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segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A Ilha dos Pinheiros


Por muitos anos, viveu perto da cidade de Gallipolis, em Ohio, um velho chamado Herman Deluse. Pouco se sabia de sua vida porque, além de não falar de si próprio, não permitia que os outros o fizessem. Havia entre a vizinhança a crença de que fora um pirata — crença que, ao que se sabe, baseava-se apenas em sua coleção de lanças de abordagem, espadas e velhas pistolas de pederneira. 

Vivia completamente só numa pequena casa de quatro aposentos, caindo aos pedaços e que nunca recebia reparos, a não ser quando as intempéries o exigiam. Ficava numa pequena elevação, no meio de um campo imenso e pedregoso onde cresciam espinheiros, com alguns canteiros cultivados, mas de forma bem primitiva. Aparentemente, era sua única propriedade, mas dificilmente poderia dar-lhe sustento, por mais simples e poucos que fossem seus desejos.

Ele parecia sempre ter dinheiro à mão, pagando à vista pelo que obtinha nas lojas das redondezas e raramente comprando mais de duas ou três vezes no mesmo lugar, a não ser após um intervalo considerável de tempo. Mas não recebia elogios por essa distribuição igualitária de sua freguesia. As pessoas estavam mais propensas a encarar aquilo como uma tentativa infrutífera de esconder que possuía muito dinheiro. Nenhuma alma honesta, ciente dos fatos da tradição local e possuindo um mínimo de bom senso, seria capaz de duvidar que ele tinha montanhas de ouro roubado enterrado em algum ponto de sua propriedade decadente.

No dia 9 de novembro de 1867, o velho morreu. Ou pelo menos seu corpo foi encontrado no dia 10, tendo os médicos atestado que a morte ocorrera cerca de 24 horas antes. Como ocorreu, não souberam dizer. Porque os exames post-mortem mostraram que todos os órgãos estavam perfeitamente saudáveis, sem qualquer indício de doença ou violência. Segundo eles, a morte teria ocorrido por volta do meio-dia, embora o corpo tivesse sido encontrado na cama. O veredicto do júri foi o de que "ele morreu pela vontade de Deus".

O corpo foi enterrado e a administração pública assumiu a propriedade. Uma investigação minuciosa não descobriu nada que já não se soubesse a respeito do morto e as pacientes escavações feitas em vários pontos da casa por vizinhos sonhadores e parcimoniosos resultaram infrutíferas. Os administradores trancaram a casa a fim de evitar que ficasse exposta ao tempo, enquanto a propriedade, imóvel e bens, era posta legalmente à venda para cobrir, ao menos em parte, as despesas da transação.

A noite de 20 de novembro foi de tempestade. Ventos furiosos varreram os campos, açoitando-os com pancadas de chuva de granizo. Árvores imensas foram arrancadas do chão, interrompendo estradas. Nunca se vira na região uma noite tão terrível quanto aquela, mas na manhã seguinte a tempestade perdera o fôlego e o dia nasceu claro e limpo.

Às oito da manhã, o reverendo Henry Galbraith, pastor luterano muito conhecido e estimado, chegou a pé à sua casa, que ficava a pouco mais de dois quilômetros da propriedade de Deluse. O Sr. Galbraith estivera fora, em Cincinnati, por um mês. Subira o rio num barco a vapor e, ao chegar em Gallipolis na noite anterior, arranjara um cavalo e uma carroça, tomando o caminho de casa. Mas a violência da tormenta retivera-o durante a noite e, já de manhã, com tantas árvores caídas, acabara por abandonar cavalo e carroça, continuando a jornada a pé.

"Mas onde você passou a noite?", perguntou a mulher, assim que ele acabou de contar sua aventura.

"Com o velho Deluse na Ilha dos Pinheiros(*)", respondeu rindo. "Mas passei um mau pedaço. Ele não se importou de me deixar ficar lá, mas sequer me dirigiu a palavra.”

Felizmente, no interesse da verdade, estava presente a essa conversa o Sr. Robert Mosely Maren, advogado e literato de Columbus, o mesmo que escreveu os deliciosos Documentos da arte do humor. Percebendo, embora aparentemente sem compartilhá-la, a surpresa causada pela resposta do Sr. Galbraith, o sarcástico Sr. Maren sustou com um gesto as exclamações de espanto que naturalmente se seguiriam e, com toda tranquilidade, perguntou:

"E como foi que o senhor conseguiu entrar lá?”

