quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A Caveira

Onze horas da noite.

Não há luar e a velha cidade de Bartolomeu Bueno é na época iluminada a lampeões de querosene, colocados sobre postes de madeira lavrada, distantes quarenta, cinquenta metros uns dos outros.

Na última casa da rua da Abadia jogam o trinta-e-um, na sala de frente, em torno de mesa redonda, alumiada por castiçais com velas de sebo.

Circundam a mesa o Brito Queirós, o Seixas, o Emílio Bandeira, Pinheiro de Paiva, José Soares e o Seis-e-Meia, apelido por que era conhecido o Antônio da Luz.

Àquela hora uma partida de sensação prende os olhares dos jogadores às mãos do "pé’, o Seixas, que distribui as cartas.

Há um empate carregado e estão sobre a mesa quatrocentos e tantos mil réis. Jogam.

Uns pedem cartas, empalidecem e "passam"; outros pedem-nas também, "filam-nas" e "ficam". Seixas, o último a pedi-las, conta os pontos e "chama" o pessoal. Trinta pontos! Os outros ficaram de 27, 28 e 29; ganha o Seixas.

— Arre! diabo! — exclama, — saí de um buraco com um saldo de duzentos e cinquenta mil réis. Dou metade àquele que tiver a coragem de ir agora ao Cemitério e me trazer uma caveira.

— "Pronto" grita o Bandeira, "bata o cobre que a caveira vem já".

— "Dou-te mais cinquenta", diz Seis-e-Meia.

— "E mais cinquenta meus", acode Pinheiro de Paiva.

— "Pois é já’. "Não saiam daqui que não demoro quinze minutos", retruca o Bandeira, erguendo-se da mesa. Tomou o chapéu e partiu. Mas antes de êle sair, rumou para o lado do Cemitério o Zé Mamão que, do lado de fora, encostado à janela, ouvira toda a conversação.

* * *

Meia-noite. Emílio Bandeira levanta o aldravãe da porta do cemitério de São Miguel e caminha para o monte de caveiras que está ao pé do cruzeiro grande da Metrópole dos mortos de Goiás; agarra uma e, quando se dispõe a partir, rouquenha voz, que parece vir de vetusto mausoléu, diz: "Larga, essa é minha!"

Bandeira sente que se lhe eriçam os cabelos ao ponto de derribar o chapéu; um frio que nunca havia experimentado se avoluma em sua coluna vertebral. Para um momento, indeciso, deixa a caveira no monte e agarra outra. "Larga, essa é minha!" diz outra voz fanhosamente.

Bandeira já não está em si, lança mão de outra… "Larga, essa é minha…"

Transido de medo, ainda raciocina: "se eu for procurar caveira sem dono, estou arranjado; até as mais antigas devem ter os seus proprietários; portanto, o que tenho a fazer é isto — pega na que está mais à mão e dispara…

E a voz fanhosa também dispara a repetir: Larga, essa é minha! Larga essa é minha!…

O nosso herói passa o portão da necrópole e vem pela estrada a baixo como uma bala.

"Larga, essa é minha; larga, essa é minha!…"

A jogatina continua na casa da rua da Abadia. Seixas acaba de ganhar mais uma bolada; mete no bolso o dinheiro, não sem tirar antes uma cédula de cem mil réis, que deixa" sobre a mesa.

"Esta", diz, "será do Bandeira, se entrar aqui com a caveira".

Pinheiro de Paiva e Seis-e-Meia deixam também junto ao dinheiro a quantia que prometeram dar.

Brito Queirós dá cartas, e outra jogada vai começar.

Nisto a porta da sala se abre com estalo.

Como um furacão, entra Emílio Bandeira, que atira sobre a mesa do jogo uma caveira e exclama: "Cá está a caveira e o dono ai vem atrás".

E mete-se para o interior da casa a derribar tudo o que lhe impede a disparada. Os outros deixam a mesa, dinheiro, baralho e tratam de acompanhá-lo casa a dentro.

Zé Mamão aparece à porta; não vê na sala nenhuma pessoa; enfia num dos bolsos a dinheirama que está sobre a mesa, acende um cigarro na vela de sebo mais próxima e sai.

E desce a rua da Abadia a assobiar a Palomita
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Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Ed. Literat. 1962

O Horla

8 de maio. Que dia lindo! Passei a manhã toda deitado na relva, na frente de casa, sob o enorme plátano que a encobre toda. Gosto desta região, de viver aqui, pois aqui estão velhas recordações, aquelas raízes profundas e delicadas que prendem o homem ao solo onde seus antepassados nasceram e morreram, que o ligam às idéias e costumes do lugar e também, à comida às expressões locais, ao cheiro da terra do próprio ambiente.

Adoro a casa onde cresci. Das janelas, vejo o Sena, correndo ao lado do jardim, no outro lado da estrada, quase atravessando minhas terras, o grandioso e extenso Sena, que vai a Rouen e a Havre, apinhado de barcos que passam para lá e para cá.

Lá embaixo, a esquerda, está a grande cidade de Rouen, com seus telhados azuis e pontiagudas torres góticas. Estas últimas são incontáveis, largas ou estreitas, dominadas pela espiral da catedral e cheias de sinos que tocam no ar azul de belas manhãs, enviando até minha casa seu doce e distante tinido, canção de metal que a brisa impele em minha direção, ora forte, ora débil, conforme a intensidade do vento.Como a manhã estava agradável!Lá pelas onze horas, uma longa fila de barcos. puxados por um rebocador do tamanho de uma mosca, que mal conseguia resfolegar enquanto soltava espessa fumaça, passou em frente a meu portão.Depois de duas escunas inglesas. com a bandeira vermelha ondulando ao vento, passou um magnífico barco brasileiro de três mastros, todo branco, muito limpo e lustroso. Saudei-o, sem saber bem por quê, a não ser que a visão do navio deu-me grande prazer.

12 de maio. Tenho estado um pouco febril nos últimos dias e sinto-me doente, ou antes, desalentado.De onde vêm essas misteriosas influências que transformam a alegria em desânimo e a autoconfiança em acanhamento? Poder-se-ia quase dizer que o ar, o ar invisível, está cheio de forças incompreensíveis, cuja presença misteriosa temos de suportar. Acordo com a melhor disposição, sentindo vontade de cantar. Por quê? Desço até a beira da água e, de repente, depois de andar um pouco, volto para casa infeliz, como se uma desgraça estivesse esperando por mim. Por quê?Seria um calafrio que me passou pela pele e abalou meus nervos, deixando-me desanimado? Seria a forma das nuvens, a cor do céu ou dos objetos ao redor de mim tão inconstante, que perturbou meus pensamentos, quando passaram diante de meus olhos?Quem sabe? Tudo o que nos cerca, tudo o que vemos sem olhar, tudo o que tocamos sem querer, tudo o que manejamos sem sentir, tudo o que encontramos sem ver claramente, tem rápida, surpreendente e inexplicável influência sobre nós e nossos sentidos e, através destes, em nossas idéias e até em nosso coração.Como esse mistério do Invisível é profundo! Não podemos compreendê-lo com nossos sentidos miseráveis, olhos incapazes de perceber o que for muito grande ou muito pequeno, esteja muito perto ou muito longe: nem os habitantes de uma estrela, nem os de uma gota de água. Nem com ouvidos que nos enganam, pois transmitem-nos as vibrações do ar em notas sonoras. São fadas que realizam o milagre de mudar essas vibrações em sons e, por meio dessa metamorfose, fazem surgir a música que transforma o silencioso movimento da natureza… nem com o sentido do olfato, menos aguçado que o de um cão… nem com o sentido do paladar, que mal percebe a idade do vinho!Como seria bom se tivéssemos outros órgãos que realizassem outros milagres a nosso favor! Quantas coisas novas poderíamos descobrir a nossa volta!

16 de maio. Positivamente, estou doente! E estava tão bem no mês passado! Estou com febre, horrivelmente febril, ou melhor, em um estado de debilitação febril, que faz a alma sofrer tanto quanto o corpo. Tenho, continuamente, a horrível sensação de perigo iminente, o receio de alguma futura desgraça ou da morte próxima. Pressentimento que é, sem dúvida, o acesso de uma doença ainda desconhecida, que germina na carne e no sangue.

17 de maio. Acabo de consultar o médico, pois não conseguia mais dormir. Ele disse que o pulso estava rápido, os olhos, dilatados, os nervos, à flor da pele, mas que não encontrou sintomas alarmantes. Devo tomar algumas duchas e brometo de potássio.

25 de maio. Nenhuma mudança! Meu estado é realmente estranho. Quando a noite se aproxima, sou invadido por uma incompreensível sensação de intranqüilidade, como se a noite escondesse alguma catástrofe ameaçadora. Janto às pressas e então procuro ler, mas não compreendo as palavras e mal distingo as letras. Caminho de um lado para outro da sala, acabrunhado por uma sensação confusa de medo irresistível, medo do sono e medo da cama.Lá pelas dez horas subo ao quarto. Assim que entro dou duas voltas à chave e ponho a tranca na porta. Tenho medo… de quê? Até há pouco, não tinha medo de nada… Abro os armários e olho embaixo da cama. Escuto… o quê? Não é estranho que uma simples sensação de mal-estar, a má circulação, talvez a irritação de um filamento nervoso, uma ligeira congestão, um pequeno distúrbio no imperfeito e delicado funcionamento de nosso mecanismo vivo, possa transformar o mais despreocupado dos homens em melancólico e em covarde o mais valente?Vou para a cama e espero o sono como um homem que espera o carrasco. Com medo, espero sua chegada, o coração bate e as pernas tremem e todo o corpo tem calafrios debaixo do calor das cobertas, até que adormeço de repente, como alguém que mergulhasse em uma poça de água estagnada a fim de afogar-se. Não o sinto vir como antigamente, este traiçoeiro sono que está perto de mim, vigiando-me e que vai agarrar-me pela cabeça, fechar meus olhos e aniquilar-me.Durmo… bastante tempo… talvez duas ou três horas… Então um sonho… não… um pesadelo apossa-se de mim. Sinto que estou na cama, dormindo… Sinto e sei disso… e sinto também que alguém se aproxima, olha-me, toca-me, sobe em minha cama, ajoelha-se sobre meu peito, toma meu pescoço entre as mãos e o aperta… aperta com toda a força a fim de estrangular-me.Luto, dominado por aquela terrível sensação de impotência que nos paralisa durante os sonhos. Tento gritar… mas não consigo. Quero mover-me… não consigo. Faço os mais violentos esforços, respiro fundo, para tentar virar-me e derrubar essa criatura que está me esmagando, me sufocando… não consigo!E, então, acordo de repente, tremendo e banhado em suor. Acendo uma vela e descubro que estou sozinho. Depois dessa crise, que acontece todas as noites, finalmente caio no sono e durmo em paz até de manhã.

