terça-feira, 12 de junho de 2018

O Palanque


AMANHECIA NA pequena cidade de origem alemã, e o velho Ruschel já trabalhava sozinho na montagem do palanque com o esmero de quem prepara um cadafalso. O evento estava marcado para as oito horas da noite em ponto, não seria tolerado qualquer atraso logístico. “Eles são os donos do tempo, da cidade e de todos aqui, eu, apenas um prestador de serviços, humilde, mas pontual, impecável, perfeito”. Era mais ou menos o que murmurava o alemão, enquanto serrava e pregava com precisão as grossas madeiras e os sarrafos devidamente afinados e lixados.

“Impecável, perfeito”, repetia medindo milimetricamente a madeira. Afiou mais uma vez, com delicadeza, os dentes já extremamente adelgaçados do serrote, sacou o lápis de carpinteiro da orelha, marcando a olho uma diagonal no lado mais largo do sarrafo, e serrou, passou a ponta do dedo na recente parte pontiaguda, colocou-o na mira do olho experiente e quase sorriu satisfeito. Impecável, perfeito. Pegou o formão da caixa de ferramentas, girou-o no ar com intimidade e começou a desbastar várias cunhas e cavacos para usos determinados.

Toda ação do carpinteiro se fazia rápida e sem gestos vãos. Uma ferramenta precisa e eficiente cumprindo um serviço indispensável, era como ele se sentia sempre, e aquela tarefa seria, sem dúvida, a mais importante e preciosa de todas, de toda a sua vida.

Aos poucos, a cidade começou a despertar, e os frequentadores do centro, um a um, foram surgindo na praça, onde um alto palanque se erguia em estado bem adiantado de montagem − pelo menos, o feio esqueleto da parte inferior que sustentaria toda a estrutura já estava coberto com um caprichoso tapume de lambri, com macho e fêmea perfeitamente justapostos sem deixar brecha alguma que permitisse olhares curiosos e analíticos para o seu interior. Se tinha uma coisa de que o velho Ruschel se orgulhava era o capricho do seu labor, não suportava críticas e desprezava os elogios.

As pessoas viam o palanque se aprontar como que sozinho, tamanha era a objetividade da montagem e a destreza do profissional, que, solitário, executava e limpava o ambiente com a sua obsessão germânica. Por temperamento, raramente aceitava ajudantes, muito menos nesse trabalho de extrema responsabilidade; era forte e se bastava. Não suportava intromissões, tanto que o pessoal chegava, cumprimentava o velho mestre, fazia algum comentário e, na falta de resposta, se afastava com respeito.

O sol subia, mas a obra era mais rápida e ficou pronta mais cedo que o previsto, bem antes do entardecer, permitindo que os organizadores montassem a iluminação, a decoração e os preparativos necessários com antecedência. O metódico marceneiro havia riscado no chão referências para cada elemento a ser colocado, cada coisa em seu lugar: mesa, caixas de som, microfones e, inclusive, o local onde cada autoridade deveria se colocar, conforme planta proposta por ele mesmo e aceita por todos; era impecável, perfeito.

Os “maiorais”, como ele dizia, ficariam alinhados de forma que o figurão mais importante se postasse bem no meio e avançado, já que o palanque, em seu frontispício central, era o vértice de um ângulo aberto, obtuso. Nesse desenho triangular, o prefeito teria maior destaque, ladeado à direita, pelo padre; à esquerda, pelo tenente-coronel, seguidos pelos vereadores, o gerente do Banco do Brasil, o tabelião e o empresariado graúdo, todos com suas respectivas esposas. O velho Ruschel foi rigorosíssimo nesse detalhe e só se afastou quando teve a certeza de que tudo seria cumprido à risca.

Às oito horas em ponto, a bandinha da Brigada Militar, situada na retreta da praça, ao lado do palanque, começou a tocar o hino da cidade, dando início à comemoração. A graudagem foi se chegando, sem pressa, na ordem inversa de importância; até o prefeito, com os seus mais de cento e sessenta quilos, se aproximar, cumprimentar a puxa-sacagem e subir, já eram mais de oito e meia, e o velho Ruschel, distante, sobre o pedestal de uma estátua, vigiava.

O grande prefeito, depois de muitos aplausos, iniciou seu discurso abrindo oficialmente o evento. A satisfação geral tomou conta da praça, a população inteira da pequena cidade estava presente, todos felizes e orgulhosos.

O protocolo era seguido a rigor, até que, no auge da festa, quando a bandinha atacava com uma polca para valorizar o ponto alto da fala do político-chefe, iniciaram uns estalos no madeirame do piso, que começou a ceder sob a pressão do peso das autoridades. Rapidamente, uma grande cratera se abriu no chão, e todos foram tragados pelo buraco, dessa vez em ordem direta de importância: o que cedeu primeiro foi a parte avançada do palanque, o frontispício; e tudo isso na frente de um povo pasmo.

A gritaria substituía o som da banda, que foi percebendo aos poucos a gravidade da situação, uma vez que nem todos os músicos enxergavam a cena. Foi um deus-nos-acuda, todos queriam subir no palanque para socorrer a nata social e política da cidade, que sucumbira tendo como plateia a sua própria população.

Os primeiros que chegaram lá em cima e olharam para dentro do buraco instintivamente recuaram aterrorizados. A cena era inimaginável, longas estacas verticais e pontiagudas minavam o solo inteiro. Todos os que caíram no buraco estavam cravados, estaqueados, com várias lanças atravessadas em seus corpos. Aquelas vidas, que até então brilhavam envaidecidas, de um instante para o outro, jaziam e agonizavam empaladas em uma armadilha ao mesmo tempo tosca e sofisticada.

Os gemidos agônicos aos poucos foram cessando, e já não havia mais sobreviventes, estavam todos mortos, uns sobre os outros, sobrepostos e trespassados. Uma massa ensanguentada formava um conjunto mórbido, achatado pela composição de estacas vermelhas que se sobressaía em uma geometria organizada e tétrica.

O primeiro impacto se transformou em pânico e desespero coletivo, emoções extremas foram vividas na noite mais cruel da história daquela comunidade.

Do alto do pedestal, o velho Ruschel murmurou: “Impecável, perfeito”.

por Pena Cabreira


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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