Esta é a versão do Sr. Maren para a resposta do Sr. Galbraith:

"Vi uma luz se movendo dentro da casa e, completamente cego pela tormenta, além de estar quase congelando, entrei pelo portão e amarrei o cavalo na cerca do velho estábulo, onde ele está até agora. Em seguida bati na porta. Como ninguém atendeu, resolvi entrar. A sala estava escura, mas eu tinha fósforos e acabei achando uma vela, que acendi. Tentei entrar no aposento ao lado, só que a porta estava trancada e, embora ouvisse os passos pesados do velho lá dentro, ele não respondeu a meu chamado. Como não havia lareira acesa, fiz um fogo e me deitei [sic] diante dele, fazendo do casaco travesseiro e preparando-me para dormir. Mas logo a porta que eu forçara abriu-se silenciosamente e o velho entrou, carregando uma vela. Dirigi-me a ele com toda a gentileza, pedindo perdão pela invasão, mas ele não pareceu notar-me. Dava a impressão de procurar algo, embora seus olhos estivessem fixos nas órbitas. Acho que ele é sonâmbulo. Deu uma meia-volta pela sala e saiu pela mesma porta por onde entrara. Ainda voltou duas vezes antes que eu adormecesse, agindo exatamente da mesma forma e desaparecendo como antes. Nos intervalos, eu o ouvia perambulando pela casa, seus passos perfeitamente audíveis nas pausas da tormenta. E, quando acordei na manhã seguinte, ele já havia saído.”

O Sr. Maren ainda tentou fazer mais perguntas, mas foi contido pelas exclamações da família.

A história da morte e do enterro de Deluse veio à tona, para grande espanto do bom pastor.

"A explicação para a aventura do senhor é muito simples", disse o Sr. Maren. "Não acredito que o Sr. Deluse possa caminhar durante o sono — não nesse em que está mergulhado agora. Mas o senhor, com toda certeza, tem um sono cheio de sonhos."

E, diante dessa versão para os fatos, o Sr. Galbraith foi obrigado a aceitá-la, embora relutante. Porém, tarde da noite do dia seguinte, lá estavam os dois cavalheiros, acompanhados pelo filho do pastor, na estrada diante da casa do velho Deluse. Havia luz lá dentro. Às vezes numa janela, às vezes noutra. E os três homens avançaram até junto à porta.

Assim que lá chegaram, veio do interior da casa uma profusão de sons estarrecedores — ruído de espadas, aço chocando-se contra aço, explosões violentas como se armas de fogo, gritos de mulheres, grunhidos e imprecações de homens em combate! Os três ficaram ali por um instante, amedrontados, sem saber o que fazer. E então o Sr. Galbraith tentou abrir a porta. Estava trancada. Mas o pastor era um homem de coragem e, acima de tudo, um homem de força hercúlea. Deu um ou dois passos para trás e atirou contra a porta o ombro direito, arrancando-a das dobradiças com um estrondo. No segundo seguinte os três estavam lá dentro.

Tudo era escuridão e silêncio! O único som era a batida de seus corações. O Sr. Maren trouxera consigo fósforos e uma vela. Com dificuldade, devido à agitação em que se encontrava, conseguiu acendê-la, e os três homens começaram a explorar a casa, passando de um a outro aposento. Tudo estava em perfeita ordem, como fora deixado pelo xerife. Nada fora remexido. Uma fina camada de poeira recobria tudo. Uma porta, nos fundos, encontrava-se entreaberta, como se por descuido, e a primeira coisa que passou pela cabeça deles foi que os autores da gritaria talvez tivessem escapado.

Escancararam a porta e iluminaram o chão com a vela. Com os últimos sopros da tormenta noturna caíra um pouco de neve. Mas não havia pegadas. A superfície branca estava intacta. Eles fecharam a porta e entraram no último dos quatro aposentos da casa — o que ficava mais distante da entrada, num canto da construção. Foi lá que a vela do Sr. Maren se apagou de repente, como se atingida por uma lufada de ar.

