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segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O mastro de navio da casa de Ponte d’Uchoa

Recife: nossa Veneza americana
Acostumaram-se os recifenses moradores da linha que outrora se chamou a “Principal” — a do trem que ia dos sobrados do centro às matas suburbanas de Dois Irmãos — a ver diante do casarão gótico de Ponte d’Uchoa — casarão gótico que, reformado, é hoje o palacete do médico e milionário luso-pernambucano Manuel Batista da Silva — um alto mastro de antigo navio a vela.

Durante longos anos aí esteve o mastro misterioso.

Do casarão se diz que o levantou velho comandante inglês de navio, enriquecido no comércio uns dizem que de bacalhau, outros que de farinha de trigo. Sentimental como todo bom inglês, quando resolveu residir no Recife — cidade que sempre teve seu it  para ingleses, um dos quais deixou-a, há pouco, choroso como um desesperado que deixasse sua Pasárgada — não foi capaz de separar-se do mastro do navio a vela. O mastro do navio que durante anos comandara por mares do Norte e águas do Sul.

De modo que diante da casa bizarramente gótica — tão bizarra que os cronistas do meado do século XIX registraram com espanto o seu aparecimento no meio do arvoredo caboclo — ergueu o inglês aquele mastro, como se ali houvesse encalhado para sempre seu navio: navio bom e romântico do tempo da navegação a vela.

E ali ficou o mastro até que o transferiram para o Country Club, onde ainda está.

Contou-me há anos velho “inglês” — inglês já de água doce, pois, nascido no Brasil e casado com brasileira, falava inglês com sotaque pernambucano — que, por algum tempo, o mastro teve fama de mal-assombrado. Quem passasse tarde da noite pelo casarão ermo via no alto do mastro angulosa figura que alguns supunham de marinheiro. E sendo de marinheiro, devia ser de marinheiro inglês, pois inglês fora o navio de que a saudade do antigo comandante arrancara o mastro.

Na mesma área do Recife onde se ergueu durante anos esse mastro de navio velho, no qual mais de um recifense antigo cuidou ver, noite de escuro, fantasma de inglês saudoso do seu barco, apareceu, anos depois, a uma meninota brasileira chamada Lurdinha, um vulto esbranquiçado que lhe pareceu fantasma; e fantasma também de inglês, todo de dólmã branco, sapatos como os dos ingleses jogarem tênis. Fantasma de um mister B., que se soube depois ter morado na casa onde morava a família de Maria de Lurdes.

O fantasma que a moça garantiu à família ter visto com olhos de pessoa acordada era, com efeito, britanicamente correto. 

Desapareceu logo que descobriu estar assombrando uma simples menina. Não pediu missa: mesmo porque parece que Mr. B. fora em vida protestante. Não apontou para móvel ou parede alguma: nem era natural que o fizesse, pois devia ter suas economias em banco solidamente inglês. Não fez um gesto. Não fez um ruído. 

Simplesmente apareceu à menina chamada Lurdes. Ali nessa mesma casa, a outra família, a família F. L. — dizem ter aparecido um fantasma de bebezinho brincalhão. Talvez inglês como Mr. B.

Só fazia brincar. Não assustava ninguém. Espécie de irmão do fantasmazinho de menino feliz de outra casa de Boa Vista do qual mais adiante se falará.
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Fonte: Assombrações do Recife Velho - Gilberto Freyre. — Rio de Janeiro:  Record, 1987.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Num lençol manchado de sangue

Barão de Escada - Belmiro da
Silveira Lins - assassinado em
eleição senatorial em Vitória.
Estava uma senhora de família pernambucana no interior do estado em visita a parentes do Recife. Feitas as compras nas lojas do centro, foi a sinhá descansar tranqüilamente, sossegada de seu, numa das cadeiras de balanço da casa, depois de desoprimida do espartilho que lhe apertava o busto e das botinas de duraque que lhe apertavam os pés pequenos para torná-los ainda menores.

O corpo à vontade na matinée solta e os pés, ainda mais à vontade, nos chinelos moles. Isto aconteceu nos fins do século passado, que ninguém sabe ao certo nem na Europa nem no Brasil, quando acabou. O Kaiser é que, aconselhado decerto pelos doutores das universidades alemãs, não teve dúvida em considerar o primeiro de janeiro de 1900 o começo do novo século. E assim foi ele principalmente comemorado na Europa e no Brasil.

