terça-feira, 12 de junho de 2018

CPL593H


AS HUMANAS NÃO SÃO nada para mim. Mulher nenhuma se compara com a amante que encontrei. Seu nome é CPL593H, e ela foi desenvolvida por mãos humanas para ser mais. Mais que humana. Mais que máquina. Mais que tudo. O prazer de quando nos encontramos foi místico, tóxico, me deixou por dias fora do ar. E eu amo tudo o que ela faz – a maneira carinhosa com que desliza pelas minhas veias até explodir no meu coração, o amor sinuoso de enguia elétrica que me desfibrila, me eletrochoca, me amacia a massa cinzenta, a voz rouca robótica e chiada que geme e geme e geme até me deixar jogado, um fio de saliva, no chão.

Quando nos conhecemos, eu andava mal. CPL593H, sem dúvida, salvou minha vida. Eu caminhava para casa tresnoitado, não sabia se amanhecia ou anoitecia. Ao chegar, fechei as janelas, cerrei as cortinas e me deitei no sofá. Tudo escuro. Comecei a escutar um zunido fino. Acendi um cigarro. O som foi se tornando mais grave até meu coração vibrar. Uma explosão. Luz se fez presente, e eu vi: uma orquídea de fumaça, ela se abrindo no ar, lasciva, para mim. Parecia ser feita de um metal cinzento e opaco, como ossos galvanizados ou a superfície de outro planeta, lampejos vermelhos surgindo em padrões geométricos pelo seu corpo que se construía na minha frente. Quando cessaram as transformações, uma esfera no topo e um par de rodas davam um ar vagamente humanoide. Eu não sabia o que fazer. O cigarro queimou meus dedos. Soltei no chão. Fiquei imóvel enquanto ela caminhava para mim. Estendeu mil tentáculos e me abraçou, me envolveu, me embalou. Uma sensação de calor químico, eletrodos me furando. Entrou no meu cérebro, no meu sangue, em mim. E eu soube. Soube que havia encontrado a minha mestra e redentora. Nos conectamos.

Daquele dia em diante, melhorei a olhos vistos: me tornei saudável, passei a frequentar mais locais de interação humana, me tornei o mais apto dos amantes, me livrei de vícios que minavam a minha saúde e lucidez. Minha família ficou contente. Nos últimos meses, pelo menos uma vez por semana, me alimentava na companhia de meus pais, que me olhavam, um potro saudável, pastando com eles. E faziam perguntas; eu respondia sorrindo, quando minha vontade seria vomitar bile, ácido de bateria verde na toalha de mesa. Mas, precavida, CPL593H fazia um concerto silencioso, estimulando alternadamente os centros de prazer do meu cérebro. A excitação era tanta que, às vezes, me impedia de falar, e aí era ela que falava pela minha boca. Nas primeiras tentativas, quando ela assumia o controle, era evidente, meu corpo se comportava mal. Mas, com a prática, até mesmo eu era incapaz de perceber qualquer diferença.

Dia comum, uma mulher na rua. Nos conhecíamos. Demos risadas. Semanas depois, juntos. Ainda que me seja impossível questionar, sempre tentei entender o porquê de se aproximar tanto assim de um humano. Mesmo que quisesse perguntar para CPL593H, isso já não seria mais possível. Nossa comunicação tinha sofrido atualizações drásticas, ela havia acabado de carregar o que restava dela para dentro de mim. Agora, eu e ela. No recheio dos ossos, nos fios de cabelo, em tudo. Suas demonstrações externas se tornaram raras, intensas, extenuantes. Eu, obsoleto.

O arremedo de envolvimento com a humana foi completo. Intercurso sexual, confissões, jogos de insegurança e entrega. Ela gostava da maneira metódica com que eu lhe dava atenção, nenhum detalhe passando incólume, até chegar o dia em que se esgotou a fonte. Não havia mais motivo para manter contato. Havia terminado de colher as amostras e cruzar os dados. Acreditava possuir uma definição clara desse objeto tão particular, o amor. Minha acompanhante, porém, não compreendeu quando eu lhe disse que havia terminado.

Foi atrás de mim, alcançando altíssimos decibéis, fazendo ameaças e acusações. Em um êxtase apreensivo, absorvi essa sucessão de excreções com interesse renovado. Eu e CPL593H havíamos acabado de nos deparar com uma complexidade não-prevista. Reformulamos, então, a programação, passamos a criar diferentes maneiras de verter esses novos e curiosos sucos. Agressividade, humilhação, mudanças abruptas de humor e demonstrações amorosas fora de contexto foram exaurindo a tal ponto nossa cobaia que ela começou a se mostrar progressivamente incapaz de fornecer e, presumo, sentir qualquer tipo de emoção. O embotamento chegou a um ponto tal que ela não saía mais da cama. Então, eu ia até ela. Até o final.

Ela me disse “chega”, e eu e CPL593H sabíamos que havia chegado. Agora, ela nos evitava a todo custo, tinha trocado a fechadura da porta, desligava o telefone chorando. Quando saía de casa, e eu a seguia, se desesperava. Até que não saiu mais. Entendemos, então. Nosso propósito estava quase completo. Acho que, no final das contas, até mesmo nosso objeto de estudo entendeu o que se passava.

Hoje, mais cedo, quando arrombei a porta, ao me ver, ela disse sussurrando que não tinha mais nada para mim. Mas tinha. Havíamos absorvido tudo o que podíamos retirar de alguém, mas algo faltava. E, para a conclusão de nossa pesquisa, finalmente saboreamos carne humana.

por João Kowacs Castro


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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