No instante seguinte, ouviram um baque pesado. E quando reacenderam a vela às pressas encontraram o jovem Galbraith, filho do pastor, caído no chão a pouca distância dos dois. Estava morto. Uma das mãos crispara-se em torno de um pesado saco de moedas, que exames posteriores provariam ser velhos dobrões espanhóis. Bem junto ao lugar onde jazia o corpo uma ripa de madeira tinha sido arrancada da parede e, pela abertura que ficara, via-se que fora de lá que o saco fora retirado.

Outra investigação foi realizada. Outro exame post-mortem feito sem que se conseguisse descobrir a causa da morte. Mais um veredicto de que ela se dera "pela vontade de Deus" deixou a todos a liberdade de tirar suas próprias conclusões. O Sr. Maren chegou à conclusão de que o jovem morrera de pura excitação.

(*) A "Ilha dos Pinheiros" é um conhecido local de encontro de piratas. (N. do A.)


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas; ilustrações Mozart Couto. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

No Limiar do Irreal


I

Ao longo de certo trecho entre Aubum e Newcastle, a estrada — primeiro de um lado do rio e depois do outro — ocupa todo o fundo de uma ravina, sendo parcialmente cortada na escarpa íngreme e parcialmente formada pelas pedras removidas do leito do rio pelos mineradores. As escarpas são cobertas de vegetação e o curso da ravina é sinuoso. Nas noites escuras, é preciso andar com cuidado para não se cair dentro d'água. A noite que tenho na memória era escura e o rio, uma torrente, engrossada por um recente temporal. Eu viera de Newscastle e estava a caminho, a menos de dois quilômetros de Auburn, cruzando o trecho mais escuro e mais estreito da ravina, olhando com toda a atenção a estrada à frente de meu cavalo.

De repente, vi um homem quase embaixo do focinho do animal. Puxei a rédea com tanta força que o cavalo por pouco não empinou.

"Perdão", disse. "Mas não o vi.”

"Você dificilmente poderia esperar ver-me", respondeu o homem, com civilidade, vindo para a lateral da carruagem. "E o barulho do rio impediu que eu o ouvisse.”

Reconheci a voz imediatamente, embora cinco anos se tivessem passado desde que a ouvira pela última vez. E não estava particularmente feliz em ouvila.

"Você é o Dr. Dorrimore, não é?”

"Sou. E você é meu bom amigo Sr. Manrich. Estou mais do que feliz em vê-lo... demais", acrescentou com um sorriso, "até porque estou indo na sua direção e, claro, espero receber uma oferta de carona.”

"Que eu faço, com muito prazer.”

O que não era exatamente verdade.

O Dr. Dorrimore agradeceu ao sentar-se a meu lado e eu segui em frente, com a mesma cautela de antes. Deve ser fantasia, mas hoje tenho a impressão de que, durante o resto da viagem, fomos envolvidos por uma neblina gelada. E que eu estava morrendo de frio. Que o caminho parecia mais longo do que antes, e que a cidade, quando lá chegamos, parecia triste, inóspita e desolada.

Devia ser cedo ainda, mas não me lembro de ter visto uma luz sequer nas casas, nem vivalma nas ruas. Num dado momento, Dorrimore explicara-me por que estava ali, e onde estivera durante todos os anos em que desaparecera desde nosso último encontro. Lembro-me que ele fez essa narrativa, mas não me recordo dos fatos narrados. Ele estivera em países estranhos e voltara — é tudo o que minha memória retém, mas isso eu já sabia antes. Quanto a mim, não me recordo de ter dito uma só palavra, embora com certeza o tenha feito. Mas de uma coisa tenho perfeita consciência: a presença daquele homem a meu lado era estranhamente inquietante, desagradável. A ponto de, ao chegarmos à entrada iluminada da Pensão Putnam, eu ter tido a nítida sensação de haver escapado de um perigo espiritual, de natureza peculiar e assustadora. Mas a sensação se transformou assim que fiquei sabendo que o Dr. Dorrimore também se hospedaria lá.

