domingo, 10 de junho de 2018

A Coruja Empalhada


ANDAVA PELA CIDADE velha de Montevidéu, tentando encontrar o objeto especial, aquele que faria seus olhos crescerem. Gravariam o comercial no mês seguinte, seu prazo já estava acabando, e Heitor começava a ficar nervoso. Fumara um maço de cigarros na noite anterior, enquanto procurava na internet estabelecimentos exóticos. Não encontrara nada que lhe fizesse saltar da cadeira. Era apenas um filme de quinze segundos, mas o objeto principal não estava definido.

Heitor tirara o dia para percorrer a cidade. Pensava que descobriria alguma coisa nas ladeiras que levam até o porto ou nos casarios próximos à 18 de Julio. Atravessando uma rua paralela à principal, avistou de longe uma loja decrépita, mas cujo pano vermelho na vitrine chamava a atenção. E havia algo mais: duas esferas escuras que cintilavam. A placa na frente da loja parecia ter perdido suas letras há muito tempo, pois a marca dos símbolos que ali estiveram não se podia perceber.

Ao se aproximar da fachada do edifício, ele conseguiu entender do que se tratava o estabelecimento. Na vitrine, uma cabeça de javali sobre uma moldura que imitava ouro fazia uma composição com outra, de rinoceronte, as duas com suas presas bem polidas e afiadas. Contudo, era o que estava abaixo delas que chamara a atenção de Heitor desde lá de longe, no outro canto da rua. Uma coruja empalhada.

O brilho dos seus olhos era tão claro que parecia estar viva. O animal repousava sobre um galho de uma árvore que poderia passar por um carvalho, com folhas verdes muito bem conservadas. Atrás dela, uma cortina de veludo vermelho com detalhes em dourado dava a sensação de que aquele objeto era a estrela de um show particular. Heitor, como bom espectador, ficou observando a coruja com atenção aos detalhes. Tudo parecia perfeito.

Os olhos, tão brilhantes, como se um líquido os tivesse banhado havia pouco tempo, eram intrigantes. Aproximou-se da ave, inclinando-se em frente à vitrine, deixando seu hálito embaçar o vidro.

Os olhos do animal viraram.

Heitor retomou a posição ereta e fixou a coruja com incredulidade. Encolheu-se novamente para perto dela, tentando repetir aquela sensação de absurdo. Nada ocorreu. Resolveu, então, entrar na loja.

Era um lugar estreito, mas comprido. De um lado, muitas cabeças de animais, dos mais variados tipos e lugares. Havia peixes pendurados em molduras na parede; pequenos bichos empalhados, como capivaras e emas, apoiados em bases no chão. Ele tocava nos animais tentando verificar o quão mortos estavam. Tantos animais e nenhuma presença humana. Estariam todos o observando?

Mais para frente, um sarcófago em forma de gato estava aberto e, dentro dele, como se feito sob medida, repousava um felino de cor caramelo. Heitor desabotoou o colarinho, sentindo-se abafado.

No lado oposto às centenas de animais, havia um balcão e, atrás dele, pequenas gavetas com nomes escritos. Um cheiro forte, que lembrava amoníaco, emanava daquele móvel. Heitor pôde ler alguns dos nomes: alúmen, arsênico branco, pó de crisântemo, pimenta negra, enxofre sublimado. Concluiu que eram ingredientes usados para empalhar os animais.

O pé-direito do lugar era muito alto. Percebeu-se boquiaberto quando pôs os olhos em um mezanino sobre sua cabeça. Andando para frente com o olhar fixo no mezanino, Heitor colidiu com um outro animal empalhado: um bezerro de duas cabeças.

Não conteve o grito. Não foi nada histérico, mas, com certeza, denunciaria sua presença. Observou aquela aberração, esperando que alguém o interpelasse. Ninguém veio. Pensou que tudo ali parecia feito para assombrar as pessoas, ou para atraí-las demais, dependendo do tipo de gente que os vê. Um daqueles animais empalhados, filmados da maneira apropriada, com uma iluminação que construísse um clima, seria sensacional. Só faltaria, para tanto, a autorização do dono.

Heitor parou por uns instantes e conseguiu ouvir alguns ruídos que vinham do fundo da loja, detrás de uma cortina parecida com a da vitrine. Era um treque-treque como se alguém estivesse rasgando papel. Aproximou-se da cortina, afastando-a para os lados.

Lá dentro, havia alguém aparentando ter entre vinte e trinta anos, não sabia se homem ou mulher. Sentado em frente a uma mesa, parecia abrir um pacote feito de jornal congelado. Essa pessoa tinha cabelos loiros compridos, amarrados para trás, e traços ossudos no rosto. A boca era delicada e avermelhada, mas o nariz era comprido e adunco; as maçãs do rosto, coradas. Podia-se reparar uma sombra cinzenta pintada sobre suas pálpebras, rímel delineando seus cílios, mas as sobrancelhas não tinham o menor cuidado e eram grandes. Heitor ensaiou um efusivo olá.

– Posso ajudar em algo? – perguntou aquela pessoa, sem tirar os olhos do embrulho, que revelava um faisão de penas compridas com chumaços de algodão no bico e no ânus.

