevera no momento da partida, mas que, enfim, vira. Deixamos Louesche e, na noite do quinto dia, estávamos de volta a Basileia.

Nada foi mais triste e mais doloroso do que a volta dessa pobre viúva para sua casa.

Como os dois jovens cônjuges não tinham família, morto o marido, haviam fechado a loja: o comércio cessara como fenece o movimento de um pêndulo, quando acaba a corda. Chamou-se o médico que havia assistido o enfermo, as diversas pessoas que tinham estado presentes nos seus últimos momentos e com as suas informações, pôde a pobre mulher recompor essa agonia, reconstruir essa morte já esquecida pelos corações indiferentes. Perguntou-lhes, enfim, pelos cabelos que seu marido lhe havia legado. O médico recordou-se de tê-los mandado raspar, o barbeiro de ter cumprido a ordem. De nada mais se lembravam: os cabelos não haviam sido guardados. Estavam perdidos.

A viúva ficou desesperada: esse único desejo do moribundo, de que levasse no braço uma pulseira de seus cabelos, era, pois, impossível de realizar. Muitas noites se passaram, noites profundamente tristes, durante as quais a viúva, sozinha em sua deserta casa, mais parecia uma sombra do que um ente vivo. Assim que deitava, ou, antes, assim que adormecia, sentia o seu braço direito cair entorpecido, e acordava no momento em que esse torpor se estendia até o coração. Ele começava no punho, no lugar exato em que deveria estar a pulseira de cabelos, e onde sentia uma pressão igual à de um bracelete de ferro muito apertado.  E do punho, como dissemos, o entorpecimento ia-se estendendo até o coração.

Era evidente que o morto manifestava seu descontentamento por suas últimas vontades terem sido tão mal executadas. A viúva compreendeu que esses pesares vinham de além-túmulo. Resolveu mandar abrir a cova e, se a cabeça de seu marido não houvesse sido de todo raspada, procurar nela cabelo o suficiente para realizar aquele derradeiro desejo.

Portanto, sem dizer a ninguém os seus projetos, mandou chamar o coveiro. Todavia, o coveiro que havia enterrado o marido estava morto e o seu sucessor, que assumira a função há apenas quinze dias, não sabia o lugar da sepultura. Esperando uma revelação – ela, que pela duplicação da aparição do cavalo, do cavaleiro, pela pressão do bracelete, tinha o direito de acreditar em prodígios –, dirigiu-se sozinha ao cemitério, sentou-se em um cômoro coberto da relva verde e vivaz, como costuma crescer sobre os túmulos, e aí invocou algum novo sinal que a guiasse nas suas buscas.

Um funéreo quadro estava pintado na parede desse cemitério. Os seus olhos fitaram-se na Morte, nessa figura ao mesmo tempo sarcástica e terrível. Pareceu-lhe, então, que a morte levantava o braço descarnado e, com o ossudo dedo, apontava-lhe um túmulo entre as derradeiras sepulturas.

Para ela dirigiu-se a viúva e, quando lá chegou, pareceu-lhe ver com nitidez a Morte deixar cair o braço, e voltar à sua primitiva posição. Marcou então com um sinal a sepultura, foi procurar o coveiro e trouxe-o ao lugar designado, dizendo-lhe:

– Cava. É aqui. Eu assisti a essa operação. Queria acompanhar essa maravilhosa aventura até o fim.

O coveiro obedeceu. Ao atingir o caixão, ele ergueu a tampa.  A princípio, hesitara.  Mas a viúva lhe dissera, com firmeza:


– Abre. É o caixão do meu marido. Ele obedeceu, pois aquela mulher sabia inspirar em quem a ouvia a confiança que ela tinha em si mesma.

Apareceu, então, uma coisa milagrosa, e que eu vi com os meus próprios olhos. Não só o cadáver era o do seu marido, não só esse cadáver, afora a palidez, estava tal qual fora ele enquanto vivo, como até, depois que haviam sido raspados – isto é, desde o dia de sua morte –, os cabelos tinham crescido tanto que saíam como raízes por todas as fendas do caixão.

Então a pobre mulher inclinou-se para aquele cadáver que parecia apenas adormecido, beijou-lhe a testa, cortou uma mecha desses compridos cabelos, tão prodigiosamente crescidos na cabeça de um defunto, e mandou fazer um bracelete. Desde então, o entorpecimento noturno cessou.

E sempre que estava na iminência de sofrer um grande perigo, a viúva sentia uma suave pressão, um apertar amigo que lhe dizia que tomasse cuidado...


A Cabeça Decepada e Outros Contos de Terror - Alexandre Dumas - Triumviratus 2015

A Cabeça Decepada

– Eu acabava de sair da Abadia e atravessava a praça de Taranne para ir à rua de Tournon, onde morava – contou-nos o Sr. Ledru –, quando ouvi um grito de mulher pedindo socorro. Não podiam ser malfeitores, pois ainda não seriam dez horas da noite. 

Corri para onde ouvira os gritos e, ao clarão da lua, que saía de uma nuvem, vi uma mulher a debater-se em meio a uma patrulha de sans-culottes. A mulher também me viu e, percebendo pelos meus trajes que eu não era de todo um homem do povo, correu em minha direção, exclamando:

– Ah, felizmente aqui está o Sr. Albert, a quem conheço. Ele confirmará que eu sou realmente filha da lavadeira Ledieu.

