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quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A visão do Viegas

Arnaldo Viegas cursava o terceiro ano do curso jurídico de São Paulo. Havia seis, porém, que se achava matriculado na Academia. Indolente e de pouca atilação para as ciências, distinguia-se somente entre os companheiros pela sua supina ignorância da ciência jurídica, e pelo atrevimento das suas graçolas para com os lentes, mesmo os mais sisudos e ríspidos.

Se em direito, porém, Arnaldo Viegas, era profano, sabia no entanto de cor quase todos os poemas de Byron e Musset, cujos livros tinha por sua Bíblia ou Alcorão, mas sem que fraternizasse espiritualmente com as grandezas e sublimidades daquelas almas alucinadas pelo Belo e pelo Amor.

Viegas apreciava-os unicamente por ver que esses grandes poetas, na extravagância de seus gênios, se compraziam de exaltar o Vício e deprimir a Virtude. Nisso achava ele desculpa às desordens da sua vida, desordens baixas, sem intermitências de horas de labor honesto, nem manifestações fulgurantes de talento.

Viegas era bêbedo como um marinheiro em terra; jogava toda a sorte de jogos; fazia ostentações em entrar nas mais sórdidas espeluncas; e. finalmente, era um consumado devasso, mais por perversidade e amor próprio do que por impulsão do temperamento.

A sua conversa, quando não discorria sobre os paradoxos brilhantes de Byron e Musset, versava unicamente nas boas peças que pregava aos burgueses; nos calotes que passava ao alfaiate e ao sapateiro; nas mulheres casadas que seduzia; nas donzelas que lhe ofereciam a virgindade.

Embora muito dissoluto, é escusado dizer que a maior parte dessas façanhas eram puras invenções suas. A pretensão que tinha porém de fazê-las passar por verídicas, demonstra perfeitamente o depravado fundo do seu caráter.

Todavia o Viegas figurava como torpe protagonista de algumas aventuras amorosas, e é de uma delas que vamos tratar.

* * *

No tempo de que nos ocupamos, existia na rua de São Bento, em São Paulo, um velho armarinheiro italiano, Pascoal Landini, que, às suas funções comerciais de mercador de alfinetes, grampos e agulhas, reunia as de armador de igrejas, por ocasião de festividades religiosas, e fabricante de caixões e mortalhas para defuntos.

Pascoal Landini era um velhinho magro, baixo, de barba muito alva e pontiaguda, e sempre o viam na sua pequena loja toucado com um barrete de veludo azul com borla preta, e óculos de aro de tartaruga, perfeitamente redondos e grandes. Contudo, o que mais chamava a atenção, na lojinha da rua de São Bento, não era o seu proprietário, nem os acessórios do seu vestuário, e sim uma criatura de beleza incomparável e suavíssima, Maria Annunzziata, a filha do velho Pascoal, sempre a costurar, e sentada ao fundo da loja.

Toda a estudantada desse tempo – calouros e veteranos – conhecia a loja do Pascoal por causa da bela costureira; e, pelo interesse de lhe lançar uma olhadela amorosa, aliás nunca correspondida, iam freqüentemente ao negócio de Pascoal abastecer-se de penas, lápis, papel e tinta. Pelas “repúblicas” falava-se muito a miúdo na formosura de Annunzziata, e muito estudante fechava às vezes aborrecido o Digesto ou o Corpus Juri, para abrir a Arte de metrificação de Castilho, e fabricar versos em sua honra.

Todavia até aquela data nenhum se havia lambido com um seu sorriso. Annunzziata parecia insensível aos olhares de fogo que a trêfega mocidade acadêmica lhe lançava, ao dirigir-se à Escola, e até aos sonetos que os mais brejeiros lhe atiravam em papel dobrado em laçarote, aproveitando descuidos do velho Landini.

Ora, aconteceu um dia morrer um estudante do segundo ano de direito, e tendo os rapazes resolvido fazer-lhe o enterro, por ser o colega paupérrimo, comissionaram Arnaldo Viegas para tratar da encomenda do ataúde e da mortalha.

Arnaldo dirigiu-se à casa do velho Pascoal para se desempenhar do seu fúnebre encargo, e depois de lançar uma olhadela de fogo para Maria Annunzziata, que parecia uma daquelas suavíssimas madonas dos pintores da Renascença, ensarrilhada no fundo da loja do armarinheiro, dirigiu-se ao velho nestes termos:

– Bons dias, sr. Pascoal: venho fazer-lhe a encomenda de um caixão e de uma mortalha para um colega que morreu.

Molto bene, – respondeu o italiano, na sua língua, pois não falava uma palavra de português.

E tomando uma fita métrica, perguntou a Viegas:

La medida del suo amico?

Que medida?! – exclamou Viegas.

La medida per fare il cajone.

– Ora bolas! – tornou Viegas, – nem disso me lembrei.

Dunque! – exclamou mestre Pascoal, – como fare io, senza la medida? Andate a portar-me lá, signor.

– Não é preciso sr. Pascoal; meu colega era exatamente da minha altura. Tome a medida do caixão por mim.

O italiano, que, como quase todos os seus patrícios, era profundamente supersticioso, fez um gesto de espanto, ao ser-lhe proposto tal alvitre, e exclamou:

Per Dio Santo! Ecco um cattivo pensamento. Prendere la medida di un morto sopra di voi! Questa non si fa, signor, sarebbe funestissimo per voi.

A bela Annunzziata, ao ouvir as palavras do estudante, fez igualmente um gesto de horror, e, pela primeira vez nesta cena, levantou os olhos da costura. Aproveitou-se logo disto Viegas para envolvê-la em um longo olhar sensual, ao mesmo tempo que repetia a mestre Pascoal:

– Tome a medida, mestre Pascoal. Eu não acredito em agouros.

Annunzziata, ao ver essa insistência, não pôde conter-se. Como que parecia interessar-se pelo estudante:

Oh! non lo permettete, signor! Questo porta disgrazia!

Arnaldo Viegas ficou radiante e cheio de si; quis ostentar-se aos olhos da moça homem superior, despido de superstições. Assim, exclamou, confiando o bigode negro:

– Não vos incomodeis, bela signorita. Deixe que mestre Pascoal tome a medida. O que aos demais acarreta desgraça, para mim talvez seja a chave da felicidade.

E tornou a dardejar uma chispa do seu olhar atrevido sobre a formosa italiana, que, enrubescendo, se inclinou sobre a costura, apenas pronunciando um simples oh! 

Mestre Pascoal, porém, encolhendo os ombros fleumaticamente, assim como quem queria significar que não era responsável pelo que acontecesse, disse, endireitando os seus óculos redondos de aros de tartaruga:

Sia fatta la sua voluntá!

Ao mesmo tempo que desenrolava a fita métrica, fazia com que o rapaz comprimisse a fivela da mesma na fronte e corria-a até os pés.

Em seguida levantou-se com os dedos fixos na marca, e lendo a numeração da fita exclamou:

Due metri e dieci centimetri. Per la Madona“, – acrescentou ele tirando o barretinho e saudando Viegas em ar de troça, –voi siete un signor difunto!

Apesar de muito encouraçado contra agouros, Viegas estremeceu com a frase de mestre Pascoal. Mas, ao ouvir Annunzziata abafar um gritinho, também impressionada com o gracejo fúnebre do pai, logo as suas idéias tomaram outro rumo. Compreendeu que a sedutora virgem da rua de São Bento estava se interessando muito por ele, e isto encheu-o de prazer.

Efetivamente, atraída por estranho ímã, Annunzziata, logo no primeiro momento em que os seus olhos pousaram sobre Viegas, sentiu-se simpatizada por ele.

Arnaldo pagou a conta e despediu-se. Da porta lançou um último olhar a Annunzziata e esta o mimoseou com um gracioso sorriso.

Viegas não cabia em si de contente. “Que conquista de mão cheia não ia ele fazer? Como toda a estudantada não se encheria de inveja e despeito ao vê-lo na posse inteira da rafaelesca virgem da rua de São Bento?! Aquele sorriso era a porta aberta a todas as suas ousadias, e não seria ele Viegas que deixaria de entrar por ela”.

* * *

Assim, animado por esse sorriso que lhe prometia tanta fartura de gozos e volúpias, Arnaldo Viegas começou a freqüentar a loja de Pascoal Landini, cuja confiança e amizade soube captar em pouco tempo, pois o velho italiano era homem muito simples e de extrema boa fé.

Duas semanas depois que teve lugar a cena acima descrita, já Viegas tomava parte no macarrão e no vinho de Chianti do modesto lar do armarinheiro, e daí a duas outras semanas era ele completamente senhor do coração e da vontade de Annunzziata, que havia subjugado desde o dia da encomenda do caixão.

Sem o sentir, a bela jovem Annunzziata achou-se perdidamente enamorada do devasso estudante, e logo Viegas cogitou nos meios de poluir aquela cândida criança, que com tanto abandono e simpleza lhe ofertava o seu primeiro e virginal amor.

Aproveitando-se de uma ausência de Pascoal que foi obrigado a dirigir-se ao Rio de Janeiro a fim de fazer sortimento para a sua loja, intrometeu-se na lar do honrado lojista onde Annunzziata ficara, apenas com uma criada já velha.

Annunzziata amava-o muito já, para poder resistir-lhe. Viegas atirou-se-Ihe com toda a lubricidade dos seus desejos, e profanou-a.

Pouco depois alugou um quartinho na rua que dava fundo para a casa do italiano e todas as noites metia-se no quarto da rapariga que cada vez o adorava mais.

Durante dois meses Viegas foi assíduo junto da amante, porém decorrido esse tempo começou a enfastiar-se dela, principalmente por ter percebido que ela se achava grávida. Aquele infame era incapaz de qualquer sentimento nobre. Resolveu abandoná-la.

Mudou-se de residência e nunca mais a procurou.

Não tinha ele conseguido os seus intentos? Não alcançara transformar em impura Madalena a bela e recatada virgem que toda a Academia adorava? Agora convinha-lhe demonstrar a sua superioridade, para que não parecesse qualquer burguês. Partiria a taça pela qual sorvera o mais suave dos filtros.

* * *

Annunzziata cobriu-se de mágoas com o súbito abandono do pérfido amante.

Escreveu-lhe por diversas vezes e não obteve resposta. Ralavam-na os desgostos, começou a compreender que tinha sido traída, até que afinal, amiudando mais as cartas ao celerado, este, com o maior cinismo, mandou dizer-lhe verbalmente por um moleque que o não apoquentasse mais com cartas e choradeiras, que andava muito preocupado com os seus estudos e exames para perder tempo em responder a lamúrias de mulheres histéricas; e, finalmente, que não fosse tola em insistir com ele para pedi-la em casamento, pois ela bem devia compreender que um rapaz da sua posição e futuro não era para casar com a filha de um armarinheiro, um reles burguês fazedor de caixões de defunto.

Tanto cinismo e brutalidade partiram uma por uma todas as cordas da alma da bela italiana. O seu débil corpo não pôde resistir a tão duro golpe; intensa febre levou-a ao leito de onde só saiu alguns dias depois para ser levada ao cemitério. O seu pobre coração estalara de dor, e ao partir-se levara-lhe a existência.

* * *

O velho Pascoal Landini sentiu-se ferido profundamente nas suas vivas e únicas afeições com a morte de sua dileta Maria Annunzziata, retrato vivo da esposa que perdera havia anos.

