sexta-feira, 15 de junho de 2018

O Regime Amaldiçoado


O CHEIRO DE COMIDA invadia a sala. João e Maria estavam assistindo a um filme na televisão. João sentiu o aroma e disse:

- Estou morrendo de fome, querida. Hoje não vai ter comida novamente?

- Não. Eu estou de regime. Preciso perder 10 quilos.

- Mas eu não estou de regime. Sempre fui pele e osso.

- Você tem que ser solidário. Não quer me ver magrinha e gostosa. Causar inveja aos seus amigos?

- Estou passando fome e eu adoro comer. E todo dia o cheiro da comida da Miriam entra em nossa casa. É muito sofrimento. Prefiro você assim gordinha e eu bem alimentado.

- Nada disso! Comecei e vou até o fim. Apostei com Marli e a Creuza. Quem perder 10 quilos primeiro ganhará cem reais das outras. Eu quero perder peso e ganhar duzentos reais.

- Posso ir até a esquina e comprar um churrasco, uma pizza? Comerei escondido de você.

- Não! Você tem que sofrer comigo. Vamos para a cama. Quero perder algumas gramas no amor.

- Eu estou muito fraco. Você não tem percebido que ultimamente eu não tenho dado conta do recado. Canso e durmo. Trabalho muito e me alimento mal.

- Não quero nem saber. Você é homem e tem que me satisfazer. Eu não me importo em fazer tudo. Basta que ele fique pronto. Vamos!

- ...

- Eu lhe disse. Preciso me alimentar.

Foi até a cozinha e ficou triste quando viu a geladeira vazia. Voltou para o quarto. A esposa já dormia. Saiu, foi até a pizzaria e comeu rapidamente uma pizza quatro queijos.

Voltou, deitou-se e dormiu também. No outro dia, quando acordou teve uma surpresa.

- O que é isso? Você ficou louca?

- Não.

- Então me desamarre da cama. Preciso trabalhar.

- Só se você prometer uma coisa?

- O quê?

- Fazer regime comigo.

- Passar fome com você?

- Se você prefere ver as coisas assim.

- Não. Solte-me.

- Não.

- Está bem. Eu faço regime com você. Solte-me.

- Eu não acredito em você. Ontem você saiu e comeu na pizzaria. Vai ficar amarrado até terminar o meu regime.

- Você ficou louca!? Preciso trabalhar.

- Meu trabalho será suficiente.

- Vou perder meu emprego. Não está fácil arrumar emprego.

- Eu sei. Se você se comportar, quando eu perder os dez quilos, eu soltarei você e sustentarei a casa, com o meu trabalho, pelo tempo que for preciso para você arrumar outro emprego.

- Ficar sem comer afetou o seu juízo?

- Talvez. Mas você verá que valerá a pena.

- Solte-me. Eu vou gritar!

Antes que ele começasse a gritar, Maria colocou uma fita colante sobre sua boca. Ele se retorceu na cama. Mas estava muito bem amarrado. Ela saiu do quarto e ele ouviu as portas sendo fechadas. Ouviu a vizinha cantando. Sentiu o cheiro da comida dela. Retorceu o corpo, mas nada conseguiu. Muito tempo depois, ela entrou no quarto.

- Amor! Cheguei. Já perdi dois quilos. E elas só um. Logo vou poder soltar você. Boa noite. Ah, liguei para o escritório e disse que você precisou viajar urgente para Salvador porque sua mãe está muito doente e que você só voltará quando ela se recuperar. Sei que sua mãe já morreu, mas eles não sabem. Talvez assim você não perca o emprego. Boa noite.

João a via todos os dias entrando no quarto e dizendo quantos quilos havia perdido. Não sabia há quanto tempo estava preso. Um grande sono e moleza tomaram conta de seu corpo.

Dormia, dormia, dormia. Só acordava quando ela chegava da rua e lhe dava água e uma sopa rala através de um canudo que introduzia na fita colante. O tempo passava e João tinha certeza que morreria antes de Maria perder os dez quilos. Seu raciocínio era lento. Não pensava mais. Apenas um grande ódio crescia dentro dele. E este ódio o alimentava diariamente para sobreviver.

