É o Piauí um viveiro de mitos, que não lhes transpuseram as fronteiras. Três deles são notáveis, tanto pelas denominações, quanto pelas lendas que os nimbam: o pé-de-garrafa, o cabeça-de-cuia e o barba-ruiva.
O pé-de-garrafa é uma espécie de caapora, pois, segundo Vale Cabral, além de habitar nas matas, "grita como um homem e deixa nas estradas as suas enormes pegadas, que, por se assemelharem ao pé da garrafa, lhe tomaram o nome".
O cabeça-de-cuia, mito fluvial, proveio da lenda de um filho mau, amaldiçoado pela justa cólera materna. Vive nas águas do Paranaíba, e, conforme o autor citado, "é alto, magro, de grande cabelo, que lhe cai pela testa, e, quando nada, o sacode"; além de comer, de sete em sete anos, qualquer moça que tenha o nome de Maria, até tragar ao todo sete Marias, o que lhe permitirá desencantar-se. Também devora os meninos que se atrevam a banhar-se naquele rio.
O barba-ruiva (que, não obstante tal designação, diverge totalmente do Barbarossa germânico, do poemeto de Rückert), mito lacustre anfíbio, promanou de um caso de infanticídio. É homem alvo, de estatura regular e cabelo avermelhado, que mora na lagoa de Parnaguá, ao sul do Piauí. Inofensivo para com os entes do seu sexo, a cuja aproximação se escapole para o fundo das águas, atira-se sofregamente às mulheres, somente, porém, para as abraçar e beijar… Diz Nogueira Paranaguá (‘A lagoa encantada’, in Litericultura, II, 53-56), que este duende é ali vulgarmente conhecido por "filho da mãe d’água".
Estudados por João Alfredo de Freitas, em seu trabalho sobre Superstições e lendas do norte do Brasil (Recife, 1884), também o foram esses mitos estudados por Leônidas e Sá, que, em dois artigos intitulados O folklore piauiense (Litericultura, II, 125-128 e 363-370), completou as asserções de Vale Cabral quanto aos acima definidos e ainda trouxe à coleção os da zona de Oeiras, denominados urué (ou barba-nova) e cabeças vermelhas, que se referem a pactos com o diabo, e uma espécie de velocino sertanejo, o carneiro-de-ouro (Campo Maior), de menor importância para o nosso folclore. A essa última crendice também dá registo F. J. de Santana Néri (op. cit, 32-33), que afirma haver-se ela propagado até às margens maranhenses do Parnaíba.
Como se vê por aí, foi fecundo na criação de mitos o imaginoso espírito do mestiço piauiense, certo influenciado por antigas lendas neerlandesas (holandesas), de um lado, e, do outro lado, pelas superstições de fundo católico.
Fonte: Jangada Brasil in O Folklore do Brasil - Basílio de Magalhães
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Basílio de Magalhães, professor,
historiador, jornalista e folclorista, nasceu em São João del Rei, MG,
em 17/6/1874, e faleceu na cidade de Lambari, MG, em 14/12/1957. Mestre
do folclore brasileiro, foi um dos primeiros a aprofundar seu estudo e a
atribuir-lhe significação erudita. Entre abril de 1941 e agosto de 1942
escreveu em Cultura Política, Rio de Janeiro, uma série de artigos sob o
título “O povo brasileiro através do folclore”. Sobre folclore publicou
O folclore no Brasil (com uma coletânea de contos organizada por João
da Silva Campos), Rio de Janeiro, 1928 (2ª. ed., Rio de Janeiro, 1939;
3ª. ed., revista por Aurélio Buarque de Holanda, Rio de Janeiro, 1960); O
café. Na história, no fo/clore e nas belas artes, Rio de Janeiro, 1937
(2ª. ed., aumentada e melhorada, São Paulo, 1939).
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quarta-feira, 26 de setembro de 2012
Mitos secundários do Maranhão e Piauí - I
No interior do Maranhão (donde parece não ter migrado para nenhuma outra circunscrição política do Brasil), existe um mito singular, que se liga simultaneamente aos da lobis-mulher e do mboi-tatá: é a curacanga.
Conforme dados fidedignos, ouvidos de quem nasceu naquela zona e que me foram transmitidos pelo senhor J. da Silva Campos, é a seguinte a tradição ali corrente:
- Quando qualquer mulher tem sete filhas, a última vira curacanga, isto é, a cabeça lhe sai do corpo, à noite, e, em forma de bola de fogo, gira à toa pelos campos, apavorando a quem encontrar nessa estranha vagabundeação. Há, porém, meio infalível de evitar-se esse horrido fadário: - é tomar a mãe a filha mais velha para madrinha da ultimogênita, ou seja, a filha mais nova, caçula. [1]
1. Pádua Carvalho (apud F. J. de Santana Néri, Folklore brésilien, p. 31) refere-se ao capelobo, que no Pará é conhecido pelo nome de kumacanga, e que tanto pode ser o sétimo filho varão, oriundo de conúbio sacrílego, quanto a concubina de padre. Pelas noites de sexta-feira, o corpo fica em casa, despojado da cabeça, a qual sai pelos ares, transformada em bola de fogo. Assim, o mito da curacanga do Maranhão é o mesmo que o do Pará, divergindo apenas no nome, quanto à uma consoante. Viriato Correia, num dos seus livros de contos, dá à mula-sem-cabeça a apelação de cavalacanga, que ouviu entre os habitantes do interior maranhense.
