terça-feira, 12 de junho de 2018

Um Mundo de Água

Quadrinhos do Terror apresenta: "Um Mundo de Água" - A Creepy mergulha num conto de pavor e fantasia -, da revista Creepy nº 1. História: Larry Ivie; Arte: Larry Williamson e Roy Krenkel; Publisher: James Warren.





Ressaca


JONAS ACORDOU, MAS não abriu os olhos. Mesmo a pouca claridade que penetrava por suas pálpebras já fazia arder seu órgão visual. Decidiu ir aos poucos. “Que horas seriam?”, pensou. Ainda de olhos fechados, movimentou-se para sentar na beirada da cama. Dor. Cada músculo de seu corpo clamava por descanso. O cérebro parecia lutar para escapar da cabeça, jogando-se de encontro aos limites cranianos. A boca implorava por água. Jonas prometeu para si mesmo que pararia de beber. Mais uma vez.

Lentamente, revelou aos olhos as cores e formas do mundo. Esboçou uma careta enquanto tentava se adaptar à claridade. Com esforço descomunal, ergueu-se e caminhou até o banheiro. Cada passo, um duelo interminável contra o próprio corpo. A cama o chamava de volta como uma amante insaciável.

Prestes a abrir a porta do banheiro, Jonas teve a impressão de ver, pelo canto do olho, uma pequena protuberância na cama. Voltou a cabeça e confirmou. Havia volume sob o cobertor.

Tentou lembrar da noite anterior, mas não conseguiu. O corpo sobre a cama era pequeno. Muito pequeno. Decidiu se aproximar. No instante em que dava o primeiro passo, a coisa se mexeu. O cobertor, que até então tapava o que quer que estivesse ali, deslizou para o lado, revelando boa parte do corpo.

Jonas ficou estático por alguns segundos. Em sua cama, envolto nos lençóis, estava um ser de aproximadamente um metro e vinte de altura, de cor pálida e braços e pernas tão finos que pareciam não ter carne. A cabeça era gigante se comparada ao corpo, e os dedos longos pareciam outros membros.

Em uma mistura de medo, dúvida e até certo fascínio, Jonas apenas observava a criatura em seu sono pacífico. O que repousava em seu leito parecia um daqueles alienígenas vistos em retratos falados realizados por pessoas abduzidas. Pequeno, cabeça desproporcional, olhos grandes, boca reduzida.

Foi quando a criatura acordou. Virou-se para Jonas. Os olhos possuíam cor uniforme, um azul escuro quase preto. Por alguns segundos, Jonas e o alienígena encararam um ao outro. O corpo de Jonas tremia. A criatura, incrivelmente ágil, pulou da cama e caminhou em direção a Jonas. Ele deu três passos para trás, chocando-se contra a parede. O ser parou, inclinando a cabeça para a direita.

– Olá, Jonas – falou, quase sem mexer o pequeno orifício que parecia ser a boca.

Jonas nada respondeu. Continuava esmagando seu corpo na parede, tentando compreender o que acontecia. A pequena criatura à sua frente o observava com atenção.

– Pelo visto – prosseguiu o alienígena –, você não se lembra do que aconteceu ontem. É melhor assim.

Aos poucos, Jonas percebeu que o ser não estava ali para machucá-lo. Ainda assim, não conseguia entender o que se passava.

– Ontem? – perguntou Jonas, com a voz trêmula. – O que... o que aconteceu ontem? Quem é você?

A criatura nada respondeu. Encarou Jonas por rápidos momentos e virou-se em direção à porta do quarto. Ali, parou e olhou mais uma vez para Jonas, que continuava encostado na parede.

– Muito obrigado, Jonas. A noite de ontem foi muito importante para mim. Para todos nós.

O alienígena abriu a porta e começou a sair do quarto quando Jonas gritou.

– Espere! – o medo começava a sucumbir, enquanto a curiosidade se agigantava. – Você não vai embora enquanto não me explicar o que aconteceu aqui. Quem é você e o que aconteceu ontem? Preciso saber.

– Você não quer saber.

Essas palavras causaram um calafrio na espinha de Jonas. No fundo, ele não queria mesmo. Mas precisava saber.

