quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Na ilha do Medo


O primeiro homem com quem falamos sobre a ilha do Medo, no porto de Salvador, olhou-nos de alto a baixo e emudeceu. Era um camarada de gestos mecânicos e poucas palavras, mas sabia muita coisa das vizinhanças do mar.


– O senhor sabe onde fica a ilha do Medo?

– Sei.

– Fica longe?

– Sim.

– Quantas milhas, mais ou menos, da costa?

– Umas doze ou quinze – disse ele. E empacou novamente.

O outro era um rapaz de olhos vivos e ariscos, blusão de zuarte desbotado aberto no peito e músculos saltados. Falou-nos de distâncias marinhas, peixes, alimentação e embarcações. Mas quando perguntamos se conhecia a ilha do Medo, desfez o sorriso que tinha amontoado num canto da boca e respondeu com secura: “Conheço”.

– Como é que poderíamos ir até lá?

– O senhor pretende ir à ilha do Medo?

– Sim.

– Fazer o que?

– Nada.

Notamos novamente o mesmo olhar do outro homem, nos olhos do rapaz de zuarte. As palavras começaram a diminuir, foram encurtando até virar monossílabos, que saíam angustiados de sua boca.

– Que diabo, rapaz, o que há com a ilha do Medo? Queremos ir até lá por curiosidade, ver o mato, os bichos, as ruínas dos holandeses. Outros querem ver as igrejas, os fortes ou o candomblé. Nós queremos ver a ilha do Medo.

– Mas nunca vai ninguém lá, – disse ele – a ilha está deserta. Só existem bichos selvagens no mato, depois…

– Depois o que?

– Contam coisas de arrepiar os cabelos.

– Que coisas, por exemplo?

O rapaz nos olhou mais uma vez, desconfiado, e disse, retirando-se:

– Se o senhor quiser ir, pode ir, mas eu não levo ninguém lá. Aquela ilha é mal assombrada, está cheia de fantasmas.

Bruxas de goelas de fogo

Miguel estava sentado no casco de um saveiro, emborcado na praia. Ao chegar, cumprimentamos, mas ele apenas levantou um pouco dos olhos a aba do chapéu e nos encarou demoradamente. Só respondeu ao cumprimento depois de familiarizar-se com a nossa presença. Soltou um “boa tarde” atrasado, olhou novamente para um ponto qualquer e começou a falar com desembaraço:

– Gilberto me disse que os senhores querem ir à ilha do Medo.

– Estamos aqui para isso. – Falamos com o moço no porto. – Ele nos informou que o senhor tem um saveiro grande.

– É o Leviatã. Está ali no meio daqueles barcos.

– Será possível sairmos amanhã?

– Sim, mas se não quiserem voltar tarde da noite, terão de se mexer muito cedo, ainda de madrugadinha.

– Bem, nós pretendemos passar o dia na ilha.

O homem fez a volta do saveiro e mexeu no leme, depois pegou uma lata de tinta que havia sobre a areia e encaminhou-se para nós de olhar muito vago e sem interesse.

– Bem moço, não que aquela ilha seja um inferno, mas contam coisas dela. Dizem que é mal assombrada. Os pescadores que se atrasam no mar ouvem gritos que partem de lá, e às vezes chamados pelo seu nome. Esses gritos são roucos e estranhos, como um choro. Vêm da ilha com o vento reboando pelo mar, depois somem e tornam a voltar mais fortes. Quando o mar está calmo, ouvem-se lamentos e uivos. E no meio disso tudo, o chamado, o chamado insistente, entrando pelos ouvidos deles, quando o saveiro está quase parado por falta de vento.

– Não vive ninguém na ilha?

– Ninguém. Faz muito tempo que ela está deserta. Desde o tempo dos holandeses, que tinham lá uma fábrica de pólvora.

E Miguel continua a sua narração estropiadamente, na sua linguagem meio do mar, meio da terra:

– Já viram coisas danadas na ilha do Medo. Uma vez, um pescador voltou dizendo que tinha visto uma mulher de cara negra e feia como a morte, que caminhou da ilha até o seu saveiro, sobre as águas. Tinha a boca imensa e as goelas incendiadas de labaredas vermelhas. Quando cegou ao lado do saveiro, ele sentiu um cheiro de enxofre e pano queimado.