E ao mesmo tempo a miserável, completamente pálida de trêmula, agarrou-se a mim como um náufrago à tábua de salvação.

– Ainda que sejas a filha da lavadeira Ledieu, não tens carta de civismo. Minha jovem, terás que me acompanhar ao corpo da guarda – disse um dos patrulheiros.

A moça apertou-me o braço. Senti quanta súplica, quanto terror havia naquele gesto. Compreendi tudo. Como ela havia-me chamado pelo primeiro nome que lhe ocorrera, chamei-a pelo primeiro nome que me passou pela cabeça:

– Como!  És tu, minha pobre Solange? – eu disse. – Então, o que te aconteceu?

– Ah, estão vendo, senhores? – tornou ela. – Bem, parece-me que nos poderias chamar cidadãos.

– Ouça, senhor sargento:  não é culpa minha se falo assim – disse a moça. – Minha mãe tinha fregueses da alta sociedade e ensinou-me a ser polida. De modo que adquiri esse mau costume, bem sei, esse costume da aristocracia. Mas – o que quer, senhor sargento? – não consigo perdê-lo.

Havia nessa resposta, dada com a voz trêmula, um imperceptível escárnio, que somente eu pude perceber. E perguntava a mim mesmo quem seria aquela mulher, o que era, aliás, um problema impossível de se resolver. O que, com certeza, fiquei sabendo foi que filha de lavadeira ela não era.

– Sabe o que me acontece, cidadão Albert? Eu fui levar a roupa lavada a uma freguesa e não a achei em casa; tive de esperar, para receber o meu dinheiro, que ela voltasse.  Ora, hoje em dia todos têm necessidade de dinheiro. Anoiteceu. Como eu esperava voltar a casa com a luz do dia, não trouxe comigo a carta de civismo.  Caí no meio desses senhores... perdão... desses cidadãos, que me pediram a carta.  Eu lhes disse a verdade, mas eles quiseram levar-me ao corpo guarda. Gritei e o senhor acudiu, justamente um conhecido meu. Então, tranquilizei-me. Disse comigo: “Já que o Sr. Albert sabe que eu me chamo Solange, já que sabe que eu sou filha da lavadeira Ledieu, ele responderá por mim.”  Não é mesmo, Sr. Albert?

– É claro que eu respondo por ela.

– Bem – disse o cabo da patrulha –, mas quem por ti responde, Sr. faceiro? – Danton.  Serve-te este?  E ele é um bom patriota? – Ah, se Danton responde por ti, nada há o que se dizer. – Pois bem. Hoje é dia de reunião nas Cordeliers.  Vamos ao clube. – Vamos – disse o sargento.  Cidadãos sans culottes, avante! Marchem! O clube dos Cordeliers ficava no antigo convento dos franciscanos, na rua da Observance.

Lá chegamos rapidamente. À porta, rasguei uma página de minha carteira, escrevi a lápis algumas palavras e entreguei o bilhete ao sargento, para que o levasse a Danton.  O sargento entrou no clube e voltou com Danton.

– Como! – disse-me ele. – Então te prenderam? A ti, meu amigo e de Camille! Um dos melhores republicanos que existem! Ora, cidadão sargento – acrescentou, voltando-se para o chefe dos sans culottes –, respondo por ele. Isto te é bastante?

– Respondes por ele. Mas repondes, também, por ela? – indagou o obstinado sargento.

– Por ela?  De quem estás falando?

– Ora, dessa mulher!

– Por ele, por ela, por todos quantos os cercam. Estás satisfeito?

– Sim – disse o sargento.

– E mais ainda por te ter visto.

– Ora, esta satisfação pouco te custa. Olha para mim a teu gosto enquanto aqui estou.

– Obrigado. Continua a sustentar, como fazes, os interesses do povo e, tenhas certeza, o povo te será agradecido.

– Sim! E eu conto muitíssimo com isso – disse Danton.

– Permite-me que eu te aperte a mão? – prosseguiu o sargento.

– Por que não? E Danton deu-lhe a mão.

– Viva Danton! – bradou o sargento.

– Viva Danton! – repetiu a patrulha.

E a patrulha retirou-se, conduzida pelo seu chefe que, a dez passos dali, voltou-se e, agitando o barrete vermelho, gritou mais uma vez “Viva Danton!”, grito que foi pelos seus repetido. Eu já ia agradecer a Danton quando o seu nome, repetido mil vezes no interior do clube, foi por nós ouvido. – Danton! Danton! – gritavam inúmeras vozes. – À tribuna!

– Desculpa-me, meu caro – disse ele. – Estás ouvindo. Apertemo-nos as mãos e nos separemos.

Dei a mão direita ao sargento; a ti, dou a direita. Quem sabe se o digno patriota não está com sarnas? E dando-nos as costas:

– Já vou! – disse com aquela voz poderosa que agitava e acalmava as tempestades das ruas. – Já vou! Esperem por mim! E entrou no clube.

Fiquei sozinho à porta com a minha desconhecida.

– Agora, senhorita – disse-lhe –, diga-me onde quer que eu a leve. Estou às suas ordens.

– Ora, para a casa da lavadeira Ledieu – respondeu-me, rindo. – Não sabe que ela é a minha mãe?

– E onde mora a Sra. Ledieu?

– Na rua Ferou nº 24.