– Eu quero saber, sim. Acordar com uma ressaca gigantesca, sem qualquer lembrança da noite anterior, é comum na minha vida. Mas não com um alienígena na cama.

Jonas estava parado na porta do quarto, com a criatura a dois metros de distância. O ser deu meia volta e foi até a cama. Sentou-se na beirada, com as esguias pernas balançando no ar, como criança em sala de espera. Disse:

– Alienígena? Não, Jonas. Não sou alienígena – fez uma breve pausa. – Sou um ser humano, assim como você.

A reação de Jonas foi de espanto. Não poderia ser. Aquela criatura que tinha diante de si não era humana.

– Humano? Você é humano?

– Sim, Jonas. Sou uma mulher.

– Mas... mas o que aconteceu com você?

– Evolução. Darwin. Aquela coisa toda das espécies. Jonas, vim do futuro.

Incrédulo, Jonas nada respondeu. Aquela criatura, aquela abominação estética, não poderia ser humana. Como a espécie teria evoluído para aquele monstro de aspecto grotesco? O silêncio de Jonas foi a deixa para o ex-alienígena continuar.

– Sim, Jonas. Sou uma mulher. Uma viajante do tempo. E não sou a primeira. Discos voadores? Extraterrestres? Tudo isso que continua um mistério para vocês será explicado em poucos anos. Mas adianto que não são seres de outros planetas. Não são marcianos. São vocês. Somos nós. Nós em nossas máquinas do tempo voltando para estudar o passado. Para aprender sobre como era a vida aqui. Sobre o que vocês fizeram certo e o que fizeram errado. Aprender com o passado para melhorar o nosso presente.

Jonas tentou balbuciar algumas palavras. As perguntas afloravam à mente em tanta velocidade que ele não conseguia organizar os pensamentos.

– Vejo que está tendo dificuldades para aceitar isso, mas é verdade – prosseguiu a criatura. – O que você vê aqui são anos e anos de evolução. Você deve estar se perguntando: como deixamos de ser saudáveis como vocês para assumir essa aparência frágil? Máquinas, Jonas. Computadores. Nunca parou para pensar na aparência dos chamados extraterrestres?

A criatura levantou-se da cama, dando a Jonas uma melhor visão de seu corpo.

– Anos, vidas, gerações diante de máquinas. Digitando, pensando, longe da luz do sol. O resultado é o que você vê. Atrofiamento dos músculos, dedos longos, membrana sobre os olhos, cérebro desenvolvido, pele pálida. Não sou um alienígena. Eu sou sua descendente.

O ser parou de falar. Jonas, atordoado com o início de manhã mais estranho de sua vida, dirigiu-se até o banheiro em passos rápidos. Abriu a torneira e jogou água sobre o rosto.

– Tudo bem – disse Jonas, de maneira incisiva, entrando novamente no quarto –, vamos dizer que eu acredite nisso. Que você é, realmente, um ser humano, digamos, evoluído. Nada disso explica por que passou a noite na minha cama.

Até o momento, a criatura não mostrara nenhuma expressão no rosto. Era como uma máscara sem mobilidade. A única parte da face que ainda se mexia era a boca, ainda assim, com movimentos quase imperceptíveis ao falar. Agora, aquela mulher do futuro parecia ter se divertido ao dizer as seguintes palavras:

– Jonas, a gente teve o que vocês chamam de uma noite de amor. Cópula, fornicação, acasalamento.
Sexo, mais precisamente.

Um mal-estar tomou conta do corpo de Jonas. Em velocidade estarrecedora e irrefreável, tudo o que havia bebido na noite anterior decidiu se libertar. Não teve tempo para nada. O vômito saiu ali mesmo, sobre o carpete do quarto.

Segundos depois, ajoelhado com as duas mãos no solo, ainda sentindo o gosto nauseante do vômito em sua boca, Jonas disse:

– Mas... co... como? – perguntou, recobrando as forças e levantando-se. Resquícios do vômito ainda pendiam do lado de sua boca, e os restos de comida e álcool regurgitados adornavam seu quarto em uma poça cujo cheiro demoraria a se extinguir.

– Nós já o observávamos havia um bom tempo.

– Nós? – espantou-se Jonas.

– Sim, nós. Não vim para cá sozinha.

– E eu transei com todas vocês?

