domingo, 10 de junho de 2018

Olhos Vazios


ELE QUERIA QUE eu fosse com ele. Não disse nada. Segurou com as pontas dos dedos o chapéu marrom claro e sinalizou com a cabeça. Eu entendi. Entendi que apontava para a garagem, longe da porta de casa. E me olhava. Sem piscar, sem desviar os olhos de mim. Esperava que eu fosse na frente, que eu desse o primeiro passo.

Finquei tão forte os pés no chão, que temi tombar em sua frente. Se caísse, seria mais difícil me libertar. Mais difícil correr. Mas fugir para onde? Tinha a impressão quase concreta de que ele também estaria onde quer que eu fosse. Assim como estava em todos os cantos da casa. Ele e um cheiro esquisito e quase doce. Como o sangue que escorria da minha perna quando eu caía da bicicleta. Mas ele tinha um machucado que parecia não curar nunca. Sempre com o corpo chorando sangue, desde que o vi pela primeira vez.

Minha irmã havia me pedido para buscar a bola. Como chovia na rua, a mãe deixou que nosso jogo de vôlei acontecesse na sala de estar. Corri até a área externa com os pés descalços, andando rápido para não molhar os dedos. Avistei a bola plástica perto da mesa e, por um segundo, abaixei o corpo e estendi as mãos, agarrando o brinquedo.

Ao levantar os olhos, lá estava ele. Um homem magro, de casaco e calças cor de madeira. Sangrando de tristeza. As mãos pálidas e os olhos vazios. Dois espaços ocos que me hipnotizavam. A cabeça estava voltada para a minha direção e o corpo parecia pronto para seguir caminho. Chamei pela minha irmã. Mana! Mana vem aqui rápido! Ela veio, impaciente porque eu demorava na simples tarefa de buscar uma bola de nada. Quando pressenti a proximidade dela, apontei o indicador para o exato local onde o homem estava.

A mana não entendeu. Gritou que eu parasse de brincadeira, que não tinha ninguém ali. Insisti. Ela chamou a mãe. E fiquei de castigo por mentir. Um tempão sem ver tevê e quase mais tempo ainda sem brincar na rua. Mesmo que a vizinha tenha pedido que eu saísse do castigo. Ouvi a conversa com o rosto encostado na parede. Ela dizia: procura um especialista, alguém de luz que possa ajudar. Não entendi muito o resto. Mas falou de suicídio, palavra que eu não conhecia bem o que era. Disse também que o homem do casaco marrom tinha ficado pendurado pelo pescoço. Ali, bem perto da garagem. E isso, sim, eu sabia que significava que ele tinha morrido. Num tempo que a nossa casa ainda não existia. E tudo eram árvores e matagal. Só que o papo todo não adiantou nada. O chá da vizinha ficou esfriando em cima da mesa.

Eu continuei saindo do quarto somente para ir ao colégio. E, mesmo assim, de mãos dadas com o pai, da porta de casa até o carro. E admito: quase todas as vezes, caminhava de olhos fechados. Por vários dias, esgotei a paciência dele ao me perder nos passos, sem querer bater as pernas nas suas, pisar em algum buraco, ou errar feio e ameaçar uma queda. Quando ele descobriu a cegueira voluntária, me fez prometer que pararia com isso. Eu acabei abrindo. E, insegura, me fixei no meu próprio sapato. No ir e vir dos pés. E só isso. Sem levantar o rosto. Com medo de olhar para aquele homem que me provocava o medo. Então, me cansei das pedras do chão, quase esqueci e achei que era hora de enfrentar. Ergui a cabeça. Brinquei sozinha. Tentei me proteger em mim mesma. Não falei nada para ninguém.

Quando, por um segundo, me distraí, lá estava ele. Me chamando, balançando a cabeça como se dissesse que era hora de irmos. Para onde? E, dentro de mim, ele respondeu que não importava. Pelo
menos não naquele momento. E minha irmã? Meus pais? Não importava. Ele me olhava sem piscar, meus pés congelados no chão, como se minhas canelas fossem quebrar ao mínimo movimento. Mas não importava, não importava. Ele estaria em todos os lugares. Mesmo que eu fechasse os olhos, mesmo que eu adormecesse. Ele estaria lá. E, erguendo o chapéu ao alto, me estendeu uma das mãos. E eu dei o primeiro passo.

Me tornei um nada, atormentado e perseguido. Irreconhecível. Revivendo para sempre, perto da garagem, a cena de minha mãe, segurando o meu corpo inerte de criança e chorando. Lágrimas que nunca cessam.

Mesmo que não importe mais.

por Luciana Thomé


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

Sala de Espera


A SALA DE ESPERA do consultório, João olhou para as revistas sobre celebridades que estavam à sua disposição. Não precisou pensar para escolher e pegou a primeira da pilha. Abriu e passou os olhos por algumas fotos; deteve particular atenção em um casal de idade próxima à sua, que passava as férias numa praia do Mediterrâneo.

A porta do recinto se abriu, e um ser de mais de dois metros entrou. Examinou o ambiente com o par de olhos pretos e pequenos, que ficavam na extremidade de uma cabeça retangular e recoberta de escamas. Enquanto ele decidia onde sentar, densas gotas verdes caíam de sua boca e se aglutinavam no chão. Deu dois passos lentos e desengonçados e se alojou no sofá.