– Mas a mulher fez alguma coisa ao pescador?

E Miguel respondeu:

– Não, mas depois que ele contou a história perdeu a fala para sempre.

– A alma danada dos holandeses que morreram na guerra habita a ilha do Medo, desde aqueles tempos. Se o senhor quiser ir, vá, mas eu não me responsabilizo pelo que houver. Os danados dos holandeses nunca abandonaram aquele lugar. Vivem até hoje na ilha, assustando os homens que se atrasam no mar. Também vão para lá os pescadores que morrem afogados na baía de Todos os Santos. É por isso que quando o mar está calmo, se houvem lamentos e uivos, vindos daquele lado.


Fonte: Jangada Brasil in "Sem indicação de autoria. “Na ilha do Medo há coisas de arrepiar os cabelos”. Folha de Minas. 29 de julho de 1951".

A casa mal-assombrada

De um momento para outro o alferes de milícias de Vila Rica, João Rufino, apresentou-se cheio de dinheiro, naquelas Minas, bem enroupado, melhor montado, com armas garantidas, e a fazer uns gastos tão em desacordo com a sua anterior pobreza, que punha toda a gente de boca aberta.

Onde fora ele desentranhar dinheiro? Heranças não recebera, pois bem conhecida era toda sua família, paupérrima; no jogo, também não era possível, pois nunca o tinham visto com semelhante defeito; para se dizer que passara algum contrabando de ouro ou diamantes, também não se podia admitir, pois João Rufino na verdade era um indivíduo muito alegre e folgazão, porém de conduta irrepreensível.

O certo foi que os pacatíssimos mineiros não atinaram com aquele mistério, e João Rufino continuava a assombrá-los com as suas incomparáveis despesas.

No entanto o dinheiro de João Rufino, a acreditar na lenda que ele próprio se encarregara de divulgar, viera por bom caminho. E assim, depois de se ter divertido durante algum tempo com a curiosidade dos patrícios, deliberou contar-lhes tudo, escolhendo para isso uma noite em que dava a cear a diversos amigos.

* * *

Achavam-se os seus convivas na sobremesa, tendo já devorado uma excelente canja feita de três galinhas que rachavam de gordas, uma bem tortada leitoa e outras coisas suculentas, tudo regado com excelente vinho, quando João Rufino, dirigindo-se a eles, lhes falou deste modo:

– Senhores, reservo uma surpresa para rematar esta modesta ceia. Em geral os meus amigos e conhecidos e quase a população de Vila Rica têm-se admirado da minha rápida fortuna e sobre ela feito comentários os mais variados. Em verdade é para merecer reparo uma transformação tão rápida, e por isso não podiam espantar-me, por mais extravagantes que fossem, mesmo quando fossem lesivos à minha reputação. E, se até esta data não vos fiz sabedor do que me sucedeu, é porque há coisas tão espantosas que a mente recusa acreditá-las. Todavia não tenho o direito de prolongar por mais tempo a vossa justa ansiedade, e hoje vos informarei dos extraordinários acontecimentos que me conduziram à opulência.

Este exórdio de revelação encheu os convivas da maior satisfação, pois a curiosidade era geral e rumores aprobativos fizeram-se ouvir em toda a mesa.

João Rufino, então, passando os convidados para uma outra sala, onde fez servir perfumoso café, narrou a sua aventura, em meio da mais circunspecta atenção.

Assim falou João Rufino:

– Senhores, a fortuna que hoje desfruto chegou-me por vias honestas; e, se é certo que a não alcancei pelo trabalho e por uma rigorosa economia, durante longos anos, devo-a no entanto à minha coragem, e, por conseguinte, é com toda a justiça que a gozo.

Sabeis perfeitamente que um dezembro do ano passado, isto é, há quatro meses, fui encarregado pelo comandante do meu regimento de milícias de ir ao Rio de Janeiro comprar fardamento para a tropa e arreios para a nossa cavalhada. Parti daqui na antevéspera de Natal, e no dia de Reis já me achava muito além de Matias Barbosa, apesar do péssimo estado dos caminhos. Nunca havia feito tal viagem, e assim era fácil desviar-me da verdadeira estrada. Foi o que me aconteceu.