- João, acorda, João! Consegui! Perdi quinze quilos e ganhei os duzentos reais. Vou soltar você. Veja como eu estou magra e gostosa. Todos os homens mexem comigo na rua.

Ele não a ouviu. No decorrer dos dias ela o alimentou com sopas. João recobrou, pouco a pouco, as suas forças. Já conseguia andar se amparando nos móveis. Via Maria quando ela chegava do trabalho feliz e magra. Seu ódio crescia. João não saía de casa.

Numa quinta-feira, Maria estava assistindo televisão, a vizinha cantava e o cheiro da comida que ela cozia invadia a casa. João, silenciosamente chegou por trás de Maria e deu uma, duas marteladas na cabeça dela. O sangue jorrou e o corpo caiu no chão. João a arrastou até o banheiro e colocou-o dentro da banheira. Com uma faca afiada, cortou o corpo em vários pedaços.

Separou as carnes. Colocou tudo no freezer.

No dia seguinte, sexta-feira, tirou vários pedaços e colocou-os na geladeira. Foi trabalhar. Convidou os amigos para almoçarem no sábado. Feijoada à moda do João. No sábado, começou a preparar as carnes. Colocou pedaços da cocha e dos braços em assadeiras. Assou-os.

Fritou nacos de carne das nádegas. Preparou batatas cozidas com carne da batata da perna, arroz pedaços da língua e das orelhas, feijão com carne dos seios e salada de legumes com pedaços do nariz. A Feijoada tinha, além da carne de porco, vários pedaços dela e os dedos sem as unhas. Os amigos começaram a chegar trazendo cervejas, batidas, pingas. A alegria tomou conta da casa. O forró animava os convidados. Comemoravam o retorno de João.

Todos se sentaram à mesa. A vizinha, Miriam, o marido e os dois filhos compareceram.

Alguém perguntou:

- Onde está Maria?

- Viajou às pressas para o Norte. Não sei quando volta. Passe a caipirinha para mim.

Todos comeram e beberam até se fartarem. Saíram elogiando o almoço preparado por João.

- As carnes estavam muito gostosas – disse o vizinho.


O Pacto Maldito e Outras Histórias de Morte - José Cláudio da Silva - Casa do Novo Autor, São Paulo, 2006

A Comida Está Boa, Meu Bem?


CATARINA E O BEBÊ MORRERAM no parto. Desconsolado, Josué passou dois meses chorando a morte da esposa. O que mais sentia era que Catarina era uma boa mulher na cama e uma ótima cozinheira.

Nunca repetia um prato. Sabendo que sua outra filha de dois anos precisava de uma mãe, e ele de uma mulher, resolveu se casar novamente. Casou-se com Márcia, uma vizinha solteirona, que era muito amiga de sua finada esposa.

Ao contrário de Catarina, Márcia era ruim de cama e péssima na cozinha. Maldita hora em que a escolheu para se casar. Sabia fazer apenas arroz, feijão, ovo, carne e macarrão. Todo dia era a mesma coisa. Nunca mudava. Arroz, feijão mais ovo. Carne, macarrão mais ovo. Dois mais um, dois mais um, dois mais um. Já estava enjoado. Na primeira briga disse que ela era ruim de cama e péssima cozinheira. Márcia não disse nada. Apenas o olhou.

Logo Josué arrumou uma amante. Chegava em casa tarde. Quase não via sua filha. Nem se preocupava com ela. Achava que Márcia cuidava bem dela. Pelo menos isso.

Nos finais de semana ficava no bar. Ali almoçava e jantava. Dormia sem tomar banho. A barba estava sempre cerrada. Seu perfume era pinga e cerveja.

Quando chegava em casa bêbado, brigava com a mulher. Humilhava-a de todas as formas. Sempre frisava pejorativamente a atuação dela na cama e na cozinha. Ele não percebia o ódio que crescia dentro dela. Principalmente quando ele falava da finada.

