O autor do curiosíssimo documento escreveu:
"Depois duma larga e
importuna peregrinação, incitados da insaciável cobiça ao ouro e quase
perdidos em muitos anos neste vastíssimo sertão, descobrimos uma
cordilheira de montes tão elevados que pareciam chegar à região etérea e
que serviam de trono ao vento, às estrelas. O luzimento que de longe se
admirava, principalmente quando o sol fazia impressão no cristal de que
era composta, formando uma vista tão grande e agradável que ninguém
daqueles reflexos podia afastar os olhos. Entrou a chover antes de
entrarmos a registrar esta cristalina maravilha e víamos, sobre a pedra
escalvada, correr as águas se precipitando dos altos rochedos, nos
parecendo a neve ferida pelos raios solares, pelas agradáveis
vistas...".
Depois desses pretensiosos tropos literários, de cujo fim, felizmente, as sevandijas deram cabo, discorre o autor anônimo: "Abarracados
nós e com o desígnio de retrocedermos, no dia seguinte, sucedeu correr
um negro, andando à lenha, a um veado branco, que viu, e descobriu, por
acaso, o caminho entre duas serras, que pareciam cortadas por artifício e
não pela natureza. Com o alvoroço dessa novidade principiamos a subir,
achando muita pedra solta e amontoada por onde julgamos ser calçada
desfeita com a continuação do tempo. Gastamos boas três horas na subida
suave pelos cristais que admiramos, e no cume do monte fizemos alto, do
qual, estendendo a vista, vimos num campo raso maiores demonstrações pra
nossa admiração. Divisamos coisa de légua e meia uma povoação grande,
nos persuadindo, pelo dilatado da figura, ser alguma cidade da corte do
Brasil...".
Ruína de Igatu, Bahia, que alguns acreditam ser a cidade perdida |
Foram mandados exploradores à mesma, continuou a relação, os quais voltaram desenganados, pois, embora ouvissem cantar os galos, não encontraram alguém. Guiados por um índio, entraram, todos, na madrugada, cidade adentro, devidamente prevenidos e armados. A entrada se fez por um arco triunfal semelhante ao de Constantino, em Roma, com uma porta larga entre duas menores. Não foi possível ler, devido à altura, a epigrafia que coroava o monumento.
Seguiram numa avenida de
sobrados iguais e simétricos com terraços de lajes ou de ladrilhos
requeimados. Visitaram muitas dessas moradias, todas sem alfaia, sob
cujas abóbadas as vozes ecoavam soturnamente. No fim dessa rua havia uma
praça regular, tendo, no centro, sobre uma coluna de granito negro, uma
estátua de homem, de pé, a mão esquerda pousada na ilharga e a direita
apontando o pólo norte. A cada canto da praça se erguia uma agulha, à
imitação das que usavam os romanos. Quais? Agulhas de pedra com os
obeliscos egípcios ou quadrantes solares?
Do lado direito de tal praça, um
palácio soberbo, invadido por morcegos, com um baixo-relevo no pórtico,
representando pessoa de pouca idade, sem barba, com uma banda
atravessada e um fraldelim na cintura. Embaixo se viam alguns caracteres
epigráficos que o manuscrito reproduz. Do lado esquerdo se erguia um
templo de magnífico frontispício, cheio de efígies e cruzes. Em seguida
os restos da cidade sepultados em grandes e medonhas aberturas da terra
em que não brotava erva entre montões de pedras toscas ou lavradas.
Era a cidade banhada por um rio
caudaloso, de margens limpas e agraciáveis, além do qual se estendiam
viçosos campos, plantações de arroz e bandos de patos que se apanhavam
com as mãos. Durante três dias desceram o curso de água até chegarem a
estrondosa cachoeira, onde a força da correnteza não era menos do que a
das bocas do decantado Nilo. Ali o rio se espraiava de tal modo que
parecia o grande oceano. A oriente da catadupa, socavões cuja
profundidade foi impossível sondar e em cuja entrada se encontravam
vestígios de prata, como tirados das minas deixadas ao tempo. Uma dessas
furnas era coberta por grande laje com figuras misteriosas gravadas,
que o documento reproduz. No meio do campo outro palácio com escadaria
de pedras de várias cores e quinze aposentos, além do salão. Cada qual
com sua bica de água encanada. No pátio, colunatas circulares.
Nas margens do rio acharam boa
pinta de ouro e prata. Viram andorinhas, morcegos, raposas enormes e
ratos de pernas curtas, que não andavam nem corriam, mas saltavam como
pulgas. Um dos companheiros, se afastando, deu com uma canoa tripulada
por duas pessoas brancas de cabelo preto e vestidas à européia, as quais
fugiram. Outro chamado João Antônio achou, numa ruína, um dinheiro de
ouro, figura esférica, maior que nossas moedas de seis mil e
quatrocentos, tendo, no anverso, a imagem dum moço ajoelhado e no
reverso um arco, uma coroa e uma seta.
O manuscrito termina assim: "Estas
notícias mando a v. m. deste sertão da Bahia e dos rios Paraguaçu e
Una, assentando não darmos parte a pessoa alguma, porque julgamos se
despovoarão vilas e arraiais. Mas a v. m. a dou das minas que temos
descoberto, lembrado do muito que te devo. Suposto que nossa companhia
saiu já um companheiro com pretexto diferente, contudo peço a v. m.
largue essas penúrias e venhas utilizar estas grandezas, usando da
indústria de peitar esse índio, pra se fazer perdido e conduzir v. m. a
estes tesouros...".