– Pois vamos à casa da Sra. Ledieu, rua Ferrou nº 24.

E pusemo-nos a caminho. Descemos a rua Fosses-Monsieur-le-Prince, ganhamos a Rua Fosses-Saint-Germain e, depois, a rua do Petit-Lion. Chegamos à praça Saint-Sulpice, e, em seguida, à rua Ferou. Em todo trajeto, não trocamos palavra. Somente aos raios da lua, que brilhava com todo o seu esplendor, pude examiná-la com vagar.

Era uma encantadora moça de vinte a vinte e dois anos, morena, com grandes olhos azuis mais espirituosos que melancólicos, nariz fino e reto, lábios zombeteiros, dentes como pérolas, mãos de rainha e pés de menina. Tendo tudo isto, conservava, sob os vulgares trajes da filha da lavadeira Ledieu, um tom aristocrático que, com justa razão, despertara a desconfiança do valente sargento e da sua belicosa patrulha.

Paramos ao chegar à porta e olhamos, em silêncio, um para o outro.

– Então, o que deseja de mim, meu caro Sr. Albert? – disse-me, sorrindo, a desconhecida.

– Eu queria lhe dizer, minha cara senhorita Solange, que não valia a pena de nos termos encontrado para tão depressa nos separarmos.

– Ora, peço-lhe um milhão de desculpas. Pois acho que, muito pelo contrário, valia bem a pena, porque, se não o tivesse encontrado, eu teria sido levada ao corpo da guarda e, verificando eles que eu não era filha da lavadeira Ledieu, teriam descoberto que eu era uma aristocrata e, muito provavelmente, teriam cortado a minha cabeça.

– Então confessa que é uma aristocrata?

– Não confesso nada.

– Então ao menos diga-me o seu nome.

– Solange.

– Bem se vê que esse nome, que ao acaso eu lhe atribuí, não pode ser o seu.

– Não faz mal. Gosto dele. E conservo-o, ao menos para o senhor.

– Que necessidade há de conservá-lo para mim, se nós não nos veremos mais?

– Não foi isso o que eu disse. Falei, apenas, que, se nos tornarmos a ver, será inútil ao senhor saber como me chamo, assim como eu saber como o senhor se chama. Eu o chamei de Albert. Conserve esse nome, assim como eu conservo o de Solange.

– Está bem!  Mas ouça, Solange... – disse-lhe.

– Estou ouvindo, Albert – ela me respondeu.

– É uma aristocrata. Confesse!

– Se eu não confessasse, o senhor adivinharia. A minha confissão perde, pois, muito de seu mérito.

– E, na qualidade de aristocrata, está proscrita.

– Isto não é de todo inexato.

– E se oculta para evitar perseguições...

– Na rua Ferou nº 24, na casa da lavadeira Ledieu, cujo marido foi cocheiro do meu pai. Bem se vê que não tenho segredos para o senhor.

– E seu pai?

– Quanto aos que são somente meus, não tenho segredos para o senhor, meu caro Albert. Porém, os meus segredos não são os do meu pai. Meu pai também está escondido até achar uma ocasião de emigrar. É só o que posso dizer.

– E a senhorita, o que pretende fazer?

– Acompanhar o meu pai, se for possível. Se for impossível, deixá-lo partir sozinho e depois segui-lo.

– E hoje, quando foi presa, voltava da casa de seu pai?

– Sim.

– Ouça-me, querida Solange.

– Estou ouvindo.

– Viu o que aconteceu esta noite.

– Sim.  E pude verificar a medida de sua influência.

– Infelizmente, minha influência não é grande. Todavia, tenho alguns amigos.

– E nesta noite conheci um deles.

– E a senhorita bem sabe que ele não é dos homens menos importantes da época.

– Pretende empregar a sua influência para facilitar a fuga de meu pai?

– Não. Reservo-a para a senhorita.

– E para o meu pai?

– Para seu pai, tenho outro meio.

– Tem outro meio! – exclamou Solange, tomando-me a mãos e olhando para mim com ansiedade.

– Se eu salvar seu pai, conservará uma boa lembrança de mim?

– Serei grata ao senhor por toda a vida. E proferiu essas palavras com adorável inflexão de antecipada gratidão. Depois, olhando para mim, suplicante, disse:

– Mas isso lhe será suficiente?

– Sim – respondi.

– Oh, eu não estava enganada! O senhor tem um nobre coração. Agradeço-lhe em meu nome e em nome do meu pai. E mesmo que não tenhamos sucesso, ainda assim sou agradecida pelo que o senhor já fez.

– E quando nos veremos novamente, Solange?

– Quando o senhor precisa encontrar-me?

– Espero, amanhã, dar-lhe uma boa notícia.

– Então, vemo-nos amanhã.

– Onde?

– Aqui, se quiser.

– Aqui, na rua?

– Sim, aqui. Bem se vê que é o lugar mais seguro. Estamos a conversar há meia hora, junto a esta porta, e ninguém passou.

– Por que não vou à sua casa?  Ou a senhorita não vem à minha?

– Porque, se o senhor vier à minha casa, comprometo a boa gente que me dá asilo. Se eu for à sua, comprometo o senhor.

– Então, está bem. Pegarei a carta de civismo de uma das minhas parentes para a senhorita.

– Para que guilhotinem a sua parente, caso me prendam.