A um metro e meio dali, João seguia entretido com a revista. Essas estrelas têm o dom de não se preocupar, não veem nada à sua volta. É uma vida divina. Andam sempre com o nariz para cima, sequer olham para o lado. O mundo não existe. Também, olha essa boca, que dentes perfeitos! Quem teria problemas com um sorriso assim?

No sofá ao lado de João, a criatura mostrava enormes dentes incisivos e mexia os maxilares como quem se exercita para atacar uma presa. Num gesto rápido, colocou a língua para fora e capturou um inseto que repousava na janela. Tudo que eu queria, essa vida de estrela. Passar o dia na piscina, em praias paradisíacas, na beira do mar. Mulheres lindas, muito dinheiro. E o principal: sempre gente interessada em mim. Seria a realização máxima: saber que as pessoas procuram as revistas para ler sobre o que faço, com quem estou; que isso é mais importante que suas próprias vidas.

A coisa, agora, olhava com atenção para João; erguia suas poderosas garras cortantes e as movia devagar na direção do homem. Das mãos escamosas, pingavam mais gotas verdes, que faziam um som pastoso ao tocar o solo. Acho impressionante como eles não têm medo. São só vida, aventura. Pulam de para-quedas como quem vai ao mercado. São bravos. Eu, se fosse rico, teria que aprender a não ter medo. Ah, como eu queria deixar de lado essa vida comum, essa monotonia.

O ser ergueu-se do sofá, e o corpo descomunal fez João parecer ainda menor. Deu um passo lento, com as garras erguidas, a boca espumando e o olhar determinado. Um som no guichê, no entanto, o fez parar. A recepcionista retornava com uma folha de papel na mão. Limpou a garganta e chamou: “Sr. Smith?”.

A criatura olhou mais uma vez para João, deu meia-volta e caminhou sem pressa até a bancada de madeira que o separava da mulher. Ela lixava as unhas, concentrada: “Pode passar na primeira porta à esquerda, Sr. Smith”. A coisa fez expressão de agradecimento e seguiu na direção indicada.

O som do abrir e fechar da porta precedeu o silêncio que restou na sala de espera.

por Rodrigo Rosp


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

A Coruja Empalhada


ANDAVA PELA CIDADE velha de Montevidéu, tentando encontrar o objeto especial, aquele que faria seus olhos crescerem. Gravariam o comercial no mês seguinte, seu prazo já estava acabando, e Heitor começava a ficar nervoso. Fumara um maço de cigarros na noite anterior, enquanto procurava na internet estabelecimentos exóticos. Não encontrara nada que lhe fizesse saltar da cadeira. Era apenas um filme de quinze segundos, mas o objeto principal não estava definido.

Heitor tirara o dia para percorrer a cidade. Pensava que descobriria alguma coisa nas ladeiras que levam até o porto ou nos casarios próximos à 18 de Julio. Atravessando uma rua paralela à principal, avistou de longe uma loja decrépita, mas cujo pano vermelho na vitrine chamava a atenção. E havia algo mais: duas esferas escuras que cintilavam. A placa na frente da loja parecia ter perdido suas letras há muito tempo, pois a marca dos símbolos que ali estiveram não se podia perceber.

Ao se aproximar da fachada do edifício, ele conseguiu entender do que se tratava o estabelecimento. Na vitrine, uma cabeça de javali sobre uma moldura que imitava ouro fazia uma composição com outra, de rinoceronte, as duas com suas presas bem polidas e afiadas. Contudo, era o que estava abaixo delas que chamara a atenção de Heitor desde lá de longe, no outro canto da rua. Uma coruja empalhada.

O brilho dos seus olhos era tão claro que parecia estar viva. O animal repousava sobre um galho de uma árvore que poderia passar por um carvalho, com folhas verdes muito bem conservadas. Atrás dela, uma cortina de veludo vermelho com detalhes em dourado dava a sensação de que aquele objeto era a estrela de um show particular. Heitor, como bom espectador, ficou observando a coruja com atenção aos detalhes. Tudo parecia perfeito.

Os olhos, tão brilhantes, como se um líquido os tivesse banhado havia pouco tempo, eram intrigantes. Aproximou-se da ave, inclinando-se em frente à vitrine, deixando seu hálito embaçar o vidro.

Os olhos do animal viraram.

Heitor retomou a posição ereta e fixou a coruja com incredulidade. Encolheu-se novamente para perto dela, tentando repetir aquela sensação de absurdo. Nada ocorreu. Resolveu, então, entrar na loja.

Era um lugar estreito, mas comprido. De um lado, muitas cabeças de animais, dos mais variados tipos e lugares. Havia peixes pendurados em molduras na parede; pequenos bichos empalhados, como capivaras e emas, apoiados em bases no chão. Ele tocava nos animais tentando verificar o quão mortos estavam. Tantos animais e nenhuma presença humana. Estariam todos o observando?

Mais para frente, um sarcófago em forma de gato estava aberto e, dentro dele, como se feito sob medida, repousava um felino de cor caramelo. Heitor desabotoou o colarinho, sentindo-se abafado.