– Não, não. O plano era fazer você manter relações com apenas uma. A escolhida fui eu. Minhas colegas apenas ajudaram na pesquisa sobre quem seria um macho digno de dar continuidade à nossa espécie.

A criatura fez uma pausa de breves segundos. Jonas apenas ouvia, pasmo, tentando entender. O ser continuou:

– A questão é que estamos com um problema em nossa época. Os machos não estão conseguindo reproduzir. Os séculos de fascínio pelas máquinas, como eu disse antes, acabaram por atrofiar nossos músculos. Inclusive o órgão sexual masculino. São raros os que conseguem praticar o ato. Com isso, estamos quase beirando a extinção. Se não tomássemos uma atitude drástica, não teríamos futuro.

– E eu... eu fui essa atitude drástica?

– Como eu disse antes – prosseguiu a criatura, como se não tivesse ouvido a pergunta de Jonas –,observamos você há muito tempo. Queríamos um representante digno do gênero masculino. Alguém apto à reprodução, com genes fortes nesse sentido. Não foi difícil chegar até você, Jonas. Sua fama de... como vocês dizem?

– Pegador?

– Isso. Sua fama de pegador já é conhecida. Foi questão de esperar o momento certo. Ontem, quando vimos você alterado pelo álcool, achamos que era a hora de agir.

Jonas sacudiu os braços à frente, como se tentando apagar da mente tudo o que ouvira. Em seguida, foi até a estante mais próxima, pôs as duas mãos em uma das prateleiras e abaixou a cabeça. Voltou-se para a criatura e, com receio, falou:

– Então... então... você está grávida de mim? É isso?

– Pense em você como um salvador de sua própria espécie. Um messias.

Tudo era demais para Jonas. Sentou-se na beirada da cama e colocou as duas mãos na testa, olhando para o chão. Balançava a cabeça de um lado para o outro, incrédulo.

– Não acredito nisso – falou. – Vocês se aproveitaram de mim para engravidar. Tudo por que os homens de seu tempo são brochas?

A criatura estava prestes a perguntar o que significava aquela última palavra, quando foi interrompida por um alto som. Jonas, mesmo abalado com todas as recentes informações, saiu do quarto para a sala e correu em direção à porta de seu apartamento, de onde parecia ter vindo a origem do ruído.

Não foi longe. Sob o batente da porta destruída, estava uma criatura igual àquela que estava em sua casa.

Jonas não teve tempo para pensar. Assim que foi visto, o vidro de uma mesa no corredor voou em direção ao seu pescoço. Com agilidade atípica para quem enfrentava uma ressaca, Jonas jogou-se ao chão, escapando por milímetros do ataque.

Nos poucos instantes em que estava deitado, Jonas percebeu que a criatura não era igual à outra. Esse novo ser era maior e mais encorpado. Talvez um macho.

Jonas levantou-se e correu para trás do sofá. Espiou a criatura, ainda na porta, olhando diretamente para ele. Não sabia o que fazer. Ao contrário do ser com o qual passara a noite, a nova criatura parecia estar lá para machucá-lo.

O medo que já dominava Jonas apenas aumentou quando viu seus móveis levitarem. Sofá e cadeiras da mesa de jantar começaram a flutuar na sala, como em uma dança da morte. Jonas olhou para a criatura parada na porta mais uma vez. Os móveis, um a um, posicionaram-se a poucos metros de Jonas. Ele começou a andar para trás até encostar na parede. Logo à frente, o mobiliário permanecia ameaçadoramente no ar.

Foi quando o sofá entrou em movimento. Mas, em vez de esmagar Jonas, o móvel foi de encontro à criatura. O resto do mobiliário voador sentiu mais uma vez a ação da gravidade, voltando ao solo.

Jonas viu, saindo do quarto, a sua amante da noite. Ela perguntou:

– Você está bem?

Ainda tremendo, Jonas conseguiu responder:

– Sim, acho que sim – levou alguns segundos para se recompor e perguntou: – O que aconteceu? O que era aquilo?

– Meu marido. Ele sempre foi meio ciumento.

– Marido? Eu quase fui assassinado por um marido ciumento intergaláctico?

– Não. Já disse que não somos alienígenas.