Desde o dia em que a gentil criatura cerrou os olhos à luz do mundo, nunca mais abriu o armarinho.

Tornou-se taciturno em extremo, evitava falar com as pessoas de seu conhecimento, e passava a maior parte do dia encerrado no pequeno quarto em que dormia e onde lhe morrera a filha adorada, e cujos móveis e roupas conservava na mesma desordem e desalinho em que haviam ficado naquele dia tão angustioso para o seu pobre e velho coração.

À rua apenas saía para dirigir a construção de um artístico mausoléu que mandara erigir no túmulo da filha, e no dia seguinte àquele em que se ultimara a obra, encontraram-no morto no quarto de Annunzziata.

Feita a autópsia, verificaram os médicos que o infeliz ingerira uma forte dose de arsênico.

Esses dolorosos acontecimentos que tanto emocionaram os lojistas e fabricantes da rua de São Bento, pois Landini e sua filha eram geralmente estimados, não impressionaram no entanto o cínico que havia cavado aquelas duas sepulturas precoces.

Arnaldo Viegas continuava na sua vida de dissipação, como outrora, e no seu íntimo alegrava-se até que a morte o tirasse de certos embaraços sociais para com a infeliz, cuja virgindade ele havia profanado.

Pouco depois entrava em exame e por casualidade era aprovado com a nota simples.

Rejubilou-se o pretensioso ignorantão com esse mesquinho triunfo escolar, e tendo naquele dia recebido a gorda mesada que a prodigalidade paterna lhe dispensava, resolveu festejá-la com uma lauta ceia oferecida aos amigos, no Corvo, a célebre taverna paulista da rapaziada acadêmica de outrora.

Eram onze horas da noite. Reinava a mais expansiva alegria em todos os convivas, pois já algumas dúzias de garrafas haviam sido despejadas, quando Arnaldo Viegas que se achava na cabeceira da mesa ergueu-se um tanto ébrio, e, empunhando uma taça a transbordar de vinho Madeira, exclamou:

– Meus senhores, vou levantar o brinde de honra do nosso banquete. Sobre ele todas as taças se quebrarão!

– Muito bem! muito bem! – responderam todos enchendo os copos.

– É um toast de respeito, meus senhores! Eu bebo à memória da rapariga mais formosa que meus lábios têm beijado nos espasmos do prazer! Eu bebo, senhores, ao perfeito apodrecimento da que foi outrora a mais perfumada e deliciosa das carnes! Eu bebo à memória de Maria An… An… An…

Não pôde terminar o nome angélico daquela cujas cinzas queria profanar em uma orgia.

Os seus olhos fixaram-se de repente em um dos ângulos da enfumaçada sala da taverna acadêmica. e o seu corpo principiou a tremer, caindo-lhe o copo das mãos.

Os companheiros voltaram-se imediatamente para o canto onde se dirigira o olhar aterrado de Viegas, mas nada viram.

Arnaldo, no entanto, ia ficando pálido, os seus lábios abriam-se denotando a maior estupefação, e os seus dedos crispavam-se, como se ele fosse presa de horrível pesadelo.

Efetivamente surgia para Arnaldo uma visão medonha, pavorosa. Naquele momento de final de orgia, viu sair do canto da sala um fantasma, o finado Pascoal Landini, de barrete azul, óculos redondos de aros de tartaruga e fita métrica em punho. A terrível visão aproximou-se do libertino, que quis gritar, sem poder, não encontrando som algum na garganta.

Os companheiros observavam espantados e silenciosos. Viegas viu, então, o fantasma de Pascoal desenrolar a fita, obrigá-lo a comprimir a fivela à fronte onde um suor frio deslizava, corrê-la até os pés, e depois erguer-se, endireitar os óculos para ler a numeração, e exclamar:

Due metri e diecci centimetri! – E, exatamente como outrora, no dia em que fora tratar do enterro do colega, tirar o barretinho e à guisa de cumprimento trocista, acrescentar:

Per lá Madona, voi siete un signor difunto!

Viegas não pôde suportar por mais tempo aquele martírio. Reunindo todas as forças que tinha, articulou um grande grito e rolou inanimado no soalho da taverna.

* * *

Tornando a si do delíquio, a sua primeira pergunta foi saber dos companheiros se tinham visto a alma do velho Pascoal tomar-lhe a medida para o caixão.

Ninguém vira coisa alguma.

– Foi o vinho Madeira que te subiu aos miolos, – disse um colega.

– Proferiste um conto digno de Hoffman ou do nosso Álvares de Azevedo, – disse outro.

– Ora, graças que temos um Macbeth na Academia! Acho, porém, o teu Banquo um tanto burguês, – acrescentou ainda outro.

– Senhores, – exclamou Viegas todo trêmulo ainda e de uma palidez mortal, – eu vi nesse momento o velho Lalldini chegar-se a mim e tirar-me a medida para o caixão, exatamente como no dia em que com ele tratei do enterro do Deotato. Vi, senhores, não foi efeito do vinho, nem é conto que vos quero impingir, eu vi o velho Landini!

* * *

Dessa noite por diante a razão foi desaparecendo aos poucos do atribulado cérebro de Arnaldo Viegas.

Cessou os estudos, afundou-se cegamente na bebida e dentro de algum tempo estava completamente idiota.

Com intervalos lhe surgia na mente confusa a temerosa visão, o eterno mestre Landini a. tirar-lhe a medida para o caixão; em seus ouvidos zumbia constantemente o terrível gracejo do armarinheiro:

– Due metri e dieci centimetri! Per la Madona voi siete un signor difunto!

Em estado de completo idiotismo vagou durante algumas semanas pelas ruas de São Bento, roto, esfrangalhado, sórdido, até que afinal sua família mandou recolhê-lo e meteu-o no Hospício do Rio de Janeiro.

No fim de alguns meses o seu corpo era dado à sepultura.

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Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.59-70

A alma penada do barão

O barão do Arrenegado era um importante fazendeiro de Serra-Acima, muito conhecido da praça do Rio de Janeiro, com a qual entretinha assíduas relações comerciais.A história que passamos a contar, e na qual o opulento e aristocrático barão do Arrenegado figura como principal personagem, fixa-se cronologicamente no tempo de Pedro I e pouco antes da expulsão desse Bragança do Brasil.

É sabido de todos que conhecem um pouco a história pátria que o filho de dom João VI, depois da dissolução da Constituinte, começou a temer seriamente o partido nacional, do qual eram principais chefes os ilustres Andradas, com os quais se havia incompatibilizado.

Por isso cogitou da formação de um partido brasileiro para se opor àquele, e no propósito de adquirir afeiçoados distribuiu profusamente títulos e mercês honoríficas, fato esse que, segundo dizia o Tiphis Pernambucano, célebre jornal do mártir frei Caneca, era um ultraje irrogado pelo Trono aos sentimentos democráticos da nação brasileira.

Muita gente, que nunca havia sonhado com brasões de armas e títulos de nobreza, viu-se por essa forma transformada em barões, marqueses e viscondes, constituindo-se por tal meio no Brasil uma aristocracia achinelada, na frase sarcástica de Timandro, que depois também para ela entrou, aceitando o ridículo título de visconde de Inhomerim, lugarejo insignificante que existe pouco adiante de Mauá e que apenas se salienta pelas sezões e pela grande quantidade de mosquitos.

Ora, um dos agraciados pela munificência do imperial amante da Domitila, foi Francisco Viana de Lobo, que na derrama das graças abiscoitou o título de barão do Arrenegado, unicamente por ter sido companheiro de deboches de Pedro I, quando simples príncipe de Bragança.

Ainda por intervenção de Pedro I, o barão do Arrenegado, casou-se com uma rica herdeira, e, opulento e nobre, tornou-se fazendeiro.

Viana de Lobo era um homem alto, robusto, de pés e mãos enormes, olhos azuis e cabelos ruivos e duros, barba da mesma cor e consistência, sobrancelhas bastas e de fios muito longos, pele vermelha, afogueada.

Tudo em sua fisionomia tinha um cunho feroz, selvagem. À primeira vista compreendia-se logo que se estava em presença de um brutamontes. E assim era. As concordâncias que Lavater encontrou entre o físico e o moral dos indivíduos exemplificavam-se perfeitamente no barão do Arrenegado.

A sua índole condizia com a aspereza da sua fisionomia. Viana de Lobo era homem de maus bofes: cruel para com os escravos, ríspido para com sua resignada e digna consorte, brutal para com todas as pessoas que com ele tratavam.

Com exceção da esposa, que o adorava, sem compreender porquê, e de Pedro I, cuja índole afinava um tanto com a sua, ninguém gostava do barão do Arrenegado. Mas, o que mais antipatias lhe atraía, não eram os seus modos bruscos e incivis, e sim o desrespeito com que ele tratava as coisas da religião em que nascera fora batizado.

Viana de Lobo era profundamente ateu, e comprazia-se em ostentar a todos a sua irreligião, fato esse que enchia de desgostos a pobre baronesa, excelente senhora e em tudo obediente ao marido, porém em extremo religiosa.

Acredita o povo que o ateísmo do barão do Arrenegado foi severamente punido pela Providência Divina que tudo perscruta e a tudo provê. Encarregar-nos-emos de revelar a forma por que tal castigo lhe foi aplicado, seguindo em tudo a tradição popular.

* * *

As antipatias contra o governo despótico de Pedro I, os seus freqüentes atentados às liberdades constitucionais, que jurara defender, começaram a brotar de todos os ângulos do país. Uma revolução estava eminente, porém, o imperador julgava-se com forças para conjurá-la.

Minas Gerais era uma das províncias onde o descontentamento lavrava mais intenso, e Pedro I, que tinha ilimitada confiança em si próprio, deliberou transportar-se em pessoa a Vila Rica, esperando que a sua presença bastasse para serenar os ânimos, tal como acontecera na sua primeira excursão à velha Terra-do-Ouro, quando ainda regente do Brasil, em nome de dom João VI.

Por isso partiu do Rio de Janeiro, acompanhado de sua segunda esposa, e, ao passar pela fazenda do barão do Arrenegado, onde fora tratado de um modo faustoso, convidou o antigo companheiro de pândegas para fazer parte da sua comitiva na viagem que ia empreender. Aprontou-se logo o barão, e, despedindo-se da esposa, tocou para Minas, com o seu imperial patrono, satisfeito por poder desenfadar-se um pouco da vida monótona que passava na fazenda.

Deixemo-lo cavalgar para a prisca Vila Rica e vejamos o que se passa em sua casa durante a sua ausência.

* * *

Uma semana depois da partida do barão, vieram alguns escravos comunicar à baronesa um fato singularíssimo e que encheu a respeitável senhora de emoção.

Diziam esses escravos que no pasto da fazenda, e bem no oco de uma frondosa aroeira que ali existia, haviam encontrado eles uma imagem da Virgem Maria, modelada com tanta perfeição, que mãos humanas não podiam fazer igual, e, o que era mais extraordinário, essa primorosa peça da estatuária cristã não fora ali embutida, porém sim lavrada na própria casca da aroeira, da qual fazia parte integrante. Não era crível que um artista viesse às ocultas deixar aquele atestado da sua devoção e talento. O aparecimento da santa, não podia deixar de ser um milagre .