No lado oposto às centenas de animais, havia um balcão e, atrás dele, pequenas gavetas com nomes escritos. Um cheiro forte, que lembrava amoníaco, emanava daquele móvel. Heitor pôde ler alguns dos nomes: alúmen, arsênico branco, pó de crisântemo, pimenta negra, enxofre sublimado. Concluiu que eram ingredientes usados para empalhar os animais.

O pé-direito do lugar era muito alto. Percebeu-se boquiaberto quando pôs os olhos em um mezanino sobre sua cabeça. Andando para frente com o olhar fixo no mezanino, Heitor colidiu com um outro animal empalhado: um bezerro de duas cabeças.

Não conteve o grito. Não foi nada histérico, mas, com certeza, denunciaria sua presença. Observou aquela aberração, esperando que alguém o interpelasse. Ninguém veio. Pensou que tudo ali parecia feito para assombrar as pessoas, ou para atraí-las demais, dependendo do tipo de gente que os vê. Um daqueles animais empalhados, filmados da maneira apropriada, com uma iluminação que construísse um clima, seria sensacional. Só faltaria, para tanto, a autorização do dono.

Heitor parou por uns instantes e conseguiu ouvir alguns ruídos que vinham do fundo da loja, detrás de uma cortina parecida com a da vitrine. Era um treque-treque como se alguém estivesse rasgando papel. Aproximou-se da cortina, afastando-a para os lados.

Lá dentro, havia alguém aparentando ter entre vinte e trinta anos, não sabia se homem ou mulher. Sentado em frente a uma mesa, parecia abrir um pacote feito de jornal congelado. Essa pessoa tinha cabelos loiros compridos, amarrados para trás, e traços ossudos no rosto. A boca era delicada e avermelhada, mas o nariz era comprido e adunco; as maçãs do rosto, coradas. Podia-se reparar uma sombra cinzenta pintada sobre suas pálpebras, rímel delineando seus cílios, mas as sobrancelhas não tinham o menor cuidado e eram grandes. Heitor ensaiou um efusivo olá.

– Posso ajudar em algo? – perguntou aquela pessoa, sem tirar os olhos do embrulho, que revelava um faisão de penas compridas com chumaços de algodão no bico e no ânus.

– Para que servem esses... algodões? – indagou Heitor, que havia recuado um pouco ao ver o animal.

– Para não deixar que saiam o sangue e os excrementos.

Perto da claraboia da saleta dos fundos, Heitor percebeu um incenso aceso que conferia ao ar o aroma de mel e erva-doce.

– Sou cenógrafo – disse Heitor. – Gostaria de alugar algum destes animais para usá-lo em um comercial. Há algum responsável pela loja?

– O responsável sou eu – explicou, continuando a limpar o faisão. – Não estou interessado em permitir o aluguel. Iria danificá-los.

– Posso lhe garantir que teremos o maior cuidado – afirmou, tentando forçar os lábios, sem conseguir o efeito desejado. – Vou lhe passar um cheque-caução, e também podemos lhe oferecer um bom dinheiro.

– Não, obrigado – reforçou, ríspido, a dona da loja.

Heitor se virou e tocou a cortina. Pensou que teria de voltar outra hora, insistir com aquele imitador de David Bowie através de um envelope com alguns dólares.

– Espere – chamou o andrógino. – Imagino que alguma coisa deve ter chamado a sua atenção aqui. As pessoas não costumam entrar nesta loja sem levar ou deixar uma coisa – olhou para Heitor da cabeça aos pés como se tentasse encontrar algo nele. – A maioria delas nem percebe nossa existência – e sorriu.

– Na verdade, tem aquela coruja na vitrine – o cenógrafo não sabia se confessava, mas, para que se importar? Era só um cara esquisito mesmo. – Eu acho que vi o bicho se mexer.

– É mesmo? Interessante... – a pessoa levantou-se rápido, assobiando uma canção exótica, e atravessou a cortina. – Venha comigo.

Nisso, entrou pela claraboia uma borboleta de asas azuis metalizadas, um tanto furta-cor. Heitor ficou olhando para ela fascinado com seu bater de asas, que, em breves instantes, parecia mudar a cor, do azul para um rosa esmaecido. Enquanto olhava, o homem maquiado retornou para a sala.

– Ah, aí está você, borboletinha! – exclamou, animada, a criatura estranha, logo percebendo a movimentação da borboleta ao pousar de móvel em móvel. – Por favor, não esmague esse espécime! Vamos preservá-la intacta – de dentro da porta de um armário, tirou um pote de vidro. Abriu a tampa e capturou a borboleta, deixando que ela entrasse no frasco. Fechou a tampa e carregou o pote consigo.

O cenógrafo acompanhou o estranho até o mezanino sem deixar de prestar atenção ao que acontecia com a borboleta.

– Veja, meu amigo... – pediu o dono da loja, enquanto indicava a sua coleção de animais empalhados no andar inferior. – A taxidermia é uma arte. A arte de fazer parecer o que não é. Tem sido transmitida de geração a geração – colocou o pote com a borboleta sobre um móvel antigo. – É também magia. Transformar um corpo que estava morto em algo próximo ao que foi em vida – Heitor viu o vidro da borboleta embaçando e passou a mão sobre o pescoço, tentando abrir o colarinho, que já estava aberto. – Recriar cada detalhe é um trabalho árduo, é preciso conhecer bem cada exemplar. Aquela coruja, por exemplo, uma coruja-das-torres, com o orbe facial em forma de coração...

