domingo, 11 de dezembro de 2016

O Coração Delator


É verdade! Tenho sido e sou nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso! Mas, por que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me aguçou os sentidos, não os destruiu, não os entorpeceu. Era penetrante, acima de tudo, o sentido da audição. Eu ouvia todas as coisas, no céu e na terra. Muitas coisas do inferno ouvia. Como, então, sou louco?

Prestai atenção! E observai quão lucidamente, quão calmamente vos posso contar toda a estória.

É impossível dizer como a ideia me penetrou primeiro no cérebro. Uma vez concebida, porém, ela me perseguiu dia e noite. Não havia motivo. Não havia cólera. Eu gostava do velho. Ele nunca me fizera mal. Nunca me insultara. Eu não desejava seu ouro. Penso que era o olhar dele! Sim, era isso! Um de seus olhos se parecia com o de um abutre ... um olho de cor azul-pálido, que sofria de catarata.

Meu sangue se enregelava sempre que ele caía sobre assim, e assim, pouco a pouco, bem lentamente, fui-me decidindo a tirar a vida do velho e assim libertar-me daquele olho para sempre.

Ora, aí é que está o problema. Imaginais que sou louco.

Os loucos nada sabem. Deveríeis, porém, ter-me visto. Deveria ter visto como procedi cautamente! Com que prudência ... com que previsão ... com que dissimulação lancei mãos à obra!

Eu nunca fora mais bondoso para com o velho do que durante a semana inteira antes de matá-lo. E todas as noites, por meia-noite, eu girava o trinco da porta de seu quarto e abria-a … oh, bem devagarinho. E depois, quando a abertura era suficiente para conter minha cabeça, eu introduzia uma lanterna com tampa toda velada, bem velada, de modo que nenhuma luz se projetasse para fora, e em seguida enfiava a cabeça. Oh, teríeis rido ao ver como a enfiava habilmente!

Movia-a lentamente ... muito ... muito lentamente, a fim de não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para colocar a cabeça inteira além da abertura, até podê-lo ver deitado na cama. Ah! Um louco seria precavido assim? E depois quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna cautelosamente ... - oh, bem cautelosamente! Sim, cautelosamente (porque a dobradiça rangia) ... abria-a só até permitir que apenas um débil raio de luz caísse sobre o olho de abutre.  E isto eu fiz durante sete longas noites ... sempre precisamente a meia-noite ... e sempre encontrei o olho fechado. Assim, era impossível fazer a minha tarefa, porque não era o velho que me perturbava, mas seu olho diabólico.

E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu penetrava atrevidamente no quarto e falava-lhe sem temor, chamando-o pelo nome com ternura e perguntando como havia passado a noite. Por aí vedes que ele precisaria ser um velho muito perspicaz para suspeitar que todas as noites, justamente as doze horas, eu o espreitava, enquanto dormia.

Na oitava noite, fui mais cauteloso do que de hábito ao abrir a porta. O ponteiro dos minutos de um relógio mover-se-ia mais rapidamente do que meus dedos. Jamais, antes daquela noite, sentira eu tanto a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade. Mal conseguia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que ali estava eu, a abrir a porta, pouco a pouco, e que ele nem sequer sonhava com os meus atos ou pensamentos secretos. Ri entre os dentes, a essa ideia, e talvez ele me tivesse ouvido, porque se moveu de súbito na cama, como se assustado. Pensais talvez que recuei? Não!

O quarto dele estava escuro como piche, espesso de sombra, pois os postigos se achavam hermeticamente fechados, por medo aos ladrões. E eu sabia, assim, que ele não podia ver a abertura da porta; continuei a avançar, cada vez mais, cada vez mais. Já estava com a cabeça dentro do quarto e a ponto de abrir a lanterna, quando meu polegar deslizou sobre o fecho de lata e o velho saltou na cama, gritando: Quem está aí?

Fiquei completamente silencioso e nada disse. Durante uma hora inteira, não movi um músculo e, por todo esse tempo, não o ouvi deitar-se de novo. Ele ainda estava sentado na cama, à escuta; justamente como eu fizera, noite após noite, ouvindo a ronda da morte próxima.