– Tem razão. Conseguirei uma carta com o nome de Solange.

– Muito bem. Verá que Solange terminará sendo o meu verdadeiro nome.

– A que horas nos veremos?

– À mesma em que hoje nos encontramos.

– Certo. Às dez horas. Mas, como nos reuniremos?

– Nada mais simples: às cinco para dez, o senhor estará na porta. Às dez, eu descerei.

– Então, até amanhã, às dez horas, querida Solange.

– Amanhã, às dez horas, querido Albert. Quis beijar-lhe a mão; ela me ofereceu a fronte.

No dia seguinte, às nove e meia, eu estava na rua. Às quinze para as dez, Solange abria a porta.  Cada um de nós comparecera ao encontro antes da hora marcada. Aproximei-me rapidamente.

– Vejo que me traz boas notícias – disse ela, sorrindo.

– Excelentes: primeiro, aqui está a sua carta.

– Falemos primeiro de meu pai.

– Seu pai estará salvo, se quiser.

– Se quiser, diz o senhor. Então o que deverá fazer?

– É preciso que confie em mim.

– Isto já está feito.

– A senhorita o visitou?

– Sim.

– Então quis se expor deliberadamente?

– O que fazer? Era necessário. Porém, Deus nos protege.

– E disse tudo ao seu pai?

– Disse que o senhor havia salvado a minha vida e que talvez, amanhã, salvasse a dele.

– Amanhã, sim. Justamente amanhã, se ele quiser.

– Como será, então? Diga, fale! Que admirável encontro será este se tudo isso se realizar.

– Somente... – disse, hesitando.

– Então o quê?

– A senhorita não pode acompanhá-lo.

– Oh, quanto a esse respeito, a minha decisão já está tomada!

– Depois, tenho certeza que conseguirei um passaporte para você.

– Falemos primeiro de meu pai. De mim, falamos depois.

– Pois bem. Eu lhe disse que tenho alguns amigos, não foi?

– Disse.

– Hoje mesmo fui visitar um deles.

– E então?

– Um homem a quem a senhorita há de conhecer de nome e este nome é uma garantia de coragem, de honra e lealdade.

– Qual é esse nome?

– Marceau.

– O general Marceau!

– Ele próprio.

– Tem razão. Se ele prometeu, cumprirá a promessa.

– Prometeu.

– Oh, quanta alegria eu lhe devo. Vejamos, o que ele lhe prometeu? Diga!

– Prometeu servir-nos.

– Mas como?

– Do modo mais simples. Kléber acabou de nomeá-lo general em chefe do exército do Oeste. Ele parte amanhã à tarde.

– Amanhã à tarde... Não temos tempo de preparar coisa alguma.

– Mas nada há o que preparar.

– Não estou entendendo...

– O general lavará consigo o seu pai.

– Meu pai?

– Como secretário. Chegando a Vendeia, seu pai há de obrigar-se para com Marceau a nunca servir contra a França e numa noite irá fugir para algum acampamento de vendeanos, daí irá à Bretanha e de lá embarcará para a Inglaterra. Quando se achar em Londres, mandará notícias. Conseguirei um passaporte para a senhorita, que irá encontrá-lo lá.

– Amanhã! – exclamou Solange. – Meu pai partirá amanhã!

– Mas não há tempo a perder.

– Meu pai não está ciente de nada.

– Conte-lhe tudo.

– Agora!

– Sim, agora!

– Mas como, a estas horas?

– A senhorita tem uma carta de civismo e eis aqui o meu braço.

– Tem razão. Dê-me a carta. Entreguei o documento a ela, que o meteu na bolsa.

– Agora, dê-me o seu braço. E vamos.

Descemos até a praça Taranne, onde na véspera eu a havia encontrado.

– Espere-me aqui – disse-me.

Assenti com uma mesura e esperei. Ela desapareceu na esquina do antigo palácio Matignon. Depois, ao fim de quinze minutos, voltou.

– Venha – disse ela. – Meu pai deseja vê-lo e agradecer-lhe.

Ela tomou o meu braço e me conduziu à rua de Saint-Guillaume, em frente ao palácio Mortemart. Ali chegando, tirou do bolso uma chave, abriu uma portinhola, deu-me a
mão, levou-me ao segundo andar e bateu de um modo especial.  Um homem de quarenta e oito para cinquenta anos abriu a porta. Estava vestido como um oficial mecânico e parecia exercer o ofício de encadernador. Mas logo às primeiras palavras que me disse, aos agradecimentos que me dirigiu, o fidalgo se revelara.

– Senhor – disse-me ele –, a Providência o pôs em nosso caminho e como enviado da Providência eu o recebo. Será verdade que pode e, especialmente, que quer me salvar?

Contei tudo a ele. Disse-lhe como Marceu se encarregara de levá-lo na qualidade de secretário e só lhe pedia a sua promessa de não se armar contra a França.

– Faço essa promessa espontaneamente e a repetirei.

– Agradeço-lhe em nome do general e do meu.

– E quando parte o general?

– Amanhã.

– Deverei ir para a casa dele este noite?

– Quando lhe aprouver. Ele já o espera.

O pai e a filha se entreolharam.

– Acho que seria mais prudente que o senhor fosse hoje mesmo, meu pai – disse Solange.

– Sim. Mas, se me agarrarem, não tenho carta de civismo.

– Aqui está a minha.