Não era aquela sinhá do fim do século XIX, como a baronesa de L., apreciadora de um charutinho forte; nem como a mulher do conselheiro J. ou a ilustre Albuquerque, esposa do dr. C, de um bom cigarro de palha, ainda mais forte que os charutos de qualidade, fumados pelos homens. Não fumava ela nos seus vagares ou nos seus ócios. 

Estava simplesmente repousando na cadeira de balanço, sem fumar nem ler nem cochilar, sem ninar menino nem rezar o terço no rosário de madrepérola. Sem que alguma mucama lhe desse cafunés. Simplesmente repousando.

De repente, deu um grito que assustou a casa inteira. Um grito de terror tão grande que até na rua se ouviu a voz da sinhá ilustre.

Acudiram os parentes, cada qual mais aflito ou assustado.  Vieram com suas mãos macias de enfermeiras, de doceiras e catadoras de piolho nos vastos cabelos soltos das senhoras nobres, as mucamas da casa. 

Mandou-se chamar o médico da família, pois a boa sinhá desmaiara. Que viesse a toda pressa, no seu carro de cavalo. No seu ligeiro cabriolé inglês que aos olhos da gente da época parecia voar e não apenas rodar pelas ruas do Recife.

Não tardou, porém, a explicação: à dona acabara de aparecer a figura do tio barão envolvida num largo lençol branco todo manchado de sangue.

Horas depois chegavam ao Recife notícias de Vitória: tiroteio na igreja durante as eleições.  Conflito sangrento.  O barão de Escada fora assassinado.
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Fonte: Assombrações do Recife Velho - "Barão de Escada, num lençol manchado de sangue" - Gilberto Freyre. — Rio de Janeiro:  Record, 1987.

Luzinhas misteriosas nos morros do Arraial

Isso de haver luzes misteriosas nos morros onde houve guerra aprendi que é crença entre os celtas com o grande poeta irlandês William Butler Yeats. Homem — esse poeta — como raros europeus de seu tempo, entendido em assuntos de ocultismo, de magia e de sobrenatural e que eu, ainda estudante, conheci pouco tempo antes de ter ele, para meu espanto, se tornado doge ou senador da República irlandesa — ele que tinha uma voz quase de moça e mãos que pareciam plumas, incapazes de esmurrar tribunas e ameaçar tiranos.

Entre algumas populações européias mais rústicas se encontra, ainda hoje — disse-me Yeats há muitos anos — a crença de aparecerem luzinhas misteriosas em antigos campos de batalha. Ou nas suas imediações. Luzinhas esquisitas que aparecem e desaparecem como fachos que se avistassem a mais de légua, do tamanho de lanternas de carro de cavalo. Que mudam de lugar.  Que podem ser vistas a grandes distâncias, como as luzes naturais não podem.

Descobri crença semelhante entre velhos moradores de Casa-Forte e das imediações do morro do Arraial, no Recife, quando, há anos, vivi em íntimo contacto com aquela boa gente de mucambo e de casa de barro. Também entre eles — entre os mais velhos — é crença de que aparecem luzinhas misteriosas nos morros onde se travaram encontros da gente luso-brasileira com a  flamenga; ou onde a gente luso-brasileira teve seu arraial.

Ignoro se continuam a aparecer tais luzinhas. Dizia Josefina Minha-Fé, velha moradora da Casa-Forte e da Casa Amarela, que estava farta de vê-las nas noites de escuro; que  eram almas de soldados que haviam morrido lutando; que eram espíritos de guerreiros  ali mesmo tombados.  Zumbis de campo e não de interior de casa.

Yeats acreditava que no Brasil houvesse muita sobrevivência celta. Perguntou-me se alguém já estudara o assunto. Respondi- lhe que não. Será a crença nessas aparições de luzes misteriosas, em antigos campos de batalha, sobrevivência celta?
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Fonte: Assombrações do Recife Velho - Gilberto Freyre. — Rio de Janeiro:  Record, 1987.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Um lobisomem doutor

Contou-me há quase trinta anos, Josefina Minha-Fé, que conheci negra velha, mas ainda bonita — tão bonita que, segundo me confessou ela um dia em voz de segredo, certo ilustre poeta brasileiro, de passagem pelo Recife, tentara conquistá-la sem o menor rodeio lírico, dominado pela mais repentina das paixões, sendo já Josefina mulher cinqüentona e um tanto descadeirada, os quartos meio caídos e os peitos começando a enlanguescer e não mais a vênus hotentotemente culatrona e de busto sólido que  fora no verão da vida e no esplendor do sexo — ter conhecido ainda meninota, no Poço da Panela, um lobisomem. 

