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domingo, 25 de março de 2018

O Homem na Multidão

Quadrinhos do Terror apresenta: "O Homem na Multidão" (Adaptação livre do conto de Edgar Allan Poe). Revista Calafrio nº 05, abril/1982. Desenhos de Rodolfo Zalla. Estúdio D - Arte Criações Ltda, São Paulo (tomara que a próxima história seja melhor, eh eh eh).

"Calafrio" foi uma revista de histórias em quadrinhos de terror que circulou de 1981 até o início dos anos 1990. Pertencia à editora D-Arte (fundada em 1981, em São Paulo) de Rodolfo Zalla. Era uma produção só com artistas nacionais.




sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

O Gato Negro I

"Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes.

Uma fúria demoníaca se apoderou, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.

Tirei do bolso um canivete, o abri, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! ..."

Ilustração de Bernie Wrightson para revista em quadrinhos sobre o conto "O Gato Negro" de Edgar Allan Poe:


O Gato Negro II

"O gato nos seguiu e, quase me fazendo rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo.

Mas minha mulher me segurou o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e lhe  cravei a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido ..."

Ilustração de Bernie Wrightson para revista em quadrinhos sobre o conto "O Gato Negro" de Edgar Allan Poe:


sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Morella

Quadrinhos do Terror apresenta: "Morella" (Adaptação do conto de Edgar Allan Poe). Revista Calafrio nº 01 de 14/12/1981. Desenhos de Eugenio Colonnese. Estúdio D - Arte Criações Ltda, São Paulo.

"Calafrio" foi uma revista de histórias em quadrinhos de terror que circulou de 1981 até o início dos anos 1990. Pertencia à editora D-Arte (fundada em 1981, em São Paulo) de Rodolfo Zalla. Era uma produção só com artistas nacionais. 

Tinha colaboração (em desenho e argumentação) de nomes consagrados e/ou até mesmo de artistas à época novatos, como Eugênio Colonnese, o próprio Rodolfo Zalla, Flávio Colin, Júlio Shimamoto, Mozart Couto, Rubens Cordeiro, Ota, Jayme Cortez, Watson Portela, Gedeone Malagola, Edmundo Rodrigues, Lyrio Aragão, Wilson Vieira, etc.




domingo, 11 de dezembro de 2016

O Coração Delator


É verdade! Tenho sido e sou nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso! Mas, por que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me aguçou os sentidos, não os destruiu, não os entorpeceu. Era penetrante, acima de tudo, o sentido da audição. Eu ouvia todas as coisas, no céu e na terra. Muitas coisas do inferno ouvia. Como, então, sou louco?

Prestai atenção! E observai quão lucidamente, quão calmamente vos posso contar toda a estória.

É impossível dizer como a ideia me penetrou primeiro no cérebro. Uma vez concebida, porém, ela me perseguiu dia e noite. Não havia motivo. Não havia cólera. Eu gostava do velho. Ele nunca me fizera mal. Nunca me insultara. Eu não desejava seu ouro. Penso que era o olhar dele! Sim, era isso! Um de seus olhos se parecia com o de um abutre ... um olho de cor azul-pálido, que sofria de catarata.

Meu sangue se enregelava sempre que ele caía sobre assim, e assim, pouco a pouco, bem lentamente, fui-me decidindo a tirar a vida do velho e assim libertar-me daquele olho para sempre.

Ora, aí é que está o problema. Imaginais que sou louco.

Os loucos nada sabem. Deveríeis, porém, ter-me visto. Deveria ter visto como procedi cautamente! Com que prudência ... com que previsão ... com que dissimulação lancei mãos à obra!

Eu nunca fora mais bondoso para com o velho do que durante a semana inteira antes de matá-lo. E todas as noites, por meia-noite, eu girava o trinco da porta de seu quarto e abria-a … oh, bem devagarinho. E depois, quando a abertura era suficiente para conter minha cabeça, eu introduzia uma lanterna com tampa toda velada, bem velada, de modo que nenhuma luz se projetasse para fora, e em seguida enfiava a cabeça. Oh, teríeis rido ao ver como a enfiava habilmente!

Movia-a lentamente ... muito ... muito lentamente, a fim de não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para colocar a cabeça inteira além da abertura, até podê-lo ver deitado na cama. Ah! Um louco seria precavido assim? E depois quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna cautelosamente ... - oh, bem cautelosamente! Sim, cautelosamente (porque a dobradiça rangia) ... abria-a só até permitir que apenas um débil raio de luz caísse sobre o olho de abutre.  E isto eu fiz durante sete longas noites ... sempre precisamente a meia-noite ... e sempre encontrei o olho fechado. Assim, era impossível fazer a minha tarefa, porque não era o velho que me perturbava, mas seu olho diabólico.

E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu penetrava atrevidamente no quarto e falava-lhe sem temor, chamando-o pelo nome com ternura e perguntando como havia passado a noite. Por aí vedes que ele precisaria ser um velho muito perspicaz para suspeitar que todas as noites, justamente as doze horas, eu o espreitava, enquanto dormia.

Na oitava noite, fui mais cauteloso do que de hábito ao abrir a porta. O ponteiro dos minutos de um relógio mover-se-ia mais rapidamente do que meus dedos. Jamais, antes daquela noite, sentira eu tanto a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade. Mal conseguia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que ali estava eu, a abrir a porta, pouco a pouco, e que ele nem sequer sonhava com os meus atos ou pensamentos secretos. Ri entre os dentes, a essa ideia, e talvez ele me tivesse ouvido, porque se moveu de súbito na cama, como se assustado. Pensais talvez que recuei? Não!

O quarto dele estava escuro como piche, espesso de sombra, pois os postigos se achavam hermeticamente fechados, por medo aos ladrões. E eu sabia, assim, que ele não podia ver a abertura da porta; continuei a avançar, cada vez mais, cada vez mais. Já estava com a cabeça dentro do quarto e a ponto de abrir a lanterna, quando meu polegar deslizou sobre o fecho de lata e o velho saltou na cama, gritando: Quem está aí?

Fiquei completamente silencioso e nada disse. Durante uma hora inteira, não movi um músculo e, por todo esse tempo, não o ouvi deitar-se de novo. Ele ainda estava sentado na cama, à escuta; justamente como eu fizera, noite após noite, ouvindo a ronda da morte próxima.

Depois ouvi um leve gemido e notei que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de pesar ... oh, não! Era o som grave e sufocado que se ergue do fundo da alma quando sobrecarregada de medo. Bem conhecia esse som. Muitas noites, ao soar meia-noite, quando o mundo inteiro dormia, ele irrompia de meu próprio peito, aguçando, com seu eco espantoso, os terrores que me aturdiam. Disse que bem o conhecia. Conheci também o que o velho sentia e tive pena dele, embora abafasse um riso no coração. Eu sabia que ele ficara acordado desde o primeiro leve rumor, quando se voltara na cama.

Daí por diante, seus temores foram crescendo. Tentara imaginá-los sem motivo, mas não fora possível. Dissera si mesmo: "É só o vento na chaminé…ou é só um rato andando pelo chão", ou "foi apenas um grilo que cantou; um instante só. Sim ele estivera tentando animar-se com estas suposições, mas tudo fora em vão. Tudo em vão, porque a Morte, ao aproximar-se dele, projetara sua sombra negra para a frente, envolvendo nela a vítima. E era a influência tétrica dessa sombra não percebida que o levava a sentir - embora não visse nem ouvisse -, a sentir a presença de minha cabeça dentro do quarto.

Depois de esperar longo tempo, com muita paciência, sem ouvi-lo deitar-se, resolvi abrir um pouco, muito, muito pouco, a tampa da lanterna. Abri-a - podeis imaginar quão furtivamente - até, que por fim, um raio de luz apenas, tênue como o fio de uma teia de aranha, passou pela fenda e caiu sobre o olho de abutre. Ele estava aberto ... todo, plenamente aberto ... e, ao contemplá-lo a minha fúria cresceu. Vi-o, com perfeita clareza, todo de um azul-desbotado, com uma horrível película a cobri-lo, o que me enregelava até a medula dos ossos. Mas não podia ver nada mais da face ou do corpo do velho, pois dirigira a luz, como por instinto, sobre o maldito lugar.

Ora, não vos disse que apenas é super acuidade dos sentidos aquilo que erradamente julgais loucura? Repito, pois, que chegou a meus ouvidos um som baixo, monótono, rápido como o de um relógio quando abafado em algodão. Igualmente eu bem sabia que som era.  Era o bater do coração do velho. Ele me aumentava a fúria como o bater de um tambor estimula a coragem do soldado.

Ainda aí, porém, refreei-me e fiquei quieto. Tentei manter tão fixamente quanto pude a réstia de luz sobre o olho do velho. Entretanto, o infernal tã-tã do coração aumentava. A cada instante ficava mais alto, mais rápido, mais alto, mais rápido! O terror do velho deve ter sido extremo! Cada vez mais alto, repito a cada momento!

Prestais-me bem atenção? Disse-vos que sou nervoso, sou. E então, àquela hora morta da noite, o bater tão estranho excitou em mim um terror incontrolável. Contudo, por alguns minutos mais, dominei-me e fiquei quieto. Mas o bater era cada vez mais alto. Julguei que o coração ia rebentar. E, depois, nova angustia me aferrou: o rumor poderia ser ouvido por um vizinho! A hora do velho tinha chegado! Com um alto berro, escancarei a lanterna e pulei para dentro do quarto.

Ele guinchou mais uma vez ... uma vez só. Num instante, arrastei-o para o soalho e virei a pesada cama sobre ele. Então sorri alegremente por ver a façanha realizada. Mas, durante muitos minutos, o coração continuou a bater, com som surdo. Isto, porém, não me vexava. Não seria ouvido através da parede. Afinal cessou. O velho estava morto. Removi a cama e examinei o cadáver. Sim, era uma pedra, morto como uma pedra. Coloquei minha mão sobre o coração e ali a mantive durante muitos minutos. Não havia pulsação. Estava petrificado. Seu olhos não mais me perturbariam.

Se ainda pensais que sou louco, não mais o pensareis, quando eu descrever as sábias precauções que tomei para ocultar o cadáver. A noite avançava e eu trabalhava apressadamente, porém em silêncio. Em primeiro lugar, esquartejei o corpo. Cortei-lhe a cabeça, os braços e as pernas. Arranquei depois três pranchas do soalho do quarto e coloquei tudo entre os vãos. Depois recoloquei as tábuas, com tamanha habilidade e perfeição que nenhum olhar humano - nem mesmo o dele -  poderia distinguir qualquer coisa suspeita. Nada havia a lavar ... nem mancha de espécie alguma ... nem marca de sangue. Fora demasiado prudente no evitá-las. Uma tina tinha recolhido tudo ... ah, ah, ah!

Terminadas todas essas tarefas, eram já quatro horas. Mas ainda estava escuro como se fosse meia-noite. Quando o sino soou a hora, bateram à porta da rua. Desci a abri-la, de coração ligeiro, pois que tinha eu agora a temer? Entraram três homens, que se apresentaram, com perfeita mansidão, como soldados de polícia.

Fora ouvido um grito por um vizinho, durante a noite. Despertara-se a suspeita de um crime. Tinha-se formulado uma denúncia à polícia e eles, soldados, tinham sido mandados para investigar.

Sorri, pois ... que tinha eu a temer? Dei as boas-vindas aos cavalheiros. O grito, disse eu, fora meu mesmo, em sonhos. O velho, relatei, estava ausente, no interior. Levei meus visitantes a percorrer toda a casa. Pedi-lhes que dessem busca completa. Conduzi-os, afinal, ao quarto dele.

Mostrei-lhes suas riquezas, em segurança, intactas. No entusiasmo de minha confiança, trouxe cadeiras para o quarto e mostrei desejos de que eles ficassem ali, para descansar de suas fadigas, enquanto eu mesmo, na desenfreada audácia de meu perfeito triunfo, colocava minha própria cadeira propriamente sobre o lugar onde repousava o cadáver da vítima.

Os soldados ficaram satisfeitos. Minhas maneiras os haviam vencido. Sentia-me singularmente à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia cordialmente, conversaram coisas familiares. Mas dentro em pouco, senti que ia empalidecendo e desejei que eles se retirassem. Minha cabeça doía e parecia-me ouvir zumbido nos ouvidos; eles, porém, continuavam sentados e continuavam a conversar. O zumbido tornou-se mais distinto; continuou e tornou-se ainda mais perceptível.