Não se sabe a quem fora dirigida
a curiosa relação nem seu autor. A única referência certa, além da
data, é a do sertão da Bahia, nos rios Paraguaçu e Una. Nada mais. Pois,
apesar disso, o que nele se encontra foi tomado a sério e, sob os
auspícios do Instituto Histórico e o amparo oficial, cônego Benigno José
de Carvalho e Cunha, que pra isso se oferecera, entrou ao sertão baiano
buscando a cidade misteriosa.
Em junho de 1844 oficiou ao
governador da província da Bahia, dizendo que desde o ano anterior
andava naquela busca já descoroçoado de achar a tal cidade na margem
direita do Paraguaçu e na serra de Sincorá. Levava um roteiro impresso
pelo instituto e o combinava com as notícias que obtinha, convencido de
que a cidade abandonada estava situada acima do Orobó. E terminava:
"Estes meus cálculos sobre o
lugar da cidade abandonada acabam de ser confirmados por uma testemunha
de vista. Indo eu ao Tingá, recebi uma carta de José Rodrigues da Costa
da Otinga, na qual me diz que um negro cativo, morador com seu senhor no
lugar que chamam serra do Orobó, que morou anos dentro dos maninhos, se
me oferecia pra acompanhar e mostrar o quilombo, onde esteve, e a
cidade que busco. Disse, esse negro, que o quilombo está fora da cidade
abandonada, mas perto, que os negros do quilombo ali vão passear nos
domingos e dá tão exata notícia das casas e entrada da cidade, das
estátuas e do rio que corre defronte, que quadra completamente com o
roteiro do Instituto e com o que eu calculara. Mandei chamar o negro e
lhe prometi a alforria, porém o senhor não o deixou vir, pois mesmo
tendo havido pessoa da Otinga que pretendeu comprar o negro o senhor não
o vende por preço algum. Entretanto minha guia é o rio: Terei mais
trabalho mas não deixarei de ter bom resultado. Há três meses que estou
doente, não sei o mais que tem havido a respeito desse negro mas haverá
15 dias me instaram na Otinga pra apressar minha entrada, que tínhamos
guia. Se Deus me der saúde entrarei depois de São João".
O crédulo cônego Benigno desde
1842 procurava aquela miragem, assinalada no documento aliteratado que
citamos, sertões adentro. Em 23 de janeiro de 1845 se dirigiu, mais uma
vez, ao tenente-general Soares de Andréa, governador da Bahia,
confessando que, depois de percorrer a Serra do Sincorá e encontrar
entre a gente velha dali tradição oral do episódio do veado branco que
dera a conhecer aos aventureiros do século 18 a existência da cidade
abandonada, repisou a história do negro que conhecia a tal cidade e
pediu mais dinheiro.
Afirmou com solenidade: "Me
animo a afirmar a V. Exa. que a cidade está descoberta. Mas, pra dar com
mais brevidade esta gostosa notícia aos sábios do Brasil e da Europa,
que estão com os olhos em mim pra saber, decerto, a existência dum
monumento de tamanha transcendência prà história deste país, são
necessários socorros, pois num terreno ocupado por negros e feras me é
indispensável entrar com cautela, com gente armada e municiada e levar
mantimento, porque daqui a dentro não há o que comer...".
Em julho de 1848 Manuel
Rodrigues de Oliveira fazia uma comunicação publicada pelo Instituto
Histórico, criticando a perambulação sem rumo de cônego Benigno e
assegurando que as indagações deviam partir do local assinalado no
manuscrito do século 18, a confluência e barra dos rios Paraguaçu e Una.
Primeiro, porque ali, onde depois foi plantada a vila de Belmonte, se
encontram fragmentos de móveis antiqüíssimos, de louças e ferramentas
carcomidas, mesmo restos de alicerces e paredes. Segundo, porque dali ao
centro, na fazenda Provisão, a 22 léguas [88km] de Camamu, se
encontravam montículos de ruínas como de antigas ruas, fragmentos de
louça pintada, escumalho de ferro, foices, machados e moedas de cobre à
romana, tão grandes que delas os meninos faziam roda de carrinho. Mais
adiante se veria a catadupa assinalada no papel de 1753. Terminava
descrendo de que o cônego Benigno achasse algo e assegurando que
guardava em segredo suas notícias sobre o assunto, certo de estar
servindo à grandeza do Brasil.
Se fez, após esse comunicado, um
grande silêncio sobre a cidade misteriosa do sertão baiano. Cônego
Benigno morreu sem a ter achado. Manuel Rodrigues de Oliveira também. Do
negro de Otinga que conhecia seu roteiro nem mais notícia.
Mas em 1886, quase 40 anos depois, o conselheiro Tristão de Alencar Araripe, em sua memória sobre Cidades petrificadas e inscrições lapidares no Brasil, escreveu: "A
existência de cidades abandonadas no interior de nossos extensos e
inexplorados bosques tem sido, às vezes, anunciada, e bem conhecemos o
empenho com que esse instituto procurou verificar a notícia dada num
roteiro escrito em 1753 e encontrado na Biblioteca Nacional desta
corte... Cônego Benigno da Cunha, nosso consócio, hoje falecido, se
incumbiu da investigação e descoberta da inculcada cidade. Nada pôde
conseguir, se queixando da falta de recurso pruma indagação completa. E
assim continua problemática a existência das ruínas descritas no roteiro".
É mais que provável que a
relação de 1753 seja mera fábula criada por um sujeito de fértil
imaginação, dosado de pretensão literária. Parece mais uma página de
Rider Haggard, em As minas do rei Salomão, que um roteiro de verdade.
Até hoje já seria tempo de se
ter qualquer notícia de tais ruínas com estátuas, praças e epigrafias,
se tudo não passasse dum conto à dormir débout, história pra boi dormir ou lagartixa cair da parede, segundo diz, espirituosamente, nosso povo.
Gustavo Barroso
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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.