domingo, 10 de junho de 2018

Vácuo


RELATÓRIO 153-TH [1]

[Transcrição]

Dia 1

9:23

[som de explosão; alerta começa a tocar; motor da nave tenta acelerar; nova explosão; som mecânico da cápsula de emergência separando-se da nave; queda livre; para-quedas se abrem; cápsula aterrissa]

9:28

[som da escotilha sendo aberta; alguns passos; vento]

9:31

Minha aterrissagem foi concluída com sucesso. Quanto à do resto da tripulação, não sei. Espero que estejam bem. Após a nave perder controle[2], achamos melhor que alguém fosse lançado na cápsula de emergência. Por ser o comandante, fui a escolha óbvia.

Encontro-me a cerca de oitenta quilômetros ao sul do ponto de chegada programado, na zona equatorial, e acredito que a nave tenha caído lá mesmo. Não consigo enxergar muito bem, pois aqui é escuro, mas acredito estar em um local deserto. O sol, um pouco maior do que uma estrela, é avermelhado, não ilumina muito o lugar onde estou[3]. Mas consigo ver a silhueta de um relevo rochoso no horizonte, formando uma espécie de paredão de pedras. Deve ser o ponto em que eles caíram. Aguardo informações para saber o que devo fazer.

10:51

Aguardo contato.

11:02

Acho melhor eu começar meu trajeto em direção à zona equatorial. Preciso correr.

13:23

[passos rápidos; respirando fundo]

A gravidade em Gliese tem um pouco menos força do que na Terra. É muito estranho caminhar, ainda não me acostumei. A roupa também não ajuda. Tive que parar um pouco para recuperar o fôlego e descansar. Mesmo com exercícios, a viagem no ônibus espacial enfraquece muito os músculos. O ar é rarefeito, o suficiente para que um homem consiga respirar, mas o frio impede que eu tire meu capacete. O céu daqui troca constantemente de cor, variando entre amarelo, vermelho, verde e lilás, como uma aurora boreal. Isso provavelmente ocorre por causa dos gases presentes na atmosfera. É muito bonito.

16:12

[ofegante]

Estou com muita sede. Sigo caminhando, mas ainda tenho muito caminho pela frente. Uma das maneiras que iríamos utilizar para analisar o quanto a atmosfera de Gliese é apropriada para a vida animal seria observar a decomposição dos corpos de animais que trouxemos na nave. Assim, conseguiríamos rapidamente enxergar os tipos de bactérias e micro-organismos presentes no ar e no solo.

É uma missão importante. Os espécimes, tanto animais[4] como vegetais e sementes[5], permaneceram dentro da nave. Possivelmente, foram destruídos no impacto. O problema não é que tenham morrido, pois já estavam mortos, mas sim que os corpos tenham sido incinerados. Mesmo assim, preciso ir até a zona equatorial e verificar se algo pode ser utilizado. Além disso, aproveito para ficar no melhor clima.

Se algumas das amostras das sementes, assim como parte do nosso reservatório de água, não tiverem sido destruídas, posso tentar plantar algo que me ajude a sobreviver por mais algum tempo. Caso isso não dê certo, minha última esperança é que os mantimentos de comida ainda estejam intactos, o que me daria alguns meses até que Gaia X chegasse.

16:35

[vento forte]

Mal consigo caminhar. Os ventos, na zona onde me encontro, podem chegar a quase um quarto da velocidade do som. É claro que não estão nem perto disso, mas, se aumentarem, já será o suficiente para me obrigar a encontrar alguma forma de abrigo até passar. A pouca gravidade não está ajudando. Não consigo ter muita noção do quanto já caminhei, mas acho que estou quase na metade do caminho.

17:20

[gritando; vento mais forte]

Enxergo o que parece ser uma caverna à minha direita! Sairei do meu curso, preciso me proteger do vento. Está ficando mais forte, já estou quase sendo carregado!

18:03

[voz ecoando no silêncio]

A caverna não é muito ampla, mas já é suficiente para quem passou meses em um ônibus espacial, onde o espaço para dormir não é maior do que uma gaveta. Vou tentar descansar um pouco.

19:12

[sussurrando]

Às vezes, penso se tudo isso tem sentido, se nossa missão é tão importante assim. Penso se a mídia não tem razão[6]. Quero dizer, sei que a tarefa é confirmar testes realizados pelas outras oito missões Gaia, mas será que era mesmo necessário? Acho que ser um astronauta é algo superestimado. Não é um trabalho heroico como muitos pensam. É uma profissão como qualquer outra. Burocrática e cansativa.

[pausa]

Não sei por que continuo falando se ninguém me responde.

19:17

Lembrei de uma piada boa: Por que a vaca foi para o espaço?

[pausa]

Para encontrar o vácuo.

[risadas]

19:25

Algo que poucos sabem sobre o espaço é que ele tem cheiro. Não que eu tenha colocado meu nariz para fora da nave e cheirado o vácuo, mas, indiretamente, é possível senti-lo. Por exemplo, quando saímos da nave para fazer algo, tanto as roupas como todos os equipamentos ficam com o mesmo cheiro depois. É um aroma doce, mas metálico, e bastante intenso.

