quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Um lobisomem doutor

Contou-me há quase trinta anos, Josefina Minha-Fé, que conheci negra velha, mas ainda bonita — tão bonita que, segundo me confessou ela um dia em voz de segredo, certo ilustre poeta brasileiro, de passagem pelo Recife, tentara conquistá-la sem o menor rodeio lírico, dominado pela mais repentina das paixões, sendo já Josefina mulher cinqüentona e um tanto descadeirada, os quartos meio caídos e os peitos começando a enlanguescer e não mais a vênus hotentotemente culatrona e de busto sólido que  fora no verão da vida e no esplendor do sexo — ter conhecido ainda meninota, no Poço da Panela, um lobisomem. 

“Era um horror, menino!” dizia-me ela na sua voz meio rouca de mulher um tanto homem na fala e em certos modos, mas não nas formas e nos dengos.

“Tomava forma de cão danado, mas tinha alguma coisa de porco. Toda noite de sexta-feira estava nos ermos de Caldereiro, do Monteiro, do Poço da Panela, cumprindo seu fado nas encruzilhadas. Espojando-se na areia, na lama, no monturo. Correndo como um desesperado. Atacando com o furor dos danados a mulher, o menino e mesmo o homem que encontrasse sozinho e incauto, em lugar deserto. Chegando atrevidamente até perto da casa de José Mariano para espantar Ioiô e o irmão, meninotes brancos.”

Até que um dia atacou o lube a própria Josefina, que era então negrota gorda e redonda de seus 13 anos. E não se chamava ainda Minha-Fé.  Ao contrário: havia quem a chamasse “Meu Amor” e até “Meus Pecados” — Josefina Meus Pecados — arranhando com a malícia das palavras sua virgindade de moleca de mucambo. 

E quem assim a chamava não se pense que era homem à-toa, porém mais de um doutor.  José Mariano, este às vezes vinha à porta da casa senhoril, de chambre e chinelo, olhar rio e conversar com os vizinhos.  E quando Josefina passava, perguntava-lhe, brincalhão, se ia jogar no bicho.  Ou qualquer coisa assim.

Saíra Josefina para comprar na venda do português azeite de lamparina para os santos.  Não é que os santos estavam naquela noite sem azeite para sua luz?

Não se lembrou a negrota descuidada de que era noite de sexta-feira e noite escura. Chuvosa, até. José Mariano devia estar dentro de casa, lendo os jornais. Dona Olegarinha, costurando. Os meninos, estudando.

Tão despreocupada foi Josefina, caminhando da casa, que era um mucambo de beira de rio, para a venda, ao pé dos sobrados dos lordes, que nem pensou em lobisomem a se espojar em encruzilhadas, batendo as orelhas grandes como se fossem matracas em procissão de Senhor Morto.

Lobisomem era assombração. E assombração parecia a Josefina, já menina-moça, conversa de negra velha e feia, de que negra nova e bonita não devia fazer caso.

E Josefina sabia que era bonita além de negra em flor. Só pensava em ir a festa, fandango, pastoril, pagode. Em dançar de contramestra e vestida de encarnado no pastoril do Poço que era então um dos melhores do Recife. A mãe é que não deixava.

Nada de filha sua em pastoril de rua ou vestida de encarnado. A mãe de Josefina fora escrava dos Baltar, era católica, apostólica e romana e tinha horror a Exu. A Exu e a encarnado vivo.

Ouvira Josefina falar no lobisomem do Poço que vinha assustando até homens valentes.   Que correra atrás de um canoeiro até o rapaz jogar-se desesperado no rio gritando pela mãe e pelo padrinho. Desesperado e vencido pela catinga do Amarelo.
 
Mas quem sabe se o canoeiro não estava um tanto encachaçado e correra de um boi pensando que corria de lobisomem?

Seguia assim Josefina para a venda, quase sem medo de lobisomem nem de fantasma, quando, no meio do caminho, sentiu de repente que junto dela parava um não-sei-quê alvacento ou amarelento, levantando areia e espadanando terra; um não-sei-quê horrível; alguma coisa de que não pôde ver a forma; nem se tinha olhos de gente ou de bicho.  Só viu que era uma mancha amarelenta; que fedia; que começava a se agarrar como um grude nojento ao seu corpo. Mas um grude com dentes duros e pontudos de lobo.  Um lobo com a gula de comer viva e nua a meninota inteira depois de estraçalhar-lhe o vestido.

Foi o que fez o tal lube: estraçalhou o vestido da negrota, que, felizmente, era azul, enquanto ela gritava de desespero. Que a acudissem, pelo amor de Deus. Que a socorresse sua Madrinha, Nossa Senhora da Saúde, que era sua fé! 