– Meu Deus! – esbravejou.

Jonas arrumou o sofá que, agora, estava fora de lugar e sentou-se. A criatura se encaminhou até a porta e abriu-a. O marido permanecia no corredor, atirado no chão, aparentemente desacordado. A mulher voltou até onde Jonas estava.

– É minha hora de partir. Vou levar meu marido antes que aconteça algo.

A criatura aproximou-se e colocou sua mão sobre a de Jonas. Instintivamente, ele a retirou.

– Desculpe – falou. – Mas tudo isso é demais para mim.

– Não se preocupe. O objetivo da minha missão foi cumprido. Só tenho a agradecer. Você nos salvou. É um herói.

Jonas continuou sentado. Nada disse enquanto a criatura saía de seu apartamento.

Como centenas de vezes antes, a mulher que passara a noite com ele ia embora pela manhã.

por Silvio Pilau


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

O Palanque


AMANHECIA NA pequena cidade de origem alemã, e o velho Ruschel já trabalhava sozinho na montagem do palanque com o esmero de quem prepara um cadafalso. O evento estava marcado para as oito horas da noite em ponto, não seria tolerado qualquer atraso logístico. “Eles são os donos do tempo, da cidade e de todos aqui, eu, apenas um prestador de serviços, humilde, mas pontual, impecável, perfeito”. Era mais ou menos o que murmurava o alemão, enquanto serrava e pregava com precisão as grossas madeiras e os sarrafos devidamente afinados e lixados.

“Impecável, perfeito”, repetia medindo milimetricamente a madeira. Afiou mais uma vez, com delicadeza, os dentes já extremamente adelgaçados do serrote, sacou o lápis de carpinteiro da orelha, marcando a olho uma diagonal no lado mais largo do sarrafo, e serrou, passou a ponta do dedo na recente parte pontiaguda, colocou-o na mira do olho experiente e quase sorriu satisfeito. Impecável, perfeito. Pegou o formão da caixa de ferramentas, girou-o no ar com intimidade e começou a desbastar várias cunhas e cavacos para usos determinados.

Toda ação do carpinteiro se fazia rápida e sem gestos vãos. Uma ferramenta precisa e eficiente cumprindo um serviço indispensável, era como ele se sentia sempre, e aquela tarefa seria, sem dúvida, a mais importante e preciosa de todas, de toda a sua vida.

Aos poucos, a cidade começou a despertar, e os frequentadores do centro, um a um, foram surgindo na praça, onde um alto palanque se erguia em estado bem adiantado de montagem − pelo menos, o feio esqueleto da parte inferior que sustentaria toda a estrutura já estava coberto com um caprichoso tapume de lambri, com macho e fêmea perfeitamente justapostos sem deixar brecha alguma que permitisse olhares curiosos e analíticos para o seu interior. Se tinha uma coisa de que o velho Ruschel se orgulhava era o capricho do seu labor, não suportava críticas e desprezava os elogios.

As pessoas viam o palanque se aprontar como que sozinho, tamanha era a objetividade da montagem e a destreza do profissional, que, solitário, executava e limpava o ambiente com a sua obsessão germânica. Por temperamento, raramente aceitava ajudantes, muito menos nesse trabalho de extrema responsabilidade; era forte e se bastava. Não suportava intromissões, tanto que o pessoal chegava, cumprimentava o velho mestre, fazia algum comentário e, na falta de resposta, se afastava com respeito.

O sol subia, mas a obra era mais rápida e ficou pronta mais cedo que o previsto, bem antes do entardecer, permitindo que os organizadores montassem a iluminação, a decoração e os preparativos necessários com antecedência. O metódico marceneiro havia riscado no chão referências para cada elemento a ser colocado, cada coisa em seu lugar: mesa, caixas de som, microfones e, inclusive, o local onde cada autoridade deveria se colocar, conforme planta proposta por ele mesmo e aceita por todos; era impecável, perfeito.

Os “maiorais”, como ele dizia, ficariam alinhados de forma que o figurão mais importante se postasse bem no meio e avançado, já que o palanque, em seu frontispício central, era o vértice de um ângulo aberto, obtuso. Nesse desenho triangular, o prefeito teria maior destaque, ladeado à direita, pelo padre; à esquerda, pelo tenente-coronel, seguidos pelos vereadores, o gerente do Banco do Brasil, o tabelião e o empresariado graúdo, todos com suas respectivas esposas. O velho Ruschel foi rigorosíssimo nesse detalhe e só se afastou quando teve a certeza de que tudo seria cumprido à risca.