Depois ouvi um leve gemido e notei que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de pesar ... oh, não! Era o som grave e sufocado que se ergue do fundo da alma quando sobrecarregada de medo. Bem conhecia esse som. Muitas noites, ao soar meia-noite, quando o mundo inteiro dormia, ele irrompia de meu próprio peito, aguçando, com seu eco espantoso, os terrores que me aturdiam. Disse que bem o conhecia. Conheci também o que o velho sentia e tive pena dele, embora abafasse um riso no coração. Eu sabia que ele ficara acordado desde o primeiro leve rumor, quando se voltara na cama.

Daí por diante, seus temores foram crescendo. Tentara imaginá-los sem motivo, mas não fora possível. Dissera si mesmo: "É só o vento na chaminé…ou é só um rato andando pelo chão", ou "foi apenas um grilo que cantou; um instante só. Sim ele estivera tentando animar-se com estas suposições, mas tudo fora em vão. Tudo em vão, porque a Morte, ao aproximar-se dele, projetara sua sombra negra para a frente, envolvendo nela a vítima. E era a influência tétrica dessa sombra não percebida que o levava a sentir - embora não visse nem ouvisse -, a sentir a presença de minha cabeça dentro do quarto.

Depois de esperar longo tempo, com muita paciência, sem ouvi-lo deitar-se, resolvi abrir um pouco, muito, muito pouco, a tampa da lanterna. Abri-a - podeis imaginar quão furtivamente - até, que por fim, um raio de luz apenas, tênue como o fio de uma teia de aranha, passou pela fenda e caiu sobre o olho de abutre. Ele estava aberto ... todo, plenamente aberto ... e, ao contemplá-lo a minha fúria cresceu. Vi-o, com perfeita clareza, todo de um azul-desbotado, com uma horrível película a cobri-lo, o que me enregelava até a medula dos ossos. Mas não podia ver nada mais da face ou do corpo do velho, pois dirigira a luz, como por instinto, sobre o maldito lugar.

Ora, não vos disse que apenas é super acuidade dos sentidos aquilo que erradamente julgais loucura? Repito, pois, que chegou a meus ouvidos um som baixo, monótono, rápido como o de um relógio quando abafado em algodão. Igualmente eu bem sabia que som era.  Era o bater do coração do velho. Ele me aumentava a fúria como o bater de um tambor estimula a coragem do soldado.

Ainda aí, porém, refreei-me e fiquei quieto. Tentei manter tão fixamente quanto pude a réstia de luz sobre o olho do velho. Entretanto, o infernal tã-tã do coração aumentava. A cada instante ficava mais alto, mais rápido, mais alto, mais rápido! O terror do velho deve ter sido extremo! Cada vez mais alto, repito a cada momento!

Prestais-me bem atenção? Disse-vos que sou nervoso, sou. E então, àquela hora morta da noite, o bater tão estranho excitou em mim um terror incontrolável. Contudo, por alguns minutos mais, dominei-me e fiquei quieto. Mas o bater era cada vez mais alto. Julguei que o coração ia rebentar. E, depois, nova angustia me aferrou: o rumor poderia ser ouvido por um vizinho! A hora do velho tinha chegado! Com um alto berro, escancarei a lanterna e pulei para dentro do quarto.

Ele guinchou mais uma vez ... uma vez só. Num instante, arrastei-o para o soalho e virei a pesada cama sobre ele. Então sorri alegremente por ver a façanha realizada. Mas, durante muitos minutos, o coração continuou a bater, com som surdo. Isto, porém, não me vexava. Não seria ouvido através da parede. Afinal cessou. O velho estava morto. Removi a cama e examinei o cadáver. Sim, era uma pedra, morto como uma pedra. Coloquei minha mão sobre o coração e ali a mantive durante muitos minutos. Não havia pulsação. Estava petrificado. Seu olhos não mais me perturbariam.