“Minha Madrinha!” “Minha Madrinha! Minha Fé! Minha Fé!”

Foi o que salvou Josefina: foi ter gritado pela Senhora da Saúde, da qual o lobisomem, amarelo de todas as doenças e podre de todas as mazelas, tinha mais medo do que do próprio Nosso Senhor.

Aos gritos da negrota, acudiram os homens que estavam à porta da venda. Inclusive, o português que, não acreditando em bruxas, passou a acreditar em lobisomem.

A negra foi encontrada com o vestido azul-celeste em pedaços. Metade do corpo de fora. Os peitos de menina-moça arranhados. Afilhada de Nossa Senhora, só vestia azul. Azul-claro, azul-celeste, azul-marinho, azul-escuro, mas só e sempre azul. 

Nada de encarnado que, para sua mãe, era cor de vestido de mulher da vida. Pois havia então muito quem pensasse ser o vermelho cor do pecado; e como tal era evitado pelas mães nos vestidos das filhas virgens ou moças.  

Isto também ouvi de Josefina Minha-Fé — que desde a aventura com o lobisomem  passou a ser conhecida por Minha-Fé; e, anos depois, de barcaceiros, pescadores e jangadeiros de litoral de Pernambuco e de Alagoas, cujas crenças procurei estudar. 

Explica essa crença dos homens do mar (crença de origem talvez moura e talvez trazida ao Brasil por algarvios) — a de ser o azul cor agradável a Nossa Senhora e o encarnado, desagradável —, tanta barcaça pintada de azul ou de verde: homenagem à Virgem e resguardo dos homens não contra os lobisomens amarelentos, que estes são todos da terra e não vão às águas de mar, mas contra as sereias que povoam os mares e temem, segundo alguns, o azul, mas não o encarnado. Não o vermelho. Nem mesmo o amarelo.

Mas esta não é a história inteira. Falta ainda um trecho que para Josefina era o ponto mais importante da sua aventura. E é que, chamada sua mãe, dias depois, para encarregar-se de lavar a roupa de certo doutor de sobrado do Poço da Panela, um bacharelzinho pálido e de pince-nez que não gostava de José Mariano e dizia ter mais raiva de negro do que de macaco, descobriu que no meio da roupa suja do branco estava mais de um pedaço do vestidinho azul da filha. 

E reparando bem, viu a preta velha que o doutor branco, em vez de branco ou apenas pálido, era homem quase sem cor: de um amarelo de cadáver velho. Soube depois que vivia tomando remédio — ferro e mais ferro — para ganhar sangue e cor de gente viva. Remédio de botica e remédio do mato, feito por mandingueiro ou caboclo.

Que estava morando no Poço justamente por isto: para tratar-se com os banhos que tinham fama de milagrosos e atraíam romeiros de quase Pernambuco todo para a sombra de Nossa Senhora da Saúde do Poço da Panela.

Não sei se o doutor branco conseguiu curar-se de seu mal; se Nossa Senhora da Saúde foi boa ou clemente para o bacharel infeliz; se acabou com o seu fado de toda sexta-feira “virar lobisomem” e correr atrás de mulheres, de meninos e até de  homens. Especialmente atrás de mulheres virgens.

O que sei é que para Josefina Minha-Fé não havia dúvida. O lobisomem que lhe atacara o corpo virgem de afilhada de Nossa Senhora fora o tal doutor de cartola e croisé. Cartola, croisé, pince-nez e rubi no dedo magro. O lobisomem era ele: pecador terrível  que, para cumprir seu fado, tomava toda noite de sexta-feira aquela forma hedionda e saía a correr pelos matos, pelos caminhos desertos, pelos ermos, estraçalhando quem encontrasse sozinho. Principalmente mulher e menino. Mulher virgem. Menina-moça como Minha-Fé. 

E tanto como o Cabeleira (que talvez tenha sido também lobisomem e não simples bandido), o Cabeleira do

Fecha porta, Rosa
Cabeleira eh-vem  
Pegando mulheres  
Meninos também,  
      

o bacharel pálido do Poço tornou-se, por algum tempo, o terror da gente pobre, moradora nos mucambos daquelas margens do Capibaribe, de águas protegidas por Nossa Senhora da Saúde e por algum tempo alegradas pela presença de outro bacharel, este muito amigo do povo miúdo: José Mariano.
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Fonte: Assombrações do Recife Velho - Gilberto Freyre. — Rio de Janeiro:  Record, 1987.

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