Estudou o doutor Walter Hough os mitos de origem ígena do Novo Mundo (ver ‘Fire origin myths of the New World, in Anais do XX Congresso Internacional de Americanistas, I, 179-184), mas apenas se referiu ao dos índios norte-americanos. Se continuar tais investigações, por certo não se esquecerá ele de que na América do Sul há os do mboitatá, da curacanga e dos yakãrendys.
Fonte: Jangada Brasil in O Folklore do Brasil - Basílio de Magalhães
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Basílio de Magalhães, professor, historiador, jornalista e folclorista, nasceu em São João del Rei, MG, em 17/6/1874, e faleceu na cidade de Lambari, MG, em 14/12/1957. Mestre do folclore brasileiro, foi um dos primeiros a aprofundar seu estudo e a atribuir-lhe significação erudita. Entre abril de 1941 e agosto de 1942 escreveu em Cultura Política, Rio de Janeiro, uma série de artigos sob o título “O povo brasileiro através do folclore”. Sobre folclore publicou O folclore no Brasil (com uma coletânea de contos organizada por João da Silva Campos), Rio de Janeiro, 1928 (2ª. ed., Rio de Janeiro, 1939; 3ª. ed., revista por Aurélio Buarque de Holanda, Rio de Janeiro, 1960); O café. Na história, no fo/clore e nas belas artes, Rio de Janeiro, 1937 (2ª. ed., aumentada e melhorada, São Paulo, 1939).
Conforme dados fidedignos, ouvidos de quem nasceu naquela zona e que me foram transmitidos pelo senhor J. da Silva Campos, é a seguinte a tradição ali corrente:
- Quando qualquer mulher tem sete filhas, a última vira curacanga, isto é, a cabeça lhe sai do corpo, à noite, e, em forma de bola de fogo, gira à toa pelos campos, apavorando a quem encontrar nessa estranha vagabundeação. Há, porém, meio infalível de evitar-se esse horrido fadário: - é tomar a mãe a filha mais velha para madrinha da ultimogênita, ou seja, a filha mais nova, caçula. [1]
1. Pádua Carvalho (apud F. J. de Santana Néri, Folklore brésilien, p. 31) refere-se ao capelobo, que no Pará é conhecido pelo nome de kumacanga, e que tanto pode ser o sétimo filho varão, oriundo de conúbio sacrílego, quanto a concubina de padre. Pelas noites de sexta-feira, o corpo fica em casa, despojado da cabeça, a qual sai pelos ares, transformada em bola de fogo. Assim, o mito da curacanga do Maranhão é o mesmo que o do Pará, divergindo apenas no nome, quanto à uma consoante. Viriato Correia, num dos seus livros de contos, dá à mula-sem-cabeça a apelação de cavalacanga, que ouviu entre os habitantes do interior maranhense.
Estudou o doutor Walter Hough os mitos de origem ígena do Novo Mundo (ver ‘Fire origin myths of the New World, in Anais do XX Congresso Internacional de Americanistas, I, 179-184), mas apenas se referiu ao dos índios norte-americanos. Se continuar tais investigações, por certo não se esquecerá ele de que na América do Sul há os do mboitatá, da curacanga e dos yakãrendys.
Fonte: Jangada Brasil in O Folklore do Brasil - Basílio de Magalhães
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Basílio de Magalhães, professor, historiador, jornalista e folclorista, nasceu em São João del Rei, MG, em 17/6/1874, e faleceu na cidade de Lambari, MG, em 14/12/1957. Mestre do folclore brasileiro, foi um dos primeiros a aprofundar seu estudo e a atribuir-lhe significação erudita. Entre abril de 1941 e agosto de 1942 escreveu em Cultura Política, Rio de Janeiro, uma série de artigos sob o título “O povo brasileiro através do folclore”. Sobre folclore publicou O folclore no Brasil (com uma coletânea de contos organizada por João da Silva Campos), Rio de Janeiro, 1928 (2ª. ed., Rio de Janeiro, 1939; 3ª. ed., revista por Aurélio Buarque de Holanda, Rio de Janeiro, 1960); O café. Na história, no fo/clore e nas belas artes, Rio de Janeiro, 1937 (2ª. ed., aumentada e melhorada, São Paulo, 1939).
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