Essa notícia alvoroçou a baronesa, cujo sentimento religioso era profundo, segundo já dissemos. Nesse mesmo dia partiu ela para a Árvore-de-Nossa-Senhora, acompanhada de toda a escravaria; e mandando cercar a imagem de círios bentos, fez rezar uma ladainha cantada, que ela mesma ia entoando devotamente.

Rápida se espalhou por toda a vizinhança a notícia do milagroso acontecimento, e começaram a afluir devotos de toda a parte, a fim de fazerem preces à Nossa Senhora encontrada na árvore da fazenda do barão.

O padre do arraial vizinho, acompanhado da Irmandade do Santíssimo Sacramento, veio em procissão solene, e de cruzes alçadas, visitar a imagem, junto à qual foi celebrada uma missa campal. Todos os devotos eram hospitaleiramente agasalhados pela piedosa baronesa, que se sentia jubilosa por ter Deus achado nela bastante merecimento para que em suas terras se verificasse tão surpreendente milagre, ainda mais encarecido pelo fato de se começar a espalhar que um galhinho ou uma lasca da casca da Aroeira Santa possuía miríficas virtudes, só com trazê-lo ao pescoço, ou em um bentinho.

O capim, que crescia em redor da árvore, foi cuidadosamente mondado pelos devotos, sendo a baronesa a primeira a dar o exemplo tomando uma enxada e capinando-o. Um carpinteiro cercou a imagem com um bem acabado gradil, outro artesão enladrilhou a base da árvore, e tudo corria na maior efusão de religiosidade, quando regressou à fazenda o barão do Arrenegado, seu legítimo e único proprietário.

* * *

O barão vinha contrariadíssimo pelo desrespeitoso acolhimento que recebera em Minas o arrogante Pedro I, a cuja sombra ele medrava.

A velha e altiva pátria de Tiradentes recebera dessa vez de cara enfarruscada o poderoso soberano dos Brasis. Para ela Pedro I não era mais o penhor augusto das liberdades nacionais, mas simplesmente o estrangeiro infenso às prerrogativas populares, alcançadas com a Independência.

Não lhe encobriu, pois, o seu desagrado. A população dos diversos lugares corria acintosamente aos templos, quando o imperador a eles chegava, e ia assistir missas por alma de Libero Badaró, que os seus apaniguados haviam assassinado em São Paulo.

O imperador regressara despeitadíssimo, e do mesmo modo o seu válido, o barão do Arrenegado, que mais ainda se enfureceu, quando, ao penetrar em terras da fazenda, a viu devassada pela chusma de devotos que faziam romaria à Virgem-da-Aroeira.

Raivoso, enterrou os acicates na barriga da potranca que cavalgava, e em poucos minutos esbarrava no terreiro.

Mal avistou a esposa, e antes mesmo de lhe dirigir qualquer saudação, perguntou-lhe com semblante carregado:

– Senhora baronesa, que quer dizer todo esse povo estranho que me palmilha o campo da fazenda? Serão ciganos?! Não tenho proibido tantas vezes a entrada dessa canalha nas minhas terras?!

– Sossegai, barão; não são ciganos. Como fostes de viagem? Acho-vos um tanto abatido.

– Qual abatido, qual nada! O que desejo é saber quem é toda essa corja de vagabundos que por aqui transita, como se estivesse em sua casa? Por ventura teriam recebido notícia de minha morte? Não compreendo, como, sabendo-me vivo, a senhora consinta que se desrespeitem tão injuriosamente as minhas ordens? Parece-me que ainda valho alguma coisa, com os diabos! Quem é aquela gente, senhora, e que quer ela?

– É boa gente, barão, gente honesta e piedosa, – respondeu a baronesa, toda confusa. E atendendo à impaciência do barão, viu-se obrigada a referir-se logo em seguida toda a história da descoberta da imagem, a ladainha lá rezada, a procissão feita pelo padre do arraial, a construção da cerca, o enladrilhamento de oda a base da árvore, e finalmente as extraordinárias virtudes que diziam possuir a casca e os ramos da Aroeira Santa.

O barão ouviu toda a narração, mostrando visíveis sinais de impaciência e de enfado. Seus olhos passeavam sem parar da mulher para as pessoas que estavam no campo. Apenas ficou inteirado de toda a história, exclamou encolerizado:

– Que indigna comédia, senhora baronesa! que patifaria, senhora! Qual Santa, nem qual Diabo! Tudo isso não passa de artifícios desses miseráveis padres, que julgam poder intimidar-me com tão grosseiros embustes! Nunca se viu tamanha cachorrada! Não há milagres, nem coisa alguma! Foram eles, esses patifes, que mandaram às ocultas modelar a imagem no tronco da árvore; foi isso e mais nada. Mas enganam-se, esses estúpidos falsários, se pensam que sou tão fácil em acreditar nas suas patranhas! Hoje mesmo não ficará de pé nem cerca, nem árvore, nem imagem, nem coisa alguma!

– Que ides fazer, meu Deus? – exclamou a baronesa, tomada do maior assombro.

O barão não lhe deu resposta: estava quase louco de cólera. Chamando um pajem de confiança, berrou:

– José. Vá dizer àquelas pessoas que andam pelo campo que se ponham já fora da minha vista, e isso quanto antes, senão não respondo pelo que acontecer.

E logo, virando-se para outro escravo, gritou: “Sabino, vai apanhar um machado e acompanha-me. Ah! patifes, querem divertir-se à minha custa?! Corto a vergalho aquele danado padre Manuel, pois não foi outro o autor de tal peça!”

– Por Deus! barão, –  disse a baronesa enlaçando-se ao esposo, e com o pranto a borbulhar-lhe nos olhos, – que ides fazer?! Não chameis o castigo de Deus sobre nossas cabeças!

O barão, porém, não era homem para atender a lágrimas de mulheres. Desvencilhou-se dos braços da esposa, com um repelão, e partiu para a aroeira, acompanhado do crioulo Sabino, que se armara do competente machado.

A baronesa, consternada, e vendo que não poderia deter o marido, no seu furor inconoclasta, mandou acender as velas no oratório e foi rezar aos santos de sua devoção.

* * *

O barão do Arrenegado no entanto chegava à aroeira, e logo destroçou e espezinhou cerca, círios, flores e oferendas pias que os devotos haviam pendurado ao tronco. Em seguida ordenou ao escravo que derrubasse a árvore.

Sabino levantou o machado e vibrou o primeiro golpe, que penetrou fundo na Aroeira. Os galhos mais delgados da árvore estremeceram, e uma chuva de folhas miúdas caiu no chão, ao mesmo tempo que ela exalava um gemido.

O escravo olhou assombrado para a copa da árvore e exclamou:

– Sinhô, aroeira gemeu!

– Não foi nada, – respondeu o barão, – é algum ramo que rangeu ao roçar em outro.

Sabino deu segunda machadada, e a árvore exalou segundo gemido.

– A aroeira tornou a gemer, sinhô! – repetiu Sabino cada vez mais assombrado.

– Eu nada ouvi, – respondeu o barão; – corta a árvore, e não te ponhas com idéias.

Mais um terceiro golpe e mais um novo gemido. O escravo começou a tremer.

– A árvore não pára de gemer, meu sinhô!

– Corta a árvore, – tornou furioso o colérico fazendeiro; – ou antes dá-me o machado, pois parece-me que o medo vai tirando-te as forças. Sai daqui, vai-te para o inferno com as tuas invenções de gemido!

E tomando brutalmente o machado das mãos do escravo, o barão atacou resolutamente a árvore.

Sabino continuava a ouvir os singulares gemidos, porém o barão, todo ocupado na destruição da Árvore-Santa, não os escutava, e, com ardor crescente, decepava a fronde.

Dentro de alguns minutos toda a árvore estremeceu, e com mais alguns golpes a copa do soberbo vegetal inclinou-se, rangeu, e despejou-se por terra com medonho estrondo.

Ao despregar-se a alentada fronde da copa, a árvore escorregou para a frente, ao contrário do que desejava o barão, e antes que ele pudesse fugir com o corpo para o lado, foi colhido e ficou esmagado pelo madeiro.

Sabino, que se achava à distância, deu um grito de horror, e correu para o senhor. O barão do Arrenegado estava morto!…

* * *

A baronesa, ao saber do ocorrido, apenas teve forças para exclamar:

– Foi castigo, meu Deus! meu coração bem o adivinhava!

E caiu desmaiada nos braços das mucamas. Levantada a árvore, com grossos espeques, foi retirado o corpo do barão, em péssimo estado, e carregado para a fazenda.

Ao recobrar os sentidos, já a baronesa o tinha a seu lado.

Apesar da rispidez com que a tratava o marido, a infeliz senhora tinha por ele sincero afeto. A sua dor foi enorme.

Deliberou fazer solenes exéquias ao esposo, e, para esse fim, ordenou que o corpo fosse transpoŽtado para o arraial, onde poderia ser amortalhado com a decência compatível com a sua elevada posição social e opulência.

Quase ao escurecer, partiram da fazenda doze negros conduzindo o cadáver numa rede, a fim de ser depositado em câmara-ardente na igreja do arraial.

A desolada viúva e as mucamas deviam, pelo correr da noite, reunir-se ao corpo, pois ficaram aprontando-se para a viagem.

* * *

O arraial distava cerca de quatro léguas da fazenda do barão, e quando os pretos que conduziam o corpo já se achavam em meio do caminho, começaram a sentir que ele se tornava muito pesado.

O crioulo Sabino, que fazia parte do cortejo fúnebre, sendo o primeiro a observar tal fato, voltou-se para um preto africano, já meio velho e disse:

– Pai Antônio, o defunto está pesando muito.

– Cala boca lapazi, – respondeu Antônio gemendo debaixo da carga, – é que esse que tá aí tinha pecado caté nu zoio.

E lá se foram, sacolejando o cadáver do aristocrático barão, pela estrada afora.

Mas o corpo a cada momento aumentava de peso e as mudas de carregadores tiveram que se revezar a miúdo. Os pobres pretos quase deitavam a alma pela oca, quando deixavam o fardo.

Afinal chegou o triste cortejo a um vasto campo, onde serpeava a fita branca da estrada. Aí, nesse lugar, o cadáver tornou-se tão pesado que os negros caíram repentinamente de joelhos, vergando sobre a enorme carga.

Os escravos, assombrados com o que estava acontecendo, juntaram-se, em número de doze, para verem se, reunidos, conseguiam transportar o defunto ao arraial, que apenas distava um quarto de légua daquele lugar.

Acercaram-se, pois, da rede, e dispuseram-se a levantá-la, porém com o esforço que fizeram quebrou-se o grosso canudo de taquarassu. Mas a rede não caiu ao chão! O maldito defunto parecia ali pregado.

Achavam-se eles naquela incerteza, sem nada poderem resolver, quando desembocaram na estrada dois cavalheiros, que se ofereceram logo para transportar o cadáver.

Os negros aceitaram, embora não acreditassem que aqueles dois homens pudessem fazer o que doze não haviam conseguido.

Os cavaleiros, porém, sem que a carga parecesse superior às suas forças, colheram a rede pelos punhos, mesmo montados como se achavam, ergueram-na, à altura dos peitos dos cavalos; e começaram a caminhar, sem prestarem atenção aos asnáticos comentários que os crioulos faziam, admirados com aquela força hercúlea.