2 de junho. Meu estado de saúde piorou. O que está acontecendo comigo? O brometo não está adiantando de nada e as duchas não produzem resultado. As vezes, a fim de ficar bem cansado, embora já esteja bastante fatigado, vou dar um passeio na floresta de Roumare. Costumava pensar que o ar fresco, leve e suave, impregnado do cheiro de ervas e folhas, instilaria sangue novo em minhas veias e daria nova energia a meu coração. Enveredava por uma larga estrada de caça e então seguia na direção de La Bouille, por uma estreita trilha entre duas fileiras de árvores de uma altura descomunal, que formavam um espesso teto de um verde quase negro entre o céu e eu.Um repentino arrepio percorreu-me a espinha, não de frio, mas um estranho arrepio de agonia. Apressei o passo, apreensivo por estar sozinho na floresta, estupidamente amedrontado sem razão, por causa da completa solidão. De repente pareceu-me estar sendo seguido, que havia alguém nos meus calcanhares, perto, bem perto de mim, próximo o bastante para tocar-me.Voltei-me precipitadamente, mas estava só. Nada vi atrás de mim, exceto a larga trilha reta, vazia, cercada de altas árvores, horrivelmente vazia; à minha frente também se estendia a perder de vista, parecendo sempre a mesma, terrível.Fechei os olhos. Por quê? Comecei a rodar como pião, bem depressa. Quase caí e abri os olhos: as árvores dançavam ao meu redor e a terra girava. Fui obrigado a sentar-me. E, então, que idéia estranha! Não sabia de mais nada. Saí para a direita e voltei à avenida que me conduzira ao centro da floresta.

2 de junho. Passei uma noite horrível. Vou partir por algumas semanas, pois sem dúvida uma viagem me fará bem.

2 de julho. Voltei, completamente curado e ainda fiz ótima viagem. Fui ao Mont-Saint-Michel, que ainda não conhecia.Que vista, quando se chega a Avranches como eu, quase no fim do dia! A cidade está sobre uma colina e fui conduzido ao jardim público, nos limites da cidade. Dei um grito de assombro! Uma enorme baía estendia-se diante de mim, até onde os olhos alcançavam, entre duas colinas que a neblina impedia de serem vistas. No meio dessa imensa baía, sob um claro céu dourado, erguia-se uma estranha colina, sombria e pontiaguda, no meio da areia. O sol acabara de se pôr e, no horizonte ainda flamejante, aparecia o contorno do fantástico rochedo com um fantástico monumento em seu cume.Quando raiou o dia, fui para lá. Como na noite anterior, a maré estava baixa e vi diante de mim a admirável abadia, cada vez mais próxima. Depois de andar algumas horas, alcancei a enorme massa de rochas sobre a qual se localiza a cidadezinha, dominada pela grande igreja. Depois de subir a rua íngreme e estreita, entrei no mais admirável edifício gótico já construído para Deus na terra, grande como uma cidade, cheio de salas de teto baixo que parecem enterradas sob abóbadas e de grandiosas galerias sustidas por delicadas colunas.Entrei nessa gigantesca jóia de granito, leve como renda, coberta de torres, com esguios campanários de escadas em caracol, que erguem as estranhas cabeças eriçadas de quimeras, de demônios, de animais fantásticos, com flores monstruosas, para o céu azul durante o dia e negro à noite, e são ligados por arcos finamente entalhados.Quando cheguei ao ponto mais alto da abadia, disse ao monge que me acompanhava:Padre, como devem ser felizes aqui! Ao que respondeu:- Venta muito, monsieur!Começamos a conversar, enquanto assistíamos à subida da maré, que corria pela areia, e parecia cobri-la com uma couraça de aço.O monge contou-me histórias, todas as velhas histórias do lugar, lendas, nada mais que lendas.Uma delas impressionou-me bastante. Os camponeses, aqueles que fazem parte do lugar, dizem que à noite podem-se ouvir vozes nas areias e depois duas cabras balindo, uma com voz forte, a outra com voz fraca. As pessoas incrédulas afirmam que é apenas o grito das aves do mar, que às vezes parecem balidos e, outras, lamentos humanos. Todavia, pescadores que se atrasaram para voltar juram ter encontrado um velho pastor vagando, entre uma maré e outra, pelas areias ao redor da cidadezinha. Traz a cabeça totalmente coberta por um manto e é seguido por um bode com cara de homem e uma cabra com cara de mulher, ambos com longos cabelos brancos, falando sem parar e discutindo em uma língua desconhecida. Calam-se de repente e começam a balir a plenos pulmões.- Acredita nisso? – perguntei ao monge.- Não sei ao certo – retrucou.Continuei:- Se existem outras criaturas na terra além de nós, como ainda não as conhecemos e por que vocês ainda não as viram? Como é que eu ainda não as vi?Respondeu:- Será que vemos a centésima milésima parte do que existe? Olhe aqui, aí está o vento, a maior força que existe na natureza, que derruba homens e edifícios, destrói penhascos e joga grandes navios contra os rochedos, o vento que mata, que assobia, que suspira, que ……. já o viu? Pode vê-lo? Apesar disso, no entanto, ele existe!Calei-me diante desse raciocínio tão simples. Aquele homem era um filósofo ou, talvez, um tolo. Não saberia dizer qual, exatamente, por isso fiquei quieto. O que dissera, eu já havia pensado muitas vezes.

3 de julho. Dormi mal. Certamente há alguma influência febril aqui, pois meu cocheiro está sofrendo exatamente como eu. Ontem, quando voltei para casa, notei que estava muito pálido e lhe perguntei:- O que tem, Jean?- Não consigo repousar, e as noites devoram meus dias. Desde que partiu, monsieur, parece que estou enfeitiçado. Entretanto, os outros criados estão todos bem. Estou com muito medo de ter outro ataque.

4 de julho. Estou de novo doente, pois meu antigo pesadelo voltou. A noite passada, senti alguém inclinando-se sobre mim e sugando minha vida por entre meus lábios. Sim, estava sugando-a de minha garganta, como uma sanguessuga. Depois, levantou-se, saciado, e acordei, tão cansado, esmagado e fraco que não conseguia mover-me. Se isso continuar por mais alguns dias, viajarei novamente.

5 de julho. Será que estou louco? O que aconteceu a noite passada é tão estranho que perco a cabeça só de pensar!Trancara a porta, como faço todas as noites, e, tendo sede, bebi meio copo de água, notando, por acaso, que a garrafa de água estava cheia até o gargalo.Fui para a cama e passei por um de meus sonhos terríveis, do qual acordei cerca de duas horas depois, com um choque ainda maior.Imagine um homem adormecido sendo assassinado e que acorda com uma faca no pulmão e cuja respiração está arquejante, coberto de sangue, que não consegue mais respirar, está quase morrendo e não compreende… aí está.Tendo recuperado os sentidos, senti sede novamente, por isso acendi uma vela e fui até a mesa onde estava a garrafa de água. Ergui-a e virei-a sobre o copo, mas nada saiu. Estava vazia! Completamente vazia! A princípio não consegui entender absolutamente nada. Mas, de repente, tive uma sensação tão horrível que precisei sentar-me, ou melhor, caí numa cadeira! Saltei da cadeira e olhei à volta, sentei-me de novo, tomado de espanto e medo, em frente à garrafa de cristal. Encarava-a, tentando adivinhar, e minhas mãos tremiam. Alguém bebera a água, mas quem? Eu? Eu, sem dúvida. Só poderia ter sido eu. Nesse caso era sonâmbulo. Vivia, sem saber, a misteriosa vida dupla que nos faz pensar que talvez existam duas criaturas dentro de nós ou que um ser estranho, incompreensível e invisível, anima nosso corpo cativo que o obedece como a nós e mais do que a nós, quando nossa alma está entorpecida.Quem entenderá minha terrível agonia? Quem entenderá a emoção de um homem, são de espírito, completamente acordado, cheio de bom senso, que procura através do cristal de uma jarra um pouco de água que desapareceu enquanto dormia?Fiquei nessa posição, até o dia surgir, sem me arriscar a voltar para a cama.

6 de julho. Estou ficando louco. Mais uma vez todo o conteúdo da jarra de água foi tomado durante a noite… ou melhor, eu o bebi!Mas será que sou eu? Sou eu? Quem poderia ser? Quem? Oh, meu Deus! Estou ficando louco? Quem me salvará?

10 de julho. Acabo de passar por surpreendentes experiências. Decididamente, estou louco! Todavia…A 6 de julho, antes de ir para a cama, coloquei vinho, leite, água, pão e morangos sobre a mesa. Alguém bebeu, eu bebi, toda a água e um pouquinho do leite, mas o vinho, o pão e os morangos não foram tocados.Em 7 de julho, repeti a mesma experiência, com os mesmos resultados, e em 8 de julho não deixei água nem leite, e nada foi tocado.Por fim, 9 de julho, deixei sobre a mesa apenas água e leite, tomando o cuidado de envolver os frascos em musselina branca e de amarrar as tampas. Esfreguei os lábios, a barba e as mãos com grafita e me deitei.Um sono irresistível se apossou de mim, seguido de um terrível despertar. Não me movera, não havia marcas de grafita nos lençóis. Corri até a mesa. A musselina ao redor dos frascos estava intacta. Desamarrei as tampas, tremendo de medo. Toda a água fora bebida, assim como o leite! Meu Deus! Preciso partir imediatamente para Paris.Paris,

12 de julho. Devo ter perdido a cabeça nos últimos dias. Devo ser joguete de minha imaginação exacerbada, a menos que seja realmente sonâmbulo ou que tenha estado sob o poder daquelas influências até agora sem explicação, chamadas sugestões. Em todo caso, meu estado mental chegava às raias da loucura, e vinte e quatro horas em Paris bastaram para restaurar meu equilíbrio.Ontem, depois de resolver alguns negócios e fazer algumas visitas que instilaram em minha alma ar novo e revigorante, terminei a noite no Théâtre-Français. Estava sendo apresentada uma peça de Alexandre Dumas, filho, e sua imaginação ativa e poderosa completou minha cura. É certo que a solidão é perigosa para as mentes ativas. Precisamos de homens que saibam pensar e conversar. Quando ficamos sozinhos por muito tempo, povoamos o espaço com fantasmas.Pelos bulevares, voltei ao hotel muito bem-humorado. No meio dos empurrões da multidão, pensava, não sem uma ponta de ironia, em meus terrores e conjeturas da semana anterior, porque acreditara (sim, acreditara) que uma criatura invisível vivia debaixo de meu teto. Como nosso cérebro é fraco, como se assusta à toa e é induzido a erro por um pequeno fato incompreensível! Em vez de dizer apenas: “Não entendo porque não conheço a causa”, imaginamos imediatamente mistérios terríveis e forças sobrenaturais.