Pouco adiante de Matias Barbosa, deixei o verdadeiro caminho à direita e tomei à esquerda. Por ele andei cerca de três horas, e já ia anoitecendo, sem encontrar pouso, quando deparei alguns viajantes que vinham para Matias. Disseram-me eles que me achava errado, mas que não me era preciso voltar atrás para ganhar a estrada; dali à distância de légua e meia, existia um caminho à direita que ia desembocar na referida estrada. Informando-me mais se existia alguma casa que me servisse de pouso, responderam-me que a primeira pousada era para mais de quatro léguas puxadas. Em todo esse percurso só havia uma casa, completamente isolada, onde ninguém pernoitava por ser considerada mal assombrada.

Voltar para Matias, com os viajantes, não me era possível; retroceder ao ponto em que havia errado o caminho, nada adiantava. Assim, só me cumpria prosseguir na direção que levava.

Perguntei-lhes, então, em que consistia a assombração da única casa que ficava à beira da estrada, e eles disseram-me que ali vivera outrora um indivíduo extremamente avarento; e que, desde o dia de sua morte, alguns viajantes perdidos, que por acaso pernoitavam na sua habitação, ouviam à noite ruídos estranhos: arrastar de correntes, som de passos pelas salas, bem como eram visitados por visões assombrosas.

Agradeci aos viajantes todas essas informações, e despedi-me deles, disposto a viajar toda a noite a fim de reganhar a estrada real.

Caminhando, ia pensando nos mistérios da casa assombrada, nos quais, para dizer com franqueza, pouco acreditava.

O sol entrava na sua agonia sanguinolenta do ocaso. Já nos pontos em que o caminho serpenteava por baixo de moitas sentia-se a invasão das sombras crepusculares, e os insetos noturnos davam os primeiros chilros prenunciadores da grande harmonia da noite, quando senti que o meu cavalo começava a ganhar-se de suor frio, e da andadura ia pouco a pouco descambando para o passo pesado. E essa?! O pobre bicho ia afrouxando, e naquele andar não deitaria mais de meia légua. Conheceis perfeitamente o meu tordilho, não? Era um animal valente, mas desde Vila Rica eu ia puxando por ele, em marchas diárias de seis léguas, e naquele dia já havia vencido sete. Não era, pois, de admirar que o pobre animal desse de si.

Isso, no entanto, contrariou-me extraordinariamente, mas continuei a caminhar.

Daí a um quarto de hora cheguei à porteira de um largo pasto todo gramado, em cujo centro existia uma grande casa silenciosa. Era a casa mal-assombrada! Nem uma voz humana, nem o latir de um cão, nem o pio de uma ave doméstica! Tudo parecia morto ali!

O sol acabava de sumir por trás das grimpas da Mantiqueira, e a noite aproximou-se.

Pus-me a pensar: O meu cavalo estava quase frouxo; avançar mais, seria arriscar-me a estragar o animal, sem nada adiantar; ali, pelo contrário, estava um bom pasto para o pobre bruto, e uma casa que me daria guarida durante a noite. Por que, pois, desprezar tão providenciais comodidades, somente com medo de fantasmas, coisas naturalmente criadas pela imaginação do vulgo ignorante e supersticioso?

Eu nunca fui medroso, graças a Deus! Dispus-me, pois, a passar a noite ali mesmo. Estava bem armado, que podia, temer, portanto?! …

Tomada essa deliberação, abri resolutamente a porteira e penetrei no pasto. A porteira rangeu no enorme gonzo, e fechou-se em seguida, esbarrando com orça no batente de cabiúna. Logo após, ouvi um grande gemido, muito prolongado e alto, partido não sei de onde, mas que me produziu um arrepio em todo o corpo. O meu cavalo espetou as orelhas e estacou nas patas dianteiras, mas não esmoreci: quando tomo uma resolução, tenho por costume levá-la até o fim, custe o que custar.

Assim, dei uma chibatada no animal e orientei-o para a casa.