Poucos instantes depois, observaram os negros que aos lados da rede se achavam quatro cavaleiros, sem que soubessem por onde tinham chegado os outros dois. Ao cabo de dez minutos surgiram mais quatro, vindos sempre pela mesma forma misteriosa.

– Uê! – disse pai Antônio para os outros, – donde tá chegando turo esse gente. Cruzo!

Mal fora feita essa observação, apareceram cavaleiros de todos os lados, que, num berreiro infernal, dispararam com o cadáver do barão. Num abrir e fechar de olhos, sumiram-se, fazendo ouvir medonho estrondo, que atordoou todos os pretos. No mesmo instante sentiu-se um forte tremor de terra, e na direção em que haviam desaparecido os fantásticos cavaleiros viram-se compridas e azuladas línguas de fogo que se enroscavam pelo chão como cobras, e nele penetravam.

– Valha-nos, Nossa Senhora! – disse o crioulo Sabino. – Parceiros, aqueles cavaleiros são soldados do Tinhoso! Vieram buscar o corpo de sinhô para levar para o inferno. Valha-nos Nossa Senhora! estamos perdidos! Quem souber alguma reza que diga já, senão ficamos assombrados.

– Iô sabe rezá, – disse pai Antônio. – Todos os outros rodearam-no imediatamente:

– Reza, pai Antônio! reza, pai Antônio!

Pai Antônio ajoelhou-se contritamente, juntou as mãos, e na sua atrapalhadíssima língua, principiou:

– Iô pecandô me confesso cum Deu tudo poduroso, bê zicancararo Santa Maria, bê zicancararo São Migué di Acanja, bê zicancararo São Joó di Caputisso, e Santo de Apossa cu sua Pedro, cu sua Paulo e turo zu santo e a vussucê que pecô pro munta vezi, pru sua curpa, sua grande curpa…

– Eu não! – interrompeu o crioulo Sabino, – eu não! nunca pequei! Você é burro, pai Antônio!

– Burro é você, muleque, pruquê assi foi que iô prendeu.

Os outros escravos, quase todos moleques pernósticos, desataram a rir, e assim terminou em comédia aquela lúgubre cena.

* * *

Não pára no entanto aqui a espantosa história do célebre barão do Arrenegado.

Exatamente quando fazia um ano que Viana de Lobo havia sucumbido debaixo da Aroeira-de-Nossa-Senhora, conta o povo, haver ocorrido na fazenda um acontecimento que encheu de assombro todos quantos o presenciaram.

Na noite desse dia, já passadas onze horas, achava-se ainda desperta e fazia as suas orações a baronesa, cujas mágoas tinham-se aviventado naquele dia, pelo fato de ser ele o do aniversário da morte do esposo, quando ouviu grande tropel de cavalos.

Chamou por uma escrava, mandando ver o que se passava. A rapariga dirigiu-se para a sala da frente, e daí a pouco regressava, mas em tal estado de assombro que lhe faltaram forças para explicar o que vira.

Admirada a baronesa com o espanto que via pintado no rosto da mucama, levantou-se, e encaminhou-se para as janelas da frente, acompanhada de diversas raparigas, que, com o tropel dos cavalos e gritos que partiam do exterior, haviam despertado em sobressalto.

Lá fora passava-se uma cena medonha, e todos recuaram tomadas de horror e medo.

Um magote de demônios, de formas extravagantes, cavalgando fogosos ginetes cujas ventas despediam línguas de um fogo azul, caracolavam no terreiro, quando, de repente, surgiu em meio deles um cavaleiro envolto em longo sudário branco.

A baronesa conheceu logo esse fantasma: era o do marido, que imediatamente tomou a frente da cavalhada, e com ela partiu em disparada para o ponto do pasto onde outrora existira a aroeira. Ali tudo aniquilou-se com terrível estampido.

Durante sete anos, sempre no mesmo dia do aniversário da sua morte, o fantasma do barão, acompanhado de um esquadrão de demônios, vinha fazer a sua ronda no campo da fazenda.

No oitavo ano, porém, nada mais se viu e o que é ainda singular, sete anos exatamente depois do infausto acontecimento, a aroeira, que até então não havia brotado, tornou a vicejar, e em pouco tempo readquiriu o primitivo tamanho. Nunca mais, porém, ali se viu a imagem da santa tão impiamente destruída pelas ímpias mãos sacrílegas do barão do Arrenegado.
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Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.97-110

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A casa mal-assombrada

De um momento para outro o alferes de milícias de Vila Rica, João Rufino, apresentou-se cheio de dinheiro, naquelas Minas, bem enroupado, melhor montado, com armas garantidas, e a fazer uns gastos tão em desacordo com a sua anterior pobreza, que punha toda a gente de boca aberta.

Onde fora ele desentranhar dinheiro? Heranças não recebera, pois bem conhecida era toda sua família, paupérrima; no jogo, também não era possível, pois nunca o tinham visto com semelhante defeito; para se dizer que passara algum contrabando de ouro ou diamantes, também não se podia admitir, pois João Rufino na verdade era um indivíduo muito alegre e folgazão, porém de conduta irrepreensível.

O certo foi que os pacatíssimos mineiros não atinaram com aquele mistério, e João Rufino continuava a assombrá-los com as suas incomparáveis despesas.

No entanto o dinheiro de João Rufino, a acreditar na lenda que ele próprio se encarregara de divulgar, viera por bom caminho. E assim, depois de se ter divertido durante algum tempo com a curiosidade dos patrícios, deliberou contar-lhes tudo, escolhendo para isso uma noite em que dava a cear a diversos amigos.

* * *

Achavam-se os seus convivas na sobremesa, tendo já devorado uma excelente canja feita de três galinhas que rachavam de gordas, uma bem tortada leitoa e outras coisas suculentas, tudo regado com excelente vinho, quando João Rufino, dirigindo-se a eles, lhes falou deste modo:

– Senhores, reservo uma surpresa para rematar esta modesta ceia. Em geral os meus amigos e conhecidos e quase a população de Vila Rica têm-se admirado da minha rápida fortuna e sobre ela feito comentários os mais variados. Em verdade é para merecer reparo uma transformação tão rápida, e por isso não podiam espantar-me, por mais extravagantes que fossem, mesmo quando fossem lesivos à minha reputação. E, se até esta data não vos fiz sabedor do que me sucedeu, é porque há coisas tão espantosas que a mente recusa acreditá-las. Todavia não tenho o direito de prolongar por mais tempo a vossa justa ansiedade, e hoje vos informarei dos extraordinários acontecimentos que me conduziram à opulência.

Este exórdio de revelação encheu os convivas da maior satisfação, pois a curiosidade era geral e rumores aprobativos fizeram-se ouvir em toda a mesa.

João Rufino, então, passando os convidados para uma outra sala, onde fez servir perfumoso café, narrou a sua aventura, em meio da mais circunspecta atenção.

Assim falou João Rufino:

– Senhores, a fortuna que hoje desfruto chegou-me por vias honestas; e, se é certo que a não alcancei pelo trabalho e por uma rigorosa economia, durante longos anos, devo-a no entanto à minha coragem, e, por conseguinte, é com toda a justiça que a gozo.

Sabeis perfeitamente que um dezembro do ano passado, isto é, há quatro meses, fui encarregado pelo comandante do meu regimento de milícias de ir ao Rio de Janeiro comprar fardamento para a tropa e arreios para a nossa cavalhada. Parti daqui na antevéspera de Natal, e no dia de Reis já me achava muito além de Matias Barbosa, apesar do péssimo estado dos caminhos. Nunca havia feito tal viagem, e assim era fácil desviar-me da verdadeira estrada. Foi o que me aconteceu.

Pouco adiante de Matias Barbosa, deixei o verdadeiro caminho à direita e tomei à esquerda. Por ele andei cerca de três horas, e já ia anoitecendo, sem encontrar pouso, quando deparei alguns viajantes que vinham para Matias. Disseram-me eles que me achava errado, mas que não me era preciso voltar atrás para ganhar a estrada; dali à distância de légua e meia, existia um caminho à direita que ia desembocar na referida estrada. Informando-me mais se existia alguma casa que me servisse de pouso, responderam-me que a primeira pousada era para mais de quatro léguas puxadas. Em todo esse percurso só havia uma casa, completamente isolada, onde ninguém pernoitava por ser considerada mal assombrada.

Voltar para Matias, com os viajantes, não me era possível; retroceder ao ponto em que havia errado o caminho, nada adiantava. Assim, só me cumpria prosseguir na direção que levava.

Perguntei-lhes, então, em que consistia a assombração da única casa que ficava à beira da estrada, e eles disseram-me que ali vivera outrora um indivíduo extremamente avarento; e que, desde o dia de sua morte, alguns viajantes perdidos, que por acaso pernoitavam na sua habitação, ouviam à noite ruídos estranhos: arrastar de correntes, som de passos pelas salas, bem como eram visitados por visões assombrosas.

Agradeci aos viajantes todas essas informações, e despedi-me deles, disposto a viajar toda a noite a fim de reganhar a estrada real.

Caminhando, ia pensando nos mistérios da casa assombrada, nos quais, para dizer com franqueza, pouco acreditava.

O sol entrava na sua agonia sanguinolenta do ocaso. Já nos pontos em que o caminho serpenteava por baixo de moitas sentia-se a invasão das sombras crepusculares, e os insetos noturnos davam os primeiros chilros prenunciadores da grande harmonia da noite, quando senti que o meu cavalo começava a ganhar-se de suor frio, e da andadura ia pouco a pouco descambando para o passo pesado. E essa?! O pobre bicho ia afrouxando, e naquele andar não deitaria mais de meia légua. Conheceis perfeitamente o meu tordilho, não? Era um animal valente, mas desde Vila Rica eu ia puxando por ele, em marchas diárias de seis léguas, e naquele dia já havia vencido sete. Não era, pois, de admirar que o pobre animal desse de si.

Isso, no entanto, contrariou-me extraordinariamente, mas continuei a caminhar.

Daí a um quarto de hora cheguei à porteira de um largo pasto todo gramado, em cujo centro existia uma grande casa silenciosa. Era a casa mal-assombrada! Nem uma voz humana, nem o latir de um cão, nem o pio de uma ave doméstica! Tudo parecia morto ali!

O sol acabava de sumir por trás das grimpas da Mantiqueira, e a noite aproximou-se.

Pus-me a pensar: O meu cavalo estava quase frouxo; avançar mais, seria arriscar-me a estragar o animal, sem nada adiantar; ali, pelo contrário, estava um bom pasto para o pobre bruto, e uma casa que me daria guarida durante a noite. Por que, pois, desprezar tão providenciais comodidades, somente com medo de fantasmas, coisas naturalmente criadas pela imaginação do vulgo ignorante e supersticioso?

Eu nunca fui medroso, graças a Deus! Dispus-me, pois, a passar a noite ali mesmo. Estava bem armado, que podia, temer, portanto?! …

Tomada essa deliberação, abri resolutamente a porteira e penetrei no pasto. A porteira rangeu no enorme gonzo, e fechou-se em seguida, esbarrando com orça no batente de cabiúna. Logo após, ouvi um grande gemido, muito prolongado e alto, partido não sei de onde, mas que me produziu um arrepio em todo o corpo. O meu cavalo espetou as orelhas e estacou nas patas dianteiras, mas não esmoreci: quando tomo uma resolução, tenho por costume levá-la até o fim, custe o que custar.