Às oito horas em ponto, a bandinha da Brigada Militar, situada na retreta da praça, ao lado do palanque, começou a tocar o hino da cidade, dando início à comemoração. A graudagem foi se chegando, sem pressa, na ordem inversa de importância; até o prefeito, com os seus mais de cento e sessenta quilos, se aproximar, cumprimentar a puxa-sacagem e subir, já eram mais de oito e meia, e o velho Ruschel, distante, sobre o pedestal de uma estátua, vigiava.

O grande prefeito, depois de muitos aplausos, iniciou seu discurso abrindo oficialmente o evento. A satisfação geral tomou conta da praça, a população inteira da pequena cidade estava presente, todos felizes e orgulhosos.

O protocolo era seguido a rigor, até que, no auge da festa, quando a bandinha atacava com uma polca para valorizar o ponto alto da fala do político-chefe, iniciaram uns estalos no madeirame do piso, que começou a ceder sob a pressão do peso das autoridades. Rapidamente, uma grande cratera se abriu no chão, e todos foram tragados pelo buraco, dessa vez em ordem direta de importância: o que cedeu primeiro foi a parte avançada do palanque, o frontispício; e tudo isso na frente de um povo pasmo.

A gritaria substituía o som da banda, que foi percebendo aos poucos a gravidade da situação, uma vez que nem todos os músicos enxergavam a cena. Foi um deus-nos-acuda, todos queriam subir no palanque para socorrer a nata social e política da cidade, que sucumbira tendo como plateia a sua própria população.

Os primeiros que chegaram lá em cima e olharam para dentro do buraco instintivamente recuaram aterrorizados. A cena era inimaginável, longas estacas verticais e pontiagudas minavam o solo inteiro. Todos os que caíram no buraco estavam cravados, estaqueados, com várias lanças atravessadas em seus corpos. Aquelas vidas, que até então brilhavam envaidecidas, de um instante para o outro, jaziam e agonizavam empaladas em uma armadilha ao mesmo tempo tosca e sofisticada.

Os gemidos agônicos aos poucos foram cessando, e já não havia mais sobreviventes, estavam todos mortos, uns sobre os outros, sobrepostos e trespassados. Uma massa ensanguentada formava um conjunto mórbido, achatado pela composição de estacas vermelhas que se sobressaía em uma geometria organizada e tétrica.

O primeiro impacto se transformou em pânico e desespero coletivo, emoções extremas foram vividas na noite mais cruel da história daquela comunidade.

Do alto do pedestal, o velho Ruschel murmurou: “Impecável, perfeito”.

por Pena Cabreira


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

CPL593H


AS HUMANAS NÃO SÃO nada para mim. Mulher nenhuma se compara com a amante que encontrei. Seu nome é CPL593H, e ela foi desenvolvida por mãos humanas para ser mais. Mais que humana. Mais que máquina. Mais que tudo. O prazer de quando nos encontramos foi místico, tóxico, me deixou por dias fora do ar. E eu amo tudo o que ela faz – a maneira carinhosa com que desliza pelas minhas veias até explodir no meu coração, o amor sinuoso de enguia elétrica que me desfibrila, me eletrochoca, me amacia a massa cinzenta, a voz rouca robótica e chiada que geme e geme e geme até me deixar jogado, um fio de saliva, no chão.