II 

Para explicar, pelo menos em parte, meus sentimentos em relação ao Dr. Dorrimore, vou falar das circunstâncias nas quais o conhecera, alguns anos antes. Certa noite, meia dúzia de homens, entre os quais eu, encontrava-se na biblioteca do Clube Boêmio de São Francisco. A conversa era acerca de prestidigitação e as façanhas dos prestidigitadores, um dos quais se apresentava naquela ocasião no teatro local.

"Esses sujeitos são farsantes no duplo sentido", disse um dos amigos. "São incapazes de fazer alguma coisa pela qual valha a pena passar por bobo. O mais humilde dos saltimbancos da Índia seria capaz de enganá-los a ponto de pensarem que estão loucos.”

"Mas como?", perguntou outro, acendendo um charuto.

"Como? Com qualquer uma de suas performances mais simples, mais comuns. Lançando para o ar objetos que nunca vão cair. Fazendo plantas brotarem, crescerem e se abrirem em flor, isso em qualquer superfície nua, escolhida pelo espectador. Colocando um homem dentro de uma cesta de vime, espetando-o por todos os lados com uma espada enquanto ele grita e sangra, para depois abrir a cesta e mostrar que está vazia. Ou então jogando para o alto a ponta de um fio de seda e subindo por ele até desaparecer.”

"Bobagem!", retruquei, temo que com certa indelicadeza. "Não vá me dizer que você acredita nessas coisas.”

"Claro que não. Já as presenciei vezes demais para acreditar nelas.”

"Mas eu acredito", disse um jornalista local muito conhecido por suas matérias pitorescas. "Já relatei esse tipo de coisa tantas vezes que nada, a não ser a observação, seria capaz de abalar minha convicção. Cavalheiros, vocês têm minha palavra.”

Mas ninguém riu — todos estavam com os olhos fixos em alguma coisa atrás dele. Virando-me na cadeira, vi um homem com roupa de gala, que acabara de entrar na sala. Era de pele muito escura, quase trigueiro, com um rosto fino, barba negra que lhe ia até junto da boca, uma vasta cabeleira preta, áspera e em desalinho, nariz adunco e olhos que brilhavam com uma expressão cruel, como os de uma cobra. Um dos integrantes do grupo levantou-se e apresentou-o como sendo o Dr. Dorrimore, de Calcutá.

A cada um que era apresentado ele cumprimentava com uma profunda reverência à maneira oriental, embora sem a gravidade comum no Oriente. Seu sorriso pareceu-me cínico e levemente insolente. Todo seu comportamento só pode ser descrito como desagradavelmente sedutor. Sua presença conduziu a conversa para outros assuntos. Ele falou pouco — não consigo lembrar-me de nada do que chegou a dizer. Notei que sua voz era particularmente rica e melodiosa, embora tenha produzido em mim um efeito semelhante ao provocado pelo olhar e pelo sorriso. Logo, eu me levantava para ir embora. Mas ele também ergueu-se, começando a vestir o sobretudo.

"Manrich", disse, "estou indo na mesma direção que você.”

Está droga nenhuma!, pensei. E como é que você sabe em que direção vou? Mas limitei-me a dizer:

"Ficarei encantado com sua companhia.”

Saímos do prédio juntos. Não havia táxis à vista, os bondes já tinham sido recolhidos e a lua cheia, na noite fresca, estava uma beleza. Subimos a ladeira da Califórnia Street, Peguei aquela direção pensando que ele naturalmente optaria por outra, para o lado dos hotéis.

"Você não acredita no que se fala a respeito dos prestidigitadores indianos", afirmou ele, de repente.

"E como é que o senhor sabe?", perguntei.

Sem me responder, ele pôs de leve a mão em meu braço e com a outra apontou para a calçada à nossa frente. Ali, quase a nossos pés, jazia o corpo de um homem morto, com o rosto voltado para cima, pálido à luz da lua! Uma espada, cujo cabo cintilava com pedrarias, estava enfiada em seu peito. Uma poça de sangue se formara nas pedras da calçada. Fiquei espantado e aterrorizado. Não apenas com o que via, mas pelas circunstâncias em que o fazia. Diversas vezes, enquanto subíamos a ladeira, meus olhos tinham observado, eu podia jurar, toda a extensão daquela calçada, de uma transversal à outra. Como podiam ter deixado de ver aquela cena horrível, agora tão nitidamente visível sob a luz da lua?