Assim, dei uma chibatada no animal e orientei-o para a casa.

Antes de chegar ao terreiro, era preciso transpor a porteira de um curral. Abri-a, e, exatamente como sucedeu com a primeira, logo se fez ouvir outro gemido, mais soturno e mais prolongado ainda do que o anterior. Os cabelos tornaram a arrepiar-se-me, e o cavalo bufou. Não me importei. Apeei-me e tratei de tirar a sela do pobre animal, pois queria passar minuciosa revista na casa, antes que anoitecesse de todo.

Fiz isso. Depois de soltar o bicho no pasto, carreguei os arreios nos braços, e subi com eles a escada de uma varanda já um tanto carcomida, que havia na frente da casa, e penetrei na primeira sala da habitação, cujas janelas e portas estavam abertas de par em par. Mal apenas colocara eu o pé na soleira da porta, um outro gemido, ainda mais lúgubre e duradouro que os outros, fez-se ouvir, e parecia tão lancinante, tão magoado, que bem contra a vontade senti o sangue esfriar-me no corpo, e os arreios caíram-me das mãos trêmulas! O meu tordilho, que já então se espojava satisfeito no pasto, ao ouvir essa coisa medonha, ergueu-se de um salto, e disparou, dando a prova mais cabal de se haver também assustado.

Todavia eu tinha que dormir naquela habitação, quer fosse mal assombrada, quer não; havia feito tal propósito, e nada me poderia demover dele. Por isso tirei dos coldres as pistolas, e enchendo-me de ânimo devassei toda a casa; atravessando salas, quartos, corredores e nada encontrei. Tudo estava silencioso!

Quando voltava, porém, para a frente da habitação, vi em um dos cantos da primeira sala um frango pelado, de pernas muito compridas, que ali procurava aninhar-se, como se tivesse aquele costume.

Admirou-me ver aquela ave, pois quando atravessara a primeira vez a sala não a tinha percebido. Contudo não me preocupei por muito tempo. Seria, pensei eu, algum pinto perdido por qualquer pombeiro, e que entrasse enquanto me ocupara em revistar a casa.

* * *

Devia ser isso mesmo, e nem podia ser outra coisa. Quanto aos gemidos, não os regougam tão tétricos as corujas grandes? Conduzi para dentro da sala os arreios; tirei de um picuá o resto do meu almoço; comi-o tranqüilamente, e, depois, estendendo a manta, o bairetro e o capote, fiz deles um leito em que me deitei, confiante em Deus e na minha coragem, tendo antes posto ao alcance das mãos as pistolas e o meu facão de viagem.

Deitei-me, porém não adormeci, embora estivesse bastante cansado. Contra a minha vontade, rolavam-me no cérebro coisas fantásticas, e, à medida que a noite se adiantava, cada vez mais me visitavam tais pensamentos.

Devia de ser mais de onze e meia, e ainda eu me conservava acordado, quando pouco e pouco vi a sala ir se enchendo de uma claridade dúbia, quase insensível no começo, mas que mais e mais ia aumentando. Não podia perceber de onde vinha essa luz estranha, amarelada, lívida, pois não era noite de luar.

Tanto cresceu a claridade, que a sala ficou toda iluminada, e então presenciei uma cena da qual nunca mais me lembrarei sem que se me arrepiem as carnes.

O pinto magro, pelado, que dormia no canto da sala, saiu para o centro. Batendo asas e suspendendo o pescoço, cantou desentoadamente, com um esganiçar irritante, pronunciando estas palavras que ouvi arrepiado de horror:

– É meia-noite: não vens hoje? – E recolheu-se ao canto.

Imediatamente do teto da casa partiu uma voz assombrosa que gritava:

– Gaspar, eu caio!

O pinto lá do seu canto respondeu:

– Não caias!

A voz tornou a gritar:

– Gaspar, eu caio!

E o pinto outra vez respondeu:

– Não caias.

Ainda uma terceira vez a voz falou:

– Gaspar, eu caio!

E eu, cheio de impaciência e ao mesmo tempo apavorado com o que estava presenciando, exclamei:

– Pois, caia!

Mal havia proferido tal frase, quando vi despenhar-se do teto da casa um braço humano e cair no meio da sala com um ruído abafado.

O meu coração batia de modo que parecia querer estalar. Um suor frio inundava-me a fronte, e pela primeira vez na minha vida tive medo deveras.

Daí a alguns minutos a voz tornou a gritar:

– Gaspar, eu caio!

De novo o pinto pelado esganiçou-se e suspendendo o pescoço repetiu:

– Não caias.

Segunda vez a voz falou:

– Gaspar, eu caio!

Na terceira, eu berrei:

– Pois caia!

Caiu outro braço.

A mesma cena repetiu-se por quatro vezes; e eu que vencendo o terror me achava possuído da mais viva curiosidade pelo desenlace daquela comédia horrenda, ia mandando que caísse.

Assim, caiu primeiramente junto aos dois braços uma perna, depois outra, em seguida o tronco e finalmente uma cabeça, que, mal chegou ao soalho, reuniu-se aos diversos pedaços. .. E surgiu à minha vista um fantasma, envolto num longo sudário negro e com os braços cruzados obre o peito!…

O medo que tal aparição me causou não se pode descrever com palavras. São dessas coisas que se sentem, mas não se definem. No entanto, tive forças para empunhar o meu facão de viagem e pôr-me logo em guarda, esperando um ataque. Mas o espectro, estendendo para mim um longo braço descarnado, pronunciou estas palavras com voz sepulcral:

– Nada temas, viandante; não te pretendo fazer mal; a tua coragem salvou-me.

Então balbuciei:

– Quem és tu?

E a aparição respondeu-me:

– A alma-penada de um miserável avarento que, desde o dia que deixou os vivos, vagueia errante, em conseqüência da misérrima paixão que tanto o atormentou em vida. Fui rico e levando meu amor ao ouro até a hora da morte, enterrei uma grande quantidade dele no pasto desta casa. Foi a minha perdição. Minha alma acha-se presa a estes sítios e deles não se apartará, enquanto o dinheiro ali se conservar. Tu tiveste coragem de afrontar o assombro desta habitação. Vou fazer a tua fortuna e libertar-me deste fadário.

Quando o dia romper, irás à porteira do pasto, e na direção de quatro braças ao nascente do batente da mesma porteira, cavarás até a profundidade de quatro palmos. Aí encontrarás um cofre de moedas de ouro em boa espécie. Toma-o para ti e manda dizer sete missas pela alma do finado Gaspar, na igreja que quiseres.

E ao dizer estas últimas palavras tudo desapareceu: fantasma, pinto pelado, luz amarela e tudo.

Os meus nervos não podiam suportar a furiosa tensão a que os havia forçado: afrouxaram repentinamente, e eu, caindo prostrado no leito improvisado, adormeci de sono pesado, sem sonhos, que se prolongou até às 7 horas da manhã do outro dia.

Logo que acordei, pouco me lembrava das terríveis cenas da noite, porém, pouco a pouco elas me foram chegando à memória, e pus-me a pensar se tudo aquilo não seria um delírio da minha imaginação escandecida pela narração dos viajantes e pelo desolado aspecto da habitação.

Todavia procurei uma enxada que logo encontrei no porão da casa e dirigi-me à porteira do pasto. Aí chegado, medi quatro braças ao nascente do batente e pus-me a cavar.

O meu cavalo, que pastava tranqüilamente, a poucos passos distante de mim, levantou a cabeça e pôs-se a encarar-me, e eu me ria comigo mesmo pensando que talvez estivesse representando um papel tão ridículo que até o próprio cavalo dele se admirava.

Contudo continuava a cavar, e de uma das enxadadas senti que o ferro batera em outro ferro. O meu espírito alvoroçou-se com isto; amiudei as pancadas, e dentro em pouco tempo ficou a descoberto um cofre de ferro, tendo por cima um grande argolão. Puxei por ele e o cofre saiu para fora. Estava descoberto o tesouro!

Corri imediatamente os fechos da peça e escancarando-a encontrei-me diante de um monte de belas e reluzentes moedas de ouro. Introduzi-as no picuá e no capote e segui a desempenhar a minha comissão no Rio de Janeiro.

Eis, senhores, como do dia para a noite fiquei rico. Devo esta ventura à minha coragem e ao meu sangue frio.

* * *

De então por diante nunca mais se falou em Vila Rica sobre a fortuna do alferes João Rufino. Pois não era tão natural que ele encontrasse um tesouro enterrado?
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por Viriato Padilha

Fonte: Jangada Brasil - (Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956)

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O carro do enterro

Era num sábado. Estava em festas o elegante e suntuoso palacete do visconde, a mais rica habitação que havia no Rio Comprido.

Casava-se a formosa Matilde, filha predileta do dono da casa, e ele festejava esse acontecimento o mais ruidosamente possível.

O palácio achava-se todo ornado por dentro e fora; uma esplêndida banda de música executada no saguão trechos escolhidos das óperas mais em moda, e a criadagem vestida com suas finas librés, circulava de um lado para outro, dispondo os últimos preparativos da ornamentação.

O cortejo havia partido às duas horas da tarde para a igreja, e na rua apinhava uma multidão curiosa de assistir à chegada dos noivos, ao regressarem da cerimônia nupcial.

* * *

Enquanto assim se dispunham as coisas para a folgança no suntuoso palacete do visconde, uma cena muito diferente se desenrolava em uma casa de mais que modesta aparência da mesma rua.

Em cima de uma mesa que havia na sala dessa casa, que era então um pardieiro, quase em ruínas, via-se, num caixão dos mais baratos que a Santa Casa fabrica, o corpo de uma moça amortalhada. Duas velas alumiavam-na, e em redor permaneciam as pessoas da família e alguns vizinhos, todos gente pobre.

Pai e mãe e irmãos dessa criatura morta desfaziam-se em amargo pranto e sentiam a alma rasgar-se pela mais fina das dores, nesse momento em que se ia fechar o caixão e levá-lo a um carro fúnebre parado à porta.

Pobre gente! Essa de quem iam separar-se para sempre era a sua boa Lúcia, filha e irmã mais velha, que todos estimavam tanto! Pobre Lúcia! Ela era o braço direito daquela família. Do seu trabalho vinham os minguados mil réis com que se pagava à venda, depois que o pai ficara aleijado e a mãe entisicara. A boa Lúcia sempre alegre, sempre resignada! Como não deviam sofrer os pobrezinhos, naquele terrível transe por que passavam.


* * *

O pai de Lúcia era um rude operário de obra grossa, um carpinteiro e tivera a infelicidade de quebrar uma perna, caindo de um andaime em que trabalhava.

Essa desventura foi o início de todas as desgraças que assaltaram a família. Conduzido para a Santa Casa, lá esteve quatro longos meses, entre a vida e a morte; e a mulher e os filhos começaram a curtir duras necessidades, pois o pai nada ganhava.

O taverneiro já fechava a cara quando iam às compras, e por mais que a mulher do carpinteiro e Lúcia, sua filha, se matassem numa tina a lavar roupa, o dinheiro não chegava para coisa alguma.

