terça-feira, 12 de junho de 2018

Ressaca


JONAS ACORDOU, MAS não abriu os olhos. Mesmo a pouca claridade que penetrava por suas pálpebras já fazia arder seu órgão visual. Decidiu ir aos poucos. “Que horas seriam?”, pensou. Ainda de olhos fechados, movimentou-se para sentar na beirada da cama. Dor. Cada músculo de seu corpo clamava por descanso. O cérebro parecia lutar para escapar da cabeça, jogando-se de encontro aos limites cranianos. A boca implorava por água. Jonas prometeu para si mesmo que pararia de beber. Mais uma vez.

Lentamente, revelou aos olhos as cores e formas do mundo. Esboçou uma careta enquanto tentava se adaptar à claridade. Com esforço descomunal, ergueu-se e caminhou até o banheiro. Cada passo, um duelo interminável contra o próprio corpo. A cama o chamava de volta como uma amante insaciável.

Prestes a abrir a porta do banheiro, Jonas teve a impressão de ver, pelo canto do olho, uma pequena protuberância na cama. Voltou a cabeça e confirmou. Havia volume sob o cobertor.

Tentou lembrar da noite anterior, mas não conseguiu. O corpo sobre a cama era pequeno. Muito pequeno. Decidiu se aproximar. No instante em que dava o primeiro passo, a coisa se mexeu. O cobertor, que até então tapava o que quer que estivesse ali, deslizou para o lado, revelando boa parte do corpo.

Jonas ficou estático por alguns segundos. Em sua cama, envolto nos lençóis, estava um ser de aproximadamente um metro e vinte de altura, de cor pálida e braços e pernas tão finos que pareciam não ter carne. A cabeça era gigante se comparada ao corpo, e os dedos longos pareciam outros membros.

Em uma mistura de medo, dúvida e até certo fascínio, Jonas apenas observava a criatura em seu sono pacífico. O que repousava em seu leito parecia um daqueles alienígenas vistos em retratos falados realizados por pessoas abduzidas. Pequeno, cabeça desproporcional, olhos grandes, boca reduzida.

Foi quando a criatura acordou. Virou-se para Jonas. Os olhos possuíam cor uniforme, um azul escuro quase preto. Por alguns segundos, Jonas e o alienígena encararam um ao outro. O corpo de Jonas tremia. A criatura, incrivelmente ágil, pulou da cama e caminhou em direção a Jonas. Ele deu três passos para trás, chocando-se contra a parede. O ser parou, inclinando a cabeça para a direita.

– Olá, Jonas – falou, quase sem mexer o pequeno orifício que parecia ser a boca.

Jonas nada respondeu. Continuava esmagando seu corpo na parede, tentando compreender o que acontecia. A pequena criatura à sua frente o observava com atenção.

– Pelo visto – prosseguiu o alienígena –, você não se lembra do que aconteceu ontem. É melhor assim.

Aos poucos, Jonas percebeu que o ser não estava ali para machucá-lo. Ainda assim, não conseguia entender o que se passava.

– Ontem? – perguntou Jonas, com a voz trêmula. – O que... o que aconteceu ontem? Quem é você?

A criatura nada respondeu. Encarou Jonas por rápidos momentos e virou-se em direção à porta do quarto. Ali, parou e olhou mais uma vez para Jonas, que continuava encostado na parede.

– Muito obrigado, Jonas. A noite de ontem foi muito importante para mim. Para todos nós.

O alienígena abriu a porta e começou a sair do quarto quando Jonas gritou.

– Espere! – o medo começava a sucumbir, enquanto a curiosidade se agigantava. – Você não vai embora enquanto não me explicar o que aconteceu aqui. Quem é você e o que aconteceu ontem? Preciso saber.

– Você não quer saber.

Essas palavras causaram um calafrio na espinha de Jonas. No fundo, ele não queria mesmo. Mas precisava saber.

– Eu quero saber, sim. Acordar com uma ressaca gigantesca, sem qualquer lembrança da noite anterior, é comum na minha vida. Mas não com um alienígena na cama.

Jonas estava parado na porta do quarto, com a criatura a dois metros de distância. O ser deu meia volta e foi até a cama. Sentou-se na beirada, com as esguias pernas balançando no ar, como criança em sala de espera. Disse:

– Alienígena? Não, Jonas. Não sou alienígena – fez uma breve pausa. – Sou um ser humano, assim como você.