“Era um horror, menino!” dizia-me ela na sua voz meio rouca de mulher um tanto homem na fala e em certos modos, mas não nas formas e nos dengos.

“Tomava forma de cão danado, mas tinha alguma coisa de porco. Toda noite de sexta-feira estava nos ermos de Caldereiro, do Monteiro, do Poço da Panela, cumprindo seu fado nas encruzilhadas. Espojando-se na areia, na lama, no monturo. Correndo como um desesperado. Atacando com o furor dos danados a mulher, o menino e mesmo o homem que encontrasse sozinho e incauto, em lugar deserto. Chegando atrevidamente até perto da casa de José Mariano para espantar Ioiô e o irmão, meninotes brancos.”

Até que um dia atacou o lube a própria Josefina, que era então negrota gorda e redonda de seus 13 anos. E não se chamava ainda Minha-Fé.  Ao contrário: havia quem a chamasse “Meu Amor” e até “Meus Pecados” — Josefina Meus Pecados — arranhando com a malícia das palavras sua virgindade de moleca de mucambo. 

E quem assim a chamava não se pense que era homem à-toa, porém mais de um doutor.  José Mariano, este às vezes vinha à porta da casa senhoril, de chambre e chinelo, olhar rio e conversar com os vizinhos.  E quando Josefina passava, perguntava-lhe, brincalhão, se ia jogar no bicho.  Ou qualquer coisa assim.

Saíra Josefina para comprar na venda do português azeite de lamparina para os santos.  Não é que os santos estavam naquela noite sem azeite para sua luz?

Não se lembrou a negrota descuidada de que era noite de sexta-feira e noite escura. Chuvosa, até. José Mariano devia estar dentro de casa, lendo os jornais. Dona Olegarinha, costurando. Os meninos, estudando.

Tão despreocupada foi Josefina, caminhando da casa, que era um mucambo de beira de rio, para a venda, ao pé dos sobrados dos lordes, que nem pensou em lobisomem a se espojar em encruzilhadas, batendo as orelhas grandes como se fossem matracas em procissão de Senhor Morto.

Lobisomem era assombração. E assombração parecia a Josefina, já menina-moça, conversa de negra velha e feia, de que negra nova e bonita não devia fazer caso.

E Josefina sabia que era bonita além de negra em flor. Só pensava em ir a festa, fandango, pastoril, pagode. Em dançar de contramestra e vestida de encarnado no pastoril do Poço que era então um dos melhores do Recife. A mãe é que não deixava.

Nada de filha sua em pastoril de rua ou vestida de encarnado. A mãe de Josefina fora escrava dos Baltar, era católica, apostólica e romana e tinha horror a Exu. A Exu e a encarnado vivo.

Ouvira Josefina falar no lobisomem do Poço que vinha assustando até homens valentes.   Que correra atrás de um canoeiro até o rapaz jogar-se desesperado no rio gritando pela mãe e pelo padrinho. Desesperado e vencido pela catinga do Amarelo.
 
Mas quem sabe se o canoeiro não estava um tanto encachaçado e correra de um boi pensando que corria de lobisomem?

Seguia assim Josefina para a venda, quase sem medo de lobisomem nem de fantasma, quando, no meio do caminho, sentiu de repente que junto dela parava um não-sei-quê alvacento ou amarelento, levantando areia e espadanando terra; um não-sei-quê horrível; alguma coisa de que não pôde ver a forma; nem se tinha olhos de gente ou de bicho.  Só viu que era uma mancha amarelenta; que fedia; que começava a se agarrar como um grude nojento ao seu corpo. Mas um grude com dentes duros e pontudos de lobo.  Um lobo com a gula de comer viva e nua a meninota inteira depois de estraçalhar-lhe o vestido.

