sexta-feira, 22 de julho de 2016

O Autor e a Pintura


A loja de antiquários da Rua Itapecerica tinha o mesmo cheiro dos velhos casarões e das igrejas de Ouro Preto ou de Lisboa. Alguns santos quebrados, uma velha mobília, castiçais e quadros empoeirados ainda conservavam os mesmos aspectos de séculos passados.

Com a ponta do dedo indicador, eu examinava alguns quadros de onde uma aranha solitária se deslocava, através de sua teia, indo parar numa mobília de jacarandá.

– Bonita peça! Verdadeira relíquia – falei balançando a cabeça.

Aproximou-se de mim uma moça de braços e pernas volumosos, trajes escuros, folgados, soltos, e um pano de seda vermelho sobre o pescoço indo até os seios. Portava no rosto um sorriso de falsa cigana e ares de libanesa disfarçada.

– Esta cristaleira faz parte do conjunto da sala de jantar – disse, emoldurando mais ainda o sorriso. – E não custa tão caro... e podemos parcelar... e é um conjunto raríssimo... e pertenceu a um bispo... e vale a pena... e...

Minha mente lutava contra os sons e embustes de suas palavras, mas elas foram tão convincentes, tão cheias de sorrisos que venceram. Fiz o pagamento.

Passaram-se alguns dias e a mobília chegou.

Aos poucos fomos desembalando cada peça com muito cuidado. A sala, devagar, ia se compondo e tomando ares de nobreza imperial.

Tocava cada curva do mobiliário, cada florão, ainda pensando na falsa cigana.

– Só falta a mesa – comentei com a esposa, segurando o tampo superior. Repentinamente, senti, entre o tampo e a parte que o apoia, alguma coisa – um quadro. Retiramo-lo. Era  uma pintura de um galo em pose de briga. Sua cor viva contrastava com os azuis, vermelhos e amarelos de nossa sala. Ela sugeriu que o devolvêssemos, mas quando me lembrei do preço que paguei por aquele sorriso falso, desisti da ideia.

– Se veio da mobília, da mobília é e será – respondi com ênfase, tentando fazê-la concordar. Aceitou e o quadro foi para a parede.

O tempo ficou estagnado enquanto admirávamos as cores e formas daquela obra de arte. Não conseguimos ler o nome do autor. Sua assinatura estava confusa: um risco na vertical que seguia pela horizontal com traços indecifráveis.

Os ponteiros do relógio passavam rapidamente e fatos estranhos começaram a fazer parte do nosso cotidiano: barulho de passos miúdos, marcas nos móveis e a constante impressão de estarmos sendo vigiados.

À noite ouvimos o cachorro latir. Pela manhã houve pausa de minutos para o espetáculo horripilante: encontramos o corpo do cão coberto de sangue e dilacerado por algum objeto cortante. Segundo a polícia, o animal fora vítima de um objeto como um pequeno tridente, ao mesmo tempo por outro que se assemelhava a um alicate que produzisse o efeito de segurar, rasgar e puxar.

Minhas madrugadas se transformaram em sons de slept, slept dos meus chinelos – verdadeiro passeio da sala para cozinha, da cozinha para o quarto. Eu olhava para a mobília e ela olhava para mim, olhava para o quadro e ele ficava me olhando.

Os dias se mesclavam com noites sem dormir.

Na redondeza, mais animais eram atacados pelo estranho ser. Coincidentemente, todos os casos ocorreram a uma distância de menos de quinhentos metros da minha residência, o que me deixou apreensivo.

Tais ocorrências poderiam sair da minha própria casa? Seria eu, em momentos de insanidade mental, o autor de tais atos? Ou a minha própria mulher?

Obcecado pela ideia, passei a tomar chá para não dormir e mantinha uma vigilância constante revezada com a esposa.

“A vida coloca a nu o instinto deplorável ou aceita o basta final destas atrocidades”, eu disse com convicção e desafio para mim mesmo.

Dias depois.

“Ainda tenho na pele o contato físico que houve com aquele corpo. Ainda trago na lembrança as marcas daquele dia.”

Estava, à noite, quase dormindo (era o dia da vigília feminina) quando ouvi gritos: era minha companheira. Barulho de asas batendo, cadeiras no chão, gritos.

Vejo um enorme galo em luta corporal com a mulher. Seu bico, como alicate, rasgava sua pele. Ao mesmo tempo, com uma selvageria total, suas esporas cortavam como os três ganchos de um tridente.

Seu tamanho colossal impunha pavor, mas a convicção e o desafio fizeram com que eu apanhasse uma adaga e jogasse meu corpo contra o dele. Foi quando percebi que não havia nada no quadro da parede. O galo tinha saído do campo de imaginação da pintura e se materializado na vida real. Era uma transmutação de espaço e matéria. No lado esquerdo, perto da cristaleira, ela comprimia as mãos contra o rosto esbraseado. O sangue escorrendo sobre a blusa branca, o lábio gretado e as mãos em carne viva, mais o choro soluçado entre o arfar da respiração, isso denotava o pavor que a cena proporcionava.

A luta continuou até que os ponteiros se encontraram, à meia-noite, e ele retornou para o seu lugar de origem – o quadro.

Não perdendo mais tempo, peguei o castiçal e, com o pedaço de vela que ainda chamejava, ateei fogo na pintura. Enquanto a imagem ardia entre as labaredas, tal como herege do século XIII na fogueira, pudemos então, nitidamente, ler o nome do artista: Lúcifer.

Por Roberto Márcio Pimenta


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