A mãe de Lúcia era uma mulher franzina e muito disposta para moléstias do peito. Com o trabalho excessivo que fazia, logo começou a deitar escarros de sangue pela boca, e dentro em breve nada mais pôde fazer. O carpinteiro tivera alta do hospital, mas não podia ainda trabalhar. Assim a pobre família achou-se na mais negra miséria.

No entanto Lúcia trabalhava cada vez mais. De dia não se arredava da tina de lavar roupa, de noite costurava até o galo cantar. Não pôde resistir por mais tempo à semelhante canseira, e também caiu enferma.

Uma circunstância veio ainda agravar o estado dos infelizes.

A casa em que Lúcia morava pertencia ao mesmo visconde a que já nos referimos, e ele ordenara ao carpinteiro que se mudasse, já que não podia pagar os aluguéis. O visconde, apesar de opulento, era inflexível em questões de dinheiro. De nada valeram os rogos do pobre carpinteiro que a ele se dirigiu, arrastando as muletas e com as lágrimas nos olhos. O visconde manteve a sua ordem.

"Se fosse a ouvir a choradeira de todos", dizia o titular, "bem depressa estaria reduzido a pedir esmola. Não era ele quem fazia as desgraças: era Deus. Pedissem-lhe contas".

O carpinteiro teve que desocupar a casa e fora meter-se no pardieiro de que já falamos e que por piedade lhe cedera um outro carpinteiro, seu amigo e compadre.

Era uma casa de todo imprópria para habitação humana: suja, úmida, acanhada.

Nela os padecimentos de Lúcia foram a mais, e no fim de quinze dias a pobre rapariga entregava a alma a Deus.

* * *

No entanto o cortejo nupcial tinha regressado da igreja, e de uma extensa fila de carros apearam os noivos, radiantes de felicidade, e bem assim a multidão dos convidados, homens e mulheres, abafados nas suas toaletes de uma rigorosa etiqueta.

Logo que os carros despejavam a luxuosa carga que traziam, foram manobrados pelos cocheiros, muito tesos nas suas boléias, soberbos nas suas sobrecasacas de casimira cor de camurça e nas suas finas botas de canhão, e entraram na porta-cocheira, aberta de par em par.

Noivos e convidados começaram a subir os degraus do vestíbulo. A noiva ia de olhos baixos, deliciosa, no seu vestido de seda branca, linda como uma tentação, debaixo de uma grinalda de flores de laranjeira. Da fisionomia do noivo, um guapo mancebo de vinte e poucos anos, transpirava a maior ventura, parecendo tonto pela felicidade.

Quando porém já tinham todos subido os três degraus do vestíbulo, o carro de enterro que transportava a pobre Lúcia ao cemitério chegava bem defronte ao palacete do visconde.

Era um carro dos de ínfima classe, todo preto e de cortinas esmolambadas, guiado por um cocheiro negro, de cartola de oleado amarrotada, libré sebosa, tendo a fisionomia aguardentada, e que, encarrapitado na boléia, chupava com a maior indiferença deste mundo em cigarro de papel.

Aquela mísera seguia para o cemitério sem o menor acompanhamento.

O carro vinha descendo a rua tranqüilamente, ao trote cansado de dois cavalos magros, ossudos. Quando, porém, chegou bem defronte ao palacete, os cavalos que pareciam incapazes de qualquer resistência, encabritaram-se e recusaram avançar. O cocheiro, que não esperava essa revolta dos pacíficos rocins, quase foi levado ao chão; e exasperado, vibrou o pinguelim no dorso das magras cavalgaduras, proferindo as mais cruas obscenidades.

Noivos e convidados, todos voltaram o rosto para ver o que se passava na rua. Os cavalos do coche fúnebre persistiram em não avançar, e o cocheiro, levado ao maior auge da exasperação, desandava os bichos com cabo do pinguelim.

Aquilo parecia mandado pelo diabo. Os cavalos pinoteavam, escouceavam, o cocheiro praguejavam como um possesso. Afinal dando os animais um violento arranco, a poder de pancadas, embicaram o coche para o lado do palacete, e nele o esbarraram. A lança do carro entrou pelo gradil do jardim que adornava a frente do edifício, e ali ficou a traquitana.

Foi preciso que a criadagem do visconde desembaraçasse o carro e auxiliasse o cocheiro a conduzi-lo.

Esse fato impressionou desagradavelmente a todos que faziam parte do cortejo nupcial, e uma senhora já idosa que entre eles se achava, exclamou aterrorizada:

- "Um carro de enterro parar logo aqui, e isso em dia de casamento!... É mau agouro!..."



* * *

Sem que ninguém pudesse explicar a razão, o festim realizado em casa do visconde correu frio.

Os próprios noivos sentiam-se tristes. O fato de ter parado um carro de enterro à porta do palacete, e naquele dia, roubava a alegria a todos. Como que se adivinhava uma grande desgraça.

E esse mal-estar aumentou quando à meia-noite circulou na sala a notícia de que Matilde, a formosa noiva, tinha repentinamente adoecido.

Logo cessaram as danças. As bandas de música calaram-se, e os convidados foram pouco a pouco retirando-se. Daí a meia hora só se achavam no palacete os parentes e amigos mais íntimos.

Matilde estava realmente doente. Subitamente acometera-a uma violenta dor de cabeça, uma aflição, e dentro de uma hora ardia em febre intensa.

O noivo ficou alucinado. O visconde, já terrivelmente impressionado com o caso do coche fúnebre, despachou criados em todas as direções para chamar médicos, que acudiram pressurosos.

No entanto por mais esforços que empregassem os facultativos, não puderam aniquilar a enfermidade que acometera a inditosa moça. Consumia-se a olhos vistos. No dia seguinte já parecia um cadáver, tão pálida e abatida se achava. No terceiro dia não conhecia mais ninguém. No quarto havia perdido a fala. E na manhã do quinto dia, quando os pássaros começaram a trilhar sobre o arvoredo, cujas ramagens adornavam a janela do seu aposento, a pobre moça exalando um suspiro despediu-se da vida.

Bem dissera a respeitável matrona que fizera parte do cortejo nupcial. O carro fúnebre esbarrando no gradil do palacete fora um mau agouro.

O cadáver de Lúcia, a pobre filha do carpinteiro aleijado, viera chamar para a paz do sepulcro a filha do potentado, do opulento, que tirara um teto a seu pai, em momento de aflição e pobreza. Deus assim o quis. Tanto houve luto no casebre esburacado como no rico solar. Era preciso que o desumano titular também sentisse rasgar-lhe a alma o espinho da dor.
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por Viriato Padilha

Fonte: Jangada Brasil - (Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956)

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O diabo no corpo

"O diabo existe e seu papel ativo não pertence só ao passado e não pode ser reduzido ao espaço da fantasia popular. Na realidade, ele continua a induzir os homens ao dito "pecado". Agora um conto arrepiante sobre uma linda mulatinha: Manuelinha tinha 18 anos incompletos e era um verdadeiro modelo de mestiça bonita e apetitosa..."

Manuelinha era uma mulata dos seus 18 anos incompletos e um verdadeiro modelo de mestiça bonita e apetitosa.  Não tinha alta estatura; pelo contrário, era toda miudinha de corpo e de formas, porém enxuta de carnes, de braços e pernas roliças, anca refeita, seio agradavelmente espontado debaixo da chita do corpete, pescoço cilíndrico...

Os seus olhos eram grandes, amendoados, negros, vivos e pestanudos, a boca pequena, de lábios carnudos e guarnecida de dentes muito brancos e juntos, nariz perfeito, pele fina, macia, suavemente amorenada, cabeleira farta, sem ser crespa em demasia.

Muito viva, tinha movimentos brevíssimos, olhar ligeiro e petulante, adêmanes rápidos, e sabia rir-se de qualquer coisa com graça encantadora; o muxoxo na sua boca tinha um quê especial.

Demais Manuelinha tinha consciência da sua beleza e sabia fazê-la valer. Debalde muito cabra valente, num pé de viola, lhe tinha feito roda. Inutilmente os arrieiros faziam piegas nos seus cavalos aparelhados de prata, quando passavam junto à sua porta. Manuelinha olhava a todos por cima do ombro; e se algum mais ousado animava-se a dirigir-lhe uma graçola qualquer, por exemplo, um:

– Puxa, mulata, machucadeira de coração!.. – era infalível da sua parte um atrevido:

– Não se enxerga seu sujo?!

ou então:

– Vai te lavar na maré, pato choco!

E assim vivia Manuelinha, contente descuidosa, cortejada por todos, porém sempre esquiva e orgulhosa da sua beleza e da fascinação que exercia sobre todos os homens, que, nos dias de pagode em sua casa, nunca ali faltavam, como que atraídos pela interessante rapariga.

* * *

Toda a rapaziada da vizinhança derretia-se por Manuelinha. Mas dentre a chusma de seus adoradores um merece ser destacado com certo relevo, não só pelo importante papel que vai representar na seqüência desta história, como pela extravagância do tipo.

Esse apaixonado era, nada mais, nada menos que Pedro Camundá, africano com perto de 70 anos, e tio-avô da mulatinha.

Por artes do diabo, aquele "cação", como lhe chamava a malcriada mulatinha, enamorou-se perdidamente da sobrinha-neta, e lavava todo o santo dia a importuná-la, apesar das insolentes rebatidas da rapariga.

Pedro Camundá, ou antes, para dizer exatamente o seu nome com todos os seus estrambólicos apelidos, por ele mesmo forjados, Pedro Camundá Lopes Martins Júnior, Filho do Gama Pesca de Dia, de Noite Escama, Cócôriôcô, Galo Quando Canta É Dia, entendia lá no seu bestunto que, sendo-se tio-avô de Manuelinha tinha mais do que qualquer outro direito de possuí-la, e pouco se lhe dava a diferença de idade entre os dois e a repugnância que em geral a mulata sente pelo negro.

Pedro Camundá não refletia nisso. Era tio e essa consideração do parentesco julgava ele suficiente para destruir todos os obstáculos. Não desanimava, pois, de fazer render a rapariga à sua concupiscência.

É claro, porém, que a moça, por mais depravado que fosse o seu gosto, nunca poderia entregar-se voluntàriamente àquele urutu de venta esborrachada, carapinha enredada, cambaio, desdentado e de olhos sangrentos. Era, portanto, em vão, que Pedro Camundá Lopes Martins, etc., etc., ostentava para agradá-la diversas habilidades que possuía, tais como: tocar flauta de taquara pelo nariz, pegar cobras com a mão, tirar ponto de jongo e outras astúcias mais.

Manuelinha cada vez o aborrecia mais, e se não o enxotava de casa é que Pedro Camundá tinha fama de grande feiticeiro. Nessa qualidade ela o temia extraordinàriamente; maus tratos, porém, não lhe poupava, e a todo o momento lhe assacava epítetos os mais injuriosos.

* * *

Era de uso antigo em casa de Manuelinha festejar-se com uma grande pagodeira o dia de Nossa Senhora da Conceição, que era a madrinha celeste da mulatinha. Chegado o dia, começaram a afluir visitas de toda a parte, tanto homens como mulheres, pois essa festa tinha fama na vizinhança.

Cantava-se uma ladainha, ia-se depois para uma mesa bem servida de suculentas iguarias, e depois caía-se no batuque, que durava até amanhecer.

