De um momento para outro o alferes de milícias de Vila Rica, João
Rufino, apresentou-se cheio de dinheiro, naquelas Minas, bem enroupado,
melhor montado, com armas garantidas, e a fazer uns gastos tão em
desacordo com a sua anterior pobreza, que punha toda a gente de boca
aberta.
Onde fora ele desentranhar dinheiro? Heranças não recebera, pois bem
conhecida era toda sua família, paupérrima; no jogo, também não era
possível, pois nunca o tinham visto com semelhante defeito; para se
dizer que passara algum contrabando de ouro ou diamantes, também não se
podia admitir, pois João Rufino na verdade era um indivíduo muito alegre
e folgazão, porém de conduta irrepreensível.
O certo foi que os pacatíssimos mineiros não atinaram com aquele
mistério, e João Rufino continuava a assombrá-los com as suas
incomparáveis despesas.
No entanto o dinheiro de João Rufino, a acreditar na lenda que ele
próprio se encarregara de divulgar, viera por bom caminho. E assim,
depois de se ter divertido durante algum tempo com a curiosidade dos
patrícios, deliberou contar-lhes tudo, escolhendo para isso uma noite em
que dava a cear a diversos amigos.
* * *
Achavam-se os seus convivas na sobremesa, tendo já devorado uma
excelente canja feita de três galinhas que rachavam de gordas, uma bem
tortada leitoa e outras coisas suculentas, tudo regado com excelente
vinho, quando João Rufino, dirigindo-se a eles, lhes falou deste modo:
– Senhores, reservo uma surpresa para rematar esta modesta ceia. Em
geral os meus amigos e conhecidos e quase a população de Vila Rica
têm-se admirado da minha rápida fortuna e sobre ela feito comentários os
mais variados. Em verdade é para merecer reparo uma transformação tão
rápida, e por isso não podiam espantar-me, por mais extravagantes que
fossem, mesmo quando fossem lesivos à minha reputação. E, se até esta
data não vos fiz sabedor do que me sucedeu, é porque há coisas tão
espantosas que a mente recusa acreditá-las. Todavia não tenho o direito
de prolongar por mais tempo a vossa justa ansiedade, e hoje vos
informarei dos extraordinários acontecimentos que me conduziram à
opulência.
Este exórdio de revelação encheu os convivas da maior satisfação,
pois a curiosidade era geral e rumores aprobativos fizeram-se ouvir em
toda a mesa.
João Rufino, então, passando os convidados para uma outra sala, onde
fez servir perfumoso café, narrou a sua aventura, em meio da mais
circunspecta atenção.
Assim falou João Rufino:
– Senhores, a fortuna que hoje desfruto chegou-me por vias honestas;
e, se é certo que a não alcancei pelo trabalho e por uma rigorosa
economia, durante longos anos, devo-a no entanto à minha coragem, e, por
conseguinte, é com toda a justiça que a gozo.
Sabeis perfeitamente que um dezembro do ano passado, isto é, há
quatro meses, fui encarregado pelo comandante do meu regimento de
milícias de ir ao Rio de Janeiro comprar fardamento para a tropa e
arreios para a nossa cavalhada. Parti daqui na antevéspera de Natal, e
no dia de Reis já me achava muito além de Matias Barbosa, apesar do
péssimo estado dos caminhos. Nunca havia feito tal viagem, e assim era
fácil desviar-me da verdadeira estrada. Foi o que me aconteceu.
Pouco adiante de Matias Barbosa, deixei o verdadeiro caminho à
direita e tomei à esquerda. Por ele andei cerca de três horas, e já ia
anoitecendo, sem encontrar pouso, quando deparei alguns viajantes que
vinham para Matias. Disseram-me eles que me achava errado, mas que não
me era preciso voltar atrás para ganhar a estrada; dali à distância de
légua e meia, existia um caminho à direita que ia desembocar na referida
estrada. Informando-me mais se existia alguma casa que me servisse de
pouso, responderam-me que a primeira pousada era para mais de quatro
léguas puxadas. Em todo esse percurso só havia uma casa, completamente
isolada, onde ninguém pernoitava por ser considerada mal assombrada.