14 de julho. Festa da República. Passeei pelas ruas, entusiasmado com os fogos e as bandeiras, como uma criança. Ainda assim, é tolice ficar alegre em data marcada, obedecendo a um decreto do governo. O populacho é um imbecil rebanho de carneiros, de uma paciência estúpida ou com uma revolta feroz. Digam-lhe: “Divirtam-se”, e o povo se diverte. Digam-lhe: “Vão lutar com o vizinho”, e o povo vai e luta. Digam-lhe: “Votem pelo imperador”, e o povo vota pelo imperador. Então digam-lhe: “Votem pela República”. e o povo vota pela República. Os que dirigem o povo também são estúpidos, só que, ao invés de obedecer aos homens, obedecem aos princípios que só podem ser estúpidos, estéreis e falsos, pela simples razão de serem princípios, isto é, idéias consideradas como certas e imutáveis, neste mundo, onde não se tem certeza de nada, já que a luz é uma ilusão, já que o barulho é uma ilusão.

16 de julho. Ontem vi uma coisa que me deixou muito preocupado.Jantava em casa de minha prima, Mme. Sable, cujo marido é coronel no 76° Batalhão de Caçadores, em Limoges. Estavam lá duas jovens, uma delas casada com um médico, Dr. Parent, especialista em doenças nervosas e que dá muita atenção às notáveis manifestações causadas pela influência do hipnotismo e da sugestão. Contou-nos com alguns detalhes os maravilhosos resultados obtidos por cientistas ingleses e médicos da escola de Nancy, e os fatos que expôs pareceram-me tão estranhos que me declarei completamente incrédulo. — Estamos prestes a descobrir um dos mais importantes segredos da natureza, isto é, um dos mais importantes segredos nesta terra, pois certamente existem outros, de outra espécie de importância, lá em cima, nas estrelas — disse ele. — Desde que o homem começou a pensar, desde que conseguiu expressar e anotar os pensamentos, tem-se sentido próximo a um mistério inacessível a seus sentidos incompletos e imperfeitos. Procura, então, suprir a ineficiência dos sentidos por meio do intelecto. Enquanto o intelecto manteve-se em um estágio rudimentar, as aparições dos espíritos invisíveis assumiam formas comuns, embora assustadoras. Daí surgiu a crença popular no sobrenatural, as lendas das almas penadas, fadas, gnomos, fantasmas, posso mesmo dizer, a lenda de Deus, pois nossa concepção do artífice-criador, seja qual for a religião que no-la transmitiu, é certamente a mais vulgar, estúpida e inacreditável invenção que já saiu do cérebro amedrontado dos seres humanos. Nada é mais verdadeiro do que o dito de Voltaire: “Deus criou o homem à Sua imagem, mas o homem pagou-lhe na mesma moeda”. Entretanto — continuou o Dr. Parent –, há cerca de um século, os homens parecem pressentir algo novo. Mesmer e outros conduziram-nos a uma trilha inesperada e, principalmente nos últimos dois ou três anos, conseguimos resultados realmente surpreendentes. Minha prima, também muito incrédula, sorriu, e o Dr. Parent disse-lhe: — Gostaria que eu tentasse fazê-la dormir, madame? — Sim, certamente. Ela sentou-se em uma poltrona, e ele começou a olhá-la fixamente, como se quisesse encantá-la. Comecei a sentir-me pouco à vontade, com o coração batendo e uma sensação sufocante na garganta. Vi os olhos de Mme. Sable tornarem-se pesados, a boca crispar-se e o peito arfar. Em dez minutos estava dormindo. — Fique atrás dela — disse-me o médico. Sentei-me atrás dela. Pôs um cartão de visitas entre as mãos dela e lhe disse: — Isto é um espelho. O que vê nele? Ela respondeu: — Vejo meu primo. — O que ele está fazendo? — Torcendo o bigode. — E agora? — Está tirando uma fotografia do bolso. — Fotografia de quem? — Dele mesmo. Era verdade. A fotografia fora-me entregue no hotel aquela noite. — Como é a foto? — Ele está em pé, com o chapéu na mão. Enxergava, pois, naquele cartão, naquele pedaço de papelão branco, como se olhasse através de um espelho. As jovens ficaram assustadas e exclamaram: — Chega! Já chega! Mas o médico ordenou a Mme. Sable: — Levante-se amanhã às oito horas, vá visitar seu primo no hotel e peça-lhe cinco mil francos emprestados que seu marido está precisando e que exigirá da senhora quando partir para a próxima viagem. Depois disso, o médico acordou-a. Na volta ao hotel, fui meditando sobre essa curiosa sessão. Enchia-me de dúvidas, não quanto à absoluta e sincera boa-fé de minha prima, pois conhecia-a como a uma irmã desde criança, mas quanto a um possível truque da parte do médico. Não teria, talvez, um espelho escondido na mão, mostrando-à jovem adormecida, ao mesmo tempo que mostrou o cartão? Os mágicos fazem coisas desse tipo. Cheguei ao hotel e fui para a cama. Esta manhã, mais ou menos às oito e meia, o criado de quarto acordou-me e disse-me: Mme. Sable pede para vê-lo imediatamente, monsieur. — Vesti-me às pressas e fui recebê-la. Sentou-se um tanto preocupada, de olhos baixos e, sem erguer o véu do chapéu, disse-me: — Caro primo, vim pedir-lhe um grande favor. — Que favor, minha prima? — Não quero pedir-lhe, mas tenho de fazê-lo. Preciso urgentemente de cinco mil francos. — O quê? Você? — Sim, eu, ou melhor, meu marido pediu-me para consegui-los. Fiquei tão atônito que gaguejava as respostas. Perguntava-me se ela não estaria zombando de mim, juntamente com o Dr. Parent, se tudo não seria apenas uma bem ensaiada farsa. Olhando-a atentamente, entretanto, todas as minhas dúvidas desapareceram. Estava trêmula de desgosto, pois essa atitude lhe era penosa, e percebi que a garganta lhe travava os soluços. Sabia que era muito rica, por isso continuei: — Como? Seu marido não tem cinco mil francos à disposição? Vamos, pense. Tem certeza de que ele a encarregou de consegui-los? Hesitou alguns segundos, como se fizesse grande esforço de memória e respondeu: — Sim… sim, tenho certeza. — Ele lhe escreveu? Hesitou novamente e refletiu. Percebi a tortura de seus pensamentos. Não sabia. Sabia apenas que tinha de conseguir comigo cinco mil francos emprestados para seu marido. Assim, mentiu: — Sim, escreveu-me. — Rogo-lhe que me diga quando ele o fez. Não falou sobre isso ontem. — Recebi a carta hoje pela manhã. — Pode mostrá-la para mim? — Não… não… continha assuntos íntimos… coisas muito pessoais… Queimei-a. — Então seu marido está endividado? Hesitou mais uma vez e murmurou: — Não sei. Disse-lhe sem cerimônia: — No momento não posso dispor de cinco mil francos, cara prima. Deu um grito, como se estivesse sentindo alguma dor e disse: — Oh, suplico-lhe, rogo-lhe que os consiga para mim…Parecia perturbada e juntava as mãos como a implorar-me! Sua voz mudou de tom. Chorava e gaguejava, inquieta e dominada pela ordem irresistível que recebera. — Por favor, imploro-lhe… se soubesse o que estou sofrendo… preciso do dinheiro hoje. Fiquei com pena: — Você terá daqui a pouco, juro. — Obrigada, obrigada. Agradeço-lhe muito. — Lembra-se do que aconteceu em sua casa ontem à noite? — continuei. — Sim. — Lembra-se de que o Dr. Parent fez você dormir? — Sim. — Muito bem então. Mandou que viesse procurar-me esta manhã e pedisse cinco mil francos emprestados. Neste momento, você está obedecendo a essa sugestão. Refletiu por alguns momentos e respondeu: — Mas é como Se meu marido precisasse deles…Durante uma hora tentei convencê-la, sem conseguir. Quando se foi, procurei o médico. Estava de saída, ouviu-me com um sorriso e disse: — Acredita, agora? — Sim, não tenho outra saída. — Vamos à casa de sua prima. Ela já estava meio adormecida em uma espreguiçadeira, vencida pelo cansaço. O médico tomou-lhe o pulso, observou-a por algum tempo, com a mão erguida em frente aos olhos dela. Sob a irresistível influência de sua força magnética, fechou os olhos. Quando adormeceu, o médico disse: — Seu marido não precisa mais dos cinco mil francos. Deve, portanto, esquecer que os pediu emprestado a seu primo e, se ele tocar no assunto, não entenderá de que se trata. Acordou-a. Peguei a carteira e disse: — Aqui está o que me pediu esta manhã, cara prima. Ficou tão surpresa, que não me atrevi a insistir. Contudo, tentei fazê-la lembrar-se do que acontecera. Negou energicamente, achando que me divertia às suas custas e, no fim, quase perdeu a paciência. Pronto! Acabo de chegar e não consegui almoçar, pois essa experiência deixou-me completamente abalado.

19 de julho. As pessoas a quem contei essa aventura riram-se de mim. Não sei mais o que pensar. Diz o sábio: “Pode ser!”

21 de julho. Jantei em Bougival e passei a noite em um baile de barqueiros. Decididamente, tudo depende do local e do ambiente. Seria muita tolice acreditar no sobrenatural quando se está na Île de la Grenouilliére… mas, e no Mont-Saint-Michel?… e na Índia? Somos terrivelmente influenciados pelo que nos rodeia. Na semana que vem, voltarei para casa.

30 de julho. Voltei ontem para casa. Tudo vai bem.

2 de agosto. Nada de novo. O tempo está esplêndido e passo os dias a olhar o Sena.

4 de agosto. Desavenças entre os criados. Alegam que à noite os copos são quebrados nos armários. O criado acusa o cozinheiro, que acusa a costureira, que acusa os outros dois. Quem é o culpado? Só alguém muito esperto poderia dizer.