Márcia decidiu que se vingaria. Ela tinha uma vida sossegada, de solteira. Nunca se preocupou com homem. Casou com ele porque pensou que ele era uma boa pessoa. Mas ele só sabia infernizar a vida dela. Começou a fazer um curso de culinária. Mas não tinha jeito. Tudo desandava. Mas precisava insistir para poder por seu plano de vingança em prática.

Numa noite em que Josué estava sóbrio, Márcia lhe disse que precisava visitar sua mãe em Pernambuco. Ela estava muito doente. Ela sabia que ia morrer e chamara todos os filhos para se despedir. Disse que levaria Jaqueline para casa da mãe dele em Sorocaba e que ela ficaria por lá enquanto estivesse em Pernambuco. Josué concordou rapidamente porque não tolerava mais a mulher.

No dia seguinte, quando chegou em casa, a mesa da sala estava posta. Josué estava com fome, mas sentiu ânsia de vômito quando pensou na comida que a mulher sempre preparava. No entanto, sentiu um cheiro gostoso vindo da cozinha. Entrou na cozinha e Márcia disse:

- Meu amor, aprendi a fazer um pratos especiais no curso. Fiz para você. Sei que vai gostar. Amanhã viajo para Pernambuco e quero que esta seja uma noite agradável.

- O que você fez? Parece delicioso.

- Sente-se na mesa e espere. Já vou servir.

Faminto, Josué sentou-se. Márcia entrou trazendo duas panelas. Quando ele tirou a tampa, sentiu um cheiro delicioso. Era carne. Mas o sabor era totalmente desconhecido para ele.

- A comida está boa, meu bem?

- Deliciosa.

Josué repetiu várias vezes. Márcia disse que tinha mais da mesma carne na geladeira e no freezer.
Amanhã ele poderia comer mais.

No outro dia, bem cedo, Márcia partiu.

Josué levantou-se e foi trabalhar. Passou o dia inteiro pensando na deliciosa comida. Não via a hora de chegar em casa e comer mais.

Aproveitando a ausência da esposa, convidou a amante para jantar com ele e passar a noite. Os dois chegaram. Francisca, a amante, foi até a cozinha preparar a comida.

Francisca abriu a geladeira e gritou. Josué correu para a cozinha e viu Francisca desmaiada no chão. Ela voltou a si e, balbuciando e tremendo, pediu para ele olhar a geladeira. Josué se levantou e foi até a cozinha. Abriu a geladeira e viu pedaços de um corpo humano espalhados dentro dela.

Quando abriu o freezer viu a cabeça de sua filha.


O Pacto Maldito e Outras Histórias de Morte - José Cláudio da Silva - Casa do Novo Autor, São Paulo, 2006

Os Cães Assassinos


JOÃO ERA CAIXA NUM BANCO. Tinha uma vida pacata. Era solteiro e morava na Lapa de Baixo com os pais e duas irmãs. Família muito religiosa, frequentavam a igreja da Lapa todos os domingos. Não perdiam uma missa.

Era quase meia-noite. Maria caminhava preocupada. Não devia estar na rua naquela hora. Muito perigoso. Apertava mais o passo. Estava quase correndo. Parecia que sua casa nunca chegava.

Sentia um medo muito grande. Precisava passar por um pedaço da rua que possuía um grande terreno baldio e era escura. Devia ter dado ouvidos a Sônia e ter dormido na casa dela. Mas a preocupação com a sua mãe, sozinha esperando-a, fora maior. Decidiu que comprará um telefone para evitar esse tipo de problema. Bastaria ligar e pronto. Amanhã mesmo verá isso. Agora é fácil ter telefone ou celular. Melhor telefone. Continuava caminhando, rezando. A parte escura do caminho estava chegando.

O relógio da igreja da Lapa soou meia-noite.

Quando estava na metade do caminho sentiu uma mão por trás que tampou-lhe a boca e a arrastou para o meio do mato. Ela lutou, mas a mão era forte. Foi jogada no chão. Implorou para que ele não fizesse nada. Ele a mandou calar a boca. A lua, que até então estava encoberta por nuvens, surgiu. Redonda, grande, iluminou o rosto do homem. Maria olhou bem para ele. Implorou, pediu, chorou. Ele mandou calar a boca.

