Rua do Bom Jesus, do Recife das assombrações: cuidado com o Boca-de-Ouro. |
Hesito em começar esta relação de casos de visagens recifenses com a história do Boca-de-Ouro por saber que noutras cidades do Brasil também tem aparecido essa figura meio de diabo, meio de gente, pavor dos tresnoitados. Um amigo, porém, me adverte de que parece haver uma migração de fantasmas do Norte para o Sul do país como houve outrora de bacharéis e de negros escravos, e há, hoje, de trabalhadores.
Boca-de-Ouro talvez seja um desses duendes ou fantasmas aciganados: espécie de cearense que quando menos se espera surge numa cidade do interior de Goiás ou do Rio Grande do Sul. O contrário do fantasma inglês, tão preso à sua casa ou ao seu castelo que quando os reconstrutores de casas velhas alteram o piso, elevando-o, o fantasma tipicamente inglês só se deixa ver pela metade: não toma conhecimento da reforma da casa.
Acontece que um pacato recifense dos princípios deste século decidiu uma noite, talvez sob a influência das trovas, então na moda e, na verdade, encantadoras, de Adelmar Tavares, ser um tanto boêmio e até bruneano; e sair liricamente ruas afora, e pela beira dos cais do Capibaribe, ora recitando baixinho versos à “vovó Lua” ou à “dona Lua”, ora assobiando alto trechos da Viúva alegre, ouvida cantar por italiana opulentamente gorda no Santa Isabel; e sempre gozando o silêncio da meia-noite recifense, o ar bom da madrugada que dá, na verdade, ao Recife seu melhor encanto.
Quem sabe se não encontraria alguma mulher bonita? Alguma pálida Iaiá de cabelos e desejos soltos? Ou mesmo alguma moura, encantada na figura de uma encantadora mulata de rosa ou flor cheirosa no cabelo?
Mas quem de repente encontrou foi um tipo acapadoçado, chapéu caído sobre os olhos, panamá desabado sobre o rosto e que lhe foi logo pedindo fogo.
O aprendiz de boêmio não gostou da figura do malandro. Nem de sua cor que à luz de um lampião distante parecia roxa: um roxo de pessoa inchada. Atrapalhou-se. Não tinha ponta de cigarro ou charuto aceso a oferecer ao estranho. Talvez tivesse fósforo. Procurou em vão uma caixa nos bolsos das calças cheios de papéis amarfanhados: rascunhos de trovas e sonetos.
E ia remexer outros bolsos quando o tipo acapadoçado encheu de repente, e sem quê nem para quê, o silêncio da noite alta, o ar puro da madrugada recifense, de uma medonha gargalhada; e deixou ver um rosto de defunto já meio podre e comido de bicho, abrilhantado por uma dentadura toda de ouro, encravada em bocaça que fedia como latrina de cortiço.
Era o Boca-de-Ouro.
Correu o infeliz aprendiz de boêmio com toda a força de suas pernas azeitadas pelo suor do medo. Correu como um desesperado. Seus passos pareciam de ladrão. Ou de assassino que tivesse acabado de matar a noiva. Até que, cansado, foi afrouxando a carreira. Afrouxou-a até parar.
Mas quando ia parando, quem havia de lhe surgir de novo com nova gargalhada de demônio zombeteiro a escancarar o rosto inchado de defunto e a deixar ver dentes escandalosamente de ouro? Boca-de-Ouro. O fantasma roxo e amarelo.
O pacato recifense então não resistiu. Espapaçou-se no chão como se tivesse dado nele o tangolomango. Caiu zonzo, desmaiado.
Na calçada. E ali ficou como um trapo, até ser socorrido pelo preto do leite que, madrugador, foi o primeiro a ouvir a história: e, falador como ninguém, o primeiro a espalhá-la.
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Fonte: Assombrações do Recife Velho - Gilberto Freyre. — Rio de Janeiro: Record, 1987.
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