Antes de chegar ao terreiro, era preciso transpor a porteira de um curral. Abri-a, e, exatamente como sucedeu com a primeira, logo se fez ouvir outro gemido, mais soturno e mais prolongado ainda do que o anterior. Os cabelos tornaram a arrepiar-se-me, e o cavalo bufou. Não me importei. Apeei-me e tratei de tirar a sela do pobre animal, pois queria passar minuciosa revista na casa, antes que anoitecesse de todo.

Fiz isso. Depois de soltar o bicho no pasto, carreguei os arreios nos braços, e subi com eles a escada de uma varanda já um tanto carcomida, que havia na frente da casa, e penetrei na primeira sala da habitação, cujas janelas e portas estavam abertas de par em par. Mal apenas colocara eu o pé na soleira da porta, um outro gemido, ainda mais lúgubre e duradouro que os outros, fez-se ouvir, e parecia tão lancinante, tão magoado, que bem contra a vontade senti o sangue esfriar-me no corpo, e os arreios caíram-me das mãos trêmulas! O meu tordilho, que já então se espojava satisfeito no pasto, ao ouvir essa coisa medonha, ergueu-se de um salto, e disparou, dando a prova mais cabal de se haver também assustado.

Todavia eu tinha que dormir naquela habitação, quer fosse mal assombrada, quer não; havia feito tal propósito, e nada me poderia demover dele. Por isso tirei dos coldres as pistolas, e enchendo-me de ânimo devassei toda a casa; atravessando salas, quartos, corredores e nada encontrei. Tudo estava silencioso!

Quando voltava, porém, para a frente da habitação, vi em um dos cantos da primeira sala um frango pelado, de pernas muito compridas, que ali procurava aninhar-se, como se tivesse aquele costume.

Admirou-me ver aquela ave, pois quando atravessara a primeira vez a sala não a tinha percebido. Contudo não me preocupei por muito tempo. Seria, pensei eu, algum pinto perdido por qualquer pombeiro, e que entrasse enquanto me ocupara em revistar a casa.

* * *

Devia ser isso mesmo, e nem podia ser outra coisa. Quanto aos gemidos, não os regougam tão tétricos as corujas grandes? Conduzi para dentro da sala os arreios; tirei de um picuá o resto do meu almoço; comi-o tranqüilamente, e, depois, estendendo a manta, o bairetro e o capote, fiz deles um leito em que me deitei, confiante em Deus e na minha coragem, tendo antes posto ao alcance das mãos as pistolas e o meu facão de viagem.

Deitei-me, porém não adormeci, embora estivesse bastante cansado. Contra a minha vontade, rolavam-me no cérebro coisas fantásticas, e, à medida que a noite se adiantava, cada vez mais me visitavam tais pensamentos.

Devia de ser mais de onze e meia, e ainda eu me conservava acordado, quando pouco e pouco vi a sala ir se enchendo de uma claridade dúbia, quase insensível no começo, mas que mais e mais ia aumentando. Não podia perceber de onde vinha essa luz estranha, amarelada, lívida, pois não era noite de luar.

Tanto cresceu a claridade, que a sala ficou toda iluminada, e então presenciei uma cena da qual nunca mais me lembrarei sem que se me arrepiem as carnes.

O pinto magro, pelado, que dormia no canto da sala, saiu para o centro. Batendo asas e suspendendo o pescoço, cantou desentoadamente, com um esganiçar irritante, pronunciando estas palavras que ouvi arrepiado de horror:

– É meia-noite: não vens hoje? – E recolheu-se ao canto.

Imediatamente do teto da casa partiu uma voz assombrosa que gritava:

– Gaspar, eu caio!

O pinto lá do seu canto respondeu:

– Não caias!

A voz tornou a gritar:

– Gaspar, eu caio!

E o pinto outra vez respondeu:

– Não caias.

Ainda uma terceira vez a voz falou:

– Gaspar, eu caio!

E eu, cheio de impaciência e ao mesmo tempo apavorado com o que estava presenciando, exclamei:

– Pois, caia!

Mal havia proferido tal frase, quando vi despenhar-se do teto da casa um braço humano e cair no meio da sala com um ruído abafado.

O meu coração batia de modo que parecia querer estalar. Um suor frio inundava-me a fronte, e pela primeira vez na minha vida tive medo deveras.

Daí a alguns minutos a voz tornou a gritar:

– Gaspar, eu caio!

De novo o pinto pelado esganiçou-se e suspendendo o pescoço repetiu:

– Não caias.

Segunda vez a voz falou:

– Gaspar, eu caio!

Na terceira, eu berrei:

– Pois caia!

Caiu outro braço.

A mesma cena repetiu-se por quatro vezes; e eu que vencendo o terror me achava possuído da mais viva curiosidade pelo desenlace daquela comédia horrenda, ia mandando que caísse.

Assim, caiu primeiramente junto aos dois braços uma perna, depois outra, em seguida o tronco e finalmente uma cabeça, que, mal chegou ao soalho, reuniu-se aos diversos pedaços. .. E surgiu à minha vista um fantasma, envolto num longo sudário negro e com os braços cruzados obre o peito!…

O medo que tal aparição me causou não se pode descrever com palavras. São dessas coisas que se sentem, mas não se definem. No entanto, tive forças para empunhar o meu facão de viagem e pôr-me logo em guarda, esperando um ataque. Mas o espectro, estendendo para mim um longo braço descarnado, pronunciou estas palavras com voz sepulcral:

– Nada temas, viandante; não te pretendo fazer mal; a tua coragem salvou-me.

Então balbuciei:

– Quem és tu?

E a aparição respondeu-me:

– A alma-penada de um miserável avarento que, desde o dia que deixou os vivos, vagueia errante, em conseqüência da misérrima paixão que tanto o atormentou em vida. Fui rico e levando meu amor ao ouro até a hora da morte, enterrei uma grande quantidade dele no pasto desta casa. Foi a minha perdição. Minha alma acha-se presa a estes sítios e deles não se apartará, enquanto o dinheiro ali se conservar. Tu tiveste coragem de afrontar o assombro desta habitação. Vou fazer a tua fortuna e libertar-me deste fadário.

Quando o dia romper, irás à porteira do pasto, e na direção de quatro braças ao nascente do batente da mesma porteira, cavarás até a profundidade de quatro palmos. Aí encontrarás um cofre de moedas de ouro em boa espécie. Toma-o para ti e manda dizer sete missas pela alma do finado Gaspar, na igreja que quiseres.

E ao dizer estas últimas palavras tudo desapareceu: fantasma, pinto pelado, luz amarela e tudo.

Os meus nervos não podiam suportar a furiosa tensão a que os havia forçado: afrouxaram repentinamente, e eu, caindo prostrado no leito improvisado, adormeci de sono pesado, sem sonhos, que se prolongou até às 7 horas da manhã do outro dia.

Logo que acordei, pouco me lembrava das terríveis cenas da noite, porém, pouco a pouco elas me foram chegando à memória, e pus-me a pensar se tudo aquilo não seria um delírio da minha imaginação escandecida pela narração dos viajantes e pelo desolado aspecto da habitação.

Todavia procurei uma enxada que logo encontrei no porão da casa e dirigi-me à porteira do pasto. Aí chegado, medi quatro braças ao nascente do batente e pus-me a cavar.

O meu cavalo, que pastava tranqüilamente, a poucos passos distante de mim, levantou a cabeça e pôs-se a encarar-me, e eu me ria comigo mesmo pensando que talvez estivesse representando um papel tão ridículo que até o próprio cavalo dele se admirava.

Contudo continuava a cavar, e de uma das enxadadas senti que o ferro batera em outro ferro. O meu espírito alvoroçou-se com isto; amiudei as pancadas, e dentro em pouco tempo ficou a descoberto um cofre de ferro, tendo por cima um grande argolão. Puxei por ele e o cofre saiu para fora. Estava descoberto o tesouro!

Corri imediatamente os fechos da peça e escancarando-a encontrei-me diante de um monte de belas e reluzentes moedas de ouro. Introduzi-as no picuá e no capote e segui a desempenhar a minha comissão no Rio de Janeiro.

Eis, senhores, como do dia para a noite fiquei rico. Devo esta ventura à minha coragem e ao meu sangue frio.

* * *

De então por diante nunca mais se falou em Vila Rica sobre a fortuna do alferes João Rufino. Pois não era tão natural que ele encontrasse um tesouro enterrado?
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por Viriato Padilha

Fonte: Jangada Brasil - (Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956)