Eu falava com mais desenfreio, para dominar a sensação; ela, porém, continuava e aumentava sua perceptibilidade ... até que, afinal, descobri que o barulho não era dentro dos meus ouvidos.

É claro que então a minha palidez aumentou. Mas eu falava ainda mais fluentemente e num tom de voz muito elevada. Não obstante, o som se avolumava ... E que podia eu fazer era um som grave, monótono, rápido ... muito semelhante ao de um relógio envolto em algodão. Respirava com dificuldade... e no entanto, os soldados não o ouviram. Falei mais depressa ainda, com mais veemência. Mas o som aumentava constantemente. Levantei-me e fiz perguntas a respeito de ninharias, num tom bastante elevado e com violenta gesticulação, mas o som constantemente aumentava. Por que não se iam eles embora?

Andava pelo quarto acima e abaixo, com largas e pesadas passadas, como se excitado até a fúria pela vigilância dos homens; mas o som aumentava constantemente. Oh, Deus! Que poderia eu fazer? Espumei ... enraivecido ... praguejei! Fiz girar a cadeira sobre a qual estivera sentado e arrastei-a sobre as tábuas, mas o barulho se elevava acima de tudo e continuamente aumentava. Tornou-se mais alto ... mais alto ... mais alto! E os homens continuavam ainda a passear, satisfeitos e sorriam. Seria possível que eles não ouvissem? Deus Todo-Poderoso! Não, não! Eles suspeitavam! Eles sabiam! Estavam zombando do meu horror! Isto pensava eu e ainda penso. Outra coisa qualquer, porém, era melhor que aquela agonia!

Qualquer coisa era mais tolerável que aquela irrisão! Não podia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Sentia que devia gritar ou morrer, e agora de novo ... escutai ... mais alto ... mais alto ... mais alto ... mais alto! ...

- Vilões! - trovejei. - Não finjam mais! Confesso o crime!  Arranquem as pranchas! Aqui, aqui! Ouçam o batido do seu horrendo coração!



Um conto de Edgar Allan Poe

quarta-feira, 4 de abril de 2012

O Diabo no campanário

Que horas são? (Velho ditado)

Toda a gente sabe, de modo geral, que o mais belo lugar do mundo é… ou, aí! era o burgo holandês de Vondervotteimittiss,. Contudo, como se encontre a alguma distância de qualquer das principais estradas, estando de certo modo fora de mão, talvez poucos de meus leitores o tenham alguma vez visitado.

Em benefício daqueles que não o hajam visitado, portanto, acho acertado dar alguns informes a seu respeito. E isto é, de fato, tanto mais necessário quanto, na esperança de conquistar a simpatia pública para seus habitantes, me proponho aqui relatar a historia dos acontecimentos calamitosos, que recentemente ocorreram, dentro de seus limites.

Ninguém que me conheça duvidará de que o dever assim imposto a mim mesmo será cumprido, com o melhor da minha habilidade, com toda aquela severa imparcialidade, todo aquele exame cauteloso dos fatos e diligente citação de autoridades, que sempre distinguiram aquele que aspira ao título de historiador.

Graças ao auxílio reunido de medalhas, manuscritos e inscrições, estou capacitado a afirmar positivamente, que o burgo de Vondervotteimittiss sempre existiu, desde suas origens, precisamente nas mesmas condições em que se conserva em nossos dias. A respeito da data de sua origem, porém, lamento só poder falar com aquela espécie de precisão indefinida a que são forçados, às vezes, os matemáticos, a sujeitar-se, em certas fórmulas algébricas. A data, posso assim exprimir-me, em relação à sua remota antiguidade, não pode ser menor que qualquer quantidade determinável.

No que se refere à etimologia da palavra Vondervotteimittiss, confesso-me com pesar igualmente em falta. Em meio duma multidão de opiniões sobre este delicado ponto, algumas argutas, algumas eruditas, outras suficientemente o contrário, nada posso escolher que deva ser considerado satisfatório.

Talvez a opinião de Grogswigg, quase coincidente com a de Kroutaplentey, deva ser prudentemente preferida. É a seguinte: "Vondervotteimittiss - Vonder, longe Donder - Votteimittiss quasi und Bleitziz - Bleitziz obsol: pro Blitzen." Esta derivação, para falar a verdade, é ainda sustentada por alguns restos do fluido elétrico, evidentes no alto do campanário da Casa do Conselho Municipal.

Não pretendo, contudo, comprometer-me sustentar uma tese de tal importância, devo endereçar o leitor, desejoso de informação, ao livro ORATIUNCULAE DE RERUS PROETER-VETERIS de Dundergutz. Veja, também, Blunderbuzzard, DE DERIVATIONIBUS, pp. 27 a 5010, in-fólio, edição gótica, caracteres vermelhos e negros, com chamadas e em monograma; consulte também, as notas marginais no autógrafo de Stuffundpuff, com os sub-comentários de Gruntundguzzell.

Não obstante a obscuridade que envolve dessa forma a data da fundação de Vondervotteimittiss e a etimologia de seu nome, não pode haver dúvida, como disse antes, que ele sempre existiu tal como o vemos na época atual. O mais velho homem do burgo não pode recordar-se da mais leve diferença, na sua aparência de qualquer porção dele, e, de fato, a simples sugestão de tal possibilidade é considerada um insulto.

A aldeia está situada num vale perfeitamente circular, com cerca dum quarto de milha de circunferência e inteiramente cercada de leves colinas, cujos cumes ninguém de lá se aventurou ainda a passar, e seus habitantes dão como boa razão disto não acreditarem que haja absolutamente alguma coisa do outro lado.

Em torno das ourelas do vale (que é completamente plano e todo pavimentado de tijolos lisos), estende-se uma fila contínua de sessenta casinhas. Estas, dando os fundos para as colinas olham, sem dúvida, para o centro da planura, que fica justamente a sessenta jardas, da porta da frente de cada habitação.

Cada casa tem um pequeno jardim à frente, com um caminho circular, um relógio de sol e vinte e quatro couves. As próprias construções são tão precisamente idênticas, que não se pode distinguir de maneira alguma, uma da outra. Devido à sua extrema antiguidade, o estilo arquitetónico é um tanto esquisito, mas nem por isso deixa de ser notavelmente pitoresco.

As casas são feitas de pequenos tijolos bem cozidos, vermelhos, com cantos pretos, de modo que as paredes parecem um tabuleiro de xadrez, de grandes proporções. Os torreões estão voltados para a frente e há cornijas tão grandes, como todo o resto da casa, sobre os beirais e as portas principais. As janelas são estreitas e profundas, com pequeninas vidraças e grande quantidade de caixilhos. Nos telhados, numerosas são as telhas com longas ponta arrebitadas. O madeiramento, por toda a parte, apresenta uma cor escura, muito lavrado, mas com pouca variedade de desenhos, pois desde tempo imemorial, os entalhadores de Vondervotteimittiss nunca foram capazes de entalhar mais do que dois objetos: um relógio de mesa e uma couve. Mas estes faziam-nos demasiadamente bem e os entremeava, com singular habilidade, por toda a parte onde encontrassem lugar para o cisel.

As habitações tanto se parecem, interna como externamente, e o mobiliário obedece todo a um só modelo. O chão é de tijolos quadrados, as cadeiras e mesas de madeira preta, com pernas delgadas e recurvas e pés de cachorrinho. As chaminés são largas e altas e não tem somente relógios e couves insculpidos na frontaria, mas um verdadeiro relógio que emite um prodigioso tique-taque, bem no meio e no alto, com um jarro de flores em cada extremidade, contendo uma couve, como se fosse um batedor. Entre cada couve e o relógio há ainda um homenzinho de porcelana, com uma grande barriga, onde se abre um buraco redondo, através do qual vê-se o mostrador dum relógio.

São as lareiras largas e profundas, com cães-de-chaminé grosseiros e retorcidos. Constante fogo se alteia, com uma imensa marmita sobre ele, cheia de chucrute e carne de porco, sempre vigiada pela boa dona da casa. É uma velhinha gorducha, de olhos azes e rosto vermelho, usando uma enorme touca, semelhante a um pão de açúcar, ornado de fitas vermelhas e amarelas. Seu vestido é de droguete, cor de laranja, muito amplo atras e muito curto na cintura e, na verdade, sob outros aspectos, curtíssimo, não passando do meio das pernas. Estas e os tornozelos são grossos, mas cobertos por um lindo par de meias verdes. Seus sapatos, de couro cor de rosa, são amarrados por laço de fitas amarelas, pregueados em forma de couve. Na mão esquerda usa ela um pesado reloginho holandês e na direita empunha um colherão, para a chucrute e a carne de porco. A seu lado, aninha-se um gordo gato malhado, tendo amarrado à cauda, pelos "meninos", por pilhéria um dourado relógio de repetição, de brinquedo.

Quanto aos meninos da casa, estão todos três cuidando do porco no jardim. Têm cada um dois pés de altura. Usam chapéus de três pontas, coletes encarnados, que lhes caem até as coxas, calções de couro de gamo, meias de lã vermelha, sapatões com grandes fivelas de prata e longos gabões, com grandes botões de madrepérola.

Cada um tem também um cachimbo na boca e um pequeno relógio barrigudo, na mão direita. Solta uma baforada e dá uma olhadela para o relógio. Outra baforada e outra olhadela. O porco - que é corpulento e preguiçoso, - está ocupado ora em fossar as folhas esparsas, caídas dos pés de couve ora a dar um pontapé para trás, no dourado relógio de repetição, que os garotos amarraram-lhe à cauda, a fim de torná-lo tão belo, quanto o gato.

Bem defronte da porta, numa cadeira de braços de alto espaldar e fundo de couro, de pernas torneadas e pés de cachorrinho como as mesas, esta sentado o próprio dono da casa. É um velhinho, excessivamente gorducho, com grandes olhos redondos e uma imensa papada. Seu traje se assemelha ao dos meninos; portanto, não preciso dizer nada mais a seu respeito.

Toda a diferença esta em que seu cachimbo é um tanto maior do que o deles e ele pode dar uma baforada maior. Como eles, tem um relógio, mas leva-o no bolso. Para falar a verdade, tem ele algo de mais importante a atender e que isso seja passarei a explicar. Ele se senta, com a perna direita sobre o joelho esquerdo, mostra uma fisionomia grave e conserva sempre um dos olhos, pelo menos, resolutamente fixo sobre certo objeto notável, no centro do largo.

Este objeto está situado no campanário da casa do Conselho Municipal. Os conselheiros municipais são todos homens pequeninos, redondos, gorduchos e inteligentes, com grandes olhos de boi e gordas papadas e tem os gabões muito mais compridos e as fivelas dos sapatos muito maiores, do que os habitantes comuns de Vondervotteimittiss.

Desde que moro no burgo, tiveram eles varias reuniões especiais e adotaram estas três importantes resoluções:

"Não está direito alterar o bom e velho curso das coisas."

"Nada existe de tolerável fora de Vondervotteimittiss".

"Juramos fidelidade aos nossos relógios e couves".

Acima da sala de sessões do Conselho acha-se a torre e na torre o campanário, onde existe e tem existido, desde tempos imemoriais, o orgulho e maravilha da aldeia: o grande relógio do burgo Vondervotteimittiss. E é para este objeto que se volvem os olhos dos velhos, que se assentam nas cadeiras de braços de fundo de couro.

O grande relógio tem sete faces, uma para cada um dos sete lados da torre, de modo que pode ser prontamente visto de todos os quarteirões. Seus mostradores são largos e brancos e seus ponteiros grossos e negros. Há um sineiro, cuja única obrigação é cuidar do campanário, obrigação esta que é mais perfeita das sinecuras, pois o relógio de Vondervotteimittiss nunca, que se saiba, precisou de conserto.

Até recentemente, a mera posição de tal coisa era considerada herética. Desde a mais remota antiguidade, a que se referem os arquivos, as horas tem sido regularmente batidas pelo grande sino. E, na verdade, a mesma coisa acontecia com todos os outros relógios de parede e de bolso do burgo. Jamais houve um lugar onde se marcasse tão bem a hora certa. Quando o grande badalo achava conveniente dizer "Doze horas", todos os seus obedientes servidores abriam suas gargantas, simultaneamente, e respondiam, como um verdadeiro eco. Em suma, os bons burgueses eram loucos pela sua chucrute, mas orgulhavam-se também dos seus relógios.