As palavras daquela pessoa não pareciam mais fazer sentido, toda a atenção de Heitor estava voltada para a borboleta, que começava a se debater dentro do pote de vidro, buscando ar. O cenógrafo respirou profundamente, buscando para si o ar de que a borboleta não dispunha. E, enquanto o empalhador falava dos hábitos noturnos das corujas, de como digeriam os animais e vomitavam bolas de pelos e ossos, e admirava toda sua obra, Heitor se jogou sobre o vidro em que estava a borboleta, abrindo a tampa e libertando-a.

Seu interlocutor só se deu conta da libertação do inseto quando a borboleta passou voando na sua frente. Ao virar-se, viu Heitor colocando o pote devagarzinho em cima do móvel velho. Seu rosto foi ficando vermelho até assumir uma tonalidade próxima a um sinal de perigo, como as crianças quando são contrariadas.

– Você soltou o lepidóptero! – a borboleta azul de asas furta-cor atravessou naquele instante a porta da loja. – Um espécime raríssimo, pronto para fazer parte da minha coleção. Eu estava disposto a deixar você sair da loja pelo preço do inseto. Mas, como o pagamento não foi feito, terei de fazê-lo cumprir o que foi ordenado há muitos anos atrás. Gostou da coruja? Pois sim!

Heitor sentiu seus braços, pernas e pescoço endurecerem. Percebeu o corpo diminuir, os olhos aumentarem. Sobre seu corpo, uma cobertura espessa e macia.

Abriu os olhos. Viu a rua, carros e pessoas passando, indiferentes; uma sacola plástica voando, levada pelo vento. As letras pintadas no vidro, espelhadas, lhe eram familiares. Reconheceu a loja de antiguidades que visitara, no que lhe pareceu ser poucas horas atrás. Ao seu lado, numa proximidade incoerente, estava a coruja empalhada, entre outros pequenos objetos que, assim como ele, nada podiam fazer.

Apenas observar.

por Guilherme Smee


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

Visitas


A VÉSPERA DE seu aniversário de oito anos, Rafael ganhou do pai um par de walkie-talkies. Importados do Paraguai, enormes peças de plástico de cor bege, longas antenas e um dial capaz de captar uma infinita variedade de chiados de estática, conversas entre taxistas, uma melodia engasgada que talvez fosse de uma rádio, mas absolutamente incapazes de se comunicar um com o outro.

Seu pai ficou chateado, era natural, considerando todo o trabalho que tivera em trazê-los de Rivera por sete horas de viagem de ônibus, mas Rafael não se importou com o defeito. Filho único, não teria mesmo com quem brincar, e sabia se virar sozinho: disse que adorou o brinquedo e não o largou o dia todo, correndo pela casa e pelo jardim, sempre em contato direto com agentes secretos e super-heróis.

À noite, subiu para seu quarto. Moravam em uma casa de dois pisos, de telhado triangular, construção típica das cidades de colonização italiana da serra gaúcha. Ali, sozinho em seu quarto, sentou-se sobre a cama, de frente para uma grande janela redonda com pesadas esquadrias metálicas na forma de uma flor (mas, na sua imaginação, eram as hélices de uma turbina). Ali, geralmente dormia olhando o céu, na esperança de conseguir ver alguma estrela cadente (no último Natal, ganhou uma luneta de presente dos pais, mas não tinha paciência para decorar nomes de constelações e logo perdeu o interesse).

Naquela noite, com o walkie-talkie na mão, fingiu que conversava com seus amigos da escola, com os primos que moravam na capital e com astronautas imaginários, em missão secreta na lua, de cuja existência só ele tinha conhecimento.

Amanhã é meu aniversário, disse ao rádio. Vai ter bolo de chocolate, vai ter doces, branquinho e negrinho. Cachorro-quente com salsicha fatiada em pão massinha. Vai ter bala de coco. Coca-Cola, Guaraná e Fanta. A festa vai ser de palhaços. Tudo vai ter palhaços. Os copos e os pratos e a decoração e o bolo, tudo. Vai ser bem legal. Vai vir um monte de gente. O Gabriel, o Márcio e os amigos da turma do colégio. As meninas também. Até a Vanuza, eu não gosto dela, mas a mãe disse que tem que convidar por educação, mas tudo bem, porque daí vem mais presente. E os primos vão vir de Porto Alegre. Vai ser muito legal. Câmbio, desligo.

Choveu.

A água começou a cair de madrugada e se prolongou pela manhã. Ao meio-dia, o mundo ao redor da casa era puro barro, um charco. O céu parecia feito com o algodão sujo de um travesseiro velho. Mesmo assim, prepararam as mesas de plástico no jardim dos fundos da casa, que ficava ao lado de um descampado onde, por sua vez, um escorregador de plástico jazia encharcado.

Na cozinha, sua mãe o observava, apreensiva, através da janela que lhe dava visão privilegiada dos fundos e do descampado. Rafael, sentado lá fora, com o queixo sobre os braços cruzados, observava o vento frio que fazia um copo plástico rolar de um lado a outro da mesa, batendo e voltando entre dois pratinhos de papel que o impediam de cair ao chão.