Enquanto recuperava-me do choque, observei que o corpo vestia traje de gala. O sobretudo, aberto, revelava a casaca, a gravata branca, a parte da frente da camisa trespassada pela espada. E então — terrível revelação! — vi que o rosto, exceto pela palidez, era o de meu companheiro! Em cada detalhe, das roupas à aparência física, era o próprio Dr. Dorrimore.

Como que hipnotizado pelo horror, virei-me para olhar o homem vivo a meu lado. Ele desaparecera. E assim, ante mais esse terror, saí dali, descendo a ladeira pelo mesmo caminho de onde viera. Tinha dado poucos passos quando senti um forte puxão no ombro, que me fez parar.

Quase gritei de pavor: o homem morto, com a espada ainda enfiada no peito, estava de pé a meu lado! Agarrando a espada com a mão livre, ele arrancou-a, enquanto o luar banhava as pedrarias do cabo e a própria lâmina de aço, imaculadamente limpa. A espada caiu na calçada diante de mim e... desapareceu. O homem, a pele novamente escura, afrouxou a mão que me apertava o ombro, voltando a olhar-me com o mesmo olhar cínico que eu vira em nosso primeiro encontro.

Os mortos não têm um olhar assim. Recobrando parcialmente o controle, virei-me para trás e vi a sombra branca da calçada, limpa de uma transversal à outra.

"O que significa isso, seu demônio?", perguntei, enfático, embora me sentisse fraco e tremesse da cabeça aos pés.

"Foi aquilo que alguns se divertem chamando de prestidigitação", respondeu ele, com um rápido porém incisivo sorriso.

Em seguida virou na Dupont Street e eu jamais voltei a vê-lo, até o dia de nosso encontro na ravina de Auburn.

III  

No dia seguinte ao meu segundo encontro com o Dr. Dorrimore, não voltei a vê-lo. O recepcionista da Pensão Putnam explicou-me que estava trancado no quarto, adoentado. Naquela tarde, na estação de trem, tive uma agradável surpresa com a chegada inesperada da Srta. Margaret Corray, juntamente com sua mãe, procedentes de Oakland.

Esta não é uma história de amor. Tampouco sou um contador de histórias, e o amor, do jeito que é, não pode ser descrito numa literatura dominada e circunscrita à tirania aviltante que obriga a escrever bonito em nome das adolescentes. Sob o jugo doentio das adolescentes — ou, por outra, sob o mando dos falsos censores que se investiram do direito de cuidar do bem-estar delas —

 o amor apaga sua sagrada pira, E, sem que o saiba, a Moralidade expira

morreu de fome ante a comida insossa e a água destilada fornecidas pelos puritanos. O que quero dizer é que a Srta. Corray e eu estávamos noivos. Ela e a mãe foram para o hotel onde eu me hospedava e, ao longo de duas semanas, vi-a diariamente. Desnecessário dizer que eu estava feliz. O único obstáculo à minha felicidade plena naqueles dias maravilhosos era a presença do Dr. Dorrimore, o qual eu me sentira na obrigação de apresentar às senhoras. A essa altura, ele já caíra no agrado delas. E o que eu podia dizer? Não sabia de nada que o desmerecesse. Seu comportamento era o de um cavalheiro bem-educado e gentil. E, para as mulheres, o comportamento é o que faz o homem. Em uma ou duas ocasiões, ao ver a Srta. Corray caminhando lado a lado com ele, fiquei furioso, e uma vez cheguei mesmo à indiscrição de protestar.

Indagado sobre minhas razões, não tive o que dizer e pensei ter visto na expressão dela uma sombra de desprezo diante das tolices de uma mente ciumenta. Com o tempo, fui ficando cada vez mais taciturno e irritadiço, até que, num gesto intempestivo, decidi voltar a São Francisco no dia seguinte. Mas nada comentei sobre isso.

IV 

Havia em Auburn um velho cemitério, abandonado. Era quase no coração da cidade, mas, mesmo assim, à noite era um lugar tão sombrio quanto poderia desejar um ser humano em seu momento mais lúgubre. As grades das sepulturas estavam caídas, arrebentadas e muitas já não existiam. De vários túmulos só restavam ruínas e de alguns haviam brotado imensos pinheiros, cujas raízes tinham cometido um pecado inominável. As lápides estavam caídas ou rachadas ao meio e o terreno coberto de espinheiros. O muro fora quase todo desfeito e vacas e porcos andavam por ali. O lugar era uma desonra para os vivos, uma ofensa para os mortos, uma blasfêmia contra Deus.

