segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Circo



O seu frágil corpo de cinco anos era insuficiente para conter toda a ansiedade que o seu espírito produzia. Os seus pais iam levá-lo ao circo, ia finalmente ver ao vivo os palhaços, criaturas que tanto o animavam à distância da televisão. As suas gargalhadas pueris, sempre que confrontado com aquele tipo de entretenimento, tinham já cativado a atenção dos progenitores e a chegada do circo à cidade dar-lhe-ia a alegre recompensa.

O pequeno Pedro, na sua inocente matemática, contava os dias que faltavam para o grandioso evento. Cada dia que passava era uma batalha ganha.

Chegou finalmente o ansiado dia. Assim que os seus olhos alcançaram a enorme tenda, o seu rosto iluminou-se com a forma de um sincero e rasga do riso. As luzes, os ruídos, os cheiros e a emoção tomavam conta dos seus sentidos. O espetáculo começou com elegantes camelos a exibir um bailado de habilidades. Em seguida, um mágico manipulava a percepção do público com a ajuda de duas esguias assistentes. Mas não era disto que ele estava à espera e durante a atuação dos acrobatas conseguiu que o seu pai permitisse que ele se afastasse para junto da entrada da tenda. Tinha a sua fuga planejada e pronta a ser concretizada. Queria ver os palhaços e não conseguia esperar. Tinha de procurá-los. No curto espaço de tempo de uma corrida para fora da tenda, viu um palhaço entrando em um trailer. Estava encontrada a sua direção. Correu ofegante. Ao chegar junto da entreaberta porta viu, finalmente, os palhaços a uma distância próxima. Ficou eufórico, mas silencioso. Os palhaços estavam em círculo e iluminados por várias velas com pequenos paus de fumo em redor. Um dos palhaços proferia palavras que a compreensão de Pedro não alcançava. No centro daquela roda, um outro palhaço, amarrado a uma tábua de madeira vertical e com os olhos vendados e uma colorida fita em volta da sua boca, debatia-se numa tentativa de libertação. O ambiente era sinistro, mas para Pedro tudo era cor e animação. De súbito, um dos palhaços percebeu o olhar do intruso e com uma voz rude ordenou-lhe que saísse dali. Pedro tremeu de horror. A fonte da sua alegria acabava de o assustar. Ouviu o pai chamá-lo da entrada da tenda e correu para os seus braços. Assistiu em silêncio ao resto do espetáculo e quando chegou a atuação dos palhaços viu-os atirar tartes, água e outras provocações ao palhaço amarrado. Soltou algumas gargalhadas, mas a intimidação não deixou que fossem tão explosivas como seria de esperar. Nunca mais olharia para os palhaços da mesma forma.

Vinte anos mais tarde, Pedro, um saltimbanco de profissões, vivia sozinho no barato e minúsculo apartamento que ia conseguindo pagar. Os seus amigos, que gostavam bastante dele, lhe organizaram uma festa surpresa pelo seu vigésimo quinto aniversário. Foi um belo jantar repleto de esperanças partilhadas, recordações de histórias passadas e algum vinho à mistura. Ana, a sua amiga de longa data, ofereceu-lhe um bilhete para um espetáculo de circo, pois recentemente ele havia comentado com ela que a única vez que assistira a este tipo de espetáculo fora aos cinco anos. Ele agradeceu o presente, mas durante alguns segundos, enquanto olhava o bilhete, não conseguiu evitar um calafrio que o remeteu para os sinistros seres pintados.

Uma semana passada desde o evento de aniversário e chegou o dia da sua ida ao circo. Iria sozinho e iria divertir-se. O espetáculo começou e ele deu por si a adorar todas as atuações que se apresentavam. Sentiu-se novamente criança e desejou a entrada dos palhaços. Os palhaços entraram em cena. Ele viu a expressão de alegria que as crianças tinham ao vê-los entrar. Não conseguiu evitar um nostálgico sorriso, mas este foi quebrado de imediato pelo olhar do reconhecível palhaço que lhe falara há vinte anos. O palhaço parecia reconhecê-lo e ele sentiu um sarcasmo visual transmitido por aquele rosto pintado. A atuação era exatamente igual à que ele vira no passado, onde um palhaço amarrado era vítima das peripécias dos outros. Pedro abandonou o recinto antes do final, carregando consigo a tenebrosa imagem daquele palhaço, que durante o espetáculo insistia em olhá-lo fixamente e lhe transmitia uma química de intimidação. Era altura de esquecer o sucedido e voltar ao seu afastamento de palhaços.