6 de agosto. Desta vez não estou louco. Eu vi… eu vi… não posso mais duvidar… eu o vi!As duas horas, em pleno sol, passeava entre as roseiras… entre as rosas de outono que começam a cair. Quando parei para olhar um géant de bataille, com três rosas esplêndidas, vi perfeitamente a haste de uma das rosas perto de mim inclinar-se, como se uma mão invisível a forçasse a quebrar-se, como se estivesse sendo colhida! Então, a flor ergueu-se, seguindo a curva que a mão teria feito ao levá-la até a boca e permaneceu suspensa no ar, sozinha e imóvel, terrível mancha vermelha, quase diante de meus olhos. Em desespero, corri para agarrá-la. Nada achei, ela desaparecera! Fiquei com muita raiva de mim mesmo, pois um homem sério e razoável não deveria ter tais alucinações.Mas seria uma alucinação? Voltei-me para olhar a haste e encontrei-a imediatamente, na roseira, quebrada de pouco, entre duas rosas que continuavam no galho. Voltei para casa, bastante perturbado, pois estou certo agora, como certo estou da alternância entre o dia e a noite, de que existe perto de mim uma criatura invisível, que vive a leite e água, pode tocar objetos, pegá-los e mudá-los de lugar, sendo, portanto, dotado de natureza material, embora seja imperceptível a nossos sentidos. Vive como eu, debaixo de meu teto…

7 de agosto. Dormi tranqüilamente. Ele bebeu a água da garrafa, mas não perturbou meu sono. Pergunto a mim mesmo se não estarei louco. Agora mesmo, passeando ao sol à beira do rio, tive dúvidas quanto a minha sanidade. Não dúvidas vagas como as que tive ultimamente, mas dúvidas absolutas e precisas. Já vi gente louca e conheci alguns loucos que são inteligentes, lúcidos, até mesmo perspicazes em tudo, exceto em um ponto. Falavam pronta, clara e profundamente sobre todos os assuntos, até que, de repente, a mente ia de encontro aos escolhos de sua loucura, partia-se ali e se dispersava e debatia naquele mar furioso e terrível, cheio de ondas agitadas, de neblina e pés-de-vento, que se chama Loucura. Com certeza eu deveria pensar que estava louco, completamente louco, se não estivesse consciente, não conhecesse perfeitamente meu estado, não o analisasse com a mais completa lucidez. De fato, devo ser apenas um homem racional, sofrendo uma alucinação. Deve ter surgido em minha mente algum distúrbio desconhecido, um dentre aqueles que os fisiólogos modernos tentam observar e confirmar. Esse distúrbio deve ter causado profunda brecha na minha mente e na seqüência lógica das idéias. Fenômenos semelhantes acontecem nos sonhos que nos levam a imaginar coisas irreais, sem nos causar surpresa, porque o aparelho de verificação, nosso órgão de controle está adormecido, enquanto a faculdade da imaginação está acordada e ativa. Não é possível que uma das imperceptíveis unidades do teclado cerebral tenha ficado paralisada em mim? Alguns homens perdem a lembrança de nomes próprios, de verbos ou números, os simplesmente de datas, como conseqüência de algum acidente. A localização de todas as variações de pensamento já está estabelecida atualmente. Por que, então, seria surpreendente se minha faculdade de controlar a irrealidade de algumas alucinações estivesse temporariamente adormecida? Pensava em tudo isso, enquanto andava pela beira da água. O sol brilhava intensamente sobre o rio e tornava a terra agradável, enchendo-me de amor pela vida, pelas andorinhas cuja agilidade sempre encanta meus olhos, pelas plantas à beira do rio, de cujas folhas o farfalhar é um prazer aos ouvidos. Aos poucos, entretanto, uma indefinível sensação de mal-estar se apossava de mim. Parecia que uma força desconhecida estava me entorpecendo e detendo, impedindo-me de seguir adiante e chamando-me de volta. Senti aquele penoso desejo de voltar que nos oprime quando deixamos um doente querido em casa e somos tomados por um pressentimento de que piorou. Assim, voltei contra a minha vontade, certo de que encontraria alguma má noticia à espera, talvez uma carta ou telegrama. Não havia nada, e fiquei mais surpreso e inquieto do que se tivesse tido outra visão fantástica.

8 de agosto. Ontem, passei uma noite horrível. Não se mostra mais, porém, sinto-o perto de mim vigiando-me, olhando-me, penetrando-me, dominando-me, e mais temível quando se oculta dessa forma do que se manifestasse sua presença constante e invisível através de fenômenos sobrenaturais. Entretanto, consegui dormir.

9 de agosto. Nada, mas estou com medo.

10 de agosto. Nada. O que acontecerá amanhã?

11 de agosto. Nada ainda. Não consigo ficar em casa com este medo pairando sobre mim e estes pensamentos na cabeça. Vou embora.

12 de agosto. Dez horas da noite. O dia todo tentei partir e não consegui. Gostaria de realizar este simples e fácil ato de liberdade – sair -, entrar em meu carro e partir para Rouen… e não consigo. Por que razão?

13 de agosto. Quando somos atacados por certas doenças, todas as molas de nosso corpo parecem estar quebradas, todas as nossas energias, destruídas, todos os nossos músculos, relaxados. Nossos ossos amolecem como carne, e o sangue vira água. Estou tendo essas sensações em minha existência moral de modo estranho e angustioso. Não tenho mais força, coragem, autocontrole, nem mesmo o poder de exercer minha vontade. Não tenho mais vontade de nada, mas alguém a tem por mim e eu lhe obedeço.

14 de agosto. Estou perdido. Alguém possui minha alma e a domina. Alguém ordena todos os meus atos, todos os meus movimentos, todos os meus pensamentos. Não sou mais nada, exceto espectador escravizado e amedrontado de tudo o que faço. Quero sair, não posso. Ele não quer, e assim permaneço, trêmulo e perplexo, na poltrona onde ele me mantém sentado. Desejo apenas levantar-me e me animar, mas não posso! Estou preso à cadeira, e esta adere ao chão de tal maneira que não existe força capaz de mover-nos.De repente, sinto que devo, preciso ir ao fundo do quintal colher morangos e comê-los, e lá vou eu. Colho os morangos e como-os! Meu Deus! Meus Deus! Deus existe? Se existe, libertai-me! Salvai-me! Socorrei-me! Perdão! Piedade! Misericórdia! Salvai-me! Quanto sofrimento! Que tormento! Que horror!

15 de agosto. Então era desse modo que minha pobre prima se encontrava, e era controlada, quando veio pedir-me os cinco mil francos emprestados. Estava sob o poder de uma estranha vontade que entrara dentro dela, como outra alma, como outra alma parasita e dominadora. Será que o mundo está para acabar? Mas quem é ele, este ser invisível que me governa? Este ser irreconhecível, este pirata de raça sobrenatural? Existem, então, seres invisíveis! Por que não se manifestaram desde o começo do mundo, precisamente como fazem comigo? Nunca li nada parecido com o que acontece em minha casa. Oh, se pudesse deixá-la, se pudesse ir embora, fugir e nunca mais voltar! Estaria salvo, mas não posso.

16 de agosto. Hoje consegui escapar por duas horas, como um prisioneiro que, por acaso, encontra a porta da masmorra aberta. De repente, senti que estava livre e que ele estava muito longe; assim, dei ordens para atrelar os cavalos o mais depressa possível e partir para Rouen. Como é agradável conseguir dizer a um homem que nos obedece: — Vá… a Rouen! Mandei parar em frente à biblioteca e pedi que me emprestassem o tratado do Dr. Hermann Herestauss sobre os habitantes desconhecidos do mundo antigo e moderno. Ao voltar para o coche, pretendia dizer: “Para a estação!”, em vez disso gritei… não disse, gritei, tão alto que os passantes voltaram-se: — Para casa! — e caí para trás, na almofada do carro, tomado de angústia. Ele voltara a me encontrar e retomara a posse de mim.

17 de agosto. Ah, que noite! Que noite! E contudo parece-me que devia alegrar-me. Li até a uma da manhã! Herestauss, doutor em Filosofia e Teogonia, escreveu a história da manifestação todos esses seres invisíveis que pairam em volta dos homens ou com quem os homens sonham. Descreve sua origem, domínio, poder, mas nenhum se assemelha ao que me assedia. Pode-se dizer que, desde que começou a pensar, o homem pressente um novo ser, mais forte, seu sucessor neste novo mundo e que, sentindo sua presença e não conseguindo prever a natureza desse mestre, criou toda uma raça de seres ocultos, de vagos fantasmas, nascidos do medo. Depois de ler até a uma da manhã, sentei-me à janela aberta, a fim de refrescar a fronte e os pensamentos, no ar calmo da noite agradável e quente. Como teria apreciado semelhante noite em outros tempos! Não havia lua, mas as estrelas lançavam sua luz no céu escuro. Quem habita esses mundos? Que formas, que seres vivos, que animais existem lá em cima? O que sabem os pensadores naqueles mundos distantes que não sabemos? O que podem fazer, e nós não? O que vêem que não conhecemos? Será que um deles, algum dia, atravessando o espaço, aparecerá na Terra para conquistá-la, exatamente como os escandinavos cruzaram o mar a fim de conquistar nações mais fracas do que eles? Somos tão fracos, tão indefesos, tão ignorantes, tão pequenos, nós que vivemos nesta partícula de lama que gira em uma gota de água! Adormeci assim, sonhando no fresco ar da noite, e depois de dormir cerca de três quartos de hora abri os olhos sem me mexer, acordado por não sei que confusa e estranha sensação. A princípio não vi nada, mas de repente tive a impressão de que uma página do livro que ficara aberto sobre a mesa virou-se sozinha. Nenhuma aragem passara pela janela, por isso, surpreso, esperei. Depois de uns quatro minutos, eu vi, eu vi, sim, vi com meus próprios olhos, outra página levantar-se e cair sobre as outras, como se um dedo a tivesse virado. A poltrona estava vazia, parecia vazia, mas sabia que ele estava lá. Sentado em meu lugar e lendo. Com um pulo, o pulo furioso de um animal selvagem enraivecido, que salta sobre o domador, atravessei a sala para agarrá-lo, estrangulá-lo, matá-lo! Porém, antes que pudesse alcançá-la, a cadeira virou-se como se alguém tivesse fugido de mim… a mesa balançou, a lâmpada caiu e se apagou e a janela fechou-se, como se um ladrão tivesse sido surpreendido e fugido noite afora, fechando-a atrás de si. Então ele fugira. Tivera medo, medo de mim! Mas… mas… amanhã… ou mais tarde… algum dia… conseguirei agarrá-lo e esmagá-lo contra o chão! Às vezes os cães não mordem e estraçalham o dono?