Voltar para Matias, com os viajantes, não me era possível; retroceder
ao ponto em que havia errado o caminho, nada adiantava. Assim, só me
cumpria prosseguir na direção que levava.
Perguntei-lhes, então, em que consistia a assombração da única casa
que ficava à beira da estrada, e eles disseram-me que ali vivera outrora
um indivíduo extremamente avarento; e que, desde o dia de sua morte,
alguns viajantes perdidos, que por acaso pernoitavam na sua habitação,
ouviam à noite ruídos estranhos: arrastar de correntes, som de passos
pelas salas, bem como eram visitados por visões assombrosas.
Agradeci aos viajantes todas essas informações, e despedi-me deles,
disposto a viajar toda a noite a fim de reganhar a estrada real.
Caminhando, ia pensando nos mistérios da casa assombrada, nos quais, para dizer com franqueza, pouco acreditava.
O sol entrava na sua agonia sanguinolenta do ocaso. Já nos pontos em
que o caminho serpenteava por baixo de moitas sentia-se a invasão das
sombras crepusculares, e os insetos noturnos davam os primeiros chilros
prenunciadores da grande harmonia da noite, quando senti que o meu
cavalo começava a ganhar-se de suor frio, e da andadura ia pouco a pouco
descambando para o passo pesado. E essa?! O pobre bicho ia afrouxando, e
naquele andar não deitaria mais de meia légua. Conheceis perfeitamente o
meu tordilho, não? Era um animal valente, mas desde Vila Rica eu ia
puxando por ele, em marchas diárias de seis léguas, e naquele dia já
havia vencido sete. Não era, pois, de admirar que o pobre animal desse
de si.
Isso, no entanto, contrariou-me extraordinariamente, mas continuei a caminhar.
Daí a um quarto de hora cheguei à porteira de um largo pasto todo
gramado, em cujo centro existia uma grande casa silenciosa. Era a casa
mal-assombrada! Nem uma voz humana, nem o latir de um cão, nem o pio de
uma ave doméstica! Tudo parecia morto ali!
O sol acabava de sumir por trás das grimpas da Mantiqueira, e a noite aproximou-se.
Pus-me a pensar: O meu cavalo estava quase frouxo; avançar mais,
seria arriscar-me a estragar o animal, sem nada adiantar; ali, pelo
contrário, estava um bom pasto para o pobre bruto, e uma casa que me
daria guarida durante a noite. Por que, pois, desprezar tão
providenciais comodidades, somente com medo de fantasmas, coisas
naturalmente criadas pela imaginação do vulgo ignorante e supersticioso?
Eu nunca fui medroso, graças a Deus! Dispus-me, pois, a passar a
noite ali mesmo. Estava bem armado, que podia, temer, portanto?! …
Tomada essa deliberação, abri resolutamente a porteira e penetrei no
pasto. A porteira rangeu no enorme gonzo, e fechou-se em seguida,
esbarrando com orça no batente de cabiúna. Logo após, ouvi um grande
gemido, muito prolongado e alto, partido não sei de onde, mas que me
produziu um arrepio em todo o corpo. O meu cavalo espetou as orelhas e
estacou nas patas dianteiras, mas não esmoreci: quando tomo uma
resolução, tenho por costume levá-la até o fim, custe o que custar.
Assim, dei uma chibatada no animal e orientei-o para a casa.
Antes de chegar ao terreiro, era preciso transpor a porteira de um
curral. Abri-a, e, exatamente como sucedeu com a primeira, logo se fez
ouvir outro gemido, mais soturno e mais prolongado ainda do que o
anterior. Os cabelos tornaram a arrepiar-se-me, e o cavalo bufou. Não me
importei. Apeei-me e tratei de tirar a sela do pobre animal, pois
queria passar minuciosa revista na casa, antes que anoitecesse de todo.