Se ainda pensais que sou louco, não mais o pensareis, quando eu descrever as sábias precauções que tomei para ocultar o cadáver. A noite avançava e eu trabalhava apressadamente, porém em silêncio. Em primeiro lugar, esquartejei o corpo. Cortei-lhe a cabeça, os braços e as pernas. Arranquei depois três pranchas do soalho do quarto e coloquei tudo entre os vãos. Depois recoloquei as tábuas, com tamanha habilidade e perfeição que nenhum olhar humano - nem mesmo o dele -  poderia distinguir qualquer coisa suspeita. Nada havia a lavar ... nem mancha de espécie alguma ... nem marca de sangue. Fora demasiado prudente no evitá-las. Uma tina tinha recolhido tudo ... ah, ah, ah!

Terminadas todas essas tarefas, eram já quatro horas. Mas ainda estava escuro como se fosse meia-noite. Quando o sino soou a hora, bateram à porta da rua. Desci a abri-la, de coração ligeiro, pois que tinha eu agora a temer? Entraram três homens, que se apresentaram, com perfeita mansidão, como soldados de polícia.

Fora ouvido um grito por um vizinho, durante a noite. Despertara-se a suspeita de um crime. Tinha-se formulado uma denúncia à polícia e eles, soldados, tinham sido mandados para investigar.

Sorri, pois ... que tinha eu a temer? Dei as boas-vindas aos cavalheiros. O grito, disse eu, fora meu mesmo, em sonhos. O velho, relatei, estava ausente, no interior. Levei meus visitantes a percorrer toda a casa. Pedi-lhes que dessem busca completa. Conduzi-os, afinal, ao quarto dele.

Mostrei-lhes suas riquezas, em segurança, intactas. No entusiasmo de minha confiança, trouxe cadeiras para o quarto e mostrei desejos de que eles ficassem ali, para descansar de suas fadigas, enquanto eu mesmo, na desenfreada audácia de meu perfeito triunfo, colocava minha própria cadeira propriamente sobre o lugar onde repousava o cadáver da vítima.

Os soldados ficaram satisfeitos. Minhas maneiras os haviam vencido. Sentia-me singularmente à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia cordialmente, conversaram coisas familiares. Mas dentro em pouco, senti que ia empalidecendo e desejei que eles se retirassem. Minha cabeça doía e parecia-me ouvir zumbido nos ouvidos; eles, porém, continuavam sentados e continuavam a conversar. O zumbido tornou-se mais distinto; continuou e tornou-se ainda mais perceptível.

Eu falava com mais desenfreio, para dominar a sensação; ela, porém, continuava e aumentava sua perceptibilidade ... até que, afinal, descobri que o barulho não era dentro dos meus ouvidos.

É claro que então a minha palidez aumentou. Mas eu falava ainda mais fluentemente e num tom de voz muito elevada. Não obstante, o som se avolumava ... E que podia eu fazer era um som grave, monótono, rápido ... muito semelhante ao de um relógio envolto em algodão. Respirava com dificuldade... e no entanto, os soldados não o ouviram. Falei mais depressa ainda, com mais veemência. Mas o som aumentava constantemente. Levantei-me e fiz perguntas a respeito de ninharias, num tom bastante elevado e com violenta gesticulação, mas o som constantemente aumentava. Por que não se iam eles embora?

Andava pelo quarto acima e abaixo, com largas e pesadas passadas, como se excitado até a fúria pela vigilância dos homens; mas o som aumentava constantemente. Oh, Deus! Que poderia eu fazer? Espumei ... enraivecido ... praguejei! Fiz girar a cadeira sobre a qual estivera sentado e arrastei-a sobre as tábuas, mas o barulho se elevava acima de tudo e continuamente aumentava. Tornou-se mais alto ... mais alto ... mais alto! E os homens continuavam ainda a passear, satisfeitos e sorriam. Seria possível que eles não ouvissem? Deus Todo-Poderoso! Não, não! Eles suspeitavam! Eles sabiam! Estavam zombando do meu horror! Isto pensava eu e ainda penso. Outra coisa qualquer, porém, era melhor que aquela agonia!

Qualquer coisa era mais tolerável que aquela irrisão! Não podia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Sentia que devia gritar ou morrer, e agora de novo ... escutai ... mais alto ... mais alto ... mais alto ... mais alto! ...

- Vilões! - trovejei. - Não finjam mais! Confesso o crime!  Arranquem as pranchas! Aqui, aqui! Ouçam o batido do seu horrendo coração!



Um conto de Edgar Allan Poe

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