18 de agosto. Estive pensando o dia todo. Sim, vou obedecer-lhe, seguir seus impulsos, realizar seus desejos, mostrar-me humilde, submisso, covarde. Ele é o mais forte, mas há de chegar a hora…

19 de agosto. Eu sei… eu sei… eu sei tudo! Acabei de ler o seguinte, na Revue du Monde Scientifique: “Curiosa noticia chega-nos do Rio de Janeiro. Loucura, uma epidemia de loucura, comparável à loucura contagiosa que atacou a população da Europa, na Idade Média, está, neste momento, grassando na província de São Paulo. Os habitantes, aterrorizados, abandonam suas casas, dizendo que estão sendo perseguidos, possuídos, dominados como gado humano por seres invisíveis, mas tangíveis, uma espécie de vampiro, que se alimenta da vida deles enquanto estão dormindo, e que, além disso, bebe água e leite, sem aparentemente tocar nenhum outro alimento. “O professor Pedro Henrique, acompanhado por vários médicos, foi à província de São Paulo, a fim de estudar a origem e as manifestações dessa surpreendente loucura, no local, e propor ao imperador as medidas que lhe pareçam mais cabíveis para fazer com que a população recupere a razão. “Ah! ah! lembro-me agora daquele belo navio brasileiro de três mastros que passou em frente às minhas janelas, subindo o Sena no dia 8 de maio passado! Achei que parecia tão formoso, tão branco e brilhante! Aquele Ente estava a bordo, vindo de lá, onde sua raça se originou. E me viu! Viu minha casa, também branca, e saltou do navio para terra. Oh, céu misericordioso! Agora sei, posso adivinhar. O reino do homem acabou, e ele chegou. Ele, que era temido pelo homem primitivo, ele, que padres preocupados exorcizavam, que feiticeiras evocavam em noites escuras, sem tê-lo visto aparecer, a quem a imaginação dos senhores provisórios do mundo emprestavam todas as monstruosas ou graciosas formas de gnomos, espíritos, gênios, fadas e almas familiares. Depois dos conceitos imprecisos baseados no medo primitivo, homens mais sensíveis anteviram-no mais claramente. Mesmer o pressentiu, e, há dez anos, médicos descobriram, com precisão, a natureza de sua força, antes mesmo que ele a exercesse. Divertiram-se com essa nova arma do Senhor, o domínio de uma vontade misteriosa sobre a alma humana que se tornara escrava. Chamaram-no de magnetismo, hipnotismo, sugestão… sei lá! Vejo-os divertindo-se, como crianças imprudentes, com essa força terrível! Ai de nós! Ai dos homens! Ele chegou, o… o… como se chama… o… Imagino que está gritando seu nome e não consigo ouvi-lo… o… sim… está gritando… estou ouvindo… Não consigo… Ele o repete… o… Horla… ou,… o Horla… ele chegou! Ah! O abutre devorou a pomba, o lobo devorou o cordeiro, o leão devorou o búfalo de chifres pontiagudos. O homem matou o leão com a flecha, com a espada, com a pólvora. Mas o Horla fará do homem o que fizemos do cavalo e do boi: objeto, escravo e alimento, só porque é sua vontade. Ai de nós! Contudo, às vezes, o animal revolta-se e mata o homem que o subjugou. Eu também gostaria de… serei capaz de… mas preciso conhecê-lo, tocá-lo, vê-lo! Os cientistas afirmam que os olhos dos animais, sendo diferentes dos nossos, não distinguem os objetos da mesma forma que nós. E meus olhos não conseguem distinguir esse recém-chegado que me oprime. Por quê? Agora me lembro das palavras do monge do Mont-Saint-Michel: “Será que vemos a centésima milionésima parte do que existe? Veja, lá está o vento, a maior força da natureza, que derruba homens e edifícios, desenraiza árvores, faz o mar erguer-se como montanhas de água, destrói penhascos e joga grandes navios contra as ondas. O vento que mata, que assobia, que suspira, que ruge… já o viu? Consegue vê-lo? Contudo, ele existe”. E continuei a pensar: “Meus olhos são tão fracos, tão imperfeitos, que nem mesmo distinguem corpos sólidos, se estes forem transparentes como o vidro! Se não houver um papel prateado atrás de um vidro em meu caminho, colidirei com ele, da mesma forma que um pássaro, voando para dentro de uma sala, bate a cabeça contra a vidraça”. Existem mil coisas que enganam o homem e o induzem ao erro. Por que haveria de ser surpreendente o fato de não conseguir perceber um corpo desconhecido que a luz consegue atravessar?Um novo ser! Por que não? Com certeza estava destinado a vir! Por que deveríamos ser os últimos? Não o distinguimos mais do que todos os outros criados antes de nós! Isso acontece porque sua natureza é mais perfeita, tem o corpo mais apurado e mais bem acabado que o nosso, tão fraco, de construção tão desajeitada, atravancado de órgãos que estão sempre cansados, sempre tenso como um mecanismo muito complicado, que vive como planta e como animal, nutrindo-se com dificuldade de ar, ervas e carne, máquina animal vitima de doenças, má-formação, decadência; arquejante, mal-regulado, simples e extravagante, originalmente malfeito, obra ao mesmo tempo grosseira e delicada, esboço irregular de uma criatura que poderia tornar-se inteligente e grandiosa. Somos apenas alguns, tão poucos neste mundo, da ostra ao homem. Por que não poderîa haver mais um, uma vez passada a época que separa as sucessivas aparições de todas as espécies diferentes? Por que não mais um? Por que não, também, outras árvores com flores imensas e esplêndidas, perfumando regiões inteiras? Por que não outros elementos além do fogo, ar, terra e água? Existem quatro, só quatro, amas-secas de seres diferentes! Que pena! Por que não existem quarenta, quatrocentos, quatro mil? Como tudo é pobre, mesquinho e miserável! Produzido de má vontade, construído irregularmente, inabilmente feito! Ah, o elefante e o hipopótamo, que graça! E o camelo, que elegância! Mas a borboleta, dirão, uma flor voadora? Sonho com uma tão grande como cem universos, com asas cuja forma, beleza, e movimentos não consigo nem mesmo exprimir. Porém a vejo… esvoaça de uma estrela a outra, refrescando-as e perfumando-as com a aragem leve e harmoniosa de seu vôo! E as pessoas lá em cima olham-na quando passa em um êxtase de prazer! O que está acontecendo comigo? É ele, o Horla, que me persegue e que me faz pensar essas tolices! Está dentro de mim, está se transformando em minha alma. Pretendo matá-lo!

19 de agosto. Vou matá-lo. Eu o vi! Ontem, sentei-me à mesa e fingi escrever com bastante atenção. Sabia muito bem que viria rondar-me, bem perto de mim, tão perto que, talvez, conseguisse, tocá-lo, agarrá-lo. E então… então eu conseguiria a força do desespero. Teria as mãos, os joelhos, o peito, a fronte, os dentes para estrangulá-lo, esmagá-lo, morde-lo, fazê-lo em pedaços. E o aguardava com todos os sentidos alerta. Acendera as duas lâmpadas e as oito velas de cera sobre a lareira, como se com toda essa luz pudesse descobri-lo. À minha frente, estava a cama, a velha cama de colunas de carvalho; à direita, a lareira; à esquerda, a porta, fechada cuidadosamente, depois que a deixei aberta algum tempo, a fim de atrai-lo; atrás de mim, estava o guarda-roupa, muito alto, com o espelho diante do qual fazia a barba e me vestia todos os dias e no qual costumava ver-me de relance, da cabeça aos pés, toda vez que passava diante dele. Fingia estar escrevendo a fim de enganá-lo, pois ele também me vigiava e, de repente, senti… tinha certeza de que estava lendo por cima de meu ombro, que estava lá, roçando minha orelha.Levantei-me com as mãos estendidas e virei-me tão depressa que quase caí. Quê! Bem? Estava claro como se fosse o meio-dia, mas não conseguia ver meu reflexo no espelho! Estava vazio, claro, profundo, cheio de luz! Só que minha imagem não estava refletida nele… E eu, eu estava na frente do espelho! Examinei o grande e claro espelho, de cima a baixo, olhei-o com olhos vacilantes. Não ousei aproximar-me, não me arrisquei a fazer um movimento sequer, sentindo que ele estava ali, mas que novamente me escapara, ele cujo corpo imperceptível absorvera meu reflexo.Como eu estava amedrontado! E então, subitamente, comecei a ver-me através de uma névoa no fundo do espelho, uma névoa que parecia um lençol de água. Parecia-me que a água escorria mais clara a todo momento. Era como o fim de um eclipse. O que quer que ocultasse minha imagem não parecia possuir contornos definidos, mas uma espécie de transparência opaca que ia clareando aos poucos.Afinal, consegui distinguir meu reflexo completamente, como acontece todos os dias quando me olho no espelho. Eu o vira! O horror dessa visão ficou comigo e, mesmo agora, faz-me tremer.

20 de agosto. Como poderia matá-lo, se não consegui agarrá-lo? Veneno? Mas ele me veria misturá-lo à água, e então teria nosso veneno algum efeito em seu corpo impalpável? Não… não há dúvida sobre isso… Então… então…

21 de agosto. Chamei um ferreiro de Rouen e encomendei venezianas de ferro para meu quarto, iguais às que alguns hotéis de Paris têm no andar térreo, para impedir a entrada de ladrões, e ele também vai fazer-me uma porta de ferro. Estou parecendo covarde, mas não me importo!