Fiz isso. Depois de soltar o bicho no pasto, carreguei os arreios nos
braços, e subi com eles a escada de uma varanda já um tanto carcomida,
que havia na frente da casa, e penetrei na primeira sala da habitação,
cujas janelas e portas estavam abertas de par em par. Mal apenas
colocara eu o pé na soleira da porta, um outro gemido, ainda mais
lúgubre e duradouro que os outros, fez-se ouvir, e parecia tão
lancinante, tão magoado, que bem contra a vontade senti o sangue
esfriar-me no corpo, e os arreios caíram-me das mãos trêmulas! O meu
tordilho, que já então se espojava satisfeito no pasto, ao ouvir essa
coisa medonha, ergueu-se de um salto, e disparou, dando a prova mais
cabal de se haver também assustado.
Todavia eu tinha que dormir naquela habitação, quer fosse mal
assombrada, quer não; havia feito tal propósito, e nada me poderia
demover dele. Por isso tirei dos coldres as pistolas, e enchendo-me de
ânimo devassei toda a casa; atravessando salas, quartos, corredores e
nada encontrei. Tudo estava silencioso!
Quando voltava, porém, para a
frente da habitação, vi em um dos cantos da primeira sala um frango
pelado, de pernas muito compridas, que ali procurava aninhar-se, como se
tivesse aquele costume.
Admirou-me ver aquela ave, pois quando atravessara a primeira vez a
sala não a tinha percebido. Contudo não me preocupei por muito tempo.
Seria, pensei eu, algum pinto perdido por qualquer pombeiro, e que
entrasse enquanto me ocupara em revistar a casa.
* * *
Devia ser isso mesmo, e nem podia ser outra coisa. Quanto aos
gemidos, não os regougam tão tétricos as corujas grandes? Conduzi para
dentro da sala os arreios; tirei de um picuá o resto do meu almoço;
comi-o tranqüilamente, e, depois, estendendo a manta, o bairetro e o
capote, fiz deles um leito em que me deitei, confiante em Deus e na
minha coragem, tendo antes posto ao alcance das mãos as pistolas e o meu
facão de viagem.
Deitei-me, porém não adormeci, embora estivesse bastante cansado.
Contra a minha vontade, rolavam-me no cérebro coisas fantásticas, e, à
medida que a noite se adiantava, cada vez mais me visitavam tais
pensamentos.
Devia de ser mais de onze e meia, e ainda eu me conservava acordado,
quando pouco e pouco vi a sala ir se enchendo de uma claridade dúbia,
quase insensível no começo, mas que mais e mais ia aumentando. Não podia
perceber de onde vinha essa luz estranha, amarelada, lívida, pois não
era noite de luar.
Tanto cresceu a claridade, que a sala ficou toda iluminada, e então
presenciei uma cena da qual nunca mais me lembrarei sem que se me
arrepiem as carnes.
O pinto magro, pelado, que dormia no canto da sala, saiu para o
centro. Batendo asas e suspendendo o pescoço, cantou desentoadamente,
com um esganiçar irritante, pronunciando estas palavras que ouvi
arrepiado de horror:
– É meia-noite: não vens hoje? – E recolheu-se ao canto.
Imediatamente do teto da casa partiu uma voz assombrosa que gritava:
– Gaspar, eu caio!
O pinto lá do seu canto respondeu:
– Não caias!
A voz tornou a gritar:
– Gaspar, eu caio!
E o pinto outra vez respondeu:
– Não caias.
Ainda uma terceira vez a voz falou:
– Gaspar, eu caio!
E eu, cheio de impaciência e ao mesmo tempo apavorado com o que estava presenciando, exclamei:
– Pois, caia!
Mal havia proferido tal frase, quando vi despenhar-se do teto da casa
um braço humano e cair no meio da sala com um ruído abafado.
O meu coração batia de modo que parecia querer estalar. Um suor frio
inundava-me a fronte, e pela primeira vez na minha vida tive medo
deveras.
Daí a alguns minutos a voz tornou a gritar:
– Gaspar, eu caio!
De novo o pinto pelado esganiçou-se e suspendendo o pescoço repetiu:
– Não caias.
Segunda vez a voz falou:
– Gaspar, eu caio!
Na terceira, eu berrei:
– Pois caia!
Caiu outro braço.