– E o senhor?

– Eu sou conhecido.

– Onde Marceu mora?

– Na rua da Universidade nº 40, na casa de sua irmã, senhora Desgraviers Marceu.

– O senhor nos acompanha?

– Eu os seguirei de longe. Escoltarei a senhorita, quando chegarmos.

– E como Marceu saberá que sou o homem de quem o senhor falou?

– Entregue-lhe esta roseta tricolor. É o sinal combinado.

– Como lhe mostrarei a minha gratidão?

– Entregando-me a salvação de sua filha, como ela me entregou a sua.

– Vamos.

Ele pôs o chapéu e apagou as luzes. Descemos ao clarão da lua que se infiltrava pelas janelas da escada. Na porta, ele deu o braço à filha, tomou à direita e, pela rua dos Santos Padres, foi ter à rua da Universidade. Acompanhei-os sempre a uma distância de dez passos. Chegamos ao nº 40 sem ter encontrado ninguém no caminho.

Aproximei-me deles.

– É um bom sinal – disse.

– Agora, quer que espere ou que suba?

– Não. Não se comprometa mais. Espere aqui por minha filha.

Inclinei-me, numa mesura.

– Mais uma vez – disse ele –, muito obrigado e adeus. A língua não tem palavras que traduzam os sentimentos que lhe dedico. Espere que Deus um dia me faculte a oportunidade de manifestar-lhe toda a minha gratidão.

Respondi apertando-lhe a mão. Entrou. Solange o acompanhou. Mas, antes de entrar, também apertou-me a mão. Após dez minutos, a porta se abriu novamente.

– Então? – disse-lhe.

– O seu amigo – respondeu-me Solange – é decerto digno de ser seu amigo. Quero dizer que tem todas as delicadezas. Compreende que eu ficaria feliz se ficasse com o meu pai até o momento de sua partida. A irmã do general mandou fazer-me uma cama no seu quarto. Amanhã, às três horas da tarde, meu pai estará fora de perigo. Amanhã, às dez das noite, como hoje, se o senhor entender que a gratidão de uma filha que lhe deve a salvação de seu pai vale a pena de o incomodar, vá procura-la à rua Ferou.

– Decerto irei. Mas o seu pai nada disse para mim?

– Nesta carta, que lhe dou, ele lhe agradece pelo que fez, e lhe pede que, quanto o mais depressa puder, faça-me sair da França.

– Há de ser quando a senhorita quiser – respondi com o coração constrito.

– Ao menos, gostaria de saber onde irei encontrar-me com o meu pai – respondeu, sorrindo-me. E prosseguiu: – Oh, o senhor ainda não está livre de mim!

Tomei a sua mão e a apertei de encontro ao peito. Exibindo-me a testa, como fizera na noite anterior, disse-me:

– Até amanhã. E, aplicando os meus lábios sobre a sua testa, não foi só a sua mão que estreitei em meu coração, mas também o seu coração palpitante.

Voltei à casa com o coração mais satisfeito do que nunca. Seria pela boa ação que eu acabara de praticar? Seria porque já amava aquela adorável moça? Não sei se dormi ou se fiquei acordado. Sei que em mim ecoavam todas as harmonias da natureza; sei que a noite me pareceu sem fim e o dia imenso; sei que, ao mesmo tempo, desejando precipitar as horas, desejava demorá-las para não perder um só minuto dos dias que ainda teria que viver. No dia seguinte, às nove horas, eu já estava na rua Ferou. Às nove e meia, Solange apareceu. Dirigiu-se a mim e apertou-me nos seus braços.

– Salvo! – exclamou. – O meu pai está salvo e devo ao senhor a sua salvação! Oh, como eu o amo!

Daí a quinze dias Solange recebeu uma carta anunciando-lhe que o seu pai estava na Inglaterra. No dia seguinte, levei-lhe um passaporte. Recebendo-o, Solange desfez-se em prantos.

– Então o senhor não me ama! – disse.

– Amo-a mais que a vida – respondi. – Porém, obriguei-me para com o seu pai, e antes de tudo cumpre desempenhar a minha palavra.

– Então – disse ela –, faltarei eu à minha. Se tem coragem de separar-se de mim, Albert, eu não tenho a de deixá-lo. Ai de mim! Ela ficou.


*******


Passaram-se três meses desde a noite em que tratamos da viagem de Solange. E, nesse período, nem uma só palavra de separação havia sido proferida. Solange queria morar na rua Taranne. Aluguei para ela um aposento sob o nome de Solange. Eu não lhe conhecia outro nome que não este, assim como ela somente me conhecia por Albert. Eu a fiz entrar num colégio de meninas, como professora, para assim melhor subtraí-la às investigações da polícia revolucionária, mais ativa do que nunca.

Aos domingos e às quintas-feiras passávamos juntos nesse aposento na rua Taranne. Da janela do quarto de dormir, víamos a praça em que pela primeira vez nos tínhamos encontrado. Cada dia recebíamos uma carta: a dela dirigida a Albert; a minha, a Solange. Esses três meses foram os mais felizes de minha vida. Entretanto, eu não tinha renunciado ao projeto que havia concebido depois de minha conversa com o criado do verdugo.

Tinha pedido licença para fazer experiências sobre a persistência da vida após a execução. Estas experiências me demonstraram que a dor continuava após o suplício na guilhotina, e que tal dor deveria ser terrível. Não se pode negar que a lâmina fere a parte mais sensível de nosso corpo, por ser a em que se acham reunidos os nervos.