10 de setembro. Rouen, Hotel Continental. Está feito… está feito… mas será que está morto? O que vi deixou-me a mente completamente abalada.Bem, ontem, depois que o serralheiro colocou as venezianas e a porta de ferro, deixei tudo aberto até a meia-noite, embora estivesse esfriando. De repente, senti que ele estava lá, e uma alegria, uma louca alegria apossou-se de mim. Levantei-me silenciosamente e andei algum tempo de um lado para outro, para que ele não suspeitasse de nada. Tirei as botas e calcei os chinelos despreocupadamente, fechei as venezianas de ferro, fui até a porta, tranquei-a rapidamente com um cadeado e guardei a chave no bolso. Percebi de súbito que ele se movia nervosamente a minha volta, que, por sua vez, estava amedrontado e ordenava-me que o deixasse sair. Quase lhe obedeci. Em vez disso, entretanto, com as costas contra a porta, abri-a apenas o suficiente para poder sair de costas e, como sou muito alto toquei a esquadria com a cabeça. Estava certo de que ele não tinha conseguido escapar e deixei-o fechado sozinho, completamente sozinho. Que felicidade! Conseguira prende-lo. Então corri para baixo, para a sala de visitas que ficava embaixo do meu quarto. Peguei os dois lampiões e despejei todo o querosene no tapete, na mobília, em toda parte. Toquei fogo e fugi, depois de trancar cuidadosamente a porta. Escondi-me no fundo do quintal, em uma moita de louros. Como parecia demorar! Tudo estava escuro, silencioso, imóvel, sem a mais leve brisa, sem uma estrela, somente camadas de nuvens, que não se podia ver, mas que pesavam, oh, como pesavam, em minha alma. Fiquei esperando, olhando para a casa. Como demorava! Começava a pensar que o fogo se apagara sozinho, ou que ele o extinguira, quando uma das janelas do andar térreo cedeu sob a violência das chamas e uma longa, suave, acariciante e rubra língua de fogo subiu pela parede branca e envolveu-a até o telhado. O clarão atingiu as árvores, os galhos e as folhas, e um arrepio de medo também os invadiu! Os pássaros acordaram, um cachorro começou a uivar, e pareceu-me que o dia estava nascendo! Quase imediatamente, duas outras janelas se arrebentaram e vi que toda a parte de baixo da casa era apenas uma fornalha incandescente. Um grito, horrível, estridente, de partir o coração, um grito de mulher, soou dentro da noite, e duas janelas do sótão se abriram! Esquecera-me dos criados! Vi os rostos apavorados e os braços agitando-se freneticamente. Tomado de pavor, comecei a correr para a cidade, gritando:- Socorro! Socorro! Fogo! Fogo! — Encontrei algumas pessoas que já vinham correndo e voltei com elas. Nessas alturas, a casa não era mais que uma horrível e imponente pira funerária, monstruosa pira funerária que iluminava tudo, pira funerária onde homens ardiam, e ele também estava sendo queimado. Ele, ele, meu prisioneiro, o novo Ser, o novo Senhor, o Horla! De repente, o telhado desabou entre as paredes, e um vulcão de chamas voou até o céu. Pelas janelas abertas naquela fornalha, vi as chamas disparando e pensei que ele estivesse lá, naquele forno, morto. Morto? Talvez?… Seu corpo? Não seria seu corpo, transparente, indestrutível pelos meios que conseguiam matar os nossos? E se ele não estivesse morto?… Talvez só o tempo tenha poder sobre esse Ser Invisível e Terrível. Qual a razão desse corpo transparente e irreconhecível, esse corpo pertencente a um espírito, se também tem de temer doenças, fraquezas e ruína prematura? Ruína prematura? Todo o terror humano tem aí sua origem! Depois do homem, o Horla. Depois daquele que pode morrer todo dia, a toda hora, a todo momento, de qualquer acidente, veio o que morreria apenas na hora, no dia e no minuto apropriado, porque tocara os limites de sua própria existência! Não… não… sem dúvida… não está morto… Então… então… acho que terei de me matar!…



por Guy de Maupassant

A Morta

Eu a amara perdidamente! Por que amamos? É realmente estranho ver no mundo apenas um ser, ter no espírito um único pensamento, no coração um único desejo e na boca um único nome: um nome que ascende ininterruptamente, que sobe das profundezas da alma como a água de uma fonte, que ascende aos lábios, e que dizemos, repetimos, murmuramos o tempo todo, por toda parte, como uma prece.

Não vou contar a nossa história. O amor só tem uma história, sempre a mesma. Encontrei-a e amei-a. Eis tudo. E vivi durante um ano na sua ternura, nos seus braços, nas suas carícias, no seu olhar, nos seus vestidos, na sua voz, envolvido, preso, acorrentado a tudo que vinha dela, de maneira tão absoluta que nem sabia mais se era dia ou noite, se estava morto ou vivo, na velha Terra ou em outro lugar qualquer.

E depois ela morreu.

Como? Não sei, não sei mais. Voltou toda molhada, nutria noite de chuva, e, no dia seguinte, tossia. Tossiu durante cerca de uma semana e ficou de cama.

O que aconteceu? Não sei mais.

Médicos chegavam, receitavam, retiravam-se. Traziam remédios; uma mulher obrigava-a a tomá-los. Tinha as mãos quentes, a testa ardente e úmida, o olhar brilhante e triste. Falava-lhe, ela me respondia. O que dissemos um ao outro? Não sei mais. Esqueci tudo, tudo, tudo! Ela morreu, lembro-me muito bem do seu leve suspiro, tão fraco, o último. A enfermeira exclamou: "Ah! Compreendi, compreendi!"

Não soube de mais nada. Nada. vi um padre que falou assim: "Sua amante." Tive a impressão de que a insultava. Já que estava morta, ninguém mais tinha o direito de saber que fora minha amante. Expulsei-o. Veio outro que foi muito bondoso, muito terno. Chorei quando me falou dela.

Consultaram-me sobre mil coisas relacionadas com o enterro. Não sei mais. Contudo, lembro-me muito bem do caixão, do ruído das marteladas quando a enterraram lá dentro. Ah! meu Deus!

Ela foi enterrada! Enterrada! Ela! Naquele buraco! Algumas pessoas tinham vindo, amigas. Caminhei durante muito tempo pelas ruas. Depois voltei para a casa. No dia seguinte, parti para uma viagem.

Ontem, regressei a Paris.

Quando revi o meu quarto, o nosso quarto, a nossa cama, os nossos móveis, toda essa casa onde ficara tudo o que resta da vida de um ser depois da sua morte, o desgosto apoderou-se de mim novamente, de uma forma tão violenta que quase abri a janela para atirar-me à rua. Não podendo mais permanecer no meio daqueles objetos, daquelas paredes que a tinham encerrado, abrigado, e que deviam conservar em suas fendas imperceptíveis milhares de átomos seus, da sua carne e da sua respiração, peguei meu chapéu para sair. De súbito, ao atingir a porta, passei diante do grande espelho que ela mandara colocar no vestíbulo para mirar-se, dos pés à cabeça, todos os dias antes de sair, para ver se toda a sua toalete lhe ia bem, se estava correta e elegante, das botinas ao chapéu.

E parei, de chofre, diante desse espelho que tantas vezes a refletira. Tantas, tantas vezes, que também deveria ter guardado a sua imagem.

Fiquei lá, de pé, trêmulo, os olhos fixos no vidro liso, profundo, vazio, mas que a contivera toda, que a possuíra tanto quanto eu, tanto quanto o meu olhar apaixonado. Tive a impressão de que amava aquele espelho - toquei-o - estava frio! Ah! recordação! recordação! Espelho doloroso, espelho ardente, espelho vivo, espelho horrível, que inflige todas as torturas! Felizes os homens cujo coração, como um espelho onde os reflexos deslizam e se apagam, esquece tudo o que conteve, tudo o que passou à sua frente, tudo o que se contemplou e mirou na sua feição, no seu amor! Como sofro! Saí e, involuntariamente, sem saber, sem querer, dirigi-me ao cemitério. Encontrei seu túmulo, um túmulo singelo, uma cruz de mármore com algumas palavras: "Ela amou, foi amada, e morreu."

Lá estava ela, embaixo, apodrecendo! Que horror! Eu soluçava, a fronte no chão.

Fiquei lá por muito tempo, muito tempo. Depois, percebi que a noite se aproximava. Então, um desejo estranho, louco, um desejo de amante desesperado apoderou-se de mim. Resolvi passar a noite junto dela, a última noite, chorando no seu túmulo. Mas me veriam, me expulsariam. Que fazer? Fui esperto. Levantei-me e comecei a vagar pela cidade dos desaparecidos. Vagava, vagava. Como é pequena essa cidade ao lado da outra, daquela em que vivemos! Precisamos de casas altas, de ruas, de tanto espaço, para as quatro gerações que vêem a luz ao mesmo tempo, que bebem a água das fontes, o vinho das vinhas e comem o pão das planícies.

E para todas as gerações dos mortos, para toda a série de homens que chegaram até nós, quase nada, um terreno apenas, quase nada! A terra os toma de volta, o esquecimento os apaga. Adeus!

Na extremidade do cemitério habitado, avistei subitamente o cemitério abandonado, onde os velhos defuntos acabam de misturar-se à terra, onde as próprias cruzes apodrecem, e onde amanhã serão colocados os últimos que chegarem. Está cheio de rosas silvestres, de ciprestes negros e vigorosos, um jardim triste e soberbo alimentado com carne humana.

Estava só, completamente só. Agachei-me perto de uma árvore verde. Escondi-me completamente entre os galhos grossos e escuros.

E esperei, agarrado ao tronco como um náufrago aos destroços.

Quando a noite ficou escura, bem escura, deixei o meu abrigo e comecei a caminhar de mansinho, com passos lentos e surdos, por essa terra repleta de mortos.

Vaguei durante muito, muito tempo. Não a encontrava. Braços estendidos, olhos abertos, esbarrando nos túmulos com as mãos, com os pés, com os joelhos, com o peito, e até com a cabeça, eu vagava sem encontrá-la. Tocava, tateava como um cego que procura o caminho, apalpava pedras, cruzes, grades de ferro, coroas de vidro, coroas de flores murchas! Lia nomes com os dedos, passando-os sobre as letras. Que noite! Que noite! Não a encontrava!

Não havia lua! Que noite! Sentia medo, um medo horrível, nesses caminhos estreitos entre duas filas de túmulos! Túmulos! Túmulos! Túmulos. Sempre túmulos! À direita, à esquerda, à frente, à minha volta, por toda parte, túmulos! Sentei-me num deles, pois não podia mais caminhar, de tal forma meus joelhos se dobravam. Ouvia meu coração bater! E também ouvia outra coisa! O quê? Um rumor confuso, indefinível! Viria esse ruído do meu cérebro desvairado, da noite impenetrável, ou da terra misteriosa, da terra semeada de cadáveres humanos? Olhei à minha volta!

Quanto tempo fiquei ali? Não sei. Estava paralisado de terror, alucinado de pavor, prestes a gritar, prestes a morrer.