Dois dias depois, quando regressava a casa após um convívio com alguns amigos, ao conduzir pela estrada que atravessava uma pequena porção de floresta existente na cidade, viu alguém pedir carona à beira da estrada. Sentiu-se um pouco intimidado, pois a noite já havia nascido e poucos eram os pontos de iluminação naquela estrada. No entanto, a eventualidade de ser alguém que necessitasse de ajuda não o fez recuar. Se houvesse algum perigo, ele podia sempre acelerar e avisar a polícia. Quando se encontrou a aproximadamente cinquenta metros de distância do transeunte reconheceu a figura. Era o palhaço que o encarara no circo. Em choque, virou abruptamente para trás e arrancou a grande velocidade. Chegou a casa com o coração prestes a explodir. Questionou a sua sanidade mental. Teria confundido uma qualquer pessoa com a assombração daquele palhaço? Era melhor tentar dormir e esquecer o episódio. O sono demorou a chegar, mas conseguiu finalmente adormecer. A meio da noite foi acordado pelo som de maxilares a roer algo, num hipnotizante mastigar. Julgou estar a sonhar, mas esticou-se para acender o candeeiro junto da sua cama. Foi então horrorizado pela presença do palhaço, em pé, no canto do seu quarto a comer uma maçã. Com o impacto desta visão desligou o candeeiro e voltou a ligá-lo. Sentiu um enorme alívio ao perceber que não existia palhaço algum e tudo fora fruto da sua fértil imaginação. O seu cérebro pregava-lhe partidas. Os pesadelos brincam com a mente das pessoas. Todavia, não conseguiu pregar olho durante o resto da noite. Estava atormentado por aquela ida ao circo. Decidiu que voltaria ao circo, não para assistir ao espetáculo, mas sim para tentar saber algo mais acerca daqueles palhaços e, quem sabe, falar com eles e tranquilizar o seu pesadelo. Ao acordar, sentiu o alívio da luz do Sol. Respirou fundo e eis que, para terrível espanto, encontrou um caroço de maçã no chão do seu quarto. Não tinha por hábito comer no quarto e a última pessoa que vira a roer uma maçã fora o fantasma do palhaço. O seu corpo tremia descontroladamente.

Carregou a sua insônia para o acampamento circense e abordou a primeira pessoa que viu, a qual, por sinal, era o dono da companhia. Ao inquiri-lo quanto ao espetáculo dos palhaços, a resposta que recebeu foi assustadora. O dono do circo afirmou que já há vários anos que não usava palhaços, pois uma certa ocorrência, que ele não quis descrever, fez com que optasse pela não inclusão de palhaços. Pedro lhe narrou o espetáculo a que assistira dias antes, mas o dono confirmou não existir algo do gênero na sua companhia. Para acalmar a inquietação que percebeu em Pedro, ofereceu-lhe um bilhete para o espetáculo do dia seguinte. O confuso Pedro aceitou o bilhete e sem qualquer coerência nos seus pensamentos regressou a casa. O medo acompanhou-o. Todo o dia seguinte foi de receosa excitação. Qualquer som o deixava alerta, qualquer imagem colorida lhe lembrava o universo dos palhaços.

Decidiu chegar ao circo após o espetáculo ter começado, pois assim não apanharia a azáfama da entrada dos outros espectadores e teria mais segurança para efetuar as suas pesquisas, quando todos estivessem concentrados no decorrer do evento. Começou por, cautelosamente, procurar algum trailer que pudesse ser a dos palhaços. Se por um lado desejava encontrá-la, para confirmar que não estava doido, por outro lado preferia que não existisse qualquer indício de palhaços naquele circo e que tudo aquilo fosse uma passageira artimanha da sua mente. Pouco demorou a encontrar resposta. Encontrou uma porta entreaberta e reconheceu-a. Aproximou-se e sentiu um arrepio na espinha. Em círculo, um grupo de palhaços, rodeados por velas num chão coberto de símbolos ritualistas, efetuavam uma estranha cerimônia. No centro, alguém vestido também de palhaço agonizava e tentava libertar-se das cordas que o prendiam. Uma caveira, sarcasticamente pintada como o rosto de um palhaço, estava aos seus pés. Subitamente, um dos palhaços que atacavam virou-se para Pedro e soltou uma gargalhada. Pedro ficou petrificado e foi de imediato agarrado pelos restantes.

O palhaço da gargalhada disse-lhe:

— Bem-vindo! Pedro foi amarrado e amordaçado. Tentou, em vão, soltar-se. O palhaço que antes ocupava o seu lugar pintava-o e ria de satisfação. Pedro perdeu a noção do tempo e sentiu os seus sentidos desfalecerem. Minutos depois ouviu uma multidão de risos e aplausos, enquanto os palhaços dançavam em seu redor. Começou a ser atacado e a sua involuntária prisão não era percebida pelos espectadores.

Nunca mais alguém soube do paradeiro de Pedro. Alguns amigos dizem que andava inquieto na altura do seu aniversário e, eventualmente, terá decidido viajar sem avisar. Outros dizem que seguiu o seu velho sonho de infância e se juntou a uma companhia de circo. Deixou tudo para trás, incluindo os medicamentos que tomava desde a infância e de que tanto precisa para a sua sanidade.

Por Emanuel R. Marques


Fonte: http://www.fabricadeebooks.com.br/ebooks/contos_de_terror