Toda as pessoas que exercem sinecuras são tratadas com mais ou menos respeito e com o sineiro de Vondervotteimittiss tivesse a mais perfeita das sinecura era o mais perfeitamente respeitado de todos os homens do mundo. É o principal dignitário do burgo e até os porcos olham para ele, com sentimento de reverência. A aba de seu gabão é bem mais comprida; seu cachimbo, as fivelas de seus sapatos, seus olhos e seu estômago, bem maiores do que os de qualquer outro velho da aldeia. E quanto à sua papada, e não somente dupla, mas tripla.

Acabo de descrever a feliz situação de Vondervotteimittiss. Que pena que tão lindo quadro tivesse algum dia de apresentar um reverso!

Um velho ditado corria, há muito, entre os mais sábios habitantes: que "nada de bom pode vir de além das colinas; e realmente parece que as palavras contêm algo do espírito profético.

Faltavam cinco para meio-dia, ante de ontem, quando apareceu um objeto, bastante esquisito, no cume da crista de leste. Tal fato, por certo, atraiu a atenção geral, e cada velhinho, que estava sentado numa cadeira de braços, de fundo de couro, voltou um dos olhos, com um olhar de consternação, para o fenômeno, conservando ainda o outro olho sobre o relógio da torre. Faltavam três minutos apenas para o meio-dia, quando se verificou que o estranho objeto em questão era um rapazinho, bem pequeno e de aparência estrangeira. Desceu as colina a toda carreira, de modo que todos, em breve, puderam vê-lo bem.

Era, na realidade, a criaturinha mais esquisita, que jamais fora vista em Vondervotteimittiss. Seu rosto era de um negro cor de rapé e tinha um longo nariz adunco, olhos miúdos, uma boca larga e admirável dentadura, que ele parecia ter gosto em exibir, escancarando a boca de orelha a orelha. Além de bigodes e suíças, nada mais havia a ver no resto de seu rosto. Estava com a cabeça descoberta e seu cabelo fora cuidadosamente arranjado com papelotes.

Seu traje era uma casaca preta, bem apertada, terminando em cauda de andorinha (de um de cujos bolsos pendia um enorme lenço branco), calções de casimira preta, meias pretas escarpins de entrada baixa, tendo, como laços, enormes molhos de fita de cetim preto. Sob um braço, levava um desmedido claque e debaixo do outro uma rabeca, quase cinco vezes tão grande quanto ele próprio. Na mão esquerda trazia uma tabaqueira de ouro, da qual, enquanto cabriolava, colinas abaixo, dando os passos mais fantásticos, ia tomando incessantes pitadas, com um ar da maior satisfação possível. Valha-me Deus! Que espetáculo para os honestos burgueses de Vondervotteimittiss.

Para falar claramente, o sujeito tinha, a despeito de seu sorriso, uma espécie de cara audaciosa e sinistra e, enquanto galopava, diretamente, rumo à aldeia, o aspecto acalcanhado de seus escarpins excitou não poucas suspeitas. E mais de um burguês, que o contemplou naquele dia, teria dado qualquer coisa por uma olhadela, sob o lenço de cambraia branca, que pendia tão impertinentemente do bolso de sua casaca de rabo de andorinha. Mas o que causou principalmente justa indignação foi que o velhaco peralvilho, enquanto dançava um fandango aqui e dava uma pirueta ali, não parecia ter a mais remota ideia disso que se chamava marcar compasso na dança.

O bom povo do burgo, contudo, mal tivera ocasião de abrir completamente os olhos, quando, precisamente, ao faltar meio minuto para o meio-dia, o patife saltou, como eu disse, bem no meio deles, deu um casses aqui, um balances ali; e, em seguida, depois de uma pirueta em pas de zéphyr, subiu em voo de pombo, para o campanário, da casa do Conselho Municipal, onde o aterrorizado sineiro se achava sentado, fumando, num estado de dignidade e pavor.

Mas o sujeitinho agarrou-o imediatamente pelo nariz, deu-lhe um piparote e um puxão, bateu-lhe com o grande claque na cabeça, enfiando-lho até os olhos e a boca e depois, levantando o rabecão, bateu com ele no homem, sineiro tão gordo e a rabeca tão oca, a gente teria jurado que cabia um regimento de tocadores de bombos, batendo todos os tam-tam do diabo, no campanário da torre de Vondervotteimittiss.

Não se sabe a que ato desesperado de vingança podia esse ataque revoltante ter levado os habitantes, não fosse o importante fato de que faltava agora apenas meio segundo, para o meio-dia. O sino estava quase a bater e era questão de absoluta e premente necessidade que todos olhassem bem para o seu relógio. Era evidente, porém, que justamente, nesse momento, o sujeito, lá na torre, estava fazendo algo, que não devia com o relógio. Mas como este estivesse agora a bater, ninguém tinha tempo de prestar atenção às manobras do tal, pois tinham todos de contar as pancadas do sino, à proporção que soavam.

- "Uma!" - disse o relógio.

- "Una" - respondeu em eco cada um dos velhotes, em cada uma das cadeiras de braço de fundo de um couro, em Vondervotteimittiss. "Una"- disse também o relógio de bolso deles.

"Una!"- disse o relógio de sua "frau". E "Una!" disseram os relógios dos meninos e os relogiozinhos de repetição, nas caudas do gato e do porco.

- "Duas!"- continuou o grande sino. E

- "Tuas!"- repetiram todos os repetidores.

- "Três! Quatro! Cinco! Seis! Sete! Oito! Nove! Dez!"- disse o sino.

- Drês! Guadro! Zingo! Zeis!Zete! Oito! Nofe! Tez!"- responderam os outros.

- "Onze!"- disse o sino grande.

- "Once!"- concordaram os pequenos.

- "Doze!"- disse o sino.

- "Toce!"- replicaram, perfeitamente satisfeito, ritmando as vozes.

- E zong toce horras! - disseram todos os velhinhos, tornando a guardar seus relógios. Mas o sino grande não dera a coisa por terminada.

- TREZE! - disse ele.

"Des Teufel! - disseram ofegantes os velhotes, empalidecendo, deixando cair os cachimbos e as pernas direitas de cima dos joelhos esquerdos.

- "Der Teufel! - gemeram eles.

"Drece! Drece! Mein Gott! Zong drece horras! Por que tentar descrever a terrível cena que se seguiu? Toda Vondervotteimittiss precipitou-se imediatamente em lamentável tumulto. - Gue fai agondezer ao meu parriga? - berravam todos os rapazes.

- Estar gom uma horra te vome! - Gue fai agondezer ao meu coufe? - guinchavam todas as mulheres. - Estar firando mingau teste uma horra! - "Gue fai agontecer ao meu gajimba? - praguejavam todos os velhotes. - Raias e Drovongs! Teve estarabacata teste una horra!" E os encheram de novo com grande raiva e, encostando-se e tão violentas, que todo o vale imediatamente ficou cheio de impenetrável fumaça.

Entrementes, todas as couves ficaram bastante vermelhas e pareciam que o próprio Diabo velho tomara posse de tudo quanto tinha forma de relógio. Os relógios esculpidos, sobre os móveis, começaram a dançar, como se estivessem enfeitiçados, enquanto os que se achavam sobre as chaminés mal podiam conter-se de furor e tão continuamente batiam as treze horas, com tais pulos e balanços de seus pêndulos, que era coisa realmente horrível de ver-se.

Mas o pior de tudo é que nem os gatos, nem os porcos, podiam suportar por mais tempo a conduta dos remoinhos de repetição, amarrados às suas caudas, e vingavam-se disso, abalando todos precipitadamente para o largo, arranhando, empurrando, grunhindo e guinchando, miando e berrando, voando de encontro às caras, correndo para baixo das saias das mulheres e provocando a mais completa, a mais abominável, a mais barulhenta confusão que é possível uma pessoa de juízo conceber. E para tornar as coisas ainda mais angustiosas, o velhaquinho mandrião, lá na torre, estava evidentemente se excedendo.

De vez em quando, podia-se vislumbrar o patife, através da fumaça. Achava-se sentado ainda no campanário, em cima do sineiro, que jazia completamente espichado de costas. Nos dentes, o infame conservava a corda do sino, que agitava em torno com a cabeça, fazendo tal barulheira, que meus ouvidos ainda retinem, só de pensar nisso. Em seus joelhos repousava a enorme rabeca, cujas cordas ele tangia, fora de qualquer compasso ou toada, com ambas as mãos, procurando exibir-se, o palhaço, a tocar, com ambas as mãos, procurando exibir-se, o palhaço a tocar as canções "Judy O'Flannagan"e "Paddy O'Rafferty".

Estando assim as coisas neste miserável estado, abandonei o lugar, cheio de desgosto, e agora faço um apelo a todos os amantes da hora certa e da boa chucrute. Vamos todos, incorporados, ao burgo, e restauremos a antiga ordem de coisas, em Vondervotteimittiss, jogando aquele sujeitinho de cima da torre.


segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O Coração Delator

É verdade. Tenho sido e sou nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso. Mas, por que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me aguçou os sentidos, não os destruiu, não os entorpeceu. Era penetrante, acima de tudo, o sentido da audição. Eu ouvia todas as coisas, no céu e na terra. Muitas coisas do inferno eu ouvia. Como, então, sou louco? Prestai atenção. E observai quão lucidamente, quão calmamente vos posso contar toda a história.

É impossível dizer como a idéia me penetrou primeiro no cérebro; uma vez concebida, porém, ela me perseguiu dia e noite. Não havia motivo. Não havia cólera. Eu gostava do velho. Ele nunca me fizera mal. Nunca me insultara. Eu não desejava seu ouro.

Penso que era o olhar dele. Sim, era isso. Um de seus olhos se parecia com o de um abutre.... um olho de cor azul pálida, que sofria de catarata. Meu sangue se enregelava, sempre que ele caía sobre mim; e assim, a pouco e pouco, bem lentamente, fui-me decidindo a tirar a vida do velho e desse modo libertar-me daquele olho para sempre.

Ora, aí é que está o problema. Imaginais que sou louco. Os loucos nada sabem. Deveríeis, porem, ter-me visto. Deveríeis ter visto como precedi cautamente, com que prudência, com que previsão, com que dissimulação, lancei mãos à obra.

Eu nunca fora mais bondoso para com o velho que durante a semana inteira, antes de matá-lo. E todas as noites, por volta da meia-noite, eu girava o trinco da porta de seu quarto e abria... Oh! Bem devagarinho. E depois, quando a abertura era suficiente para conter minha cabeça, eu introduzia uma lanterna com tampa, toda velada, bem velada, de modo que nenhuma luz se projetasse para fora, e, em seguida, enfiava a cabeça. Oh! teríeis rido ao ver como a enfiava habilmente. Movia-a lentamente, muito, muito lentamente, a fim de não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para colocar a cabeça inteira além da abertura, até poder vê-lo deitado na cama. Ah! Um louco seria precavido assim? E depois, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna cautelosamente... Oh! bem cautelosamente!... cautelosamente... porque a dobradiça rangia... abria-a só até permitir que apenas um débil raio de luz caísse sobre o olho de abutre. E isto eu fiz durante sete longas noites... sempre precisamente à meia-noite... e sempre encontrei o olho fechado. Assim, era impossível fazer a minha tarefa, porque não era o velho que me perturbava, mas o seu olho diabólico. E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu penetrava atrevidamente no quarto e falava-lhe sem temor, chamando-o pelo nome com ternura e perguntando como havia passado a noite. Por aí vedes que ele precisaria ser um velho muito perspicaz, para suspeitar que todas noites, justamente à meia-noite, eu o espreitava, enquanto dormia.

Na oitava noite, fui mais cauteloso do que de habito, ao abrir a porta. O ponteiro dos minutos de um relógio mover-se-ia mais rapidamente que meus dedos. Jamais, antes daquela noite, sentira eu tanto a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade. Mal conseguia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que ali estava eu, a abrir a porta, pouco a pouco, e que ele nem sequer sonhava com os meus atos ou pensamentos secretos... Ri com gosto, entre os dentes, a essa idéia... E talvez ele me tivesse ouvido, porque se moveu de súbito na cama, como se assustado. Pensai talvez que recuei? Não! O quarto dele estava escuro como piche, espesso de sombra, pois os postigos se achavam hermeticamente fechados, por medo dos ladrões. E eu sabia, assim, que ele não podia ver a abertura da porta. Continuei a avançar. Cada vez mais. Cada vez mais.