Súbito, o telefone tocou. Rafael ergueu a cabeça, apreensivo, e olhou para dentro de casa. Sua mãe correu a atender. Era a irmã, avisando que o tempo ruim e a neblina na estrada a deixavam com medo de subir a serra num carro cheio de crianças. Meia hora depois, a mãe de Márcio ligou para avisar que ele estava gripado e não iria.

Às cinco horas, o sol começou a se pôr. Rafael continuava sentado, sozinho no jardim, enquanto sua mãe permanecia na cozinha, procurando qualquer coisa para fazer, que a mantivesse ali, volta e meia precisando encarar o bolo não-cortado, em forma de cara de palhaço, sorriso de merengues, olhos de bombom e nariz de morango, e as caixas cheias de docinhos para repor os que nunca chegaram a ser comidos.

O marido, sentado na sala, mãos nos bolsos, sem saber o que fazer. Por que não ia lá fora e conversava com o menino? Por que ficava ali sentado, sempre esperando que ela tomasse a decisão de fazer algo? O clima entre os dois não andava dos melhores já fazia algum tempo. O silêncio e o vazio daquela festa que não houve só ampliavam o desconforto.

– Que tal alugar um filme? – disse ela, enfim. – Talvez isso alegre o Rafa um pouco.

Ele a encarou por algum tempo, até enfim concordar com um aceno, levantar-se do sofá e sair de casa.

Rafael entrou em casa – ouvira o som do carro, perguntou o que havia acontecido.

– O pai foi pegar um filme pra gente ver – disse-lhe a mãe, e saiu para o jardim para recolher os pratinhos de doces.

Rafael pediu-lhe que não. O convite dizia das três às seis, e ainda não eram seis horas. Ela mordeu o lábio, incapaz de dizer ao filho o óbvio, que ninguém viria, como se prolongando o suspense pudesse evitar o momento inevitável em que não teria nada para dizer que pudesse consolá-lo. Concordou, acendeu as luzes do jardim e foi para a cozinha, ocupar-se do jantar, pensar em outra coisa.

Rafael ficou sentado nas cadeiras de plástico. O momento em que comesse algo seria o momento em que precisaria reconhecer que ninguém viria; seu estômago já roncava de fome, cedeu a dar uma mordida em um cachorro-quente já frio, jogou no chão com raiva, cruzou os braços sobre a mesa e afundou o rosto neles, chorando. Ficou uns bons cinco minutos em silêncio, meio sonolento.

Ouviu passos na grama, que julgou serem da mãe, vindo retirar a comida fria. Não levantou o rosto, não iria protestar dessa vez. Também não queria ter que encará-la. Os passos, entretanto, não pareceram seguir para dentro da casa, mas em direção ao descampado. Ergueu o rosto, curioso, e viu que os doces ainda estavam todos lá, exceto por um pratinho. Na grama, um brigadeiro solitário estava caído, envolto no papel crepom que simulava uma gola de palhaço.

Levantou-se da cadeira e caminhou para fora do jardim. Atravessou o descampado, e o vento soprou outra rodela de papel crepom azul-claro, vinda de um matagal de árvores altas e emaranhadas ali perto. O sol já havia se posto, mas a noite ainda não surgira, a claridade do dia ainda suspensa por alguns minutos numa indefinição entre o claro e o escuro. Rafael entrou no mato fechado, onde havia um vulto escuro agachado, comendo.

− Quem é você? – perguntou.

Em casa, a mãe colocava a comida no forno. Apertou o botão do acendedor elétrico, mas nada aconteceu. Foi quando se deu conta de que havia faltado luz. Bateu a porta do forno com raiva, xingou a si mesma, buscando algo que a fizesse sentir-se culpada. Mesmo que, conscientemente, soubesse que não era sua a responsabilidade da chuva ou da neblina, o pensamento de que poderia ter se esforçado mais, ligado para as pessoas, insistido, a importunava. No fundo, sentia-se culpada pelo casamento que caminhava para um fim melancólico – e temia que Rafael pudesse sentir o clima ruim dentro de casa.

Achou os fósforos. Abriu o forno e abaixou-se para acender o fogo. Ao se erguer de volta, teve a sensação de ver, pelo canto da janela, alguém de pé do lado de fora da casa, parado, a observando. Virou o rosto rápido, mas não havia ninguém. Logo em seguida, o marido entrou em casa, resmungando do carro que tinha apagado na metade do caminho, do tanto que teve que caminhar afundando os sapatos na terra enlameada e saltando de poça em poça. Tinha na mão duas caixas de fitas VHS alugadas. Uma, de desenho animado, para o garoto. Como ele próprio não tinha paciência para assistir desenhos mesmo com o filho, pegara outro filme, algo mais família, para assistirem juntos.

– Bambi? – disse ela, desconfiada, olhando a caixa da fita.

– Ele gosta, não? Já viu várias vezes.

– É algum tipo de ideia sua? De preparar o Rafa pra alguma coisa?

– Como assim? Do quê você está falando?

– Se você está pensando em ficar com a guarda...

– Meu Deus, é só uma droga de um filme! – resmungou ele. – Será que temos que discutir sobre isso o tempo todo? É só uma droga de um desenho animado! Não vou discutir isso com você, não hoje.

