segunda-feira, 11 de junho de 2018

Cura-te a Ti Mesmo


SALA DO DIRETOR do centro de estudos era pequena e estreita, mas muito alta. A luz do sol entrava por janelas quase rentes ao teto, em raios brilhantes que iluminavam pequenos turbilhões de poeira.

A mesa do diretor ficava sobre um tapete de feltro embolorado bem no centro de um minilabirinto de estantes metálicas e cheias de livros, dessas que podem ser montadas e expandidas com paciência e uma boa chave de fenda.

A mesa em si era grande e velha. Cheirava como madeira velha. Paulo, o diretor em pessoa, socava fumo no cachimbo com o polegar enquanto explicava o trabalho do centro ao estagiário, um jovem recém-formado em medicina, recém-chegado:

– Como você sabe, a maior parte das curas paranormais acontece dentro de algum tipo de ambiente religioso – Paulo lambeu o polegar e, sem perceber, limpou o dedo sujo de saliva e tabaco na gravata azul. – Centros de diversas correntes espíritas, terreiros, templos pentecostais, na maior parte das vezes. Daí, você percebe como é difícil obter dados científicos a respeito do fenômeno. Isso acontece porque...

O diretor fez uma pausa para acender o cachimbo, que logo começou a fumegar. Um cheiro de chocolate amargo preencheu a sala.

– Porque as pessoas nesses lugares tendem a enquadrar a realidade na teologia. O fato de a Terra girar em torno do sol prova que tal atitude dificilmente conduz à verdade – Paulo sorriu. – Compreende?

– Claro – o jovem não conseguiu evitar que sua voz saísse rascante, como se viesse junto com um pigarro.

– Você não tem nenhuma forte convicção religiosa a esse respeito, tem? – o diretor não esperou pela resposta antes de prosseguir; a pergunta era estritamente protocolar. – Então, nós reunimos aqui pessoas que acreditam possuir algum dom especial e fazemos experiências em condições controladas. E é por isso que preferimos o termo curas paranormais a curas mediúnicas. Existe uma certa carga metafísica na palavra “mediúnica”, não acha?

– Com certeza. Mas...

– Mas? – pela primeira vez, Paulo encarou o estagiário com interesse, como se a adversativa fosse o primeiro sinal de inteligência vindo de um longínquo sistema solar. Ali, estava um rapaz magro, loiro, sardento, com íris tão claras que quase pareciam apagadas. De onde ele dissera que vinha a família? Holanda? Mas o garoto nascera no Brasil, ao menos segundo a ficha. – Alguma dúvida?

– Bem, sim. Como os “curandeiros” são testados? Vocês têm pessoas doentes aqui?

– Santo Deus, não! – a ideia parecia divertir o diretor mais do que propriamente escandalizá-lo. – Mas venha. Vou lhe mostrar.

– Aqui, é onde preparamos os testes – disse Paulo, fazendo um gesto amplo com os braços, como se para abarcar todo o espaço compreendido pelas paredes brancas, azulejadas. Eles estavam no laboratório. Ao redor, bancadas e jaulas com animais: porquinhos-da-índia, hamsters, alguns chimpanzés.

– Estes são os nossos pacientes – o diretor continuou. – Com os recursos que temos aqui, podemos criar tipos sortidos de doenças e deformidades e medir graus mínimos de recuperação aparentemente inexplicável. Assim, evitamos o golpe da velhinha na cadeira de rodas. E também descobrimos algumas coisas interessantes. Observe.

O estagiário acompanhou Dias até uma gaiola com dois hamsters.

– Vê o rato da direita? – perguntou o diretor, apontando para um animalzinho bastante ativo e excitado. – Há duas semanas, seccionamos sua coluna cervical. Para todos os efeitos, ele ficou tetraplégico.

– Incrível! E quem conseguiu curá-lo?

– O rato da esquerda.

Isso pegou o rapaz de surpresa; ele ficou quieto, com a boca aberta, como se à espera de palavras que não vinham.

– Reagi assim, também, quando me contaram – disse Paulo, rindo, dando tapinhas amistosos no ombro do jovem. – Mas revisamos todos os testes, e não há erro. O que parece provar que o dom da cura não é exclusivo da raça humana, mas comum a todo o reino animal... ou, ao menos, aos mamíferos.

– E vocês já sabem como isso funciona?

– Não, mas descobrimos algumas limitações interessantes. Por exemplo, até agora, só vimos curas paranormais funcionarem em casos de cicatrização. Podem ocorrer cicatrizações maravilhosas, como a do tecido nervoso no pescoço do rato, mas apenas cicatrizações. Até o momento, nenhum de nossos voluntários foi capaz de remover pedras dos rins, ou um apêndice inflamado, ou deter um câncer. Ao que tudo indica, a cura paranormal é o poder de induzir a uma rápida divisão celular no local da lesão.

– E como essa indução acontece? Força de vontade?