A mesma cena repetiu-se por quatro vezes; e eu que vencendo o terror
me achava possuído da mais viva curiosidade pelo desenlace daquela
comédia horrenda, ia mandando que caísse.
Assim, caiu primeiramente junto aos dois braços uma perna, depois
outra, em seguida o tronco e finalmente uma cabeça, que, mal chegou ao
soalho, reuniu-se aos diversos pedaços. .. E surgiu à minha vista um
fantasma, envolto num longo sudário negro e com os braços cruzados obre o
peito!…
O medo que tal aparição me causou não se pode descrever com palavras.
São dessas coisas que se sentem, mas não se definem. No entanto, tive
forças para empunhar o meu facão de viagem e pôr-me logo em guarda,
esperando um ataque. Mas o espectro, estendendo para mim um longo braço
descarnado, pronunciou estas palavras com voz sepulcral:
– Nada temas, viandante; não te pretendo fazer mal; a tua coragem salvou-me.
Então balbuciei:
– Quem és tu?
E a aparição respondeu-me:
– A alma-penada de um miserável avarento que, desde o dia que deixou
os vivos, vagueia errante, em conseqüência da misérrima paixão que tanto
o atormentou em vida. Fui rico e levando meu amor ao ouro até a hora da
morte, enterrei uma grande quantidade dele no pasto desta casa. Foi a
minha perdição. Minha alma acha-se presa a estes sítios e deles não se
apartará, enquanto o dinheiro ali se conservar. Tu tiveste coragem de
afrontar o assombro desta habitação. Vou fazer a tua fortuna e
libertar-me deste fadário.
Quando o dia romper, irás à porteira do
pasto, e na direção de quatro braças ao nascente do batente da mesma
porteira, cavarás até a profundidade de quatro palmos. Aí encontrarás um
cofre de moedas de ouro em boa espécie. Toma-o para ti e manda dizer
sete missas pela alma do finado Gaspar, na igreja que quiseres.
E ao dizer estas últimas palavras tudo desapareceu: fantasma, pinto pelado, luz amarela e tudo.
Os meus nervos não podiam suportar a furiosa tensão a que os havia
forçado: afrouxaram repentinamente, e eu, caindo prostrado no leito
improvisado, adormeci de sono pesado, sem sonhos, que se prolongou até
às 7 horas da manhã do outro dia.
Logo que acordei, pouco me lembrava das terríveis cenas da noite,
porém, pouco a pouco elas me foram chegando à memória, e pus-me a pensar
se tudo aquilo não seria um delírio da minha imaginação escandecida
pela narração dos viajantes e pelo desolado aspecto da habitação.
Todavia procurei uma enxada que logo encontrei no porão da casa e
dirigi-me à porteira do pasto. Aí chegado, medi quatro braças ao
nascente do batente e pus-me a cavar.
O meu cavalo, que pastava tranqüilamente, a poucos passos distante de
mim, levantou a cabeça e pôs-se a encarar-me, e eu me ria comigo mesmo
pensando que talvez estivesse representando um papel tão ridículo que
até o próprio cavalo dele se admirava.
Contudo continuava a cavar, e de uma das enxadadas senti que o ferro
batera em outro ferro. O meu espírito alvoroçou-se com isto; amiudei as
pancadas, e dentro em pouco tempo ficou a descoberto um cofre de ferro,
tendo por cima um grande argolão. Puxei por ele e o cofre saiu para
fora. Estava descoberto o tesouro!
Corri imediatamente os fechos da peça e escancarando-a encontrei-me
diante de um monte de belas e reluzentes moedas de ouro. Introduzi-as no
picuá e no capote e segui a desempenhar a minha comissão no Rio de
Janeiro.
Eis, senhores, como do dia para a noite fiquei rico. Devo esta ventura à minha coragem e ao meu sangue frio.
* * *
De então por diante nunca mais se falou em Vila Rica sobre a fortuna
do alferes João Rufino. Pois não era tão natural que ele encontrasse um
tesouro enterrado?
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por Viriato Padilha
Fonte: Jangada Brasil - (Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956)