Foi o que fez o tal lube: estraçalhou o vestido da negrota, que, felizmente, era azul, enquanto ela gritava de desespero. Que a acudissem, pelo amor de Deus. Que a socorresse sua Madrinha, Nossa Senhora da Saúde, que era sua fé! 

“Minha Madrinha!” “Minha Madrinha! Minha Fé! Minha Fé!”

Foi o que salvou Josefina: foi ter gritado pela Senhora da Saúde, da qual o lobisomem, amarelo de todas as doenças e podre de todas as mazelas, tinha mais medo do que do próprio Nosso Senhor.

Aos gritos da negrota, acudiram os homens que estavam à porta da venda. Inclusive, o português que, não acreditando em bruxas, passou a acreditar em lobisomem.

A negra foi encontrada com o vestido azul-celeste em pedaços. Metade do corpo de fora. Os peitos de menina-moça arranhados. Afilhada de Nossa Senhora, só vestia azul. Azul-claro, azul-celeste, azul-marinho, azul-escuro, mas só e sempre azul. 

Nada de encarnado que, para sua mãe, era cor de vestido de mulher da vida. Pois havia então muito quem pensasse ser o vermelho cor do pecado; e como tal era evitado pelas mães nos vestidos das filhas virgens ou moças.  

Isto também ouvi de Josefina Minha-Fé — que desde a aventura com o lobisomem  passou a ser conhecida por Minha-Fé; e, anos depois, de barcaceiros, pescadores e jangadeiros de litoral de Pernambuco e de Alagoas, cujas crenças procurei estudar. 

Explica essa crença dos homens do mar (crença de origem talvez moura e talvez trazida ao Brasil por algarvios) — a de ser o azul cor agradável a Nossa Senhora e o encarnado, desagradável —, tanta barcaça pintada de azul ou de verde: homenagem à Virgem e resguardo dos homens não contra os lobisomens amarelentos, que estes são todos da terra e não vão às águas de mar, mas contra as sereias que povoam os mares e temem, segundo alguns, o azul, mas não o encarnado. Não o vermelho. Nem mesmo o amarelo.

Mas esta não é a história inteira. Falta ainda um trecho que para Josefina era o ponto mais importante da sua aventura. E é que, chamada sua mãe, dias depois, para encarregar-se de lavar a roupa de certo doutor de sobrado do Poço da Panela, um bacharelzinho pálido e de pince-nez que não gostava de José Mariano e dizia ter mais raiva de negro do que de macaco, descobriu que no meio da roupa suja do branco estava mais de um pedaço do vestidinho azul da filha. 

E reparando bem, viu a preta velha que o doutor branco, em vez de branco ou apenas pálido, era homem quase sem cor: de um amarelo de cadáver velho. Soube depois que vivia tomando remédio — ferro e mais ferro — para ganhar sangue e cor de gente viva. Remédio de botica e remédio do mato, feito por mandingueiro ou caboclo.

Que estava morando no Poço justamente por isto: para tratar-se com os banhos que tinham fama de milagrosos e atraíam romeiros de quase Pernambuco todo para a sombra de Nossa Senhora da Saúde do Poço da Panela.

Não sei se o doutor branco conseguiu curar-se de seu mal; se Nossa Senhora da Saúde foi boa ou clemente para o bacharel infeliz; se acabou com o seu fado de toda sexta-feira “virar lobisomem” e correr atrás de mulheres, de meninos e até de  homens. Especialmente atrás de mulheres virgens.

O que sei é que para Josefina Minha-Fé não havia dúvida. O lobisomem que lhe atacara o corpo virgem de afilhada de Nossa Senhora fora o tal doutor de cartola e croisé. Cartola, croisé, pince-nez e rubi no dedo magro. O lobisomem era ele: pecador terrível  que, para cumprir seu fado, tomava toda noite de sexta-feira aquela forma hedionda e saía a correr pelos matos, pelos caminhos desertos, pelos ermos, estraçalhando quem encontrasse sozinho. Principalmente mulher e menino. Mulher virgem. Menina-moça como Minha-Fé. 