Já estava com a cabeça dentro do quarto a ponto de abrir a lanterna, quando meu polegar deslizou sobre o fecho de lata e o velho saltou da cama, gritando: "Quem está ai?"

Fiquei completamente silencioso e nada disse. Durante uma hora inteira, não movi um músculo. E, por todo esse tempo, não o ouvi deitar-se de novo. Ele ainda estava sentado na cama à escuta. Justamente como eu fizera, noite após noite, ouvindo a ronda da morte próxima.

Depois, ouvi um leve gemido e notei que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de pesar, oh, não. Era o som grave e sufocado que se ergue do fundo da alma, quando sobrecarregada de medo. Bem conhecia esse som. Muitas noites, ao soar a meia-noite, quando o mundo inteiro dormia, ele irrompia do meu próprio peito, aguçando com seu eco espantoso, os terrores que me aturdiam. Disse que bem o conhecia. Conheci também o que o velho sentia e tive pena dele, embora abafasse um riso no coração. Eu sabia que ele ficara acordado desde o primeiro leve rumor, quando se voltara para a cama. Daí por diante, seus temores foram crescendo. Tentara imaginá-los sem motivo, mas não fora possível. Dissera a si mesmo: "É só o vento na chaminé", ou "É só um rato andando pelo chão", ouvi apenas um grito que trilou um instante só. Sim, ele estivera tentando animar-se com essas suposições, mas tudo fora em vão. Tudo em vão, porque a morte, ao aproximar-se dele, projetara sua sombra negra para a frente, envolvendo nela a vítima. E era a influencia tétrica dessa sombra não percebida que o levava a sentir - embora não visse nem ouvisse - a sentir a presença de minha cabeça, dentro do quarto.

Depois de esperar longo tempo, com muita paciência, sem ouvi-lo deitar-se, resolvi abrir um pouco, muito, muito pouco a tampa da lanterna. Abri-a, podeis imaginar quão furtivamente, até que, por fim, um raio de luz apenas, tênue como o fio de uma teia de aranha, passou pela fenda e caiu sobre o olho de abutre.

Ele estava aberto. Todo, plenamente aberto. E, ao contemplá-lo, minha fúria cresceu-o. Vi-o com perfeita clareza. Todo de azul desbotado, com uma horrível película a cobri-lo, o que me enregelava até à medula dos ossos. Mas não podia ver nada mais da face, ou do corpo do velho, pois dirigira a luz, como por instinto, sobre o maldito lugar.

Ora, não vos disse que apenas é super-acuidade dos sentidos, aquilo que erradamente julgais loucura? Repito, pois, que chegou aos meus ouvidos, um som baixo, monótono, rápido como o de um relógio, quando abafado em algodão. Igualmente eu bem sabia que som era aquele. Era o bater do coração do velho. Ele me aumentava a fúria, como o bater de um tambor estimula a coragem do soldado.

Ainda aí, porém, refreei-me e fiquei quieto. Tentei manter tão fixamente quanto pude a réstia de luz sobre o olho do velho. Entretanto, o infernal tan-tan do coração aumentava. A cada instante ficava mais alto, mais rápido, mais alto, mais rápido. O terror do velho deve ter sido extremo. Cada vez mais alto, repito, a cada momento. Prestais bem atenção? Disse-vos que sou nervoso: Sou-o. E então, àquela hora morta da noite, tão estranho ruído excitou em mim um terror incontrolável. Contudo, por alguns minutos mais, dominei-me e fiquei quieto. Mas o bater era cada vez mais alto. Julguei que o coração ia rebentar. E, depois, nova angústia me aferrou: o rumor poderia ser ouvido por um vizinho. A hora do velho tinha chegado. Com um alto berro, escancarei a lanterna e pulei para dentro do quarto. Ele guinchou mais uma vez... uma vez só. Num instante, arrastei-o para o soalho e virei a pesada cama sobre ele. Então sorri alegremente, por ver a façanha realizada. Mas, durante muitos minutos, o coração continuou a bater, com som cavo e surdo. Isto, porém, não me vexava. Não seria ouvido através da parede. Afinal, cessou. O velho estava morto. Removi a cama e examinei o cadáver. Sim, era uma pedra, uma pedra morta. Coloquei minha mão sobre o coração e ali a mantive durante muitos minutos. Não havia pulsação. Estava petrificado. Seu olho não mais me perturbaria.

Se ainda pensais que sou louco, não mais o pensareis, quando eu descrever as sábias precauções que tomei, para ocultar o cadáver. A noite avançava e eu trabalhava apressadamente, porém, em silêncio. Em primeiro lugar, esquartejei o corpo. Cortei-lhe a cabeça, os braços e as pernas.

Arranquei depois três pranchas do soalho do quarto e coloquei tudo entre os vãos. Depois recoloquei as tabuas, com tamanha habilidade e perfeição, que nenhum olhar humano, nem mesmo o DELE, poderia distinguir qualquer coisa suspeita. Nada havia a lavar, nem mancha de espécie alguma, nem marca de sangue. Fora demasiado prudente no evitá-las. Uma tina tinha recolhido tudo... ah! ah! ah!

Terminadas todas estas tarefas, eram já quatro horas. Mas ainda estava escuro, como se fosse meia-noite. Quando o sino soou a hora, bateram à porta da rua. Desci a abri-la, de coração ligeiro... pois que tinha eu agora a temer? Entraram três homens, que se apresentaram, com perfeita mansidão, como soldados da polícia. Fora ouvido um grito por um vizinho, durante a noite. Despertara-se a suspeita de um crime. Tinha-se formulado uma denuncia à polícia e eles, soldados, tinham sido mandados para investigar.

Sorri... pois que tinha eu a temer? Dei as boas vindas aos cavalheiros. O grito, disse eu, fora meu mesmo, em sonhos. O velho, relatei, estava ausente, no interior. Levei meus visitantes a percorrer toda a casa. Pedi-lhes que dessem uma busca... COMPLETA. Conduzi-os, afinal, ao quarto dele. Mostrei-lhes suas riquezas, em segurança, intactas. No entusiasmo de minha confiança, trouxe cadeiras para o quarto e mostrei desejos de que eles ficassem ali, para descansar de suas fadigas, enquanto eu mesmo, na desenfreada audácia de meu perfeito triunfo, colocava minha própria cadeira, precisamente sobre o lugar onde repousava o cadáver da vítima.

Os soldados ficaram satisfeitos. Minhas maneiras os haviam convencido. Sentia-me singularmente à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia cordialmente, conversaram coisas familiares. Mas, dentro em pouco, senti que ia empalidecendo e desejei que eles se retirassem. Minha cabeça doía e parecia-me ouvir zumbidos nos ouvidos. Eles, porém, continuavam sentados e continuavam a conversar. O zumbido tornou-se mais distinto. Continuou e tornou-se ainda mais distinto. Eu falava mais, para dominar a situação. Ela, porém, continuava e aumentava sua perceptibilidade, até que, afinal, descobri que o barulho não era dentro de meus ouvidos.

É claro que, então, a minha palidez aumentou sobremaneira. Mas eu falava ainda mais fluentemente e em tom de voz muito elevado. Não obstante, o som se avolumava... E que podia eu fazer? Era um som grave, monótono, rápido... muito semelhante ao de um relógio envolto em algodão. Respirava com dificuldade... E, no entanto, os soldados não o ouviam. Falei mais depressa ainda, com mais veemência. Mas o som aumentava constantemente. Levantei-me e fiz perguntas a respeito de ninharias, em tom bastante elevado e com violenta gesticulação, mas o som constantemente aumentava. Oh! Deus! Que poderia eu fazer? Espumei. Enraiveci-me... Praguejei. Fiz girar a cadeira, sobre a qual estivera sentado, e arrastei-a sobre as tábuas, mas o barulho se elevava acima de tudo e continuamente aumentava. Tornou-se mais alto... mais alto... mais alto. E os homens continuavam ainda a passear, satisfeitos, e sorriam. Seria possível que eles não ouvissem? Deus Todo Poderoso!... Não, não! Eles suspeitavam!... Eles sabiam!... Estavam zombando do meu horror!...

Isto pensava eu, e ainda penso.

Outra coisa qualquer porém, era melhor que essa agonia. Qualquer coisa era mais tolerável que essa irrisão. Sentia que devia gritar, ou morrer!... E agora... de novo!... Escutai... Mais alto! Mais alto! Mais alto! Mais alto!...

- Vilões - trovejei - não finjam mais. Confesso o crime. Arranquem as pranchas!... aqui, aqui!... Ouçam o batido do seu horrendo coração.


por Edgar Allan Poe

A Verdade Sobre o Caso do Sr. Waldemar

Não devemos nos assombrar pelo fato de o caso do senhor Waldemar ter suscitado tantas discussões. Milagroso seria que as coisas não se tivessem passado assim, particularmente naquelas circunstâncias.

O desejo comum a todas as partes interessadas de que o assunto se conservasse secreto, pelo menos de imediato, ou enquanto aguardasse a oportunidade de uma nova investigação, e os nossos esforços no sentido de obter um triunfo deram lugar a que se tivesse difundido um relato incorreto ou exagerado entre o público e que o assunto, apresentado com as cores mais desagradáveis, tenha dado origem a um grande descrédito.

Assim, é preciso que dê conta dos fatos, pelo menos tal como eu os compreendo e de uma maneira breve. Ei-los:

Várias vezes, no decurso dos últimos três anos, a minha atenção tinha sido atraída pelo magnetismo; e, há cerca de nove meses, acudiu-me subitamente à imaginação a idéia de que existia uma enorme e inexplicável lacuna na série de experiências feitas até o presente: ninguém havia sido hipnotizado in articulo mortis. Faltava saber se em tal estado o paciente podia receber o influxo magnético; em segundo lugar, se, em caso afirmativo, o influxo era atenuado ou ampliado devido a esta circunstância e, em terceiro lugar, até que ponto ou durante quanto tempo as usurpações da morte podiam ficar paralisadas por esta operação. Dever-se-ia verificar outros pontos, mas os anteriores eram os que mais excitavam a minha curiosidade, principalmente o último, em virtude do seu caráter transcendente.

Procurando à minha volta um indivíduo por meio do qual pudesse aclarar estes pontos, decidi-me pelo meu amigo Ernest Waldemar, compilador muito conhecido na Biblioteca Forense e autor (com o pseudônimo de Issachar Marx) das traduções polonesas de Wallenstein e de Gargântua. O senhor Waldemar, que residia habitualmente no Harlem (Nova Iorque), desde 1839, é, ou era, particularmente notado devido à sua excessiva magreza: os seus membros inferiores pareciam-se muito com os de John Randolph. Também dava na vista devido à brancura das suas grandes suíças, que contrastavam com a cabeleira negra, a ponto de muita gente pensar que ele usava peruca, tal a diferença de cores. Possuía um temperamento invulgarmente nervoso e era um excelente elemento para as experiências magnéticas. Em duas ou três ocasiões tinha-o feito adormecer sem grande dificuldade. Contudo, fiquei desconcertado a respeito de outros resultados que esperava obter da sua tão singular constituição. A sua vontade nunca esteve completamente sob a minha influência e, no que se refere à clarividência, nunca pude conseguir nada que pudesse considerar-se concludente. Eu sempre atribuíra os meus fracassos à sua precária saúde. Alguns meses antes de o conhecer, os médicos haviam-lhe diagnosticado uma tuberculose muito avançada. Devo também dizer que ele tinha o costume de falar com muito sangue-frio do seu fim próximo, como de uma coisa que não podia ser evitada nem sentida.

Quando me ocorreram pela primeira vez as idéias a que fiz referência, era muito natural que pensasse no senhor Waldemar. Conhecia suficientemente bem a filosofia do homem para recear quaisquer escrúpulos da sua parte e, como não tinha nenhum parente na América não era de temer este gênero de intervenção. Falei-lhe abertamente e verifiquei, com grande surpresa, que ele demonstrava um vivo interesse. Digo com grande surpresa porque, ainda que ele se tivesse prestado amavelmente às minhas experiências, nunca manifestara o menor interesse pelos meus estudos. A sua enfermidade era daquelas que permitem um cálculo exato quanto à hora do desenlace, e combinamos que ele mandaria chamar-me 24 horas antes do momento que os médicos indicassem para a sua morte.