No pescoço, enfeixam-se todos os nervos dos membros superiores: o simpático, o vago, o frêmio, enfim, a medula espinhal, que é a origem mesma dos nervos que pertencem aos membros inferiores. Ninguém negará que o quebrar, o esmigalhar da coluna vertebral óssea deva produzir dores mais atrozes que é possível à criatura humana sofrer.

Alguns dirão que essa dor dura apenas alguns segundos. Mas eu nego essa hipótese, com profunda convicção. E mesmo que tal dor dure apenas alguns segundos, a sensibilidade, a personalidade, o eu permanecem vivos. A cabeça decepada vê, sente, compreende e julga a segregação do seu ser. E quem dirá se a curta duração do sofrimento pode compensar a sua horrível intensidade?

Assim, compreendo que o decreto da assembleia, que substituiu a forca pela guilhotina, foi um erro humanitário. Creio que é mais doloroso ser decapitado do que enforcado. Quanto a isto, não tenho dúvida. Muita gente se enforcou ou foi enforcada e depois foi restituída à vida. Neste caso, pois, pode-se saber o que se sofre. É a sensação da apoplexia fulminante, ou seja, a de um sono profundo sem dor alguma especial, sem o menor sentimento de angústia.

Algo como uma chama salta diante dos olhos e logo toma a cor azulada e logo escurece. E, então, cai-se em uma síncope. Qualquer médico, como eu, sabe disto. O homem cujo cérebro é comprimido com o dedo em algum ponto em que falta o pedaço de crânio não sofre dor alguma. Adormece. Pois dá-se o mesmo fenômeno quando o cérebro é comprimido por uma erupção de sangue. Ora, no enforcado o sangue amontoa-se. Primeiro porque entra no cérebro pelas artérias vertebrais que, atravessando os canais ósseos do pescoço, não podem ser comprimidas. Em seguida porque, tendendo a refluir pelas veias do pescoço, acha-se impedido pela articulação que liga o pescoço e as veias.

Mas voltemos às minhas experiências. Infelizmente, não me faltava em que fazê-las. Estávamos no período mais ativo das execuções: trinta a quarenta pessoas eram guilhotinadas por dia e tanto sangue cobria a praça da Revolução que se fizera necessário escavar um fosso, de três pés de profundidade, em torno do cadafalso. Esse fosso era coberto de tábuas.

Certo dia, essa tábua cedeu quando sobre ela passava uma criança de oito ou dez anos. Ela caiu e afogou-se. Bem percebem que eu tinha todo o cuidado em não dizer a Solange como eu ocupava o meu tempo nos dias em que não a via.  Além disso, devo confessar que tinha a princípio sentido uma forte repugnância por aqueles míseros destroços humanos, e que me horrorizava com a lembrança das dores que minhas experiências talvez acrescentassem ao suplício.

Eu estava convencido, porém, de que esses meus estudos eram ditados pelo desejo de ser útil a toda humanidade, pois se conseguisse levar as minhas convicções a uma reunião de legisladores, talvez obtivesse a abolição da pena de morte. À medida que as minhas experiências iam dando resultados, eu os registrava em um relatório. Ao fim de dois meses, eu tinha feito todas as possíveis experiências acerca da persistência da vida após a execução. Resolvi levá-las ainda mais longe, se fosse possível, por meio do galvanismo e da eletricidade.

Entregaram-me o cemitério de Clamart e puseram à minha disposição todas as cabeças e corpos dos executados. Haviam transformado uma capelinha, a um canto do cemitério, em laboratório. Sabe-se que, depois que os reis foram expulsos de seus palácios, também foi Deus expulsos de suas igrejas. Nesse laboratório eu tinha uma máquina elétrica e três ou quatro desses instrumentos a que se chamam excitadores. Por volta das cinco horas chegava o terrível funeral: os corpos vinham atirados num carro, as cabeças dentro de um saco. Ao acaso, eu escolhia uma ou duas cabeças e um ou dois corpos.  Tudo mais era atirado numa vala. No dia seguinte, as cabeças e os corpos em que eu havia feito as experiências eram enterrados com os novos cadáveres desse dia. Quase sempre o meu irmão ajudava-me nessas experiências.


Entrementes a estes contatos com a morte, o meu amor por Solange aumentava dia a dia e, quanto a ela, a mísera menina amava-me com todas as forças de seu coração. Muitas vezes pensara em casar-me com ela, muitas vezes tínhamos calculado a felicidade que esta união nos traria. Mas para casar-se comigo, seria necessário que Solange declarasse o seu nome de família.  Mas esse nome era o nome de um emigrado, de um aristocrata, de um proscrito: a sua sentença de morte.

Seu pai por diversas vezes lhe havia escrito para apressar a sua partida. Ela, porém, revelou-lhe a nossa paixão e pediu seu consentimento para o nosso casamento. Ele o concedeu. Portanto, quanto a isso, tudo corria bem. Todavia, entre todos aqueles terríveis julgamentos, um ainda mais terrível nos entristeceu a ambos: o da rainha Maria Antonieta.