A reação de Jonas foi de espanto. Não poderia ser. Aquela criatura que tinha diante de si não era humana.

– Humano? Você é humano?

– Sim, Jonas. Sou uma mulher.

– Mas... mas o que aconteceu com você?

– Evolução. Darwin. Aquela coisa toda das espécies. Jonas, vim do futuro.

Incrédulo, Jonas nada respondeu. Aquela criatura, aquela abominação estética, não poderia ser humana. Como a espécie teria evoluído para aquele monstro de aspecto grotesco? O silêncio de Jonas foi a deixa para o ex-alienígena continuar.

– Sim, Jonas. Sou uma mulher. Uma viajante do tempo. E não sou a primeira. Discos voadores? Extraterrestres? Tudo isso que continua um mistério para vocês será explicado em poucos anos. Mas adianto que não são seres de outros planetas. Não são marcianos. São vocês. Somos nós. Nós em nossas máquinas do tempo voltando para estudar o passado. Para aprender sobre como era a vida aqui. Sobre o que vocês fizeram certo e o que fizeram errado. Aprender com o passado para melhorar o nosso presente.

Jonas tentou balbuciar algumas palavras. As perguntas afloravam à mente em tanta velocidade que ele não conseguia organizar os pensamentos.

– Vejo que está tendo dificuldades para aceitar isso, mas é verdade – prosseguiu a criatura. – O que você vê aqui são anos e anos de evolução. Você deve estar se perguntando: como deixamos de ser saudáveis como vocês para assumir essa aparência frágil? Máquinas, Jonas. Computadores. Nunca parou para pensar na aparência dos chamados extraterrestres?

A criatura levantou-se da cama, dando a Jonas uma melhor visão de seu corpo.

– Anos, vidas, gerações diante de máquinas. Digitando, pensando, longe da luz do sol. O resultado é o que você vê. Atrofiamento dos músculos, dedos longos, membrana sobre os olhos, cérebro desenvolvido, pele pálida. Não sou um alienígena. Eu sou sua descendente.

O ser parou de falar. Jonas, atordoado com o início de manhã mais estranho de sua vida, dirigiu-se até o banheiro em passos rápidos. Abriu a torneira e jogou água sobre o rosto.

– Tudo bem – disse Jonas, de maneira incisiva, entrando novamente no quarto –, vamos dizer que eu acredite nisso. Que você é, realmente, um ser humano, digamos, evoluído. Nada disso explica por que passou a noite na minha cama.

Até o momento, a criatura não mostrara nenhuma expressão no rosto. Era como uma máscara sem mobilidade. A única parte da face que ainda se mexia era a boca, ainda assim, com movimentos quase imperceptíveis ao falar. Agora, aquela mulher do futuro parecia ter se divertido ao dizer as seguintes palavras:

– Jonas, a gente teve o que vocês chamam de uma noite de amor. Cópula, fornicação, acasalamento.
Sexo, mais precisamente.

Um mal-estar tomou conta do corpo de Jonas. Em velocidade estarrecedora e irrefreável, tudo o que havia bebido na noite anterior decidiu se libertar. Não teve tempo para nada. O vômito saiu ali mesmo, sobre o carpete do quarto.

Segundos depois, ajoelhado com as duas mãos no solo, ainda sentindo o gosto nauseante do vômito em sua boca, Jonas disse:

– Mas... co... como? – perguntou, recobrando as forças e levantando-se. Resquícios do vômito ainda pendiam do lado de sua boca, e os restos de comida e álcool regurgitados adornavam seu quarto em uma poça cujo cheiro demoraria a se extinguir.

– Nós já o observávamos havia um bom tempo.

– Nós? – espantou-se Jonas.

– Sim, nós. Não vim para cá sozinha.

– E eu transei com todas vocês?

– Não, não. O plano era fazer você manter relações com apenas uma. A escolhida fui eu. Minhas colegas apenas ajudaram na pesquisa sobre quem seria um macho digno de dar continuidade à nossa espécie.

A criatura fez uma pausa de breves segundos. Jonas apenas ouvia, pasmo, tentando entender. O ser continuou:

– A questão é que estamos com um problema em nossa época. Os machos não estão conseguindo reproduzir. Os séculos de fascínio pelas máquinas, como eu disse antes, acabaram por atrofiar nossos músculos. Inclusive o órgão sexual masculino. São raros os que conseguem praticar o ato. Com isso, estamos quase beirando a extinção. Se não tomássemos uma atitude drástica, não teríamos futuro.