Enquanto ele fez o que quis Maria olhou bem para ele. Quando acabou ele disse:

- Você olhou muito para mim.

Ele sentiu o olhar mudo de Maria. Um olhar cheio de ódio. Ela disse numa voz rouca:

- Eu vou me vingar de você. Mesmo se você me matar eu voltarei e me vingarei de você.

Ele riu e disse:

- Você não é a primeira que eu mato. Colocou as mãos no pescoço dela.

No outro dia, uns moleques encontraram o corpo e chamaram a polícia.

João, como todos os dias, chegou em casa às seis horas. Entrou, tomou banho, jantou e se recolheu em seu quarto. Trancou a porta. Os pais e as irmãs ficaram na sala assistindo televisão. No dia seguinte, saiu de casa e viu, do outro do lado da rua, um cachorro enorme preto. Não se incomodou. Não gostava de cachorros.

Trabalhou normalmente. Quando chegou em casa, viu o cachorro novamente. Todos os dias o cachorro estava ali, acompanhando quando ele saía e esperando a sua chegada. A presença ostensiva do cachorro incomodava João.

Um mês depois, eram dois cachorros. Depois três e depois quatro. Eram todos negros e grandes. Olhavam para ele. Não o seguiam na rua. Quando João, de sua janela, olhava para a rua, os cachorros estavam olhando para ele. Resolveu que no dia seguinte chamaria a carrocinha para recolher os cachorros. A carrocinha levou os cachorros. Eles não esboçaram nenhuma reação.

Na manhã seguinte eles estavam lá de novo, olhando para João que os olhava da janela.

Segunda-feira. Onze horas da noite. João olhou a rua de sua janela. Os cachorros não estavam lá fora. Sem fazer barulho, saiu de casa. Caminhou olhando para trás. Não viu ninguém. Muito menos os cachorros. Entrou no mato. Sentou sobre uma pedra e esperou.

Logo surgiu uma moça caminhando apressada. Ele levantou-se e a atacou.

Quando a estava arrastando para o meio da mata sentiu uma fisgada na batata da perna e gritou de dor. Soltou a moça. Ela correu.

Ele olhou para baixo e viu o enorme cachorro preto preso em sua perna. Apareceu outro que lhe mordeu a outra perna. João caiu. Apareceram os outros dois. Os cachorros o arrastaram para a mata. João gritava de dor. As nuvens andaram e a lua cheia apareceu no céu.

Quando pararam de arrastá-lo, um dos cachorros subiu em cima dele e olhou nos olhos dele. João viu o olhar do cachorro sob a luz do luar:

- Eu não disse que ia voltar e me vingar. Voltei e trouxe as suas outras vítimas.

João compreendeu. Fechou os olhos. Os cachorros estraçalham o corpo de João.

Comeram sua carne a noite inteira. Cavaram um buraco e enterraram os ossos.


O Pacto Maldito e Outras Histórias de Morte - José Cláudio da Silva - Casa do Novo Autor, São Paulo, 2006

O Plano Macabro


OS ALUNOS DO COLÉGIO LAPA estavam sentados nas mesas da lanchonete em frente à escola. Bebiam sucos e refrigerantes. Fumavam. As conversas eram cheias de palavrões e gritos. Alguns estavam sentados na calçada conversando com os fones do walkman nos dois ouvidos. Outros olhavam revistas. Mais afastados, outros, com cadernos abertos, copiavam lição, versos ou desenhavam. Casais trocavam beijos.

Numa das mesas da lanchonete, cinco colegas de classe do terceiro ano conversavam.

Estavam revoltados, furiosos, enfurecidos. Mas conversavam baixo. Seus olhos estavam vermelhos, demonstrando que choraram muito. Foram reprovados na escola. Terão que cursar novamente o terceiro ano.