Entre outras pessoas estranhas que vieram pela primeira vez a essa pândega, notava-se o sr. Antônio Guimarães, ilhéu chegado pouco antes do Faial e hortelão de uma fazenda da vizinhança.

Era um sujeito grosso de corpo e de espírito, usando barba de varre-lama e de queixo e beiço raspado.

Ainda vinha metido na pesada saragoça de além-mar, com o clássico remendão nos fundilhos, e trazia atarracado à alentada pata o grosso tamanco de beiça grande e revirada, guarnecido de cravos fortes de cabeça chata.

Guimarães logo que pousou a vista na mulŽtinha, nesse dia vestida e penteada a capricho, começou a sentir umas comichões na garganta e pôs-se a mexer no banco, todo esquerdo, todo casmurro. Via-se logo que aquela alma ilhoa queria reza; mas, o que é mais singular, Manuelinha, a invencível mestiça, a tirana que havia orgulhosamente desprezado o amor da mais desempenada caipiragem, simpatizou igualmente com o forasteiro, e logo todos, inclusive Camundá, perceberam que os dois, no fim de meia hora, estavam de namoro trançado.

Muitos se arreliaram com isto. O negro velho. porém, encheu-se da maior das raivas, e os seus olhos, que pareciam duas postas de sangue, não se despregavam da sobrinha, como que ameaçando-a.

* * *

Todavia este incidente não desmanchou a festa.

Ao contrário, como Manuelinha parecia ainda mais alegre que de costume, a rapaziada fez vista grossa ao namoro com o ilhéu e entrou no batuque, desembaraçada de qualquer preocupação. Ora bolas! ela era senhora de gostar de quem quisesse.

Muitos, até, começaram logo a lançar os seus olhares para as outras raparigas, quando mais não fosse para moerem a impostora que tinha desprezado os seus patrícios e estava agora a derreter-se com um sujeito à-toa, vindo da Estranja ou de onde o diabo perdeu as botas, isto só porque o pé-de-chumbo era de sangue sem mistura.

– A negrinha quer limpar o sarro da senzala na barba do portuga, – diziam uns para os outros despeitados.

No entanto estrugia o sapateado e quando cessava era apenas para se fazer ouvir algum cantador que extravasava os seus queixumes ou os seus fingidos desdéns numa quadrilha estribilhada pelo Quero mana, lerê, quero mana! ou pelo Vai de roda, siá dona Geralda e outros.

Todos folgavam ou pareciam folgar com a maior alegria. Só Pedro Camundá, o preto velho, acocorado a um canto da sala, remoia a sua grande raiva concentrada.

* * *

Em um dos intervalos do batuque, e depois que alguns cantadores trocaram algumas trovas em desafio, Manuelinha chegou-se ao Guimarães, que não tirava os olhos de cima dela, e disse, com muitos requebros no corpo e doçura na voz e na fala:

– Cante alguma coisa para a gente ouvir seu Antônio.

Guimarães, assim rogado tão agradavelmente, ficou um tanto envergonhado, e a torcer a tramela da porta, para disfarçar a confusão, disse:

– Lá o cantar eu cantava, pois com a ajuda de Deus não nasci com a língua pregada, mas é que eu sei somente cantar à moda da minha terra e talvez as pessoas que aqui estão não gostem.

– Por que não se há de gostar? – disse a mãe de Manuelinha, uma mulata escura que outrora vivera amasiada com um português. – Por que não se há de gostar? Até tem mais graça porque é uma coisa nova.

– Decerto que sim, – confirmaram algumas outras mulheres. – A gente já anda tão enfarada dessas modas daqui.

– Cante seu Antônio, – rematou Manuelinha arrebitando o nariz. – Se alguém não gostar, não faltará quem lhe aprecie.

Ao ouvir tais palavras Guimarães entendeu que não devia mais resistir e assim falou:

– A sora dona Manuela manda em quem bem quer lhe servir. Benha daí uma biola. Lá pelas nossas terras antes dum homem se pôr a cantar bota pra baixo um bom picheI de vinho. Mas como ele não há por cá, mandem-me uma pouca de aguardente para desencatarrar o peito.

Sendo logo servido no que pedira, o Antônio tomou uma viola, afinou-a a seu jeito, e, ao som de um estabanado rasgado, cantou o seguinte:

Ai! belas manhãs da Lapa,
E eu fui aos caramujos,
Quando bejo mulher belha,
Tiro meu chapéu e fujo.

Sôra Maria,
Mestre Manel,
Quem mora na rua
Nan paga aluguel.

Riram-se todos a bandeiras despregadas com os versos do casmurro, e Manuelinha exultou de contentamento, por demonstrar àquela gente que o homem a quem distinguia não era pra aí qualquer pasmado. Todos gostaram dos versos, ou por muito estúpidos, ou simplesmente por serem novidade naquele meio, afeito às doçuras langues do Passo branco avoou e outras composições matutas. Todos gostaram, exceto, porém, Pedro Camundá. Esse sempre sentado, ao canto da sala tornava-se cada vez mais sério e embezerrado. Dir-se-ia que tinha ciúmes do triunfo que o português alcançava.

No entanto ninguém dava por isso, e Antônio Guimarães, animando-se aos poucos, destampou outra vez o peito e berrou:

Oh! munina da labada,
Rega o teu manjaricão,
Que hoje estou devoleto
Amanhã estarei ou não.

Senhor João do Norte
Bem todo ratado,
Co'as buxigas loucas
Do ano passado.

Novas gargalhadas acolheram tal destempero poético: a caipirada achava um cômico irresistível nos versos do ilhéu, e Manuelinha, interpretando os risos como sinais de admiração, no tamborete em que se achava, remexia-se de contentamento.

Pedro Camundá, cada vez mais enfiado, mastigava em seco no canto da sala, e Antônio Guimarães, impando de orgulho, e querendo mostrar à cabritada que era homem de recursos no braço de uma viola, variando a música e o ritmo despejou de um só fôlego toda essa embrulhada:

Quando Cristo frumou Judas,
Palácios de grande altura,
Muita gente lá morreu
Foram para a sepultura

Casa grande tem fartura
Andam lebres nos trigais,
Comem-n'as aves o milho,
Quaim paga são-n'os pardais.

Cabalo grande é trangola
Puquenino é perereca,
Pau furado é biola
De caracol é raveca.

E deixando pender o corpo todo para Manuelinha, que se achava sentada a seu lado, rematou por esta forma extravagante a sua lengalenga:

E agora, senhores meus,
Uma coisa bou dizeire,
Andam cabras pelo monte,
Muito custa um bem quereire.

Esta munina é minha
Compei-a numa audiência
Na Relação de Lisvôa
Na mesa da consciência.

Todos compreenderam perfeitamente a alusão que o português fazia à facilidade com que havia realizado a sua conquista amorosa, a despeito dos cabras que andavam por aquele monte, e Manuelinha mostrava estar satisfeita com aquela declaração brutal.

Um murmúrio surdo de indignação fez-se ouvir logo. Os caipiras olhavam uns para os outros, como se quisessem consertar algum plano contra o ilhéu, pois aquilo já estava cheirando a desaforo grosso, e Pedro Camundá, que tinha ouvido toda a versalhada do Guimarães, dando sempre os sinais mais visíveis de indignação, entendeu que devia mostrar a todos que também sabia cantar. Deslumbraria o português, e conjuntamente a mulatinha, que não podia deixar de preferir o seu canto.

* * *
Assim, logo que o português se calou, Pedro Camundá, como se houvesse sido mordido pela tarântula, pulou para o meio da sala e a desengonçar-se todo e a bater palmas, berrou descompassadamente na sua meia língua:

Eh! Eh! Eh! Eh!
Maria sobe moro,
Bunda teremê,
Coração min dóe.

Pedro Camundá não pôde continuar. Manuelinha, envergonhada e irritada com aquela entrada estapafúrdia do tio, tão fora de tempo e de propósito, foi ao seu encontro, e gritou-lhe com a insolência que lhe era própria:

– Cala a boca, burro.

– Burro não, sua malcriada. Mais respeito com seu tio! – retrucou Camundá enfurecido.

– Que tio! que nada! Vocemecê não vê que não sabe cantar? Para que está aborrecendo a gente com essa porcaria de jongo. Sempre mostra que é negro!...

Manuelinha não chegou a terminar bem a frase.

Pedro Camundá, enciumado e ferido no seu amor-próprio de modo tão público, desandou-lhe tão violenta bofetada, que a mulatinha estendeu-se a fio comprido no chão.

Levantou-se logo grande celeuma entre os foliões, e Antônio Guimarães, irritado com aquela ofensa à mulata, a qual já considerava como coisa sua, arrancou do pé o grosso tamanco ferrado de cravos de cabeça chata, e cibrou-o com toda a força na cabeça do negro, de onde escorreu pronto um fio de sangue.

Então ferveu o sarceiro. Diversos caipiras, querendo tornar-se agradável a Manuelinha, colocaram-se ao lado do português. Outros, porém, declararam-se em favor de Camundá, e o pau roncou deveras, fazendo as mulheres grande berreiro.

Quebraram-se diversas cabeças e muitos ficaram cheios de contusões, mas, afinal, todos se reconciliaram. Houve explicações de parte a parte, trocaram-se desculpas; e todos mostraram-se dispostos a recomeçar o pagode.

Quem não se acalmou, porém, foi Pedro Camundá. Recusando lavar o sangue que lhe escorria da cabeça lascada pelo tamancão do ilhéu, parecia endemoninhado, e vendo que todos se voltavam contra ele, pela sua obstinação em insultar a sobrinha, pôs arrebatadamente na cabeça o chapéu de palha, dirigiu-se à porta, e dali, cuspindo três vezes para dentro da sala e lançando à mulatinha um olhar terrível, disse:

– Negro, hein?! Negro?! Tu me pagarás!... – Acabando de pronunciar tais palavras, desapareceu na escuridão da noite, deixando todos sob o peso daquela terrível ameaça dirigida à rainha da festa.

* * *

Não era uma coisa à-toa esse projeto de vingança formulado pelo preto velho.

Todos o tinham por feiticeiro terrível, e sabia-se que ele fazia de rei nos canjerês arranjados pela negrada das fazendas vizinhas.

A sua habitação, uma choupana esburacada e mal coberta, metida no sambambaial da lomba de uma serra onde ele vivia sozinho com um gato preto e um bode velho, estava atulhada de coisas estranhas, e todos a evitavam com horror: eram cobras mansas, morcegos espetados pelas paredes, sapos, braços de crianças pagãs que desenterrava dos cemitérios, dentes de animais peçonhentos e outras bruzundangas.

Ali vivia ele desde que se libertara, e muita gente se queixava dos seus feitiços. Dizia-se que o seu olhar continha um fluido venenoso que matava os animais e causava moléstia nas criaturas. Pelas suas artes realizava desuniões nos casais. Mil outras perversidades se lhe atribuíam.

Por isso ficaram todos apreensivos com a sua ameaça. Pedro Camundá não era para graças; aquilo era negro danado, negro do couro azul, diziam os caipiras uns para os outros, comia brasa de fogo, fazia vez de cururu.

* * *

Decorreram alguns dias depois da pouco edificante cena que acabamos de descrever.

Assustada durante os primeiros dias com a ameaça do tio, afinal Manuelinha esqueceu-a completamente.