19:36

Lembrei outra piada: no meio da noite, um casal é acordado por um estrondo. Eles vão até o quintal e veem que um disco voador acabou de pousar ali. Da nave, desce um casal de marcianos. Após o susto inicial, os quatro começam a conversar e beber uísque. Uma dose aqui, outra ali, logo todos estão bêbados, e eles resolvem fazer uma troca de casais.

Ansiosa por uma aventura extraconjugal, a mulher terráquea se tranca no quarto com o marciano e rapidamente tira a roupa do seu parceiro. Ao ver o órgão sexual dele, de uns cinco centímetros de comprimento, ela fica decepcionada. Percebendo o tom de desgosto no rosto da parceira, imediatamente o marciano torce uma de suas orelhas e seu órgão dobra de tamanho. Uma nova torcida, e fica enorme.

Na manhã seguinte, não cabendo em si de tanta satisfação, a mulher se vira para o marido e pergunta: “E então, querido, como foi a sua noite com a marciana?”. “Horrível! Ela é completamente maluca! Passou a noite inteira torcendo as minhas orelhas!”

[risadas]

Essa foi horrível, eu sei. Não consigo dormir.

Dia 2

8:32

Dormi cerca de quatro horas[7]. O vento já diminuiu consideravelmente. Parece estar parando. Vou seguir o meu caminho.

14:34

Consegui avançar um bom trecho agora que o vento parou. Acho que não deve faltar muito. Tenho muita fome e sede. A fome ainda consigo controlar. O pior é a sede. Aqui onde estou, o frio já começou a diminuir. Acho que já posso tirar meu capacete. Estou chegando próximo ao paredão que havia citado. Ele parece ter uns dez metros de altura[8], e preciso escalá-lo para chegar onde a nave está. A gravidade deve colaborar.

19:40

Acho que estou enxergando a nave! Ainda está distante, mas tenho quase certeza de que é ela. Só pode ser. Reconheço esse cheiro de longe. Vou correr para chegar lá.

20:30

Como eu esperava. Tudo destruído. A nave parece ter pegado fogo. Não sobrou nada nem ninguém. Até a água já deve ter evaporado. Meu Deus.

20:38

[voz trêmula; falando rápido]

O que eu vou fazer? Posso aguentar mais um tempo sem comer, mas não sem beber. Preciso completar a missão, ou pelo menos fazer algo para impedi-la de ser um fracasso completo.

Dia 3

16:25

Pensei em uma maneira de continuar a missão. Uma pena é que não vai restar ninguém aqui pra completá-la. Mas vocês vão me encontrar, sei disso. Na verdade, assim é melhor. Desse jeito, vocês conseguirão analisar a decomposição do meu corpo sob a superfície do planeta. Existirão bactérias para devorar o meu corpo ou ele continuará igual, mumificado? O paredão que precisei escalar vai deixar de ser apenas um obstáculo, virando um instrumento que me ajudará a completar os meus objetivos[9].

por Frederico Cabral

[1] Caro Senhor Fulano de Tal, a transcrição presente neste relatório contém uma transmissão de áudio captada seis meses após sua realização, narrada pelo comandante da missão, Cicrano Beltrano, referente ao projeto Gaia IX, sobre a terraformação do planeta Gliese. O conteúdo das mensagens demonstra as tentativas do astronauta de completar a missão. [2] A citada “perda de controle”, segundo perícia realizada, foi ocasionada por provável erro humano. [3] O planeta é dividido em dois hemisférios. Em um deles, é sempre dia; no outro, é sempre noite. No primeiro, a temperatura média é de sessenta graus. No segundo, é de menos quarenta. A temperatura média é de vinte e seis graus na zona equatorial. Lá, o sol está sempre próximo do horizonte. Então, o dia inteiro parece com um amanhecer ou com um entardecer. [4] Macacos, ratos, sabiás, sapos e aranhas. [5] Feijão, soja e ervilha, além de árvores como araucária, pau-brasil e goiabeira. [6] O comandante refere-se ao fato da missão ser chamada pela imprensa de “turismo espacial”. [7] Ao contrário do que o astronauta parece acreditar, na verdade ele dormiu aproximadamente treze horas. [8] Na verdade, quatro metros e doze centímetros. [9] O que veio a seguir foi uma série de gritos de dor, xingamentos e confissões do comandante, que precederam seu definhamento até a sua inevitável morte por desidratação alguns dias depois. O astronauta Beltrano Cicrano , além de ter calculado mal a altura em que se encontrava, esqueceu-se da força da gravidade regente em Gliese. Ainda vale ressaltar que, apesar da ação suicida, desnecessária, mas, por que não, poética do astronauta, seus restos nunca foram encontrados por nenhuma das missões Gaia subsequentes, completando o fracasso ao qual a tripulação pareceu estar destinada desde o princípio.


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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