domingo, 10 de junho de 2018

Olhos Vazios


ELE QUERIA QUE eu fosse com ele. Não disse nada. Segurou com as pontas dos dedos o chapéu marrom claro e sinalizou com a cabeça. Eu entendi. Entendi que apontava para a garagem, longe da porta de casa. E me olhava. Sem piscar, sem desviar os olhos de mim. Esperava que eu fosse na frente, que eu desse o primeiro passo.

Finquei tão forte os pés no chão, que temi tombar em sua frente. Se caísse, seria mais difícil me libertar. Mais difícil correr. Mas fugir para onde? Tinha a impressão quase concreta de que ele também estaria onde quer que eu fosse. Assim como estava em todos os cantos da casa. Ele e um cheiro esquisito e quase doce. Como o sangue que escorria da minha perna quando eu caía da bicicleta. Mas ele tinha um machucado que parecia não curar nunca. Sempre com o corpo chorando sangue, desde que o vi pela primeira vez.

Minha irmã havia me pedido para buscar a bola. Como chovia na rua, a mãe deixou que nosso jogo de vôlei acontecesse na sala de estar. Corri até a área externa com os pés descalços, andando rápido para não molhar os dedos. Avistei a bola plástica perto da mesa e, por um segundo, abaixei o corpo e estendi as mãos, agarrando o brinquedo.

Ao levantar os olhos, lá estava ele. Um homem magro, de casaco e calças cor de madeira. Sangrando de tristeza. As mãos pálidas e os olhos vazios. Dois espaços ocos que me hipnotizavam. A cabeça estava voltada para a minha direção e o corpo parecia pronto para seguir caminho. Chamei pela minha irmã. Mana! Mana vem aqui rápido! Ela veio, impaciente porque eu demorava na simples tarefa de buscar uma bola de nada. Quando pressenti a proximidade dela, apontei o indicador para o exato local onde o homem estava.

A mana não entendeu. Gritou que eu parasse de brincadeira, que não tinha ninguém ali. Insisti. Ela chamou a mãe. E fiquei de castigo por mentir. Um tempão sem ver tevê e quase mais tempo ainda sem brincar na rua. Mesmo que a vizinha tenha pedido que eu saísse do castigo. Ouvi a conversa com o rosto encostado na parede. Ela dizia: procura um especialista, alguém de luz que possa ajudar. Não entendi muito o resto. Mas falou de suicídio, palavra que eu não conhecia bem o que era. Disse também que o homem do casaco marrom tinha ficado pendurado pelo pescoço. Ali, bem perto da garagem. E isso, sim, eu sabia que significava que ele tinha morrido. Num tempo que a nossa casa ainda não existia. E tudo eram árvores e matagal. Só que o papo todo não adiantou nada. O chá da vizinha ficou esfriando em cima da mesa.

Eu continuei saindo do quarto somente para ir ao colégio. E, mesmo assim, de mãos dadas com o pai, da porta de casa até o carro. E admito: quase todas as vezes, caminhava de olhos fechados. Por vários dias, esgotei a paciência dele ao me perder nos passos, sem querer bater as pernas nas suas, pisar em algum buraco, ou errar feio e ameaçar uma queda. Quando ele descobriu a cegueira voluntária, me fez prometer que pararia com isso. Eu acabei abrindo. E, insegura, me fixei no meu próprio sapato. No ir e vir dos pés. E só isso. Sem levantar o rosto. Com medo de olhar para aquele homem que me provocava o medo. Então, me cansei das pedras do chão, quase esqueci e achei que era hora de enfrentar. Ergui a cabeça. Brinquei sozinha. Tentei me proteger em mim mesma. Não falei nada para ninguém.

Quando, por um segundo, me distraí, lá estava ele. Me chamando, balançando a cabeça como se dissesse que era hora de irmos. Para onde? E, dentro de mim, ele respondeu que não importava. Pelo
menos não naquele momento. E minha irmã? Meus pais? Não importava. Ele me olhava sem piscar, meus pés congelados no chão, como se minhas canelas fossem quebrar ao mínimo movimento. Mas não importava, não importava. Ele estaria em todos os lugares. Mesmo que eu fechasse os olhos, mesmo que eu adormecesse. Ele estaria lá. E, erguendo o chapéu ao alto, me estendeu uma das mãos. E eu dei o primeiro passo.

Me tornei um nada, atormentado e perseguido. Irreconhecível. Revivendo para sempre, perto da garagem, a cena de minha mãe, segurando o meu corpo inerte de criança e chorando. Lágrimas que nunca cessam.

Mesmo que não importe mais.

por Luciana Thomé


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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