– Para que servem esses... algodões? – indagou Heitor, que havia recuado um pouco ao ver o animal.

– Para não deixar que saiam o sangue e os excrementos.

Perto da claraboia da saleta dos fundos, Heitor percebeu um incenso aceso que conferia ao ar o aroma de mel e erva-doce.

– Sou cenógrafo – disse Heitor. – Gostaria de alugar algum destes animais para usá-lo em um comercial. Há algum responsável pela loja?

– O responsável sou eu – explicou, continuando a limpar o faisão. – Não estou interessado em permitir o aluguel. Iria danificá-los.

– Posso lhe garantir que teremos o maior cuidado – afirmou, tentando forçar os lábios, sem conseguir o efeito desejado. – Vou lhe passar um cheque-caução, e também podemos lhe oferecer um bom dinheiro.

– Não, obrigado – reforçou, ríspido, a dona da loja.

Heitor se virou e tocou a cortina. Pensou que teria de voltar outra hora, insistir com aquele imitador de David Bowie através de um envelope com alguns dólares.

– Espere – chamou o andrógino. – Imagino que alguma coisa deve ter chamado a sua atenção aqui. As pessoas não costumam entrar nesta loja sem levar ou deixar uma coisa – olhou para Heitor da cabeça aos pés como se tentasse encontrar algo nele. – A maioria delas nem percebe nossa existência – e sorriu.

– Na verdade, tem aquela coruja na vitrine – o cenógrafo não sabia se confessava, mas, para que se importar? Era só um cara esquisito mesmo. – Eu acho que vi o bicho se mexer.

– É mesmo? Interessante... – a pessoa levantou-se rápido, assobiando uma canção exótica, e atravessou a cortina. – Venha comigo.

Nisso, entrou pela claraboia uma borboleta de asas azuis metalizadas, um tanto furta-cor. Heitor ficou olhando para ela fascinado com seu bater de asas, que, em breves instantes, parecia mudar a cor, do azul para um rosa esmaecido. Enquanto olhava, o homem maquiado retornou para a sala.

– Ah, aí está você, borboletinha! – exclamou, animada, a criatura estranha, logo percebendo a movimentação da borboleta ao pousar de móvel em móvel. – Por favor, não esmague esse espécime! Vamos preservá-la intacta – de dentro da porta de um armário, tirou um pote de vidro. Abriu a tampa e capturou a borboleta, deixando que ela entrasse no frasco. Fechou a tampa e carregou o pote consigo.

O cenógrafo acompanhou o estranho até o mezanino sem deixar de prestar atenção ao que acontecia com a borboleta.

– Veja, meu amigo... – pediu o dono da loja, enquanto indicava a sua coleção de animais empalhados no andar inferior. – A taxidermia é uma arte. A arte de fazer parecer o que não é. Tem sido transmitida de geração a geração – colocou o pote com a borboleta sobre um móvel antigo. – É também magia. Transformar um corpo que estava morto em algo próximo ao que foi em vida – Heitor viu o vidro da borboleta embaçando e passou a mão sobre o pescoço, tentando abrir o colarinho, que já estava aberto. – Recriar cada detalhe é um trabalho árduo, é preciso conhecer bem cada exemplar. Aquela coruja, por exemplo, uma coruja-das-torres, com o orbe facial em forma de coração...

As palavras daquela pessoa não pareciam mais fazer sentido, toda a atenção de Heitor estava voltada para a borboleta, que começava a se debater dentro do pote de vidro, buscando ar. O cenógrafo respirou profundamente, buscando para si o ar de que a borboleta não dispunha. E, enquanto o empalhador falava dos hábitos noturnos das corujas, de como digeriam os animais e vomitavam bolas de pelos e ossos, e admirava toda sua obra, Heitor se jogou sobre o vidro em que estava a borboleta, abrindo a tampa e libertando-a.

Seu interlocutor só se deu conta da libertação do inseto quando a borboleta passou voando na sua frente. Ao virar-se, viu Heitor colocando o pote devagarzinho em cima do móvel velho. Seu rosto foi ficando vermelho até assumir uma tonalidade próxima a um sinal de perigo, como as crianças quando são contrariadas.

– Você soltou o lepidóptero! – a borboleta azul de asas furta-cor atravessou naquele instante a porta da loja. – Um espécime raríssimo, pronto para fazer parte da minha coleção. Eu estava disposto a deixar você sair da loja pelo preço do inseto. Mas, como o pagamento não foi feito, terei de fazê-lo cumprir o que foi ordenado há muitos anos atrás. Gostou da coruja? Pois sim!

Heitor sentiu seus braços, pernas e pescoço endurecerem. Percebeu o corpo diminuir, os olhos aumentarem. Sobre seu corpo, uma cobertura espessa e macia.

Abriu os olhos. Viu a rua, carros e pessoas passando, indiferentes; uma sacola plástica voando, levada pelo vento. As letras pintadas no vidro, espelhadas, lhe eram familiares. Reconheceu a loja de antiguidades que visitara, no que lhe pareceu ser poucas horas atrás. Ao seu lado, numa proximidade incoerente, estava a coruja empalhada, entre outros pequenos objetos que, assim como ele, nada podiam fazer.

Apenas observar.

por Guilherme Smee


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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