Na noite daquele dia em que eu tomara a estouvada decisão de ir embora, furioso, para longe daquilo que mais amava, fui dar naquele local, bem a propósito.

A luz de uma meia-lua filtrada através das folhagens formava desenhos e nódoas que deixavam entrever o invisível. E as sombras escuras pareciam conspirar para, no momento exato, revelar negrores ainda mais terríveis. Passando junto do que fora a calçada de um túmulo, vi emergir das sombras a figura do Dr. Dorrimore. Eu próprio, estando encoberto pela penumbra, fiquei imóvel, com as mãos crispadas e os dentes trincados, tentando controlar o impulso de atirar-me sobre ele e estrangulá-lo. Um momento depois, uma segunda figura juntou-se a ele, segurando-o pelo braço. Era Margaret Corray!

Não sei bem contar o que aconteceu. Só sei que pulei para a frente, com pensamentos de morte. Sei que fui encontrado na manhã cinzenta, ferido e sangrando, com marcas de dedos na garganta. Fui levado à Pensão Putnam, onde, por vários dias, delirei. Tudo isso só sei porque me foi contado. E de minha parte lembro apenas que, ao recobrar a consciência, já convalescente, mandei chamar imediatamente o recepcionista do hotel.

"A Sra. Corray e a filha dela ainda estão hospedadas aqui?", perguntei.

"Qual foi o nome que o senhor disse?”

"Corray.”

"Não tivemos ninguém com esse nome aqui, senhor.”

"Não zombe de mim, eu lhe peço", disse eu, altivo. "Você está vendo que já estou melhor. Diga-me a verdade.”

"Dou-lhe minha palavra, senhor", insistiu ele com evidente sinceridade. "Não tivemos nenhum hóspede aqui com esse sobrenome.”

Suas palavras me deixaram estupefato. Permaneci em silêncio por um instante. Em seguida, perguntei:

"E onde está o Dr. Dorrimore?”

"Ele foi embora na manhã seguinte à briga e, desde então, não ouvimos mais falar dele. Foi um trabalho e tanto que ele deu ao senhor.”

V

Tais são os fatos neste caso. Margaret Corray hoje é minha esposa. Ela jamais esteve em Auburn e durante as semanas em que toda a história que acabei de contar se formou em minha mente ela estava em casa, em Oakland, perguntando-se onde eu estaria e por que não lhe escrevia.

Outro dia, li no jornal Sun, de Baltimore, a seguinte nota:

"O professor Valentine Dorrimore, hipnotizador, teve enorme audiência ontem à noite. O palestrante, que viveu a maior parte de sua vida na Índia, fez uma fantástica exibição de seus poderes, hipnotizando, com um simples olhar, qualquer um que concordasse em submeter-se à experiência. Na verdade, hipnotizou a platéia inteira por duas vezes (só os repórteres foram poupados), fazendo com que todos tivessem as mais extraordinárias ilusões. A melhor coisa da palestra foi a exposição sobre os métodos dos prestidigitadores indianos em suas famosas performances, relatadas por muitos viajantes. O professor declara que esses taumaturgos chegaram a tal refinamento na arte que aprendeu com eles que são capazes de fazer milagres, apenas mergulhando os 'espectadores' num estado de hipnose e dizendo-lhes o que devem ver e ouvir. E chega a ser inquietante sua afirmação de que algumas pessoas, especialmente suscetíveis, podem ser mantidas no limiar do irreal durante semanas, meses e até mesmo anos, dominadas por qualquer ilusão ou alucinação que o prestidigitador queira eventualmente sugerir.”