E tanto como o Cabeleira (que talvez tenha sido também lobisomem e não simples bandido), o Cabeleira do

Fecha porta, Rosa
Cabeleira eh-vem  
Pegando mulheres  
Meninos também,  
      

o bacharel pálido do Poço tornou-se, por algum tempo, o terror da gente pobre, moradora nos mucambos daquelas margens do Capibaribe, de águas protegidas por Nossa Senhora da Saúde e por algum tempo alegradas pela presença de outro bacharel, este muito amigo do povo miúdo: José Mariano.
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Fonte: Assombrações do Recife Velho - Gilberto Freyre. — Rio de Janeiro:  Record, 1987.

O Boca-de-Ouro

Rua do Bom Jesus, do Recife das assombrações: cuidado com o Boca-de-Ouro.

Hesito em começar esta relação de casos de visagens recifenses com a história do Boca-de-Ouro por saber que noutras cidades do Brasil também tem aparecido essa figura meio de diabo, meio de gente, pavor dos tresnoitados. Um amigo, porém, me adverte de que parece haver uma migração de fantasmas do Norte para o Sul do país como houve outrora de bacharéis e de negros escravos, e há, hoje, de trabalhadores.

Boca-de-Ouro talvez seja um desses duendes ou fantasmas aciganados: espécie de cearense que quando menos se espera surge numa cidade do interior de Goiás ou do Rio Grande do Sul. O contrário do fantasma inglês, tão preso à sua casa ou ao seu castelo que quando os reconstrutores de casas velhas alteram o piso, elevando-o, o fantasma tipicamente inglês só se deixa ver pela metade: não toma conhecimento da reforma da casa.

Acontece que um pacato recifense dos princípios deste século decidiu uma noite, talvez sob a influência das trovas, então na moda e, na verdade, encantadoras, de Adelmar Tavares, ser um tanto boêmio e até bruneano; e sair liricamente ruas afora, e pela beira dos cais do Capibaribe, ora recitando baixinho versos à “vovó Lua” ou à “dona Lua”, ora assobiando alto trechos da Viúva alegre, ouvida cantar por italiana opulentamente gorda no Santa Isabel; e sempre gozando o silêncio da meia-noite recifense, o ar bom da madrugada que dá, na verdade, ao Recife seu melhor encanto. 

Quem sabe se não encontraria alguma mulher bonita? Alguma pálida Iaiá de cabelos e desejos soltos? Ou mesmo alguma moura, encantada na figura de uma encantadora mulata de rosa ou flor cheirosa no cabelo?

Mas quem de repente encontrou foi um tipo acapadoçado, chapéu caído sobre os olhos, panamá desabado sobre o rosto e que lhe foi logo pedindo fogo.

O aprendiz de boêmio não gostou da figura do malandro.  Nem de sua cor que à luz de um lampião distante parecia roxa: um roxo de pessoa inchada. Atrapalhou-se. Não tinha ponta de cigarro ou charuto aceso a oferecer ao estranho. Talvez tivesse fósforo. Procurou em vão uma caixa nos bolsos das calças cheios de papéis amarfanhados: rascunhos de trovas e sonetos.
 
E ia remexer outros bolsos quando o tipo acapadoçado encheu de repente, e sem quê nem para quê, o silêncio da noite alta, o ar puro da madrugada recifense, de uma medonha gargalhada; e deixou ver um rosto de defunto já meio podre e comido de bicho, abrilhantado por uma dentadura toda de ouro, encravada em bocaça que fedia como latrina de cortiço.

Era o Boca-de-Ouro.

Correu o infeliz aprendiz de boêmio com toda a força de suas pernas azeitadas pelo suor do medo. Correu como um desesperado.  Seus passos pareciam de ladrão. Ou de assassino que tivesse acabado de matar a noiva.  Até que, cansado, foi  afrouxando a carreira. Afrouxou-a até parar. 

Mas quando ia parando, quem havia de lhe surgir de novo com nova gargalhada de demônio zombeteiro a escancarar o rosto inchado de defunto e a deixar ver dentes escandalosamente de ouro? Boca-de-Ouro. O fantasma roxo e amarelo.

O pacato recifense então não resistiu. Espapaçou-se no chão como se tivesse dado nele o tangolomango. Caiu zonzo, desmaiado.

Na calçada. E ali ficou como um trapo, até ser socorrido pelo preto do leite que, madrugador, foi o primeiro a ouvir a história: e, falador como ninguém, o primeiro a espalhá-la.

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Fonte: Assombrações do Recife Velho - Gilberto Freyre. — Rio de Janeiro:  Record, 1987.