– Ainda não temos muita certeza. Só sabemos que o fenômeno afeta a aura vital.

– Aura vital? – por mais que tentasse, o estagiário não conseguia deixar de sorrir. Afinal, ele encontrara uma brecha de superstição no frio racionalismo do diretor! – Vocês trabalham com auras? Sempre achei que...

– Pois achou errado – Paulo não gostava daquilo, do ar de superioridade que as pessoas adquiriam quando ele mencionava auras. – Considere os tubarões, por exemplo.

– Tubarões?

– Tubarões. Têm órgãos especiais no focinho, que permitem detectar o campo elétrico gerado por matéria viva. Muito útil quando se é um predador e a presa pode se esconder mergulhando na areia do fundo do mar. E... – ele deteve a frase bruscamente, pensando no que dizer ou fazer em seguida. – Ora, venha cá.

– Esta é a grande prova que posso apresentar a favor do nosso trabalho aqui.

O diretor havia conduzido o estagiário até uma sala no subsolo no edifício e, agora, lhe mostrava um homem obeso, completamente nu, conectado a uma série de monitores por uma verdadeira teia de fios e eletrodos, mergulhado em um aquário de vidro – apenas a boca e o nariz estavam acima da linha d’água. Se é que, pensou o jovem, o líquido era água.

– Tubarões detectam auras sentindo o campo elétrico que se forma entre o organismo da presa e a água salgada do mar – disse Paulo. – É como se a pele fosse uma membrana de bateria na verdade. Daí, o tanque.

– Mas...

– Você é um médico, não? – provocou o diretor. – Então, examine-o!

O estagiário procedeu com cautela. Tocou o corpo. Com cuidado, e depois de obter um olhar de aprovação de Paulo, retirou um braço e a cabeça do homem da água por alguns instantes, moveu-o no interior do tanque, produzindo um som de chapinhar que lhe pareceu um tanto quanto sinistro, irreal. Testou a rigidez nas articulações, olhou as pupilas e, por fim, disse, sacudindo as mãos para secá-las:

– Esse homem está morto.

– Há quanto tempo?

– O corpo já atingiu a temperatura ambiente, mas não há manchas de sangue nas costas... e não há sinais de decomposição. É difícil dizer.

– Esse homem está aqui, nesse estado, há duas semanas.

O estagiário engoliu em seco, lembrando-se de que Paulo iria ser seu superior hierárquico – buscando uma resposta educada.

– O que o senhor diz é... impossível – o jovem murmurou, engasgando com as palavras. – Em duas semanas... Nesta temperatura... na água... não notei sinais de conservantes, ou...

– O cadáver estaria se desmanchando, dissolvido, bolhas de gordura humana boiando na água, dentes podres, a água exalando um fedor insuportável. Eu sei! Mas venha, veja os monitores.

As telas negras com linhas verdes eram bem conhecidas: eletrocardiograma, eletroencefalograma. Nenhuma delas indicava qualquer sinal de atividade.

Próximo desses aparelhos, havia um grande painel de luz fluorescente, onde se prendiam dois negativos fotográficos. As fotos apresentavam os contornos de um corpo humano, bastante acima do peso, envolto numa ofuscante aura branca. Ao lado, um monitor de tomografia mostrava, com sua imagem colorida e cambiante, que ainda havia alguma atividade no interior do corpo.

– Este homem era um de nossos voluntários mais talentosos – disse Paulo. – Ele morreu de ataque cardíaco há 15 dias. Também, com esse peso... Mas o fato é que nenhuma decomposição teve início, e a aura, como mostram as fotos, parece tão firme como antes, embora, na verdade, esteja decaindo aos poucos. Fizemos uma pequena cirurgia exploratória e descobrimos que seu coração está se regenerando lentamente, células novas ocupando o lugar daquelas mortas durante o enfarto. Percebe? Ele está cicatrizando a causa da própria morte.

– Tal processo precisaria de... energia. Proteínas. Como...?

– Ele está drenando da própria aura. É por isso que o campo elétrico parece decair aos poucos: a energia está sendo consumida pelo processo de cura. É um cabo de guerra, veja bem. Se o campo se exaurir antes que a regeneração esteja completa, a morte irá se consumar. Se resistir... É claro que estamos dando uma pequena ajuda, mantendo as condições ambientais estáveis, desobstruindo as artérias, cuidando do equilíbrio eletrolítico da água.

– O senhor está dizendo que esse homem pode voltar a viver?

– Estou dizendo que, embora o sistema bioquímico de seu corpo tenha sido destruído, o sistema eletromagnético ainda luta para se recuperar. É a Ressurreição, dois mil anos depois.

Depois dessa última demonstração, o estagiário foi conduzido ao quarto que ocuparia, uma sala nua com cama, banheiro e escrivaninha. As malas já estavam lá.

Sua primeira atitude foi tomar um banho frio, na esperança de que o choque térmico clareasse as ideias. Cada vez que pensava no assunto, porém, ele se convencia de haver cometido um erro – um grande erro, ao não se identificar adequadamente após a pergunta sobre “crenças religiosas”.