Há sete meses recebi a seguinte carta do senhor Waldemar:

"Meu caro P...
"Já pode vir. Os doutores D... e F... estão de acordo e disseram-me que não passarei de amanhã. Creio que o cálculo deles deve ser bastante aproximado."

Recebi esta carta cerca de meia hora depois de ter sido escrita e 15 minutos mais tarde encontrava-me no quarto do moribundo. Não o via há 15 dias e fiquei aterrado com a terrível alteração que este curto espaço de tempo tinha produzido nele. O seu rosto tinha a cor do chumbo, os olhos pareciam apagados e a sua magreza era tal que as maçãs do rosto estavam quase completamente descarnadas. Expectorava constantemente e tinha o pulso quase imperceptível. No entanto, conservava todas as suas faculdades espirituais e falava distintamente, tomando, sem necessidade de auxílio, alguns remédios que eram simples tranqüilizantes. Quando entrei no quarto, estava ocupado em escrever alguma coisa numa agenda. Achava-se amparado pelas almofadas da cama e era auxiliado pelos doutores D... e F...

Depois de ter apertado a mão de Waldemar, chamei os médicos de parte e pedi-lhes que me informassem acerca do estado do doente. Há cerca de oito ou dez meses, o pulmão esquerdo encontrava-se parcialmente ossificado e cartilaginoso e, portanto, incapacitado para toda a função vital. A parte superior do pulmão direito também se apresentava ossificada, embora não na sua totalidade, enquanto a parte inferior não passava de uma massa de tubérculos purulentos que penetravam uns nos outros. Havia, também, algumas perfurações profundas e, em determinada região, uma aderência permanente às costelas. Estas deteriorações do lóbulo eram de uma época relativamente recente. A ossificação tinha-se desenvolvido com uma rapidez insólita. Um mês antes não se descortinava o menor sintoma e a aderência havia sido assinalada somente nestes últimos dias. Independentemente da tuberculose, os médicos suspeitavam de um aneurisma da aorta, mas, a este respeito, os sintomas de ossificação tornavam impossível qualquer diagnóstico seguro. A opinião de ambos os médicos era de que o senhor Waldemar morreria por volta da meia-noite do dia seguinte, domingo. Eram, naquele momento, sete e meia da noite de sábado.

Ao abandonar a cabeceira do moribundo a fim de falar comigo, os doutores D... e F... tinham-se despedido dele pensando em não mais voltar. Todavia, a meu pedido, concordaram em tornar a ver o doente cerca das dez da noite.

Depois que eles se retiraram, falei livremente com o senhor Waldemar a respeito da sua morte próxima, e mais particularmente da experiência que tínhamos combinado realizar, e ele mostrou-se desejoso de iniciá-la imediatamente. Dois enfermeiros, um homem e uma mulher, deviam ajudar-nos. Porém, não me atrevia a empreender uma experiência de tamanha gravidade sem outras testemunhas cujas declarações oferecessem mais confiança no caso de surgir um acidente repentino. Acabava de marcar a operação para as oito quando a chegada de um estudante de Medicina, com o qual o senhor Waldemar tinha relações de amizade, o senhor Theodore L..., me ajudou a resolver a situação. Tinha pensado, a princípio, esperar pelos médicos, mas comecei logo, impelido não só pela insistência do senhor Waldemar, como também porque não havia tempo a perder.

O senhor L... acedeu amavelmente ao pedido que lhe expressei de que tomasse nota de tudo o que se ia passar e posso afirmar que anotou, palavra por palavra, o que aconteceu, pois foi a partir das suas notas que compilei este relato, com exceção de algumas partes que condensei.

Eram oito e cinco da noite quando, pegando na mão do doente, pedi-lhe que repetisse ao senhor L..

tão claramente quanto lhe fosse possível, o seu desejo de que eu fizesse com ele e naquelas condições, uma experiência de hipnose.

Waldemar repetiu em voz fraca, mas muito claramente:

- Sim, desejo ser hipnotizado. - E acrescentou em seguida: - Receio que já tenha passado tempo demais.

Enquanto ele falava, eu havia iniciado os passes que me pareciam mais eficazes para o adormecer. t certo que ele começou a sentir a influência da minha mão desde o primeiro passe hipnótico, mas, embora eu emanasse todo o meu poder, não se manifestou qualquer efeito apreciável até as 10h10m, momento em que os médicos D. e F. chegaram. Expliquei-lhes em poucas palavras o que pretendia e, como não puseram qualquer objeção, garantindo-me que o doente tinha entrado no período de agonia, continuei sem hesitação, substituindo os passes laterais por passes longitudinais e concentrando o meu olhar nos olhos do moribundo.

Enquanto isso, o pulso do senhor Waldemar tornara-se imperceptível e a sua respiração cada vez mais difícil, chegando a ficar suspensa durante períodos de cerca de meio minuto.

Esta situação manteve-se durante um quarto de hora, quase sem qualquer alteração.

Não obstante, ouvimos, decorrido este tempo, um suspiro natural, ainda que horrivelmente profundo, interrompendo-se a respiração entrecortada, quer dizer, cessando o estertor e passando a respirar com regularidade. As extremidades do doente estavam geladas.

Às 10h45m detectei sintomas indesmentíveis da influência magnética. O olhar vítreo e hesitante alterou-se, notando-se então aquela expressão penosa do olhar interior, que se observa somente nos casos de sonambulismo e acerca do qual não pode haver engano. Com alguns passes laterais rápidos fiz-lhe tremer as pálpebras, como quando temos sono, e, insistindo um pouco mais, fechei-as por completo. Todavia, isto não me bastava, e continuei com vigor os meus exercícios, projetando intensamente a minha vontade, até ter paralisado completamente os membros do doente adormecido, depois de o ter colocado numa posição aparentemente cômoda. As suas pernas estenderam-se por completo e os braços ficaram quase totalmente distendidos, repousando sobre o leito, a pequena distância dos rins. A cabeça achava-se ligeiramente elevada.

Já passava da meia-noite quando completei esta fase, e pedi aos presentes que observassem o estado do senhor Waldemar. Após algumas experiências, reconheceram que ele se encontrava num estado de catalepsia sumamente perfeita. A curiosidade dos dois medicos estava excitada em alto grau. O doutor D... decidiu, repentinamente, permanecer durante a noite inteira ao lado do doente, e o doutor F... retirou-se, prometendo voltar de madrugada. O senhor L... e os enfermeiros também ficaram.

Deixamos o senhor Waldemar completamente tranqüilo até as três da manhã e, a esta hora, aproximei-me dele e encontrei-o no mesmo estado em que o deixara o doutor F..., isto é, achava-se estendido na mesma posição, o pulso era imperceptível e a respiração regular, embora mal se sentisse, pois para se verificar a sua existência era necessário colocar-lhe um espelho diante da boca. Tinha os olhos fechados com naturalidade e os membros tão rígidos e frios como se fossem de mármore.

No entanto, a sua aparência geral não era a de um morto.

Ao aproximar-me do senhor Waldemar, fiz um pequeno esforço para obrigar o seu braço direito a seguir o meu nos movimentos que eu descrevia vagarosamente sobre a sua pessoa.

Noutras ocasiões, quando tentara estas mesmas experiências com o doente, nunca tinha triunfado por completo, e posso afirmar que também desta vez não contava com resultados satisfatórios. Todavia, verifiquei com grande espanto que o seu braço seguia muito suavemente, embora com pequena amplitude, todas as direções que o meu indicava. Tratei, então, de lhe fazer algumas perguntas.

- Senhor Waldemar - disse-lhe - está dormindo?

O senhor Waldemar não respondeu, mas, como visse que ele tremia os lábios, repeti a pergunta três vezes. Na terceira vez, um estremecimento percorreu-lhe o corpo. As pálpebras entreabriram-se sozinhas, deixando a descoberto uma pequena parte do globo ocular. Os lábios moveram-se devagar e deixaram escapar as seguintes palavras, num murmúrio quase indecifrável:

- Sim, estou dormindo. Não me acorde! Deixe-me morrer assim!

Apalpei-lhe os membros e encontrei-os tão rígidos como anteriormente. O braço direito, como fizera até momentos antes, obedecia às direções indicadas pela minha mão. Interroguei de novo o sonâmbulo:

- Ainda lhe dói o peito, senhor Waldemar?

A resposta fez-se esperar um pouco e ele murmurou com voz mais débil que da vez anterior:

- Dor? Não, estou morrendo,

Achei conveniente não o atormentar mais por enquanto e nada mais lhe disse até chegar o doutor F... que ficou assombrado ao ver o doente ainda vivo, quase ao amanhecer. Depois de lhe ter tomado o pulso e de lhe pôr um espelho diante da boca, pediu-me que falasse de novo com o moribundo, o que fiz da seguinte maneira:

-- Senhor Waldemar, ainda continua dormindo?

Como anteriormente, ele tardou alguns minutos a responder, e, durante este intervalo, o senhor Waldemar parecia reunir toda a sua energia para falar. Ao interrogá-lo pela quarta vez, respondeu muito fracamente, de uma forma quase ininteligível:

- Sim, estou dormindo, morrendo.

Os dois médicos foram então de opinião, ou, melhor, exprimiram o desejo de que não se incomodasse o senhor Waldemar, deixando-o estar naquele estado de coma aparente, até que morresse. E isto devia ocorrer, prognóstico em que ambos estavam de acordo, no prazo de cinco minutos. No entanto, decidi falar-lhe de novo, repetindo a minha pergunta anterior.

Enquanto falava, operou-se uma grande modificação na fisionomia do moribundo. Os olhos giraram nas órbitas e abriram-se, a pele adquiriu a tonalidade da morte, e duas manchas circulares, febris, que até pouco tempo atrás se achavam claramente fixadas nas faces, apagaram-se de repente. Sirvo-me desta expressão porque a rapidez da sua desaparição fez-me lembrar uma vela que se apaga com um sopro. Ao mesmo tempo, o lábio superior contraiu-se, deixando os dentes a descoberto, enquanto o maxilar inferior caía bruscamente, produzindo um ruído que foi ouvido por todos, deixando a boca aberta e descobrindo completamente a língua negra e inchada. Presumo que todos os presentes estavam familiarizados com o espetáculo da morte, mas, no entanto, o aspecto do senhor Waldemar naquele momento tornou-se tão hediondo que todos recuamos, horrorizados.

Suponho que, ao chegar a este ponto, o leitor revoltado não queira dar-me crédito. No entanto, é meu dever continuar.

O senhor Waldemar não apresentava o menor indício de vida e, julgando que ele estava morto, íamos deixá-lo entregue aos enfermeiros, quando ouvimos um murmúrio que brotava da sua boca e que duraria cerca de um minuto. E ouvimos uma voz que seria loucura tentar descrever. Apesar disso, há dois ou três vocábulos que se poderiam aplicar, embora não dêem uma idéia cabal. Assim, posso dizer que o som era áspero, dilacerante e cavernoso. Porém, a descrição total não é definível, pois nenhum ouvido humano registrou jamais tais vibrações. A despeito de tudo, havia duas particularidades que, pensei então e ainda continuo a pensar, podiam considerar-se como características da sua entoação e que podem dar alguma idéia da sua singularidade extraterrestre. Em primeiro lugar, a voz parecia chegar aos nossos ouvidos, ou pelo menos aos meus, vinda de grande distância, como que surgida de um subterrâneo. Em segundo lugar, impressionou-me da mesma maneira (receio que seja impossível fazer-me compreender), da mesma maneira, dizia, que as matérias pegajosas e gelatinosas afetam o tato.

Falei ao mesmo tempo em som e voz, mas é meu desejo dizer que, no som, destacavam-se as sílabas com muitíssima clareza, com uma clareza terrível e espantosa. O senhor Waldemar falava, evidentemente para responder à pergunta que lhe tinha feito momentos antes. Como devem recordar-se, tinha-lhe perguntado se continuava dormindo ao que agora me respondia:

- Sim, dormi, eis que agora me encontro morto. Nenhuma das pessoas presentes pôde negar nem sequer pôr em dúvida o indescritível, o extremo horror destas palavras assim proferidas.

O senhor L..., o estudante, desmaiou. Os enfermeiros fugiram precipitadamente e não houve maneira de conseguir que voltassem. Quanto às minhas próprias impressões, não pretendo que o leitor chegue a compreendê-las. Durante perto de uma hora, sem trocarmos uma palavra, esforçamo-nos por fazer o jovem L... recobrar os sentidos. Quando voltou a si, prosseguimos as nossas investigações acerca do estado do senhor Waldemar.