Guimarães pouco e pouco foi se insinuando cada vez mais no espírito da gentil mestiça, sabendo conquistá-la, seduzi-la, até que veio a assenhorear-se completamente do seu coração, dos seus desejos, das suas vontades, chegando a possuí-la. Falava-se num futuro casamento, mas ninguém acreditava nele, porquanto o português já quase que morava em casa de Manuelinha, dormindo lá nos sábados, passando o domingo todo, para só se retirar na segunda-feira.

A ameaça de Pedro Camundá não fora entretanto vã, e durante certo tempo veio transtornar a paz em que a rapariga vivia.

Num domingo pela manhã, achando-se em casa o Guimarães, como de costume, Manuelinha pôs à cabeça um pote de barro e dirigiu-se à fonte, a fim de trazer água para cozinhar o almoço.

A fonte era pouco distante da casa. Descia-se apenas uma pequenina ribanceira, e ela surgia, a jorrar cristalina água, cantante, muito clara, muito fresca, deslizando por entre imensas pedras limosas, e toda cercada pelas largas folhas de inhames e de taiobas.

A moça chegou ao puríssimo veio d'água, lavou o rosto e os braços, encheu o pote, e preparava-se para pô-lo à cabeça, quando sentiu um ruído nas folhas secas do matal vizinho.

Tornando a descansar o pote no chão, procurou observar o que se passava e, agachando-se, para olhar por baixo da ramaria, avistou um moleque muito preto, coberto de andrajos, e com grande quantidade de latas velhas amarradas pelo corpo.

Assim que os seus olhos pousaram sobre ele, o moleque começou a fazer-lhe trejeitos e caretas. A moça, assustadíssima, correu para casa a relatar o que tinha visto à mãe e ao amante.

Guiados por Manuelinha correram os dois à fonte. Apenas chegados, a mulatinha, muito nervosa, gritou, apontando para o mato:

– Lá está o moleque, mamãe! Veja, seu Antônio! T'esconjuro, diabo!...

A mulata velha e o português olharam atentamente para o lugar indicado por Manuelinha, porém nada viram.

– Onde? onde? – perguntaram os dois ao mesmo tempo.

– Ali, gente! mesmo em frente de nós. É moleque muito preto, todo coberto de molambos e com uma porção de latas velhas penduradas pelo corpo. Ouçam como batem as latas umas nas outras!...

– Eu não bejo nada! – exclamou Guimarães esfregando os olhos já cansados de tanto olhar.

– Nem eu! – disse a mulata velha.

– Ó homem! vocês estão cegos? – disse Manuelinha tornando-se cada vez mais agitada. – Credo! o moleque virou num sapo muito grande e com cada olho! Aquilo é coisa mandada com certeza. Olhem como o sapo está inchando?!...

– Raios parta o sapo mal-o o moleque! –disse Guimarães já um tanto aborrecido. – Pelas cinco chagas de Cristo que eu nãn bejo nada!

– Xi... – continuou a mulatinha. – O sapo virou numa cobra vermelha. T'arrenego, coisa ruim!

– Tu estás douda, rapariga! – exclamou Guimarães. – Ali não há cobra, nem cousa biba nenhuma! Tu não estás voa, com certeza!

– Pois você não vê ali uma cobra tamanhona! Olhe, veja bem como ela se enrosca nos paus e dá botes para todos os lados. Ai, meu Deus! virou agora num lagarto. E lá vem ele para cima de nós. Foge, seu Antônio, foge mamãe... Aquilo é coisa mandada!

E não pôde dizer mais nada. Caiu redondamente no chão e entrou a estrebuchar em convulsões medonhas. Num momento as roupas lhe ficaram em tiras, e ela, com a barriga e as pernas nuas, torcia-se doidamente pelo chão, a ferir-se no saibro da vereda.

Os olhos viraram-lhe para trás, a boca torceu-se e dos cantos dos lábios começou a borbulhar uma espuma esverdeada.

– Meu Deus! que é isso que estou vendo? – disse a mãe, tomada de assombro. – Minha filha que é isso? Fala, responde a tua mãe.

Entrementes, Guimarães observava atentamente todos os movimentos da rapariga e transformações que se operavam no seu semblante transtornado. Dir-se-ia um médico embaraçado com um diagnóstico difícil.

Afinal bateu com a pesada mão no ombro da mãe de Manuelinha e disse, possuído da maior convicção:

– Bocemecê quer saber que tem sua filha?

– Diga, seu Antônio, pelo amor de Deus!

– Sua filha está com o diabo no corpo. São as artes do tal negro belho.

* * *

Depressa correu por toda aquela redondeza que Manuelinha, a flor das mulatinhas do sertão, estava com o diabo no corpo; e à sua casa começou a afluir visitas de mulheres e homens. Todos queriam verificar com os próprios olhos aquele caso estranho, e depois que examinavam a enferma, saíam plenamente convencidos de que a infeliz era presa de um demônio que se comprazia em torturá-la. E choviam as maldições sobre Pedro Camundá. Pois quem, a não ser ele, seria capaz de tamanha perversidade?

Na verdade os sintomas da moléstia eram muito singulares. A barriga começou a crescer-lhe de um modo espantoso, dir-se-ia em adiantada gravidez, e nas crises agudas ela torcia-se como uma possessa na cama, injuriava a todos, proferia obscenidades, e, o que é mais singular, às vezes ficava suspensa no ar durante um ou dois minutos. Nesses momentos, os seus olhos viravam mostrando somente o branco, a boca entortava, e dela escorria copiosa espuma.

Outras vezes discutia com o demônio que em si encerrava, e ao qual dava o nome de Caviru. Insultava-o ou rogava-lhe que a deixasse. Outras ainda a sua voz mudava: parecia a de uma outra pessoa e começava a dizer frases incoerentes ou de sentido misterioso.

Vieram muitos curandeiros visitar a inditosa rapariga. Várias mulheres fizeram-na engolir drogas nauseabundas mas ninguém fazia melhorar a pobre moça que de dia para dia definhava sobre o catre.

Todos se condoíam do lastimável estado da pobrezinha, e Antônio Guimarães estava inconsolável.

* * *

Essa triste situação durou algumas semanas e a moça ia cada vez a pior, quando veio visitá-la uma preta velha, que era a sua madrinha de apresentação.

Manuelinha, assim que a madrinha assomou à porta começou a gritar horrivelmente, como se a cruciassem dores pungentíssimas.

Todos se admiraram com o que estavam presenciando, porém tia Maria não se abalou e disse aos mais que ficassem tranqüilos, pois ela ia tirar o diabo do corpo de sua afilhada.

– O coisa-ruim já me conhece. Agora vai ele ver o ruço comigo.

– Quando ele, o estapoire saire, logo se conhece: a rapariga há de daire um grande bufa.

– É tal e qual, – confirmou tia Maria.

E dizendo isso a preta agarrou a afilhada pelos pulsos e gritou:

– Caviru! Caviru! quem te mandou para o corpo desta menina? Fala coisa-ruim!

A moça torceu-se toda, porém seus lábios não se descerraram.

– Você fala ou não fala, Caviru?

Nada; nenhuma resposta se ouviu.

– Ah! – disse a preta, – essa Peste está reinando! Vão buscar uma vara de guiné e um galho de arruda. Ah! negro velho caborgeiro, eu bem conheço as tuas maldades! Fazer isso com a pobre da minha afilhada!

E a velha pôs-se a rezar e a benzer a sobrinha em todas as direções.

Daí a pouco trouxeram-lhe a vara de guiné e o galho de arruda.

– Vão agora buscar um gato preto, para o diabo passar para o corpo dele.

– E só quando a rapariga der um bufo é que ele sai.

Enquanto procuravam o gato, tia Maria amarrava com um largo cinteiro o galho de arruda sobre o roliço ventre da rapariga, e chegando o gato, ordenou ao Guimarães que o sugigasse.

* * *

Todos acompanhavam esses preparativos com o maior interesse, e tia Maria, depois de riscar três cruzes com o dedo molhado em azeite, sobre os seios da moça, que se achava completamente nua sobre a cama, pegou da flexível vara de pau-guiné e gritou de novo:

– Caviru! Caviru! quem te mandou para o corpo desta menina?

Como das outras vezes nenhuma resposta se fez ouvir. Então a preta velha vibrou com a vara de guiné uma forte vergastada nas nádegas carnudas da rapariga.

Manuelinha deu um grande grito e espernegou na cama.

– Anda, peste! – tornou de novo tia Maria. – Quem te meteu aí?

Ainda nada de resposta e a vara de guiné tornou a silvar no ar e a cair sobre as carnes da moça.

– Fala, desgraçado! Quem foi que te meteu aí?

E como o demônio se obstinasse em não dar resposta, a velha amiudou as varadas, aos gritos da infeliz que pinoteava no leito, até que afinal a rapariga, como que fazendo um grande esforço sobre si mesma, gritou convulsivamente:

– Foi Pedro Camundá!

– Eu nãn lhes havia dito que era aquele estapaire! – disse logo Guimarães.

– Segure o gato, seu Antônio! – exclamou a preta. – Caviru já obedece, agora ele tem que sair, quer queira quer não.

E toca a zurzir a vara nas nádegas da moça, aos berros de Sai! sai maldito!

A moça, já com as carnes todas lanhadas, cada vez gritava mais.

– Segure o gato, seu Antônio! O bicho está aqui, está fora. Segure o gato, seu Antônio!

– Cá o tainho bem preso pelo toutiço.

Entrementes a vara não descansava. A mãe de Manuelinha segurava-a pelos braços, uma outra agarrava-lhe as pernas. Guimarães, no meio do quarto, segurava o gato pelo cangote.

De repente a rapariga inteiriçou-se toda no catre e exalou um suspiro. Ao mesmo tempo o seu ventre, que até então se conservara duro como o diafragma de um zabumba, emurcheceu subitamente e um forte cheiro de gás ácido sulfúrico, acompanhado de estrondo, espalhou-se pelo aposento.

– Solte o gato, seu Antônio!

Guimarães soltou o bicho dizendo:

– Eu nãn lhes disse que o estapoire só sairia do corpo da rapariga, quando ela desse uma grande bufa?

O gato, assim que se viu livre das garras do ilhéu, ganhou a janela de um salto e a miar como um desesperado fugiu para o mato com a cauda erguida e o pêlo todo eriçado.

– Vai-te, excomungado; vai-te para as areias gordas, – gritava tia Maria. – Graças a Nossa Senhora da Conceição, saiu o diabo do corpo de minha afilhada. Ah! Pedro Camundá! feiticeiro danado! No inferno tu hás de pagar esta grande maldade. Te, esconjuro, coisa ruim!

Todos ficaram convencidos de que o tinhoso escapulira do corpo da rapariga; e, por conseguinte, estavam terminados os seus sofrimentos.

Efetivamente Manuelinha, caindo primeiro numa grande prostração, foi depois se restabelecendo a poder de gordos caldos de galinha, e no fim de algumas semanas estava completamente curada.

Guimarães, daí a uns seis meses comprou um pequeno sítio, e lá foi viver com a mulatinha. Dentro de anos juntou alguns cobres, porém tinha sempre no nariz e nos ouvidos a grande bufa que a rapariga soltara, quando o diabo lhe saiu das entranhas.

(Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.239-251)