Instaurado no dia 4 de outubro, esse processo tramitou celeremente: no dia 14 ela já comparecera diante do tribunal revolucionário; no dia 16, às quatro horas da manhã, havia sido condenada; no mesmo dia, às onze horas, subira ao cadafalso. De manhã, eu havia recebido uma carta de Solange. Dizia-me que não queria passar esse dia sem me ver. Cheguei às duas horas ao nosso pequeno aposento da rua Taranne e a encontrei desfeita em prantos. Eu também estava profundamente abalado com aquela execução. Em minha infância, a rainha havia sido tão boa para comigo que eu conservava uma profunda recordação daquela bondade.

Oh, sempre hei de me lembrar daquele dia. Era uma quarta-feira. Havia em Paris mais do que tristeza: havia terror. Eu estava entregue a um singular desânimo, como um pressentimento de uma grande desgraça. Havia procurado dar força e ânimo a Solange, que chorava, caída em meus braços. Mas faltavam-me palavras de conforto, porque o consolo não estava em meu coração. Como de costume, passamos a noite juntos. E essa noite foi ainda mais triste do que o dia.

Lembro-me de que um cão, trancado no aposento sob o nosso, uivou até as duas horas da madrugada. No dia seguinte, soubemos por quê. O seu dono havia saído, levando a chave consigo. Na rua, fora preso e levado ao tribunal revolucionário. Condenado às três horas da tarde, fora executado às quatro. Urgia que nos separássemos. As aulas de Solange começavam às nove horas da manhã. Seu colégio era próximo ao Jardim das Plantas. Hesitei muito tempo em deixá-la partir. Ela mesma relutava em me abandonar. Mas ficar dois dias fora do colégio era expor-se às investigações, estas sempre nocivas em sua situação.

Chamei um coche e a levei até a esquina da rua dos Fossés-Saint-Bernard, onde apeei, para que ela seguisse sozinha ao internato. Em todo o caminho, tínhamos ficado abraçados, sem proferir uma só palavra, confundindo as nossas lágrimas, que escorriam até os nossos lábios, mesclando a sua amargura à doçura de nossos beijos.

Desci do carro, mas, em vez de retirar-me, fiquei como que grudado no mesmo lugar, para ver por mais tempo o coche que a levava. Vinte passos adiante, o carro parou e Solange passou a cabeça pela portinhola, como se adivinhasse que eu ainda me encontrava ali. Corri para ela. Entrei no coche, fechei-o e a apertei novamente nos braços. Mas davam nove horas em Saint Étienne-du-Mont. Enxuguei as suas lágrimas, selei os seus lábios com um tríplice beijo e, saltando, afastei-me correndo. Pareceu-me que Solange me chamava novamente. Mas todas essas lágrimas, todas essas hesitações podiam chamar atenção. Tive a fatal coragem de não me voltar. Entrei em casa desesperado. Passei o dia todo escrevendo a Solange.

À noite, enviei-lhe um volume. Acabava de levar a minha carta ao correio, quando recebi uma dela. Tinham-na repreendido. Haviam-na multiplicado de perguntas. Ameaçaram-na de privá-la de sua próxima saída. Tal saída seria no domingo seguinte. Solange, porém, jurara-me que iria encontrar-se comigo, ainda que fosse necessário romper com a diretora do internato. Eu também jurei. Parecia-me que, se ficasse sete dias sem vê-la, o que aconteceria se ela perdesse a saída de domingo, eu enlouqueceria. Ainda mais porque Solange manifestava alguma inquietação: uma carta que achara no colégio, ao lá retornar, enviada por seu pai, parecia-lhe ter sido violada. Passei uma péssima noite e pior ainda foi o dia seguinte.  Como de costume, escrevi a Solange e, como era meu dia de experiências, por volta das dez horas passei pela casa de meu irmão a fim de levá-lo comigo a Clamart. Não o achei em casa. Fui sozinho.

O tempo estava horrível. A natureza aflita dissolvia-se em chuva, uma chuva fria e torrencial que anuncia o inverno. Em toda a extensão de meu caminho, eu ouvia os pregoeiros públicos berrarem, com voz rouquenha, a lista dos condenados desse dia. Era longa. Havia homens, mulheres e crianças. A sanguinolenta ceifa era abundante e não haveria de me faltar, naquela tarde, objeto de estudo. Os dias terminavam cedo. Às quatro horas, quando cheguei a Clamat, era quase noite. O aspecto desse cemitério, com as suas vastas sepulturas recém revolvidas, com as suas árvores escassas, ressonando com o soprar dos ventos como esqueletos, era assustador e quase hediondo. Tudo o que não era terra revolvida era relva, cardos e urtigas.

A cada dia, a terra revolvida invadia ainda mais a área verde. Em meio a todas essas intumescências do terreno, a vala do dia estava aberta, e aguardava a sua presa. Haviam previsto um incremento no número dos supliciados, pois essa vala era maior do que costumava ser. Dirigi-me a ela maquinalmente. O fundo estava cheio d’água. Quão míseros não eram os corpos nus e frios que seriam lançados naquela água, tão gélida quanto eles! Ao aproximar-me da vala, escorreguei, e quase caí. Os meus cabelos se eriçaram. Eu estava molhado e com frio. Neste estado, cheguei ao meu laboratório. Era, como disse, uma antiga capela.