Este continuava tal e qual descrevi anteriormente. Porém, não se obtinha o mínimo vestígio de respiração com o espelho. Uma tentativa de sangria num braço não teve êxito. Devo também dizer que o seu braço não obedecia à minha vontade e foi inutilmente que tentei fazê-lo seguir a direção da minha mão. A única indicação real da influência magnética apenas se manifestava pelo movimento vibratório da língua. Cada vez que dirigia uma pergunta ao senhor Waldemar, este parecia fazer um esforço para responder-me, como se já não dispusesse de vontade suficiente. Se algum dos presentes, excetuando eu próprio, lhe dirigia alguma pergunta, parecia insensível, embora eu tivesse tratado de pô-lo em relação magnética com eles. Creio agora ter relatado tudo o que é necessário para fazer compreender o estado do sonâmbulo neste período... Tratamos de arranjar outros enfermeiros e, às 10 horas, retirei-me, na companhia dos médicos e do senhor L...

À tarde, voltamos todos para ver o doente. O seu estado era absolutamente o mesmo. Travamos então uma discussão acerca da oportunidade e da possibilidade de despertá-lo, e não tardou que todos compreendêssemos as poucas vantagens que isso representaria para o senhor Waldemar. Era evidente que até aquele momento, a morte, ou o que se define pelo vocábulo morte, tinha ficado paralisada pelo magnetismo. Pareceu a todos evidente que despertar o senhor Waldemar seria, muito simplesmente, provocar, ou pelo menos acelerar, o seu fim.

Desde este dia até o último da semana passada, isto é, durante um período de quase sete meses, continuamos a reunir-nos em casa do senhor Waldemar, acompanhados de vários médicos e amigos. Durante todo este tempo, o sonâmbulo continuou no mesmo estado que já descrevi. Os enfermeiros vigiavam-no continuamente.

E na última sexta-feira, resolvemos despertá-lo, ou, pelo menos, tentar despertá-lo. O resultado deplorável desta última tentativa é que deu lugar a tantas discussões nos círculos privados, a tantos boatos, nos quais não posso deixar de ver uma injustificada credulidade popular.

Para arrancar o senhor Waldemar da catalepsia magnética fiz um dos passes habituais. Durante algum tempo não deram qualquer resultado, O primeiro sintoma de vida foi uma depressão parcial da íris. Observamos, como fato digno de nota, que esta depressão foi acompanhada de um fluxo muito abundante de um líquido amarelado, surgido de sob as pálpebras e que tinha um cheiro acre e muito desagradável.

Ocorreu-me então a idéia de exercer a minha influência sobre o braço do paciente, como fizera anteriormente. Nada consegui, apesar dos meus esforços. O doutor F... manifestou o desejo de que eu lhe fizesse uma pergunta. Fi-la nos seguintes termos:

- Senhor Waldemar, pode explicar-nos o que neste momento sente ou deseja?

As suas faces voltaram imediatamente a colorir-se com as manchas febris, a língua estremeceu, ou melhor, girou-lhe violentamente dentro da boca (embora os maxilares e os lábios continuassem imóveis) e ao fim de certo tempo tornamos a ouvir a pavorosa voz que já descrevi:

- Pelo amor de Deus!. .. Depressa! Depressa!... Faça-me dormir... ou então... depressa!... desperte-me! Depressa! Já lhe disse que estou morto!

Senti-me completamente aturdido e durante um minuto fiquei sem saber o que havia de fazer. Primeiro, tratei de tranqüilizar o paciente, mas a falta de vontade fez-me fracassar, e, em vez de acalmá-lo, envidei os meus esforços no sentido de despertá-lo. Em breve verifiquei que esta minha tentativa obteria êxito, ou pelo menos assim pensei, e estou certo de que todos os que se encontravam no quarto esperavam ver o sonâmbulo despertar.

Porém, é de todo impossível que algum ser humano estivesse preparado para o que sucedeu realmente.

Enquanto eu fazia os passes magnéticos, no meio de gritos de morto!, morto!, que literalmente explodiam na língua e não nos lábios do paciente, todo o seu corpo, subitamente, no espaço de um minuto ou menos, contraiu-se, diminuiu, desapareceu, apodreceu completamente debaixo das minhas mãos. Em cima da cama, diante dos olhos de todas as testemunhas, jazia uma massa repugnante, quase líquida, uma abominável putrefação.


por Edgar Allan Poe

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O Sepultamento Prematuro

Há certos temas de interesse totalmente absorventes mas por demais horríveis para os fins da legítima ficção. O simples romancista deve evitá-los se não deseja ofender ou desgostar. Só devem ser convenientemente utilizados quando a severidade e a imponência da verdade os santificam e sustentam.

Estremecemos, por exemplo, com o mais intenso "pesar agradável", diante das narrativas da Passagem do Beresina, do Terremoto de Lisboa, da Peste em Londres, do Massacre de São Bartolomeu, ou da asfixia dos cento e vinte três prisioneiros da Caverna Negra em Calcutá. Mas nessas narrativas é o fato, é a realidade, é a história o que excita. Como invenções, olhá-las-íamos com simples aversão.

Mencionei algumas, apenas, das mais proeminentes e augustas calamidades que a história registra. Mas nelas existe a extensão, bem como o caráter, de calamidade, que tão vivamente impressiona a fantasia. Não é necessário lembrar ao leitor que, do longo e pavoroso catálogo das misérias humanas, poderia eu ter selecionado numerosos exemplos individuais mais repletos de sofrimento essencial que qualquer daqueles vastos desastres generalizados. A verdadeira desgraça, na verdade, o derradeiro infortúnio, é particular e não difuso. Demos graças a um Deus misericordioso pelo fato de serem os espantosos extremos da agonia suportados pelo homem-unidade e nunca pelo homem-massa!

Ser enterrado vivo é, fora de qualquer dúvida, o mais terrífico daqueles extremos que já couberam por sorte aos simples mortais. Que isso haja acontecido freqüentemente, e bem freqüentemente, mal pode ser negado por aqueles que pensam. Os limites que separam a Vida da Morte são, quando muito, sombrios e vagos. Quem poderá dizer onde uma acaba e a outra começa? Sabemos que há doenças em que ocorre total cessação de todas as aparentes funções de vitalidade, mas, de fato, essas cessações são meras suspensões, propriamente ditas. Não passam de pausas temporárias no incompreensível mecanismo. Certo período decorre e alguns princípios misteriosos e invisíveis põem de novo em movimento os mágicos parafusos e as encantadas rodas. A corda de prata não estava solta para sempre, nem o globo de ouro irreparavelmente quebrado. Mas, entrementes, onde se achava a alma?

De parte, porém, a inevitável conclusão, a priori, de que causas tais devem produzir tais efeitos, de que a bem conhecida ocorrência de tais casos de interrompida animação deve, naturalmente, dar azo, de vez em quando, a enterros prematuros, de parte esta consideração temos o testemunho direto da experiência médica e da experiência comum a provar que grande número de semelhantes enterros se tem realmente realizado.

Se fosse necessário, poderia referir-me imediatamente a uma centena de casos bem autenticados. Um dos mais famosos, e cujas circunstâncias podem estar ainda frescas na memória de alguns de meus leitores, ocorreu, não faz muito, na vizinha cidade de Baltimore, onde causou uma excitação penosa, intensa e de vasto alcance. A esposa de um dos mais respeitáveis cidadãos, advogado eminente e membro do Congresso, foi atacada de súbita e estranha moléstia que zombou completamente do saber de seus médicos. Depois de muitos sofrimentos veio a falecer, ou supôs-se que houvesse falecido. Ninguém suspeitava, na verdade, nem tinha razão de suspeitar, que ela não estivesse realmente morta. Apresentava todos os sinais habituais de morte. O rosto tomara o usual contorno cadavérico. Os lábios tinham a habitual palidez marmórea. Os olhos estavam sem brilho. Não havia calor. A pulsação cessara. Durante três dias o corpo foi conservado insepulto, adquirindo então uma rigidez de pedra. Afinal, o enterro foi apressado, por causa do rápido avanço do que se supunha ser a decomposição.

A mulher fora depositada no jazigo da família, que não foi aberto nos três anos subseqüentes. Ao expirar esse prazo, abriram-no para receber um ataúde; mas, ai!, que pavoroso choque esperava o marido que abrira em pessoa a porta. Ao se escancararem os portais, certo objeto branco caiu-lhe ruidosamente nos braços. Era o esqueleto de sua mulher, ainda com a mortalha intacta.

Cuidadosa investigação tornou evidente que ela recuperara a vida dois dias depois de seu enterro; que sua luta dentro do ataúde fizera-o cair de uma saliência ou prateleira, no chão, onde se quebrara, permitindo-lhe escapar. Uma lâmpada que fora, por acaso, deixada cheia de óleo dentro do jazigo foi encontrada vazia; contudo, poderia ter sido esgotada pela evaporação. No alto dos degraus que levavam à câmara mortuária, havia um grande fragmento do caixão, com o qual, parecia, tinha ela tentado chamar a atenção batendo na porta de ferro. Enquanto assim fazia, provavelmente desfaleceu ou possivelmente morreu tomada de terror completo e, ao cair, sua mortalha ficou presa a algum pedaço de ferro saliente no interior. E assim ela permaneceu e assim apodreceu, ereta.

No ano de 1810, um caso de inumação viva aconteceu na França, cercado de circunstâncias que provam plenamente a afirmativa de que a verdade é, de fato, mais estranha do que a ficção. A heroína da história era Mademoiselle Vitorina Lafourcade, moça de ilustre família, rica e de grande beleza pessoal. Entre seus numerosos pretendentes havia um tal Julien Bossuet, pobre literato ou jornalista de Paris. Seu talento e sua amabilidade tinham atraído a atenção da herdeira, por quem parecia ter sido verdadeiramente amado; mas o orgulho de seu nascimento decidiu-a, por fim, a repeli-lo e a casar-se com um certo Monsieur Renelle, banqueiro e diplomata de certa importância.

Depois do casamento, porém, esse cavalheiro a desprezou e, talvez mesmo mais positivamente, maltratou-a. Tendo passado a seu lado alguns anos infelizes, ela morreu; pelo menos, seu aspecto se assemelhava tão de perto à morte que enganava a qualquer que a visse. Foi enterrada, não num jazigo, mas num sepulcro comum, na vila onde nascera. Cheio de desespero e ainda inflamado pela lembrança de sua profunda afeição, o apaixonado viajou da capital para a longínqua província em que se achava a aldeia, no romântico propósito de desenterrar o cadáver e apossar-se de suas fartas madeixas. Chegou ao túmulo. À meia-noite desenterrou o caixão, abriu-o e, ao cortar-lhe o cabelo, foi detido pelos olhos abertos de sua amada.

De fato, a mulher tinha sido enterrada viva. A vitalidade ainda não desaparecera de todo e ela foi despertada pelas carícias de seu amado do letargo que fora tomado como morte. Ele a levou, nervosamente, para seus aposentos na aldeia. Empregou certos poderosos analépticos sugeridos por seus não pequenos conhecimentos médicos. Por fim, ela reviveu. Reconheceu seu salvador. Permaneceu com ele até que, gradativamente, recobrou por completo a primitiva saúde. Seu coração de mulher não tinha a dureza dos diamantes e essa última lição de amor bastou para abrandá-lo. Concedeu-o a Bossuet. Não voltou à companhia do marido; mas, ocultando dele a sua ressurreição, fugiu com seu amante para a América. Vinte anos depois, ambos voltaram à França, persuadidos de que o tempo tinha alterado tão grandemente o aspecto da mulher que seus amigos seriam incapazes de reconhecê-la. Enganaram-se, porém, porque, ao primeiro encontro, Monsieur Renelle reconheceu logo e reclamou sua mulher, Ela se opôs a essa reclamação e um tribunal de justiça apoiou-a, decidindo que as circunstâncias peculiares e o longo lapso de anos haviam extinguido, não só eqüitativa, mas legalmente, a autoridade do marido.

O Jornal de Cirurgia de Lipsia, periódico de alta autoridade e mérito, que alguns livreiros americanos fariam bem em traduzir e republicar, relembra num dos últimos números um acontecimento bem penoso dessa mesma espécie.