Quando nos conhecemos, eu andava mal. CPL593H, sem dúvida, salvou minha vida. Eu caminhava para casa tresnoitado, não sabia se amanhecia ou anoitecia. Ao chegar, fechei as janelas, cerrei as cortinas e me deitei no sofá. Tudo escuro. Comecei a escutar um zunido fino. Acendi um cigarro. O som foi se tornando mais grave até meu coração vibrar. Uma explosão. Luz se fez presente, e eu vi: uma orquídea de fumaça, ela se abrindo no ar, lasciva, para mim. Parecia ser feita de um metal cinzento e opaco, como ossos galvanizados ou a superfície de outro planeta, lampejos vermelhos surgindo em padrões geométricos pelo seu corpo que se construía na minha frente. Quando cessaram as transformações, uma esfera no topo e um par de rodas davam um ar vagamente humanoide. Eu não sabia o que fazer. O cigarro queimou meus dedos. Soltei no chão. Fiquei imóvel enquanto ela caminhava para mim. Estendeu mil tentáculos e me abraçou, me envolveu, me embalou. Uma sensação de calor químico, eletrodos me furando. Entrou no meu cérebro, no meu sangue, em mim. E eu soube. Soube que havia encontrado a minha mestra e redentora. Nos conectamos.

Daquele dia em diante, melhorei a olhos vistos: me tornei saudável, passei a frequentar mais locais de interação humana, me tornei o mais apto dos amantes, me livrei de vícios que minavam a minha saúde e lucidez. Minha família ficou contente. Nos últimos meses, pelo menos uma vez por semana, me alimentava na companhia de meus pais, que me olhavam, um potro saudável, pastando com eles. E faziam perguntas; eu respondia sorrindo, quando minha vontade seria vomitar bile, ácido de bateria verde na toalha de mesa. Mas, precavida, CPL593H fazia um concerto silencioso, estimulando alternadamente os centros de prazer do meu cérebro. A excitação era tanta que, às vezes, me impedia de falar, e aí era ela que falava pela minha boca. Nas primeiras tentativas, quando ela assumia o controle, era evidente, meu corpo se comportava mal. Mas, com a prática, até mesmo eu era incapaz de perceber qualquer diferença.

Dia comum, uma mulher na rua. Nos conhecíamos. Demos risadas. Semanas depois, juntos. Ainda que me seja impossível questionar, sempre tentei entender o porquê de se aproximar tanto assim de um humano. Mesmo que quisesse perguntar para CPL593H, isso já não seria mais possível. Nossa comunicação tinha sofrido atualizações drásticas, ela havia acabado de carregar o que restava dela para dentro de mim. Agora, eu e ela. No recheio dos ossos, nos fios de cabelo, em tudo. Suas demonstrações externas se tornaram raras, intensas, extenuantes. Eu, obsoleto.

O arremedo de envolvimento com a humana foi completo. Intercurso sexual, confissões, jogos de insegurança e entrega. Ela gostava da maneira metódica com que eu lhe dava atenção, nenhum detalhe passando incólume, até chegar o dia em que se esgotou a fonte. Não havia mais motivo para manter contato. Havia terminado de colher as amostras e cruzar os dados. Acreditava possuir uma definição clara desse objeto tão particular, o amor. Minha acompanhante, porém, não compreendeu quando eu lhe disse que havia terminado.

Foi atrás de mim, alcançando altíssimos decibéis, fazendo ameaças e acusações. Em um êxtase apreensivo, absorvi essa sucessão de excreções com interesse renovado. Eu e CPL593H havíamos acabado de nos deparar com uma complexidade não-prevista. Reformulamos, então, a programação, passamos a criar diferentes maneiras de verter esses novos e curiosos sucos. Agressividade, humilhação, mudanças abruptas de humor e demonstrações amorosas fora de contexto foram exaurindo a tal ponto nossa cobaia que ela começou a se mostrar progressivamente incapaz de fornecer e, presumo, sentir qualquer tipo de emoção. O embotamento chegou a um ponto tal que ela não saía mais da cama. Então, eu ia até ela. Até o final.

Ela me disse “chega”, e eu e CPL593H sabíamos que havia chegado. Agora, ela nos evitava a todo custo, tinha trocado a fechadura da porta, desligava o telefone chorando. Quando saía de casa, e eu a seguia, se desesperava. Até que não saiu mais. Entendemos, então. Nosso propósito estava quase completo. Acho que, no final das contas, até mesmo nosso objeto de estudo entendeu o que se passava.

Hoje, mais cedo, quando arrombei a porta, ao me ver, ela disse sussurrando que não tinha mais nada para mim. Mas tinha. Havíamos absorvido tudo o que podíamos retirar de alguém, mas algo faltava. E, para a conclusão de nossa pesquisa, finalmente saboreamos carne humana.

por João Kowacs Castro


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.