A luz voltou, e foi quando perceberam o quanto já havia escurecido lá fora.

– Cadê o Rafa? Não era melhor ele entrar? – perguntou o pai.

Ela o encarou em silêncio, largou a fita de vídeo sobre a mesa da cozinha e saiu para o quintal. Não percebeu o menino à vista, mas notou que um pratinho de doces havia sido tirado da mesa. Sorriu, de alguma forma a confortava saber que ele parara com a birra e comera alguma coisa. Recolheu a comida e olhou para o alto: o tempo começara a abrir num céu estrelado. Ao menos, teriam uma noite bonita.

Terminou de guardar a comida e deu uma olhada no assado. Estava quase pronto. Chegou à beira da escada e gritou por Rafael, que descesse para jantar. O menino não respondeu. Ela começou a ficar preocupada. Subiu até o quarto, mas estava vazio. Por algum motivo, acreditava que o garoto havia subido e estava no quarto havia um bom tempo. Sentiu um calafrio. Desceu as escadas e gritou outra vez.

− Rafael!

− O que aconteceu? − perguntou o pai.

− Não encontro esse menino.

− Não está lá fora?

− Não.

− Rafael! – gritou o pai.

− Tô aqui – respondeu ele, entrando na sala.

− Onde você estava, meu filho? − perguntou a mãe.

− Falando com um amigo.

− Onde?

− Já foi embora.

Os pais se entreolharam. Sabiam que o menino estava inventando aquilo, mas, se aquela era sua forma de lidar com a festa malsucedida, não tirariam isso dele.

A mãe ficou um pouco aliviada por saber que, pelo menos, alguém aparecera na festa. Rafael parecia tranquilo, ainda que um pouco cabisbaixo com as outras ausências. O menino colocou as mãos nos bolsos e baixou a cabeça, falando e balançando o corpo como fazia quando se preparava para pedir algo que achava que não seria permitido.

− Ele perguntou se posso visitar a casa dele.

− Onde ele mora?

− Não sei...

− Como se chama?

− Também não sei...

− Como assim, não sabe? Não era um amigo?

− É um amigo novo. Pra trocar pelos outros que são tudo merda.

− Não diga palavrão!

− Desculpe...

Ficaram os três em silêncio por alguns instantes. Ela se abaixou e pediu que ele a olhasse nos olhos. O menino obedeceu. Ela perguntou se estava tudo bem, e Rafael respondeu que sim, só estava chateado porque os amigos antigos não tinham aparecido, mas tudo bem, trocava todos pelo amigo novo. A mãe perguntou sobre o que ele e o amigo conversaram.

− Nada. Ele não falava muito. Acho que é mudo.

− Como assim? Como sabe que ele convidou você pra ir à casa dele?

O menino ergueu os braços. Eu só sei que ele convidou, disse. Ela colocou a mão em sua cabeça para verificar se estava com febre, mas não estava. Creditaram tudo à imaginação de Rafael, que tendia a aumentar quanto mais sozinho ficava.

Os três jantaram o assado, e cada um comeu uma fatia do bolo como sobremesa. Nenhum dos dois estranhou que Rafael resolvesse jantar com um dos walkie-talkies ao lado, tampouco perguntaram onde fora parar o outro. Não quis assistir filme nenhum, preferia ir direto para o quarto.

O pai anunciou que iria buscar o carro, ver se agora o motor pegava, e saiu de casa, enquanto a mãe o colocava para dormir. Com um beijo de boa-noite na testa, saiu do quarto aliviada que, afinal de contas, o menino não estava tão tristonho quanto temia.

No meio do caminho, enquanto descia as escadas, faltou luz outra vez. Resignada, tateou o caminho até a cozinha à procura de velas. Encontrou-as jogadas no fundo de uma gaveta e buscou a caixa de fósforos deixada sobre o fogão.

Riscou um fósforo, e o quintal inteiro se iluminou com uma luz branca, intensa e leitosa. A casa toda chacoalhou, o som de vento uivando ensurdecedor por todas as frestas, como se uma turbina de avião estivesse batendo à porta. Não pensou no que podia estar acontecendo, ou como estava acontecendo; a única coisa que pensou foi no filho, e subiu as escadas correndo, saltando os degraus de dois em dois, atirou-se para a porta do quarto de Rafael, mas estava trancada – e ela não a havia trancado.

A maçaneta sequer girava. Bateu com os punhos, gritou. O desespero lhe deu forças que não imaginava ter, atirou-se de ombro contra a porta de madeira, fazendo-a rachar, a intensa luz branca vazando pela fresta. Olhou em volta, pegou a coisa mais pesada ao seu alcance – a base de metal de um abajur na cômoda do corredor – e golpeou a porta com força. Quanto mais rachaduras surgiam, mas jatos de luz branca vazavam, o som de vento ondulando em ciclos, pouco a pouco se dando conta de que não era simplesmente vento que produzia aquele som.

Súbito, a luz se apagou, e a porta cedeu. Ela entrou no quarto desesperada, tropeçando em brinquedos e gritando o nome do filho. O som cíclico de vento agora estava distante e se afastava cada vez mais. A janela redonda, com suas pesadas esquadrias em forma de flor, estava aberta. E Rafael não estava mais no quarto.