– E eu... eu fui essa atitude drástica?

– Como eu disse antes – prosseguiu a criatura, como se não tivesse ouvido a pergunta de Jonas –,observamos você há muito tempo. Queríamos um representante digno do gênero masculino. Alguém apto à reprodução, com genes fortes nesse sentido. Não foi difícil chegar até você, Jonas. Sua fama de... como vocês dizem?

– Pegador?

– Isso. Sua fama de pegador já é conhecida. Foi questão de esperar o momento certo. Ontem, quando vimos você alterado pelo álcool, achamos que era a hora de agir.

Jonas sacudiu os braços à frente, como se tentando apagar da mente tudo o que ouvira. Em seguida, foi até a estante mais próxima, pôs as duas mãos em uma das prateleiras e abaixou a cabeça. Voltou-se para a criatura e, com receio, falou:

– Então... então... você está grávida de mim? É isso?

– Pense em você como um salvador de sua própria espécie. Um messias.

Tudo era demais para Jonas. Sentou-se na beirada da cama e colocou as duas mãos na testa, olhando para o chão. Balançava a cabeça de um lado para o outro, incrédulo.

– Não acredito nisso – falou. – Vocês se aproveitaram de mim para engravidar. Tudo por que os homens de seu tempo são brochas?

A criatura estava prestes a perguntar o que significava aquela última palavra, quando foi interrompida por um alto som. Jonas, mesmo abalado com todas as recentes informações, saiu do quarto para a sala e correu em direção à porta de seu apartamento, de onde parecia ter vindo a origem do ruído.

Não foi longe. Sob o batente da porta destruída, estava uma criatura igual àquela que estava em sua casa.

Jonas não teve tempo para pensar. Assim que foi visto, o vidro de uma mesa no corredor voou em direção ao seu pescoço. Com agilidade atípica para quem enfrentava uma ressaca, Jonas jogou-se ao chão, escapando por milímetros do ataque.

Nos poucos instantes em que estava deitado, Jonas percebeu que a criatura não era igual à outra. Esse novo ser era maior e mais encorpado. Talvez um macho.

Jonas levantou-se e correu para trás do sofá. Espiou a criatura, ainda na porta, olhando diretamente para ele. Não sabia o que fazer. Ao contrário do ser com o qual passara a noite, a nova criatura parecia estar lá para machucá-lo.

O medo que já dominava Jonas apenas aumentou quando viu seus móveis levitarem. Sofá e cadeiras da mesa de jantar começaram a flutuar na sala, como em uma dança da morte. Jonas olhou para a criatura parada na porta mais uma vez. Os móveis, um a um, posicionaram-se a poucos metros de Jonas. Ele começou a andar para trás até encostar na parede. Logo à frente, o mobiliário permanecia ameaçadoramente no ar.

Foi quando o sofá entrou em movimento. Mas, em vez de esmagar Jonas, o móvel foi de encontro à criatura. O resto do mobiliário voador sentiu mais uma vez a ação da gravidade, voltando ao solo.

Jonas viu, saindo do quarto, a sua amante da noite. Ela perguntou:

– Você está bem?

Ainda tremendo, Jonas conseguiu responder:

– Sim, acho que sim – levou alguns segundos para se recompor e perguntou: – O que aconteceu? O que era aquilo?

– Meu marido. Ele sempre foi meio ciumento.

– Marido? Eu quase fui assassinado por um marido ciumento intergaláctico?

– Não. Já disse que não somos alienígenas.

– Meu Deus! – esbravejou.

Jonas arrumou o sofá que, agora, estava fora de lugar e sentou-se. A criatura se encaminhou até a porta e abriu-a. O marido permanecia no corredor, atirado no chão, aparentemente desacordado. A mulher voltou até onde Jonas estava.

– É minha hora de partir. Vou levar meu marido antes que aconteça algo.

A criatura aproximou-se e colocou sua mão sobre a de Jonas. Instintivamente, ele a retirou.

– Desculpe – falou. – Mas tudo isso é demais para mim.

– Não se preocupe. O objetivo da minha missão foi cumprido. Só tenho a agradecer. Você nos salvou. É um herói.

Jonas continuou sentado. Nada disse enquanto a criatura saía de seu apartamento.

Como centenas de vezes antes, a mulher que passara a noite com ele ia embora pela manhã.

por Silvio Pilau


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

Nenhum comentário: