O primeiro homem com quem falamos sobre a ilha do Medo, no porto de Salvador, olhou-nos de alto a baixo e emudeceu. Era um camarada de gestos mecânicos e poucas palavras, mas sabia muita coisa das vizinhanças do mar.
– Sei.
– Fica longe?
– Sim.
– Quantas milhas, mais ou menos, da costa?
– Umas doze ou quinze – disse ele. E empacou novamente.
O outro era um rapaz de olhos vivos e ariscos, blusão de zuarte desbotado aberto no peito e músculos saltados. Falou-nos de distâncias marinhas, peixes, alimentação e embarcações. Mas quando perguntamos se conhecia a ilha do Medo, desfez o sorriso que tinha amontoado num canto da boca e respondeu com secura: “Conheço”.
– Como é que poderíamos ir até lá?
– O senhor pretende ir à ilha do Medo?
– Sim.
– Fazer o que?
– Nada.
Notamos novamente o mesmo olhar do outro homem, nos olhos do rapaz de zuarte. As palavras começaram a diminuir, foram encurtando até virar monossílabos, que saíam angustiados de sua boca.
– Que diabo, rapaz, o que há com a ilha do Medo? Queremos ir até lá por curiosidade, ver o mato, os bichos, as ruínas dos holandeses. Outros querem ver as igrejas, os fortes ou o candomblé. Nós queremos ver a ilha do Medo.
– Mas nunca vai ninguém lá, – disse ele – a ilha está deserta. Só existem bichos selvagens no mato, depois…
– Depois o que?
– Contam coisas de arrepiar os cabelos.
– Que coisas, por exemplo?
O rapaz nos olhou mais uma vez, desconfiado, e disse, retirando-se:
– Se o senhor quiser ir, pode ir, mas eu não levo ninguém lá. Aquela ilha é mal assombrada, está cheia de fantasmas.
Bruxas de goelas de fogo
Miguel estava sentado no casco de um saveiro, emborcado na praia. Ao chegar, cumprimentamos, mas ele apenas levantou um pouco dos olhos a aba do chapéu e nos encarou demoradamente. Só respondeu ao cumprimento depois de familiarizar-se com a nossa presença. Soltou um “boa tarde” atrasado, olhou novamente para um ponto qualquer e começou a falar com desembaraço:
– Gilberto me disse que os senhores querem ir à ilha do Medo.
– Estamos aqui para isso. – Falamos com o moço no porto. – Ele nos informou que o senhor tem um saveiro grande.
– É o Leviatã. Está ali no meio daqueles barcos.
– Será possível sairmos amanhã?
– Sim, mas se não quiserem voltar tarde da noite, terão de se mexer muito cedo, ainda de madrugadinha.
– Bem, nós pretendemos passar o dia na ilha.
O homem fez a volta do saveiro e mexeu no leme, depois pegou uma lata de tinta que havia sobre a areia e encaminhou-se para nós de olhar muito vago e sem interesse.
– Bem moço, não que aquela ilha seja um inferno, mas contam coisas dela. Dizem que é mal assombrada. Os pescadores que se atrasam no mar ouvem gritos que partem de lá, e às vezes chamados pelo seu nome. Esses gritos são roucos e estranhos, como um choro. Vêm da ilha com o vento reboando pelo mar, depois somem e tornam a voltar mais fortes. Quando o mar está calmo, ouvem-se lamentos e uivos. E no meio disso tudo, o chamado, o chamado insistente, entrando pelos ouvidos deles, quando o saveiro está quase parado por falta de vento.
– Não vive ninguém na ilha?
– Ninguém. Faz muito tempo que ela está deserta. Desde o tempo dos holandeses, que tinham lá uma fábrica de pólvora.
E Miguel continua a sua narração estropiadamente, na sua linguagem meio do mar, meio da terra:
– Já viram coisas danadas na ilha do Medo. Uma vez, um pescador voltou dizendo que tinha visto uma mulher de cara negra e feia como a morte, que caminhou da ilha até o seu saveiro, sobre as águas. Tinha a boca imensa e as goelas incendiadas de labaredas vermelhas. Quando cegou ao lado do saveiro, ele sentiu um cheiro de enxofre e pano queimado.
– Mas a mulher fez alguma coisa ao pescador?
E Miguel respondeu:
– Não, mas depois que ele contou a história perdeu a fala para sempre.
– A alma danada dos holandeses que morreram na guerra habita a ilha do Medo, desde aqueles tempos. Se o senhor quiser ir, vá, mas eu não me responsabilizo pelo que houver. Os danados dos holandeses nunca abandonaram aquele lugar. Vivem até hoje na ilha, assustando os homens que se atrasam no mar. Também vão para lá os pescadores que morrem afogados na baía de Todos os Santos. É por isso que quando o mar está calmo, se houvem lamentos e uivos, vindos daquele lado.
Fonte: Jangada Brasil in "Sem indicação de autoria. “Na ilha do Medo há coisas de arrepiar os cabelos”. Folha de Minas. 29 de julho de 1951".
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