Um oficial de artilharia, homem de gigantesca estatura e vigorosa saúde, tendo sido atirado de um cavalo indomável, recebeu fortíssima contusão na cabeça que o tornou imediatamente insensível. O crânio ficou levemente fraturado, mas não se temia imediato perigo. A trepanação foi executada com pleno êxito. Sangraram-no e puseram-se em execução vários outros meios comuns de alívio. Gradualmente, porém, foi ele mergulhando, cada vez mais, num estado de desesperado torpor e, finalmente, pensou-se que havia morrido.

O tempo era de calor, e enterraram-no, com pressa censurável, num dos cemitérios públicos. Seu enterro realizou-se na quinta-feira. No domingo seguinte o cemitério, como de costume, encheu-se de visitantes e, ao meio-dia, produziu-se intensa excitação quando um camponês declarou que, tendo-se sentado sobre o túmulo do oficial, sentira distintamente um movimento da terra, como se ocasionado por alguém que lutasse ali embaixo. A princípio, pouca atenção foi dada à afirmativa do homem, mas seu evidente terror e a teimosia obstinada com que persistia em sua história produziram, afinal, natural efeito sobre a multidão. Procuraram-se, às pressas, pás e o túmulo, que era vergonhosamente pouco profundo, foi em poucos minutos tão depressa escavado que a cabeça do seu ocupante apareceu; ele estava, então, aparentemente morto, mas sentara-se quase ereto dentro do caixão cuja tampa, na sua luta furiosa, havia parcialmente soerguido.

Foi imediatamente transportado ao mais próximo hospital e ali declarou-se que ele estava ainda vivo, embora em estado de asfixia. Depois de algumas horas, reviveu, reconheceu pessoas de sua amizade e, em frases entrecortadas, narrou as agonias que sofrera na sepultura.

Pelo que ele relatou ficou patente que devera ter estado consciente de perder os sentidos. A sepultura fora descuidada e frouxamente cheia de uma terra excessivamente porosa, e assim algum ar podia, necessariamente, penetrar. Ele ouviu o tropel de passos da multidão por cima de sua cabeça e procurou fazer-se ouvir, por sua vez. Foi o barulho dentro do cemitério, disse ele, que pareceu despertá-lo de um profundo sono, mas logo que despertou sentiu-se plenamente cônscio do horror pavoroso de sua situação.

Este paciente, conta-se, estava indo bem e parecia achar-se em franco caminho de completo restabelecimento, mas foi vítima do charlatanismo das experiências médicas. Aplicaram-lhe uma bateria elétrica e ele, de repente, expirou num daqueles extáticos paroxismos que ela ocasionalmente provoca.

A menção da bateria elétrica, aliás, traz-me à memória um caso bem conhecido e extraordinário, em que sua ação provou-se eficaz em fazer voltar à vida um jovem procurador londrino que estivera enterrado durante oito dias. Isto ocorreu em 1831, e causou, em seu tempo, profundíssima sensação em toda a parte em que se tornasse o assunto da conversa.

O paciente, Sr. Eduardo Stapleton, tinha morrido, parece, de tifo, com certos sintomas anômalos que haviam excitado a curiosidade de seus médicos assistentes. A respeito dessa morte aparente, solicitou-se de seus amigos que permitissem um exame post mortem, mas eles se negaram a consentir nisso. Como acontece muitas vezes quando se fazem tais recusas, os profissionais resolveram desenterrar o corpo e dissecá-lo, com vagar, por sua conta. Realizaram-se facilmente os preparativos, com os numerosos grupos de desenterradores de cadáveres, então muito encontradiços em Londres e, na terceira noite depois do funeral, o suposto cadáver foi desenterrado duma cova de dois metros e quarenta de profundidade e depositado na sala de operações de um dos hospitais particulares.

Uma incisão de certo tamanho fora já feita no abdômen, quando a aparência fresca e incorrupta do paciente sugeriu que se fizesse aplicação duma bateria. As experiências se sucederam e sobrevieram os efeitos costumeiros, sem nada que, de algum modo, os caracterizasse, exceto, numa ou duas ocasiões, certo grau um pouco incomum de vivacidade na ação convulsiva.

Fazia-se tarde. O dia estava prestes a raiar e achou-se, afinal, que era conveniente proceder, sem demora, à dissecação. Um estudante, porém, estava especialmente desejoso de provar certa teoria sua e insistiu em que se aplicasse a bateria num dos músculos peitorais. Deu-se um grosseiro talho e aplicou-se apressadamente um fio; então o paciente, num movimento ligeiro, mas não convulsivo, ergueu-se da mesa, andou até o meio do soalho, olhou inquieto por instantes em redor de si e depois... falou. Não se podia entender o que dizia, mas as palavras eram ditas e a formação das sílabas distinta. Depois de falar, caiu pesadamente no soalho.

Por alguns instantes todos ficaram paralisados de terror, mas a urgência do caso em breve os fez recuperar a presença de espírito. Via-se que o Sr. Stapleton estava vivo, embora desmaiado. Com aplicações de éter reviveu e, sem demora, recuperou a saúde, voltando ao convívio de seus amigos, dos quais, porém, todo conhecimento de sua ressurreição fora oculto, até passar o perigo de uma recaída. Podem imaginar-se sua admiração e seu arrebatador espanto.

A mais emocionante particularidade desse incidente, contudo, consiste no que o próprio Sr. Stapleton afirma. Declara ele que em nenhuma ocasião esteve totalmente insensível; que vaga e confusamente tinha consciência de tudo quanto lhe acontecia, desde o momento em que foi declarado morto pelos médicos, até aquele em que desmaiou no soalho do hospital. "Eu estou vivo" foram as palavras incompreendidas que, ao reconhecer que se achava numa sala de dissecação, tinha tentado pronunciar, naquela hora extrema.

Seria coisa fácil multiplicar histórias como esta, mas abstenho-me disso porque, na verdade, não temos necessidade de tal coisa para demonstrar que, efetivamente, ocorrem enterros prematuros. Quando refletimos, dada a natureza do caso, quão raramente nos é possível descobri-los, devemos admitir que eles possam ocorrer freqüentemente sem que o saibamos. É raro, na verdade, que um cemitério seja revolvido, alguma vez, com qualquer propósito e em grande extensão, e não se encontrem esqueletos em posições que sugerem as mais terríveis suspeitas.

Terrível, na verdade, a suspeita, porém mais terrível é tal destino! Podemos asseverar, sem hesitação, que nenhum acontecimento é tão horrivelmente capaz de inspirar o supremo desespero do corpo e do espírito como ser enterrado vivo. A insuportável opressão dos pulmões, os vapores sufocantes da terra úmida, o contato dos ornamentos fúnebres, o rígido aperto das tábuas do caixão, o negror da noite absoluta, o silêncio como um ar que nos afoga, a invisível, porém sensível, presença do Verme Conquistador, tudo isso, com a idéia do ar e da relva lá em cima, a lembrança dos queridos amigos que acorreriam a nos salvar se informados de nosso destino, e a consciência de que eles jamais poderão ser informados desse destino, e de que nossa desesperada sorte é a do realmente morto, essas considerações, digo, acarretam ao coração que ainda palpita um grau tal de horror espantoso e intolerável que a mais ousada imaginação recua diante dele.

Nada conhecemos de maior agonia sobre a terra. Não podemos imaginar nem a metade de coisa tão horrível nas regiões do mais profundo inferno. E, por isso, qualquer narrativa a respeito tem interesse profundo; interesse, porém, que, através do sagrado terror do próprio assunto, bem própria e caracteristicamente depende de nossa convicção da verdade do caso narrado. O que tenho agora a contar é do meu real conhecimento, da minha própria, positiva e pessoal experiência.

Durante vários anos estive sujeito a ataques da estranha moléstia que os médicos concordaram chamar catalepsia, na falta de denominação mais definida. Embora tanto as causas imediatas e predisponentes como o verdadeiro diagnóstico desta doença ainda sejam misteriosos, seu caráter claro e evidente já está bastante compreendido. Suas variações parecem ser, principalmente, de grau.

Às vezes, o paciente jaz, durante um dia só, ou mesmo durante curto período, numa espécie de exagerada letargia. Perde a sensibilidade e os movimentos, mas a pulsação do coração é ainda fracamente perceptível; alguns restos de calor permanecem; ligeiro colorido se mantém no centro da face; e, aplicando um espelho à boca, pode-se descobrir uma lenta, desigual e vacilante ação dos pulmões. Outras vezes, a duração do transe é de semanas ou mesmo de meses, e a mais severa investigação, as mais rigorosas experiências médicas não conseguem estabelecer qualquer distinção material entre o estado do paciente e o que concebemos como morte absoluta.

Freqüentes vezes é ele salvo do enterro prematuro apenas por saberem seus amigos que fora anteriormente sujeito a ataques catalépticos, pela conseqüente suspeita suscitada e, acima de tudo, pela aparência incorrupta. Os progressos da doença são, felizmente, gradativos. As primeiras manifestações, além de típicas, são inequívocas. Os acessos se tornam, sucessivamente, cada vez mais distintos, prolongando-se cada um mais do que o anterior. Nisto jaz a principal garantia contra a inumação. O infeliz cujo primeiro ataque for de caráter extremo, como ocasionalmente se vê, estará quase sem remédio condenado a ser enterrado vivo.

Meu próprio caso não diferia, em pormenores importantes, dos mencionados nos livros médicos. As vezes, sem nenhuma causa aparente, eu mergulhava, pouco a pouco, num estado de semi-síncope ou semidesmaio; e neste estado, sem dor, sem possibilidade de mover-me ou, estritamente falando, de pensar, mas com uma nevoenta e letárgica consciência da vida e da presença dos que cercavam minha cama, eu permanecia até que a crise da doença me fizesse recuperar, de súbito, a completa sensação. Outras vezes, era rápida e impetuosamente surpreendido pelo ataque. Sentia-me doente, entorpecido, frio, aturdido e caía logo prostrado. Depois, durante semanas, tudo era vácuo, negror, silêncio, e num nada se transformava o universo. Não poderia haver mais total aniquilação. Destes últimos ataques eu despertava, porém, com lentidão gradativa na proporção da subitaneidade do acesso. Da mesma forma por que o dia alvorece para o mendigo, sem lar e sem amigos, que vaga pelas ruas, através da longa e desolada noite de inverno, assim também tardia, assim também cansada, assim também alegre, voltava a luz à minha alma.

Exceto aquela predisposição para o ataque, meu estado geral de saúde apresentava-se bom; nem eu podia perceber que todo ele se achava afetado por uma doença predominante, a menos que, realmente, certa reação em meu sono comum pudesse ser olhada como mais um sintoma. Logo ao despertar, nunca podia de imediato assenhorar-me de meus sentidos e sempre permanecia, durante muitos minutos, em grande confusão e perplexidade, com as faculdades mentais em geral, e especialmente a memória, num estado de absoluto torpor.

Em tudo isso que eu experimentava não havia sofrimento físico, mas infinita angústia moral. Minha imaginação se tornava macabra. Falava de "vermes, de covas e epitáfios". Perdia-me em devaneios de morte e a idéia do enterro prematuro se apossava de contínuo de meu cérebro. O horrendo perigo a que estava sujeito assombrava-me dia e noite. De dia, a tortura da meditação era excessiva; de noite, suprema. Quando a disforme Escuridão inundava a terra, com todo o horror do pensamento eu tremia, tremia como as plumas palpitantes que adornam os carros fúnebres. Quando a natureza não podia mais suportar a insônia, era com relutância que eu consentia em dormir, pois me abalava o pensar que, ao despertar, poderia achar-me como habitante de um túmulo. E quando, finalmente, mergulhava no sono, era apenas para precipitar-me imediatamente num mundo de fantasmas acima do qual, com asas enormes, lúridas, tenebrosas, pairava, dominadora, a fixa idéia sepulcral.

Das inúmeras imagens de tristeza que assim me oprimiam em sonhos escolho, para ilustrar, apenas uma visão solitária. Creio que estava imerso num transe cataléptico de duração e intensidade maiores que as habituais. De repente, senti uma mão gelada pousar-se na minha fronte e uma voz, impaciente e inarticulada, sussurrou-me ao ouvido a palavra: "Levanta-te!"