E, de súbito, tive a impressão de que a laje de mármore onde estava sentado se movia. Realmente, ela se movia, como se a estivessem levantando. Com um salto, precipitei-me para o túmulo vizinho e vi, sim, vi erguer-se verticalmente a laje que acabara de deixar; e o morto apareceu, um esqueleto nu que empurrava a lápide com as costas encurvadas. Eu via, via muito bem, embora a escuridão fosse profunda. Pude ler sobre a cruz:

"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinqüenta e um anos de idade. Amava os seus, foi honesto e bom, e morreu na paz do Senhor."

O morto também lia o que estava escrito no seu túmulo. Depois, apanhou uma pedra no chão, uma pedrinha pontiaguda, e começou a raspar cuidadosamente o que lá estava. Apagou tudo, lentamente, contemplando com seus olhos vazios o lugar onde ainda há pouco existiam letras gravadas; e, com a ponta do osso que fora seu indicador, escreveu com letras luminosas, como essas linhas que traçamos com a ponta de um fósforo:

"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinqüenta e um anos de idade. Apressou com maus tratos a morte do pai de quem desejava herdar, torturou a mulher, atormentou os filhos, enganou os vizinhos, roubou sempre que pode e morreu miseravelmente."

Quando acabou de escrever, o morto contemplou sua obra, imóvel. E, voltando-me, notei que todos os túmulos estavam abertos, que todos os cadáveres os tinham abandonado, que todos tinham apagado as mentiras inscritas pelos parentes na pedra funerária, para aí restabelecerem a verdade.

E eu via que todos tinham sido carrascos dos parentes, vingativos, desonestos, hipócritas, mentirosos, pérfidos, caluniadores, invejosos, que tinham roubado, enganado, cometido todos os atos vergonhosos, abomináveis, esses bons pais, essas esposas fiéis, esses filhos devotados, essas moças castas, esses comerciantes probos, esses homens e mulheres ditos irrepreensíveis.

Escreviam todos ao mesmo tempo, no limiar da sua morada eterna, a cruel, terrível e santa verdade que todo mundo ignora ou finge ignorar nesta Terra.

Imaginei que também ela devia ter escrito a verdade no seu túmulo. E agora já sem medo, correndo por entre os caixões entreabertos, por entre os cadáveres, por entre os esqueletos, fui em sua direção, certo de que logo a encontraria.

Reconheci-a de longe, sem ver o rosto envolto no sudário.

E sobre a cruz de mármore onde há pouco lera:

"Ela amou, foi amada, e morreu", divisei:

"Tendo saído, um dia, para enganar seu amante, resfriou-se sob a chuva, e morreu".

Parece que me encontraram inanimado, ao nascer do dia, junto a uma sepultura.

(31 de maio de 1887)

(Tradução de José Thomas Brum)


por Guy de Maupassan

O Medo

Subimos ao tombadilho depois do jantar. Diante de nós, o Mediterrâneo não apresentava a mínima ondulação em toda a sua superfície, iluminado por uma lua grande e plácida. O grande barco deslizava, atirando ao céu semeado de estrelas uma enorme serpente de fumaça negra; e, atrás de nós, a água, toda branca, agitada pela rápida passagem da pesada embarcação, castigada pela hélice, espumava e parecia contorcer-se, desmanchando-se em tantos clarões que se diria que o luar borbulhava.

Éramos seis ou oito que ali nos encontrávamos, silenciosos, em contemplação, o olhar voltado para a África longínqua para onde nos dirigíamos. O comandante, que fumava um charuto conosco, retomou subitamente a conversa do jantar.

"Sim, tive medo naquele dia. Meu navio permaneceu seis horas com o rochedo encravado no bojo, sacudido pelo mar. Felizmente, fomos recolhidos à tarde por um carvoeiro inglês que nos avistara."

Então, um homem alto, de rosto tisnado e aspecto grave, um desses homens que nos dão a impressão de terem atravessado vastos e desconhecidos países, no meio de perigos constantes, e cujo olhar tranqüilo parece conservar, lá no fundo, algo das paisagens estranhas que viu, um desses homens que adivinhamos forjados na coragem, falou pela primeira vez:

"Comandante, o senhor diz que teve medo; não acredito nisso. Engana-se em relação ao sentido da palavra e à sensação que experimentou. Um homem enérgico jamais sente medo diante de um perigo iminente. Fica emocionado, agitado, ansioso; mas o medo é outra coisa".

O comandante replicou, rindo:

"Essa agora! Garanto-lhe que tive medo, sim".

Então, o homem de tez bronzeada falou com voz lenta:

- Permitam-me que me explique! O medo (e os homens mais valentes podem sentir medo) é algo terrível, uma sensação atroz, uma espécie de dilaceramento da alma, um tremendo espasmo da inteligência e do coração, cuja simples lembrança nos faz estremecer de angústia. Mas, quando se é corajoso, isso não acontece diante de um ataque, nem diante da morte inevitável, nem diante de qualquer das formas conhecidas do perigo; isso acontece em determinadas circunstâncias anormais, sob determinadas influências misteriosas e diante de riscos vagos. O verdadeiro medo é algo como uma reminiscência dos terrores fantásticos de outrora. Um homem que acredita em fantasmas e que imagina ver espectros à noite deve sentir o medo em todo o seu medonho horror.

Quanto a mim, descobri o medo em pleno dia, há cerca de dez anos. Tornei a senti-lo durante o inverno passado, numa noite de dezembro.

E, no entanto, passei por muitos perigos, por muitas aventuras que pareciam mortais. Lutei muitas vezes. Fui largado como morto por ladrões. Na América, fui condenado à forca como insurreto, e fui atirado ao mar do tombadilho de um navio, nas costas da China. Em cada uma dessas ocasiões, julguei-me perdido e resignei-me à situação sem sentir compaixão nem lamentar-me.

Mas o medo não é isso.

Pressenti-o na África. Entretanto, ele é filho do Norte; o sol dissipa-o como a um nevoeiro. Reparem bem, senhores. Para os orientais, a vida não tem valor; a resignação é fácil; as noites são límpidas e sem lendas, as almas igualmente livres das sombrias inquietações que perseguem os cérebros nos países frios. No Oriente, podem conhecer o pânico, mas ignoram o medo.

Pois bem, eis o que me aconteceu nas terras da África:

Eu atravessava as grandes dunas ao sul de Ouargla. É uma das mais estranhas regiões do mundo. Os senhores conhecem a areia compacta, a areia lisa das intermináveis praias do oceano. Pois bem! Imaginem o próprio oceano transformado em areia em meio a um furacão; imaginem uma tempestade silenciosa de vagas imóveis de poeira amarela. São altas como montanhas, essas vagas desiguais, estranhas, erguidas como ondas desencadeadas, porém maiores ainda e estriadas como o chamalote. Sobre esse mar furioso, mudo e imóvel, o sol meridional, incandescente, incide sua chama implacável e direta. É preciso escalar essas vagas de cinza dourada, descer, tornar a subir, subir o tempo todo, sem descanso nem sombra. Os cavalos arquejam, afundam até os joelhos, e escorregam ao descer a outra vertente dessas surpreendentes colinas.

Éramos dois amigos acompanhados por oito spahis e quatro camelos com os respectivos cameleiros. Não falávamos mais, prostrados de calor e fadiga, e ressequidos pela sede como esse deserto ardente. De súbito, um dos nossos homens soltou uma espécie de grito; todos pararam e permanecemos imóveis, surpreendidos por um inexplicável fenômeno conhecido pelos viajantes daquelas regiões perdidas.

Em algum lugar, perto de nós, numa direção indeterminada, um tambor rufava, o misterioso tambor das dunas; rufava distintamente, ora mais forte, ora mais fraco, parando e depois recomeçando seu rufar fantástico.

Os árabes olhavam-se apavorados e um deles disse na sua língua: "A morte paira sobre nós". E eis que, inesperadamente, meu companheiro, meu amigo, quase meu irmão, caiu do cavalo, de cabeça, fulminado por uma insolação.

E durante duas horas, enquanto em vão eu tentava salvá-lo, esse tambor invisível encheu-me os ouvidos com seu rufar monótono, intermitente e incompreensível; e, diante desse morto querido, naquele buraco incendiado pelo sol, entre quatro montes de areia, eu sentia o medo insinuar-se dentro dos meus ossos, o verdadeiro medo, o horrível medo, enquanto o eco desconhecido nos trazia, a duzentas léguas de qualquer aldeia francesa, o rufar rápido do tambor.

Naquele dia compreendi o que era sentir medo; soube-o ainda melhor numa outra vez...

O comandante interrompeu o narrador:

"Perdão, senhor, mas esse tambor? O que era?

O viajante respondeu:

- Não sei. Ninguém sabe. Os oficiais, surpreendidos muitas vezes por esse ruído singular, atribuem-no geralmente ao eco ampliado, multiplicado, desmesuradamente aumentado por aquela série de pequenos vales formados nas dunas, eco formado pelas saraivadas de grãos de areia carregados pelo vento que esbarram em tufos de ervas secas; pois sempre se observou que o fenômeno ocorre nas proximidades daquelas plantinhas queimadas pelo sol e duras como pergaminho.

Esse tambor, portanto, não passaria de uma espécie de miragem sonora. Aí está. Mas só soube disso mais tarde.

Chego à minha segunda emoção.

Foi no inverno passado, numa floresta a nordeste da França. A noite chegou duas horas mais cedo, de tal modo o céu estava sombrio. Tinha por guia um camponês que caminhava ao meu lado por uma trilha muito estreita, sob uma abóbada de abetos através de cuja ramagem uivava um vento furioso. Por entre a copa das árvores, via nuvens correndo em desordem, nuvens enlouquecidas que pareciam fugir de algo aterrador. Às vezes, sob uma rajada violenta, toda a floresta se inclinava na mesma direção com um gemido de dor: e o frio me invadia, apesar do meu passo rápido e das minhas roupas pesadas.

Devíamos cear e dormir na casa de um guarda florestal da qual nos aproximávamos. Eu ia lá para caçar.

Às vezes, meu guia erguia os olhos e murmura: "Que tempo horrível!" Depois falou-me das pessoas da casa para onde íamos. Dois anos antes, o pai matara um caçador furtivo e desde então se tornara taciturno, como que perseguido por uma recordação. Tinha dois filhos casados que viviam em sua companhia.

As trevas eram cerradas. Nada via à minha frente nem à minha volta, e a ramagem das árvores que se entrechocavam enchia a noite de um contínuo sussurro. Enfim, avistei uma luz e meu companheiro não tardou em bater a uma porta. Responderam-nos gritos agudos de mulheres. Depois, uma voz de homem, uma voz abafada, perguntou: "Quem vem lá?" Meu guia se identificou. Entramos. O que se viu, então, foi um quadro inesquecível.