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas; ilustrações Mozart Couto. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

O Ambiente Adequado


I

A noite

Numa noite de pleno verão, o filho de um fazendeiro que vivia a cerca de quinze quilômetros de Cincinnati seguia por uma trilha de cavalos em meio a uma floresta densa e escura. O rapaz se perdera quando procurava por algumas vacas desgarradas e por volta da meia-noite já estava a uma enorme distância de casa, numa região que lhe era desconhecida. Mas tratava-se de um rapaz corajoso e, sabendo vagamente qual era a direção de casa, seguira floresta adentro sem hesitar, guiando-se pelas estrelas. Ao dar com a trilha de cavalos, e notando que ela rumava exatamente na direção certa, decidiu segui-la.

A noite estava clara, mas dentro da floresta a escuridão envolvia tudo. Era mais pelo tato do que pela visão que ele seguia caminho. Na verdade, seria difícil sair da trilha. De ambos os lados a vegetação, de tão fechada, era quase impenetrável. Já caminhara floresta adentro por dois ou três quilômetros quando se surpreendeu ao ver uma fraca luminosidade brilhando através da folhagem na beira do caminho, à sua esquerda. Aquela visão deixou-o atônito e seu coração começou a bater com toda força.

"A velha casa Breede fica perto daqui", disse para si mesmo. "Devo estar na outra extremidade do caminho que vai dar lá, saindo de nossa casa. Mas... por que será que há uma luz ali?”

De qualquer forma, seguiu em frente. Pouco depois, emergia da floresta, indo dar num pequeno espaço aberto, recoberto de espinheiros. Havia resquícios de uma cerca, semidestruída. A poucos metros da trilha, no meio da clareira, lá estava a casa de onde emanava a luz, através de uma janela sem vidros. A janela um dia tivera uma vidraça, mas esta, assim como a esquadria, tinha sido há muito destruída pelos projéteis arremessados por meninos aventureiros, dispostos a provar, a um só tempo, sua coragem e sua hostilidade às forças sobrenaturais. Sim, porque a casa Breede tinha a reputação maldita de ser uma casa mal-assombrada. Talvez não o fosse, mas nem mesmo o mais cético poderia negar que estava abandonada — o que, em zonas rurais, significa praticamente a mesma coisa.

Olhando para a luz misteriosa que emanava através da janela quebrada, o garoto lembrou-se, com certa apreensão, que sua própria mão contribuíra para aquela destruição. Claro que sua penitência, por tardia e inútil, seria terrível. De certa forma ele esperava ser punido por todos os espíritos maléficos e inomináveis que desafiara, ao ajudar a arrebentar-lhes as janelas e a paz. Mas nem assim o rapaz obstinado, que tremia da cabeça aos pés, fugiu. O sangue em suas veias era forte e rico em ferro, como o dos homens da fronteira. Pertencia à segunda geração daqueles que haviam dominado os índios. E seguiu em frente, pronto para passar em frente à casa.

No momento em que passava, olhando através do vão da janela, deu com um cenário estranho e aterrador — a figura de um homem sentado no meio da sala, diante de uma mesa onde havia algumas folhas de papel. Os cotovelos estavam sobre a mesa e as mãos sustentavam a cabeça, sem chapéu. De ambos os lados, os dedos estavam enfiados nos cabelos. À luz da única vela que brilhava a seu lado, o rosto do homem era de uma palidez cadavérica. A chama iluminava só um lado do rosto e o outro estava envolto pela escuridão. Seus olhos estavam fixos no vão da janela, com um olhar que um observador mais frio e mais experiente descreveria como de medo, mas que para o rapaz pareceu um olhar vazio, sem alma. Ele achou que o homem estava morto.

A situação era horrível, mas carregava algum fascínio. E o rapaz parou para olhar melhor. Sentia-se fraco, tremia, parecia a ponto de desmaiar. Podia sentir o sangue fugir-lhe do rosto. E contudo, trincando os dentes, avançou em direção à casa. Não sabia ao certo o que iria fazer — era a mera coragem provocada pelo terror. Enfiou o rosto pálido pelo vão iluminado da janela. Naquele instante, um grito agudo e estranho cortou o silêncio da noite — era o piado de uma coruja. O homem pôs-se de pé num pulo, derrubando a mesa e apagando a vela. E o rapaz saiu em disparada.

II

O dia anterior 

"Bom dia, Colston. Parece que estou dando sorte. Você já cansou de dizer que meus elogios a seu trabalho literário eram por pura educação e agora me encontra aqui absorto — na verdade completamente envolvido —, com sua última história no Messenger. Só mesmo seu toque no meu ombro me fez recobrar a consciência.”