Sentei-me. A escuridão era total. Não podia distinguir o vulto de quem me havia despertado. Não podia recordar-me do momento em que caíra em transe, nem do lugar em que então jazia; enquanto permanecia parado, ocupado em procurar coordenar o pensamento, a fria mão agarrou-me, feroz, pelo punho, sacudindo-o com aspereza, ao mesmo tempo que a voz inarticulada dizia novamente:

— Levanta-te! Não te ordenei que te levantasses?

— Quem és tu? — perguntei.

— Não tenho nome nas regiões onde habito — respondeu a voz, fúnebre. — Eu era mortal, mas sou agora demônio. Eu era implacável, mas agora sou compassivo. Deves sentir que estou tremendo. Meus dentes matraqueiam enquanto falo, embora não seja por causa da frialdade da noite, da noite sem fim. Essa hediondez, porém, é insuportável. Como podes tu dormir tranqüilo? Não posso repousar por causa do clamor dessas grandes agonias. Esse espetáculo é superior às minhas forças. Põe-te de pé! Sai comigo para a noite e deixa que eu te escancare os túmulos. Não é esta uma visão de horror? Contempla!

Olhei, e o vulto invisível que ainda me agarrava pelo punho fez com que se abrissem todos os túmulos da humanidade, e de cada um saiu o fraco palor fosfórico da podridão; e então eu pude ver, dentro dos mais absconsos recessos, pude ver os corpos amortalhados nos seus tristes e solenes sonos com o verme. Mas, ai!, os que dormiam verdadeiramente eram muitos milhões menos do que aqueles que não dormiam absolutamente; e debatiam-se, sem força; havia uma agitação geral e confrangedora; e das profundezas das covas incontáveis se elevava o ruído roçagante e melancólico das mortalhas dos sepultos. E entre aqueles que pareciam tranqüilamente repousar vi que grande número havia mudado, em maior ou menor proporção, a rígida e incômoda posição em que tinham sido primitivamente enterrados. E a voz de novo me disse, enquanto eu contemplava:

— Não é isto, oh!, não é isto uma visão lastimável?

Mas antes que eu pudesse encontrar palavras para replicar, o vulto largou-me o punho, as luzes fosfóricas se extinguiram e as tumbas se fecharam com súbita violência, enquanto delas se erguia um tumulto de clamores desesperados; e ele disse de novo: "Não é isto, meu Deus!, não é isto uma visão lastimável?"

Fantasias como estas que se apresentavam à noite estendiam sua terrífica influência muito além de minhas horas de vigília. Meus nervos se relaxaram inteiramente e me tornei presa de perpétuo horror. Hesitava em cavalgar, em passear ou em praticar qualquer exercício que me afastasse de casa. Na realidade, não ousava mais afastar-me da imediata presença daqueles que sabiam de minha propensão à catalepsia, temendo que, ao cair num de meus costumeiros ataques, viesse a ser enterrado antes de que minha verdadeira condição fosse certificada.

Duvidava do cuidado, da fidelidade de meus mais queridos amigos. Receava que, em algum transe de maior duração que a habitual, fossem eles induzidos a considerá-lo como definitivo. Eu mesmo cheguei a ponto de temer que, por causar muito incômodo, ficassem eles satisfeitos em considerar qualquer ataque muito demorado como suficiente escusa para se verem livres de mim de uma vez por todas. Era em vão que eles procuravam tranqüilizar-me com as mais solenes promessas. Exigi os mais sagrados juramentos de que em nenhuma circunstância eles me enterrariam sem que a decomposição estivesse materialmente adiantada, que se tornasse impossível qualquer ulterior preservação. E mesmo assim meus terrores mortais não queriam dar ouvidos à razão, não queriam aceitar consolo.

Iniciei uma série de cuidadosas precauções. Entre outras coisas, mandei remodelar o jazigo de família, de modo a facilitar o ser prontamente aberto de dentro. A mais leve pressão sobre uma comprida manivela, que avançava bem dentro do túmulo, causaria a abertura dos portais de ferro. Havia também dispositivos para a livre admissão do ar e da luz e adequados recipientes para comida e água, dentro do imediato alcance do caixão preparado para receber-me. O caixão estava quente e maciamente acolchoado e provido de uma tampa construída de acordo com o sistema da porta do jazigo, com o acréscimo de molas tão engenhosas que o mais fraco movimento do corpo seria suficiente para abri-lo. Além de tudo isto, havia, suspenso do teto do túmulo, um grande sino, cuja corda, como determinei, deveria ser enfiada por um buraco do caixão e amarrada a uma das mãos do cadáver. Mas, ah!, de que vale a vigilância contra o Destino do homem? Nem mesmo aquelas tão engenhosas seguranças bastaram para salvar das extremas agonias de ser enterrado vivo um desgraçado condenado de antemão a essas mesmas agonias!

Chegou uma época – como muitas vezes havia chegado antes – em que me achei emergindo de total inconsciência para o início de um fraco e indefinido senso da existência. Vagarosamente, numa gradação tardígrada, aproximou-se a nevoenta madrugada do dia psicológico. Um torpor incômodo. Um sofrimento apático de obscura dor. Nenhuma atenção, nenhuma esperança, nenhum esforço. Em seguida, após longo intervalo um zumbido nos ouvidos; depois disso, após um lapso de tempo ainda mais longo, um comichão ou sensação de formigueiro nas extremidades; depois, um período aparentemente eterno de aprazível quietude, durante o qual os sentimentos despertos lutam dentro do pensamento; depois, um breve e novo mergulho no nada; depois, uma súbita revivescência.

Afinal, o rápido tremer de uma pálpebra, e, imediatamente após, um choque elétrico de terror, mortal e indefinido, que arroja o sangue em torrentes das têmporas para o coração. E agora, o primeiro positivo esforço para pensar. E agora, a primeira tentativa de recordar. E agora, um êxito parcial e evanescente. E agora, a memória já recuperou de tal modo seu domínio que, até certa medida, estou consciente de meu estado. Sinto que não estou despertando de um sono comum. Lembro-me de que estive sujeito à catalepsia. E agora, afinal, como que inundado por um oceano, meu espírito trêmulo é dominado pelo Perigo horrendo, por aquela espectral e tirânica idéia fixa.

Permaneci imóvel alguns minutos, depois que essa imagem se apoderou de mim. E por quê? Eu não podia armar-me de coragem para mover-me. Não ousava fazer o esforço necessário para certificar-me de minha sorte, e, contudo, havia algo no meu coração que me sussurrava que ela era fatal. O desespero – como o de nenhuma outra desgraça que jamais salteou o ser humano – só o desespero me impeliu, após longa irresolução, a erguer as pesadas pálpebras de meus olhos. Ergui-as. Estava escuro, totalmente escuro. Senti que o ataque tinha passado. Senti que a crise de minha doença há muito desaparecera. Senti que me achava agora, completamente, em pleno uso de minhas faculdades visuais. E, contudo, estava escuro, totalmente escuro, daquela escuridão intensa e extrema da Noite que dura para sempre.

Tentei gritar, e meus lábios e minha língua seca moveram-se convulsivamente, em comum tentativa, mas nenhuma voz saiu dos cavernosos pulmões, que, como oprimidos sob o peso de uma esmagadora montanha, arfavam e palpitavam com o coração a cada difícil e penosa respiração.

O movimento das mandíbulas, no esforço de gritar bem alto, mostrava-me que elas estavam amarradas, como se faz usualmente com os mortos. Senti também que jazia sobre alguma coisa sólida e que a mesma coisa também me comprimia estreitamente ambos os lados. Até então eu não me atrevera a mover qualquer dos membros; mas agora, violentamente, levantei os braços que tinham estado até então sobre o peito, com as mãos cruzadas. Eles bateram de encontro a uma madeira sólida, que se estendia sobre mim, a uma altura de não mais do que seis polegadas de meu rosto. Não podia mais duvidar de que repousava dentro de um caixão.

E então, entre todas as minhas infinitas aflições, senti aproximar-se suavemente o anjo da Esperança, pois pensei nas precauções que havia tomado. Retorci-me e fiz esforços espasmódicos para abrir a tampa: não se movia. Tateei os punhos à procura da corda do sino: não foi encontrada. E então o anjo confortador voou para sempre e um desespero ainda mais agudo reinou triunfante, porque clara se tornava a ausência das almofadas que eu tinha tão cuidadosamente preparado, e depois, também, chegou-me subitamente às narinas o forte e característico odor da terra úmida. A conclusão era irresistível. Eu não estava dentro do jazigo. Fora vítima dum de meus ataques enquanto me achava fora de casa e então alguns estranhos, quando ou como não me podia recordar, me enterraram como a um cachorro, trancado dentro de um caixão comum e lançado no fundo, bem no fundo e para sempre, de alguma cova ordinária e sem nome.

Quando essa terrível convicção se fixou à força nos recessos mais íntimos de minha alma, esforcei-me mais uma vez por gritar bem alto. E essa segunda tentativa deu resultado. Um longo, selvagem e contínuo grito, ou bramido de agonia, ressoou através dos domínios da Noite subterrânea.

— Ei! Ei! Olha aqui! — respondeu uma voz grosseira.

— Que diabo é isso agora? — disse um segundo.

— Acabe com isso! — gritou um terceiro.

— Que pretende você berrando desse jeito, como um danado? disse um quarto.

E nisto fui agarrado e sacudido sem cerimônia durante muitos minutos por uma turma de sujeitos mal-encarados Não me despertaram de meu sono, porque eu estava bem desperto quando gritei, mas me fizeram recobrar a plena posse de minha memória.

Esta aventura ocorreu perto de Richmond, na Virgínia. Acompanhado por um amigo eu tinha avançado, seguindo uma expedição de caça, algumas milhas ao longo das margens do rio Jaime. A noite se aproximou e fomos surpreendidos por uma tempestade. O camarote duma pequena chalupa, ancorada no rio e carregada de terra pastosa para jardim, oferecia-se como o único abrigo disponível.

Arranjamo-nos o melhor que pudemos para passar a noite a bordo. Adormeci em um dos dois únicos beliches da embarcação. Os beliches duma chalupa de sessenta ou setenta toneladas quase não precisam ser descritos. Aquele que eu ocupava não tinha colchão de espécie alguma. Sua largura extrema era de dezoito polegadas. A distância até o tombadilho, por cima da cabeça, era precisamente a mesma. Fora com excessiva dificuldade que me apertara dentro dele. Apesar de tudo, adormeci profundamente, e toda aquela minha visão, porque não era sonho, nem pesadelo, surgiu naturalmente das circunstâncias de minha posição, do meu habitual pensamento impressionado e da dificuldade, a que já aludi, de recuperar os sentidos e especialmente a memória durante muito tempo depois de despertar de um sono. Os homens que me sacudiram eram da tripulação da chalupa e alguns trabalhadores contratados para descarregá-la. Da própria carga é que provinha aquele cheiro de terra. A ligadura em torno de meus queixos era um lenço de seda em que havia enrolado minha cabeça, na falta de meu costumeiro barrete de dormir.

As torturas experimentadas, porém, eram, sem dúvida, completamente idênticas, no momento, às de uma verdadeira sepultura. Eram pavorosas, eram inconcebivelmente hediondas. Mas do Mal se origina o Bem, porque aqueles paroxismos operaram inevitável revulsão no meu espírito. Minha alma adquiriu tonalidade, adquiriu têmpera. Viajei para o estrangeiro. Fiz vigorosos exercícios. Aspirei o ar livre do Céu. Pensei em outras coisas que não na Morte. Descartei-me de meus livros de medicina. Queimei Buchan. Não li mais os Pensamentos Noturnos, nem aranzéis a respeito de cemitérios, nem histórias de fantasmas como esta. Em resumo, tornei-me um novo homem e vivi vida de homem. Desde aquela memorável noite afugentei para sempre minhas apreensões sepulcrais e com elas esvaneceu-se a doença cataléptica, da qual, talvez, tivessem sido menos a conseqüência que a causa.

Há momentos em que, mesmo aos olhos serenos da Razão, o mundo de nossa triste Humanidade pode assumir o aspecto de um inferno, mas a imaginação do homem não é Carathis para explorar impunemente todas as suas cavernas. Ah! A horrenda legião dos terrores sepulcrais não pode ser olhada de modo tão completamente fantástico, mas, como os Demônios em cuja companhia Afrasiab fez sua viagem até ao Oxus, eles devem dormir ou nos devorarão, devem ser mergulhados no sono ou nós pereceremos.

por Edgar Allan Poe