Quando o marido entrou na casa, ficou apavorado. Da estrada, não tinha bem certeza do que vira, e encontrar a casa revirada como que por um terremoto o deixou em pânico. Subiu a escada aos tropeços.

Encontrou a esposa sentada na cama de Rafael, em silêncio, imóvel, observando o céu estrelado através da janela aberta. Segurava firmemente entre as mãos o walkie-talkie paraguaio.

Ele perguntou onde estava Rafael. Ela, por algum motivo, sorria. Disse que estava tudo bem. Mas que precisavam conversar.

por Samir Machado de Machado


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

Vácuo


RELATÓRIO 153-TH [1]

[Transcrição]

Dia 1

9:23

[som de explosão; alerta começa a tocar; motor da nave tenta acelerar; nova explosão; som mecânico da cápsula de emergência separando-se da nave; queda livre; para-quedas se abrem; cápsula aterrissa]

9:28

[som da escotilha sendo aberta; alguns passos; vento]

9:31

Minha aterrissagem foi concluída com sucesso. Quanto à do resto da tripulação, não sei. Espero que estejam bem. Após a nave perder controle[2], achamos melhor que alguém fosse lançado na cápsula de emergência. Por ser o comandante, fui a escolha óbvia.

Encontro-me a cerca de oitenta quilômetros ao sul do ponto de chegada programado, na zona equatorial, e acredito que a nave tenha caído lá mesmo. Não consigo enxergar muito bem, pois aqui é escuro, mas acredito estar em um local deserto. O sol, um pouco maior do que uma estrela, é avermelhado, não ilumina muito o lugar onde estou[3]. Mas consigo ver a silhueta de um relevo rochoso no horizonte, formando uma espécie de paredão de pedras. Deve ser o ponto em que eles caíram. Aguardo informações para saber o que devo fazer.

10:51

Aguardo contato.

11:02

Acho melhor eu começar meu trajeto em direção à zona equatorial. Preciso correr.

13:23

[passos rápidos; respirando fundo]

A gravidade em Gliese tem um pouco menos força do que na Terra. É muito estranho caminhar, ainda não me acostumei. A roupa também não ajuda. Tive que parar um pouco para recuperar o fôlego e descansar. Mesmo com exercícios, a viagem no ônibus espacial enfraquece muito os músculos. O ar é rarefeito, o suficiente para que um homem consiga respirar, mas o frio impede que eu tire meu capacete. O céu daqui troca constantemente de cor, variando entre amarelo, vermelho, verde e lilás, como uma aurora boreal. Isso provavelmente ocorre por causa dos gases presentes na atmosfera. É muito bonito.

16:12

[ofegante]

Estou com muita sede. Sigo caminhando, mas ainda tenho muito caminho pela frente. Uma das maneiras que iríamos utilizar para analisar o quanto a atmosfera de Gliese é apropriada para a vida animal seria observar a decomposição dos corpos de animais que trouxemos na nave. Assim, conseguiríamos rapidamente enxergar os tipos de bactérias e micro-organismos presentes no ar e no solo.

É uma missão importante. Os espécimes, tanto animais[4] como vegetais e sementes[5], permaneceram dentro da nave. Possivelmente, foram destruídos no impacto. O problema não é que tenham morrido, pois já estavam mortos, mas sim que os corpos tenham sido incinerados. Mesmo assim, preciso ir até a zona equatorial e verificar se algo pode ser utilizado. Além disso, aproveito para ficar no melhor clima.

Se algumas das amostras das sementes, assim como parte do nosso reservatório de água, não tiverem sido destruídas, posso tentar plantar algo que me ajude a sobreviver por mais algum tempo. Caso isso não dê certo, minha última esperança é que os mantimentos de comida ainda estejam intactos, o que me daria alguns meses até que Gaia X chegasse.

16:35

[vento forte]

Mal consigo caminhar. Os ventos, na zona onde me encontro, podem chegar a quase um quarto da velocidade do som. É claro que não estão nem perto disso, mas, se aumentarem, já será o suficiente para me obrigar a encontrar alguma forma de abrigo até passar. A pouca gravidade não está ajudando. Não consigo ter muita noção do quanto já caminhei, mas acho que estou quase na metade do caminho.

17:20

[gritando; vento mais forte]

Enxergo o que parece ser uma caverna à minha direita! Sairei do meu curso, preciso me proteger do vento. Está ficando mais forte, já estou quase sendo carregado!

18:03

[voz ecoando no silêncio]

A caverna não é muito ampla, mas já é suficiente para quem passou meses em um ônibus espacial, onde o espaço para dormir não é maior do que uma gaveta. Vou tentar descansar um pouco.

19:12

[sussurrando]

Às vezes, penso se tudo isso tem sentido, se nossa missão é tão importante assim. Penso se a mídia não tem razão[6]. Quero dizer, sei que a tarefa é confirmar testes realizados pelas outras oito missões Gaia, mas será que era mesmo necessário? Acho que ser um astronauta é algo superestimado. Não é um trabalho heroico como muitos pensam. É uma profissão como qualquer outra. Burocrática e cansativa.

[pausa]

Não sei por que continuo falando se ninguém me responde.

19:17

Lembrei de uma piada boa: Por que a vaca foi para o espaço?