A conversa deles tinha como objetivo planejar a vingança contra a professora que, na opinião deles, liderou a reprovação. Como se a reprovação se devesse unicamente pela vontade de uma professora e não pela vontade deles mesmos. Queriam algo que não lhes trouxessem problemas com a polícia. Algo que caísse fundo no espírito da professora e ela nunca mais lecionasse na vida. Precisaria ser algo extraordinariamente maléfico para o ânimo da professora. E que só ela pudesse sentir, em toda a profundidade, a angústia de viver com um medo permanente na alma.

As idéias eram muitas: cortar as orelhas do filho. Ela não tinha filhos. Arrumar uma amante para o marido. Ela não era casada e não tinha namorado. Muitas idéias estapafúrdias saíram das cabeças privilegiadas. Até que um perguntou:

- Qual é o maior medo do homem?

- Impotência.

- Não. Ela é mulher. O medo de qualquer pessoa?

- A morte.

- É.

- Precisamos pensar em algo que a faça ficar aterrorizada. Mas tem ser algo psicológico, não físico. Onde mora a morte?

- No cemitério.

- Devemos fazer algo que a faça sentir o medo e que ele entre na vida da professora e viva com ela para sempre.

- Que tal desenterrarmos uma cova recente e colocarmos o caixão com o defunto dentro da casa dela?

- E deixaremos um cartão desejando uma feliz morte.

- Ótima idéia!

- Todos concordam?

- Sim.

- Vamos começar hoje mesmo. Às onze horas nós nos encontraremos aqui e iremos ao Cemitério da Lapa roubar uma sepultura. Depois colocaremos dentro da casa da professora com o cartão.

- Você sabe onde ela mora?

- Vamos olhar no catálogo telefônico.

Combinaram os detalhes do plano.

Onze e trinta da noite. Chovia. Os cincos estavam dentro do Cemitério da Lapa. Uma lanterna iluminava o caminho. Procuravam um túmulo recém aberto. Todos sentiam medo, mas ninguém dava o braço a torcer. Ouviram o pio de uma coruja. Arrepiaram-se e tremeram. Em suas mentes estavam arrependidos. Já não queriam mais se vingar. Foi o calor da hora e da notícia da reprovação. Eles foram avisados o ano inteiro de que se não estudassem seriamente seriam reprovados. Não acreditaram. A culpa era deles. Agora estavam ali no frio, sob uma chuva, num cemitério, quase meia-noite.

Outro pio de coruja.

Dessa vez mais perto. Instintivamente se aproximam uns dos outros. A lanterna iluminava pouco. A chuva estava espessa. A umidade da chuva envolvia a todos e enchia os tênis de barro e água.

- Ali tem uma.

- Onde?

- Ali. Naquele canto perto do muro.

Pegaram a coroa de flores e jogaram para o lado. As pás começaram a cavar. A terra molhada dificultava o trabalho. Chegaram ao caixão. Retiraram da cova. Resolveram cortar caminho pelos fundos do cemitério. Caminharam segurando as alças do caixão. O barro deixava os tênis pesados.

Caminhavam lentamente em meio à escuridão e a chuva forte. Não viram que havia um buraco um plástico preto tampando a sua boca. O buraco fora feito para canalizar as águas das chuvas. Mas as obras foram interrompidas. Toda a terra retirada estava na borda do buraco. Uma montanha de terra.

O primeiro se desequilibrou soltou a alça e se segurou no segundo, que se segurou no terceiro, que se segurou no quarto, que se segurou no quinto e todos caíram dentro do buraco. O caixão se abriu na queda e o corpo de uma mulher jovem rolou para fora do caixão. Desesperados, no escuro, tentavam escalar as paredes, mas não conseguiam.

Várias tentativas. Nada.

Ouviram, num relógio distante, as badaladas da meia-noite. A chuva caía mais forte. Se encorpava e caía torrencialmente, forte, furiosa, carregando tudo o que encontrava pela frente. Vários bairros foram alagados.

Ensopados e enlameados gritavam por socorro. A montanha de terra que estava na borda do buraco começou a deslizar para dentro dele. De repente, a terra toda desabou sobre eles.

Todos morreram soterrados.


O Pacto Maldito e Outras Histórias de Morte - José Cláudio da Silva - Casa do Novo Autor, São Paulo, 2006