Procurei com os olhos... por que procurava, não sei... Procurei com os olhos se, na parede, ou no que teria sido o altar, restava algum sinal de culto: as paredes estavam nuas; o que fora altar, completamente demolido. No lugar em que estivera o tabernáculo (isto é, Deus, a vida), havia uma caveira (isto é, a morte, o nada). Acendi a minha vela, colocando-a sobre a minha mesa de trabalho, toda coberta de instrumentos de formato estranho, por mim mesmo inventados, e sentei-me, pensando... em quê?

Naquela pobre rainha que eu vira tão bela, tão feliz, tão querida; que na véspera, perseguida pelas imprecações de mil fúrias tinha sido levada ao patíbulo em uma carroça e que nesse momento, com a cabeça separada do corpo, dormia na vala dos indigentes, ela que havia dormido sobre os dourados tetos de Versalhes e de Saint-Cloud.

Enquanto eu mergulhava nessas sinistras reflexões, a chuva recrudescia, o vento dobrava de intensidade, soltando os seus lúgubres uivos por entre os galhos das árvores e as hastes das ervas, que crepitavam. Logo esse barulho confundiu-se com um lúgubre troar. Mas, ao invés de roncar nas nuvens, esse trovão vinha da terra e a fazia estremecer. Era o estrépito da carroça vermelha, que vinha da praça da Revolução e entrava no cemitério de Clamart. A porta da capelinha se abriu e dois homens, completamente molhados, entraram, trazendo um saco. Um desses era o mesmo Legros, a quem eu visitara na cadeia, e o outro era um coveiro.

– Aqui tem, senhor Ledru – disse-me o criado do carrasco. – Não é preciso que o senhor se apresse esta noite. Deixaremos toda essa mixórdia para o senhor. Amanhã faremos o enterro.  Oh, os cadáveres não irão gripar por passarem uma noite ao sereno!

E, com uma hedionda risada, estes dois assalariados da morte puseram o seu saco a um canto, junto ao antigo altar, à minha esquerda.

Depois saíram sem fechar a porta, que se pôs a bater, compassadamente, na moldura, deixando passar baforadas de vento que faziam vacilar a chama da vela, a qual subia lívida, moribunda, pelo pavio enegrecido. Eu os ouvi desatrelar os cavalos da carroça, fechar o cemitério e partir, abandonando a carroça repleta de cadáveres. Eu sentia uma grande vontade de ir-me com eles. Mas não sei o que me prendia àquele lugar, embora estremecesse todo. Certamente, não era de medo. Mas o ruído daquele vento, o crepitar daquela chuva, o gemer das árvores que se retorciam, o sibilar do temporal que fazia tremer a luz de minha vela, tudo isso vibrava em minha mente o vago pavor que, a partir da úmida raiz dos meus cabelos, disseminava-se por todo o meu corpo.

De súbito, pareceu-me que uma voz, ao mesmo tempo doce e lastimosa, saía do âmago da capelinha e pronunciava o nome de Albert. Oh, dessa vez estremeci. Albert! Somente uma pessoa no mundo me chamava assim. Meus olhos alucinados percorreram lentamente a capelinha – cujo recinto, embora limitadíssimo, não podia ser completamente iluminado por minha vela – e pararam sobre o saco encostado ao canto do altar: o tecido ensanguentado denunciava o seu fúnebre conteúdo. No momento em que os meus olhos se detiveram nesse saco, a mesma voz, porém mais débil e lastimosa, repetiu:

– Albert!

Ergui-me, gelado de pavor. Aquela voz parecia sair do interior do saco. Apalpei-me para ver se dormia ou se estava acordado. Depois, rígido, caminhando como um homem pétreo, com os braços estendidos, dirigi-me para o saco e nele mergulhei uma das mãos. Pareceu-me então que lábios ainda quentes encostavam-se na minha mão. Eu estava nesse grau de terror em que o excesso desse mesmo terror infunde-nos a coragem. Segurei essa cabeça e, voltando para a minha cadeira, em que caí sentado, coloquei-a sobre a mesa.

Oh, soltei um terrível grito! Aquela cabeça, cujos lábios pareciam ainda quentes, cujos olhos estavam entreabertos, era a cabeça de Solange. Julguei estar louco. Gritei, três vezes:

– Solange! Solange! Solange!

Ao terceiro grito, os olhos abriram-se, fixaram-se em mim, deixaram cair duas lágrimas e, lançando uma chama úmida, como se deles escapasse a alma, fecharam-se para não mais se abrirem. Levantei-me louco, perdido, furioso. Queria fugir. Mas, levantando-me, prendi na mesa a aba da casaca. A mesa caiu, fazendo com que a vela se apagasse. A cabeça rolou pelo chão, arrastando-me também.

Então pareceu-me que aquela cabeça, deslizando pelo declive das lajes, vinha em minha direção. Seus lábios encostaram-se aos meus. Um glacial calafrio percorreu todo o meu corpo. Soltei um gemido e desmaiei.

No dia seguinte, às seis horas da manhã, os coveiros encontraram-me tão frio quanto a laje em que eu caíra desfalecido.

Solange, denunciada pela carta do pai, tinha sido presa, condenada e executada no mesmo dia. E aquela cabeça que havia falado comigo, aqueles olhos que haviam me fitado, aqueles lábios que haviam beijado os meus lábios eram mesmo os lábios, os olhos e a cabeça de Solange.


A Cabeça Decepada e Outros Contos de Terror - Alexandre Dumas - Triumviratus 2015