Um velho de cabelos brancos, olhar de louco, com uma espingarda engatilhada na mão, esperava-nos de pé no meio da cozinha, enquanto dois robustos rapazes armados de machados guardavam a porta. Divisei duas mulheres ajoelhadas em cantos sombrios, o rosto voltado contra a parede.

Explicamo-nos. O velho tornou a encostar a arma na parede e mandou preparar o meu quarto; depois, como as mulheres não se movessem, disse-me bruscamente:

"Veja, senhor, matei um homem faz dois anos nesta noite. No ano passado ele voltou para chamar-me. Espero-o ainda esta noite".

E acrescentou num tom que me fez sorrir:

"Por causa disso não estamos tranqüilos".

Tranqüilizei-o como pude, feliz por ter vindo justamente naquela noite e assim assistir ao espetáculo desse terror supersticioso. Contei algumas histórias e quase cheguei a acalmar todos eles.

Junto à lareira, um velho cão, bigodudo e quase cego, um desses cães que se parecem com conhecidos nossos, dormia com o focinho entre as patas.

Lá fora, a tempestade enfurecida sacudia a pequena casa e, através de uma estreita vidraça, colocada junto à porta, eu via, de repente, à luz de grandes relâmpagos, o arvoredo açoitado pelo vento.

Apesar dos meus esforços, percebia que um terror profundo dominava aquelas pessoas e, sempre que parava de falar, todos os ouvidos escutavam ao longe. Cansado de assistir a medos imbecis, ia pedir para me deitar quando, de súbito, o velho guarda saltou de sua cadeira, tornou a apanhar a espingarda, balbuciando com uma voz alucinada:

"Ele está aqui! Ele está aqui! Ouço-o". As duas mulheres tornaram a cair de joelhos em seus cantos, escondendo o rosto; e os filhos voltaram a pegar nos machados. Ia tentar novamente acalmá-los quando o cão adormecido despertou de repente, levantou a cabeça, esticou o pescoço e, fitando o fogo com seus olhos quase cegos, soltou um desses uivos lúgubres que fazem estremecer os viajantes quando passam à noite pelos campos. Todos os olhos voltaram-se para ele, que agora permanecia imóvel, erguido sobre as patas como que perseguido por uma visão, uivando para qualquer coisa invisível, desconhecida, medonha sem dúvida, pois tinha o pêlo todo eriçado. O guarda, lívido, gritou: "Ele o está sentindo! Ele o está sentindo! Ele estava lá quando o matei". E as duas mulheres, desvairadas, começaram a uivar junto com o cão.

Involuntariamente, um grande arrepio percorreu-me a espinha. A alucinação do animal, naquele lugar, àquela hora, no meio daquela gente alucinada, era um espetáculo medonho.

Então, durante uma hora, o cão uivou sem se mover; uivou como na angústia de um pesadelo; e o medo, o horrível medo, apoderou-se de mim. Medo de quê? Será que sei? Era o medo, eis tudo.

Permanecíamos imóveis, lívidos, na expectativa de algo pavoroso, o ouvido atento, o coração agitado, sobressaltando-nos ao menor ruído. E o cão começou a andar em torno da sala, farejando as paredes e continuando a ganir. Esse animal nos enlouquecia. De repente, o camponês que me trouxera, tomado por uma espécie de paroxismo de terror, jogou-se sobre ele e, abrindo a porta que dava para um pequeno pátio, enxotou-o.

Imediatamente o cão se calou: e nós ficamos mergulhados num silêncio ainda mais aterrador. Depois, todos nós estremecemos ao mesmo tempo: um ser deslizava contra a parede externa da casa, do lado da floresta; passou pela porta, que pareceu tatear com mãos hesitantes; depois não se ouviu mais nada durante dois minutos que quase nos enlouqueceram; em seguida, tornou a voltar, sempre roçando a parede; e arranhou-a ligeiramente como faria uma criança com a unha; e, subitamente, uma cabeça surgiu atrás da fresta de vidro, uma cabeça branca com olhos luminosos como os das feras. E um som saiu-lhe da boca, um som indistinto, um murmúrio de lamento.

Então, um estrondo formidável ressoou na cozinha. O velho guarda disparara. Imediatamente, os filhos se precipitaram e taparam a fresta, empurrando contra ela a enorme mesa que prenderam com o aparador.

Juro-lhe que, ao ouvir o inesperado tiro, senti uma tal angústia no coração, na alma e no corpo, que me senti desfalecer, prestes a morrer de medo.

E assim ficamos até o nascer do sol, incapazes de fazer um só movimento, de dizer uma única palavra, tomados de um intraduzível pânico.

Ninguém ousou desobstruir a porta a não ser quando percebemos, por uma fenda do alpendre, um tênue raio de luz.

Junto à parede, contra a porta, o velho cão jazia, a garganta despedaçada por uma bala.

Saíra do pátio cavando um buraco por baixo da cerca.

O homem de rosto moreno calou-se; depois acrescentou:

"Nessa noite, entretanto, não corri nenhum perigo; mas preferiria reviver todas as horas nas quais enfrentei os mais terríveis perigos, ao simples minuto do tiro sobre a cabeça barbuda atrás da fresta envidraçada".

(23 de outubro de 1882)

(Tradução de José Thomas Brum)

por Guy de Maupassant

A corda do diabo

Sinfrônio era um homem riquíssimo, dono de inúmeras propriedades e dispondo de fabulosas somas em ouro. Metendo-se, porém, em maus negócios, empobreceu de repente.

Vendo-se na mais completa miséria, resolveu sair do seu país, procurar uma terra onde não fosse conhecido, e ver se conseguia recuperar a fortuna perdida.

Um dia, atravessando uma planície, encontrou o diabo, a quem não reconheceu, todavia.

— Que tens? perguntou-lhe Satanás, conquanto soubesse perfeitamente bem a causa da tristeza de Sinfrônío.

— Para que dizer-te?— respondeu este. — Não me poderás dar remédio...

— Isso é que não sabes; e, desde já, obrigo-me a tirar-te do embaraço, se te obrigares a fazer tudo quanto eu disser.

Em seguida, vendo que Sinfrõnio estava espantado com aquela proposta, deu-se a conhecer.

O pobre homem não sabia que fazer, mas como se achava desesperado da vida, completamente pobre, resolveu aceitar a proteção de Satanás.

Prometeu ficar-lhe pertencendo, com a condição de enriquecer de novo.

— Pois bem, disse o demônio concluindo o pacto, de hoje em diante sair-te-ás bem de todos os negócios em que te envolveres. Se, entretanto, te achares alguma vez em perigo, bastará dizer “Dom Martinho, socorre-me!” e eu te aparecerei.

O capataz do inferno sumiu-se.

Sinfrônio, continuando viagem, chegou pelo meio da noite, a uma cidade.

Aí, certo de que triunfaria, resolveu roubar.

Em todas as casas que pretendia entrar, mal chegava, as portas abriam-se de par em par, encontrava os moradores profundamente adormecidos, e via à mão objetos preciosos.

Então meteu-se em altas empresas, e tornou-se um bandido célebre, terror de toda a região, saqueando viajantes.

Um dia foi preso.

Mal se viu na prisão, lembrou-se do seu protetor e exclamou:

— Dom Martinho, socorre-me!

O diabo apareceu logo e libertou-o.

Vendo-se livre, Sirifrônio recomeçou na sua antiga existência, cometendo toda a sorte de rapinagens.

Novamente foi preso, mas, como da primeira vez, invocou Satanás.

— Dom Martinho, socorre-me!

O demônio veio, mas Sinfrônio reparou que se demorara um pouco.

— Por que não vieste mais depressa?

— Estava ocupado, limitou-se o diabo a dizer laconicamente.

Mais tarde, depois de novos crimes e terríveis façanhas, o nosso herói caiu nas mãos da justiça.

Do fundo da sua prisão chamou Satanás que não veio.

Passaram-se dias, o processo já estava muito adiantado, e só faltava a sentença, quando finalmente mestre Lúcifer veio libertar o amigo.

Posto em liberdade, o bandido continuou ainda na sua horrível existência de rapinagem, com mais afã que nunca, em vez de se emendar.

Pela quarta vez foi preso, encerrado numa masmorra forte, e guardado por sentinelas.

Sem se inquietar muito, Sinfrônio gritou pelo demônio, segundo haviam combinado.

— Dom Martinho, socorre-me!

Decorreram semanas e semanas, até que, enfim, o juiz pronunciou a sentença, condenando-o à morte.

Marcou-se a data para a execução da sentença. Satanás, faltando à palavra, não acudiu à chamada.

Sinfrônio, escoltado pelo carrasco, e por soldados, caminhou para a praça e subiu à forca.

Foi só então que o capataz do inferno apareceu.

— Toma esta bolsa, disse-lhe ele. Aí, dentro estão vinte contos de réis. Dá-os ao juiz que ele te libertará.

O condenado, chamando o juiz, como que para lhe dizer as suas últimas vontades e confissões, fez-lhe a proposta.

O juiz, magistrado desonesto e avarento, escondeu a corda e disse para o povo:

- Cidadãos: acaba de suceder um fato extraordinário, que pela primeira vez acontece: esquecemos de trazer a corda para enforcar o condenado. A execução fica pois, suspensa. Quem sabe se Deus não quis, por esse modo, mostrar a inocência do réu? Vai rever-se a sentença mas a justiça será feita.

Prepararam-se os executores para reenviar Sinfrônio para a cadeia.

Nesse intervalo o magistrado abriu a bolsa, mas só encontrou uma corda nova, em lugar dos vinte contos de réis.

Voltou-se indignado, exclamando:

— Cidadãos: acaba de aparecer uma. Foi Deus quem a enviou. Este homem é na verdade um bandido. Enforquem-no!

Passaram o laço no pescoço de Sinfrônio, que vendo-se estrangulado, bradou:

— Dom Martinho, socorre-me!

— Ah! disse o demônio aparecendo, eu não posso fazer nada, quando os meus amigos já estão com a corda no pescoço.

É assim que o diabo, fingindo querer salvar-nos, acaba sempre por trazer a corda para nos enforcar.
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Figueiredo Pimentel
(Histórias da baratinha. Rio de Janeiro; Belo Horizonte, Livraria Garnier, 1994, p.103-106 - Biblioteca de Autores Célebres da Literatura Infantil, 2)