Mas como explicar a vocação, o chamado que o levara ao seminário e, depois, o arrancara de lá, conduzindo-o à faculdade de medicina, aos centros de curandeirismo, à busca incessante pelos sinais da mão d’Ele em cada vida salva, no alívio da dor?

Ao ouvir falar do centro, o estagiário havia imaginado que aquele seria o seu lugar, um espaço onde a ciência e os misteriosos dons de Deus se reconheceriam em respeito mútuo. Mas o que ele vira – o quê? – vaidade. Blasfêmia. A ciência tentando ocupar o assento do Criador, a dizer, de forma zombeteira, que o cadáver flácido e inchado poderia se constituir numa símile do Salvador.

Não houvera tanque de água no Santo Sepulcro. Mas os óleos aplicados ao cadáver... Os íons metálicos da rocha... A esponja de vinagre...

Só quando terminou de mudar de roupa que se deu conta de que não vestira o pijama, como (ao menos conscientemente) pretendia. A roupa que usava era um conjunto de calças e moletom pretos, o tipo de traje que alguém escolheria para...

Esgueirar-se na noite.

Um delicado equilíbrio se rompera, e o jovem louro soube que lhe cabia reajustá-lo.

Chegar à sala no subsolo não era difícil. Os poucos seguranças do centro dedicavam-se apenas a vigiar as portas que davam para a rua – e não as instalações internas. Assim, o estagiário logo se viu diante do cadáver que se recusava a morrer.

Era um homem branco, cerca de 40 anos e 190 quilos. Gordo com aquele tipo de gordura que se concentra no tronco, deixando braços e pernas com uma aparência de abjeta fragilidade, e os peitos como se fossem seios flácidos de mulher. A barriga se revolvia em dobras que pareciam querer boiar na água rasa.

Pela primeira vez, o estagiário olhou com atenção para o tubo conectado à coxa direita; talvez o responsável pela tal “limpeza de artérias”.

Caminhando até a tela do tomógrafo, o jovem notou uma série de matizes coloridos que só poderiam significar um tipo de vida vegetativa, mantida a taxas metabólicas extremamente baixas. Mas mesmo esse diagnóstico era falso – pois o corpo atingira a temperatura ambiente, e não havia atividade cardíaca nem cerebral. Aquele era o quadro de um homem morto que não morria, uma aberração médica, um conceito que a própria linguagem não alcançava adequadamente.

Como matá-lo?

O problema ético surgiu ao mesmo tempo em que a questão prática. Como matar um morto? Assassinar um cadáver é pecado?

O estagiário começara a suar. Olhando ao redor em busca de uma solução para seu duplo dilema, encontrou um armário. Abriu-o: instrumentos cirúrgicos. Serras, bisturis, luvas.

É isso, pensou. Posso dissecá-lo – e não seria crime; seria aprendizado.

Equacionadas as duas questões, o jovem médico logo se preparou para o trabalho, selecionando o bisturi que pareceu mais adequado para a incisão torácica em Y.

Respirando fundo, aproximou-se silenciosamente do corpo. Será que o sangue vai se espalhar como fumaça colorida pela água?

O primeiro acesso de tosse foi tão violento que literalmente arremessou o estagiário três ou quatro passos para trás, fazendo-o derrubar a mesinha com os monitores, que caíram no chão com um som abafado, as telas espatifando-se como velhas garrafas vazias. O médico sentiu um estremecimento mórbido se apossar de seu corpo. A garganta e os pulmões ardiam, enquanto alguma coisa parecia abrir caminho lá de dentro, impulsionada por uma erupção.

Logo em seguida, veio a dor, por todo o tronco, que o obrigou a se ajoelhar no chão, com os braços cruzados sobre a barriga. E então a tosse voltou, convulsiva, e dessa vez veio acompanhada por pedaços ensanguentados de algo que o médico recém-formado, olhos arregalados, identificou como sendo os próprios pulmões.

No dia seguinte, a equipe de pesquisas encontrou dois cadáveres na sala. Um, o do estagiário, jazia de forma deplorável em meio a uma poça fétida de sangue. O outro, no tanque, começava a apresentar os primeiros sinais de decomposição. Leituras de aura foram feitas, e o resultado não mostrou qualquer resquício do campo. Era como se houvesse esgotado suas energias num último grande esforço.

Havia cacos de vidro, componentes eletrônicos, serras e bisturis pelo chão, e o estagiário calçava luvas cirúrgicas. A autópsia, realizada poucas horas depois pelo próprio Paulo, foi incapaz de encontrar a cavidade torácica – e isso porque uma massa anormal de tecido preenchia todo o espaço entre o peito e as costas: algo que havia empurrado os pulmões para fora, esmagado o coração e esmigalhado a coluna.

O atestado de óbito só dizia “câncer”.

por Carlos Orsi


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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