[pausa]

Para encontrar o vácuo.

[risadas]

19:25

Algo que poucos sabem sobre o espaço é que ele tem cheiro. Não que eu tenha colocado meu nariz para fora da nave e cheirado o vácuo, mas, indiretamente, é possível senti-lo. Por exemplo, quando saímos da nave para fazer algo, tanto as roupas como todos os equipamentos ficam com o mesmo cheiro depois. É um aroma doce, mas metálico, e bastante intenso.

19:36

Lembrei outra piada: no meio da noite, um casal é acordado por um estrondo. Eles vão até o quintal e veem que um disco voador acabou de pousar ali. Da nave, desce um casal de marcianos. Após o susto inicial, os quatro começam a conversar e beber uísque. Uma dose aqui, outra ali, logo todos estão bêbados, e eles resolvem fazer uma troca de casais.

Ansiosa por uma aventura extraconjugal, a mulher terráquea se tranca no quarto com o marciano e rapidamente tira a roupa do seu parceiro. Ao ver o órgão sexual dele, de uns cinco centímetros de comprimento, ela fica decepcionada. Percebendo o tom de desgosto no rosto da parceira, imediatamente o marciano torce uma de suas orelhas e seu órgão dobra de tamanho. Uma nova torcida, e fica enorme.

Na manhã seguinte, não cabendo em si de tanta satisfação, a mulher se vira para o marido e pergunta: “E então, querido, como foi a sua noite com a marciana?”. “Horrível! Ela é completamente maluca! Passou a noite inteira torcendo as minhas orelhas!”

[risadas]

Essa foi horrível, eu sei. Não consigo dormir.

Dia 2

8:32

Dormi cerca de quatro horas[7]. O vento já diminuiu consideravelmente. Parece estar parando. Vou seguir o meu caminho.

14:34

Consegui avançar um bom trecho agora que o vento parou. Acho que não deve faltar muito. Tenho muita fome e sede. A fome ainda consigo controlar. O pior é a sede. Aqui onde estou, o frio já começou a diminuir. Acho que já posso tirar meu capacete. Estou chegando próximo ao paredão que havia citado. Ele parece ter uns dez metros de altura[8], e preciso escalá-lo para chegar onde a nave está. A gravidade deve colaborar.

19:40

Acho que estou enxergando a nave! Ainda está distante, mas tenho quase certeza de que é ela. Só pode ser. Reconheço esse cheiro de longe. Vou correr para chegar lá.

20:30

Como eu esperava. Tudo destruído. A nave parece ter pegado fogo. Não sobrou nada nem ninguém. Até a água já deve ter evaporado. Meu Deus.

20:38

[voz trêmula; falando rápido]

O que eu vou fazer? Posso aguentar mais um tempo sem comer, mas não sem beber. Preciso completar a missão, ou pelo menos fazer algo para impedi-la de ser um fracasso completo.

Dia 3

16:25

Pensei em uma maneira de continuar a missão. Uma pena é que não vai restar ninguém aqui pra completá-la. Mas vocês vão me encontrar, sei disso. Na verdade, assim é melhor. Desse jeito, vocês conseguirão analisar a decomposição do meu corpo sob a superfície do planeta. Existirão bactérias para devorar o meu corpo ou ele continuará igual, mumificado? O paredão que precisei escalar vai deixar de ser apenas um obstáculo, virando um instrumento que me ajudará a completar os meus objetivos[9].

por Frederico Cabral

[1] Caro Senhor Fulano de Tal, a transcrição presente neste relatório contém uma transmissão de áudio captada seis meses após sua realização, narrada pelo comandante da missão, Cicrano Beltrano, referente ao projeto Gaia IX, sobre a terraformação do planeta Gliese. O conteúdo das mensagens demonstra as tentativas do astronauta de completar a missão. [2] A citada “perda de controle”, segundo perícia realizada, foi ocasionada por provável erro humano. [3] O planeta é dividido em dois hemisférios. Em um deles, é sempre dia; no outro, é sempre noite. No primeiro, a temperatura média é de sessenta graus. No segundo, é de menos quarenta. A temperatura média é de vinte e seis graus na zona equatorial. Lá, o sol está sempre próximo do horizonte. Então, o dia inteiro parece com um amanhecer ou com um entardecer. [4] Macacos, ratos, sabiás, sapos e aranhas. [5] Feijão, soja e ervilha, além de árvores como araucária, pau-brasil e goiabeira. [6] O comandante refere-se ao fato da missão ser chamada pela imprensa de “turismo espacial”. [7] Ao contrário do que o astronauta parece acreditar, na verdade ele dormiu aproximadamente treze horas. [8] Na verdade, quatro metros e doze centímetros. [9] O que veio a seguir foi uma série de gritos de dor, xingamentos e confissões do comandante, que precederam seu definhamento até a sua inevitável morte por desidratação alguns dias depois. O astronauta Beltrano Cicrano , além de ter calculado mal a altura em que se encontrava, esqueceu-se da força da gravidade regente em Gliese. Ainda vale ressaltar que, apesar da ação suicida, desnecessária, mas, por que não, poética do astronauta, seus restos nunca foram encontrados por nenhuma das missões Gaia subsequentes, completando o fracasso ao qual a tripulação pareceu estar destinada desde o princípio.


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.