"A prova é mais forte do que imagina", respondeu o outro. "Você está tão ansioso por conhecer a história que é capaz de renunciar às próprias considerações e estragar todo o prazer que poderia obter com ela.”

"Não estou entendendo", disse o leitor, dobrando o jornal e guardando-o no bolso. "Vocês, escritores, são muito esquisitos. Vamos lá. Conte-me o que foi que eu fiz ou deixei de fazer, Em que sentido o prazer que tiro, ou posso tirar, de seu trabalho depende de mim?”

"Em vários sentidos. Você gostaria de tomar seu café da manhã aqui neste bonde? E suponha que houvesse um fonógrafo tão perfeito que fosse capaz de reproduzir uma ópera inteira — o canto, a orquestração, tudo —, você acha que a ouviria com prazer em pleno escritório, durante o trabalho? Você seria capaz de apreciar uma serenata de Schubert tocada ao violino por um italiano inoportuno, no ferryboat matinal? Você está sempre disposto a se divertir? Está sempre atento, pronto para apreciar tudo? Permita-me lembrar-lhe, meu caro, que a história que acabou de me dar a honra de começar a ler, apenas como um artifício para esquecer o desconforto deste bonde, é uma história de assombração!”

"E daí?”

"E daí? Será que o leitor não tem também deveres, correspondentes a seus privilégios? Você pagou cinco centavos por esse jornal. É seu. Tem o direito de lê-lo quando e onde quiser. A maior parte do que está escrito nele não será afetada, para melhor ou para pior, pelo momento, local ou clima da leitura. Algumas notícias devem mesmo ser lidas de imediato — enquanto ainda têm gás. Mas minha história não é desse tipo, Não faz parte da lista de 'últimas novidades' da Terra Assombrada. Você não tem obrigação de estar atualizado acerca de tudo o que acontece nas regiões do além. Essa história se manterá até que você possa conceder à sua mente um momento de relaxamento, apropriado para apreender seu significado — e, com todo respeito, devo dizer-lhe que isto não pode ser feito dentro de um bonde, mesmo que você seja o único passageiro. Porque, ainda assim, a solidão será uma solidão inadequada. Um escritor tem direitos que o leitor deve respeitar.”

"Dê um exemplo específico.”

"O direito a ter uma atenção exclusiva por parte do leitor, negá-lo, seria imoral. Fazê-lo dividir a atenção com o barulho de um bonde, com as imagens corridas dos transeuntes nas calçadas, com os prédios passando — com milhares de outras distrações que compõem nosso ambiente habitual — é ameaçá-lo com uma injustiça grosseira. Por Deus, é infame!”

O escritor se pusera de pé, segurando-se em um dos apoios pendurados no teto do bonde. O outro olhava-o espantado, perguntando-se como uma ofensa tão banal podia justificar linguagem tão dura. Notou que o rosto do escritor estava extraordinariamente pálido, enquanto seus olhos brilhavam como carvões em brasa.

"Sabe bem o que quero dizer", continuou ele, atropelando as palavras, "sabe o que quero dizer, Marsh. O que escrevo nesse matutino traz o subtítulo 'Uma história assombrada'. Está mais do que claro. Qualquer um dos meus honrados leitores entenderá que com isso estão subentendidas as condições sob as quais o texto deve ser lido.”

O homem chamado Marsh estremeceu levemente e depois perguntou com um sorriso:

"Que condições? Você sabe muito bem que sou apenas um homem de negócios, do qual não se espera que entenda de determinados assuntos. Como, quando e onde devo ler sua história de assombração?”

"Em total solidão — à noite — sob a luz de uma vela. Há certas emoções que um escritor pode provocar com facilidade - como divertimento ou compaixão. Posso levá-lo às lágrimas ou a uma gargalhada em praticamente qualquer circunstância. Mas para que minha história de assombração tenha efeito, você precisa sentir medo — ou pelo menos uma forte sensação de sobrenatural—, e aí está algo difícil. Tenho o direito de esperar que, já que me lê, você deva me dar uma chance. E se disponha a sentir a emoção que estou tentando inspirar.”

O bonde acabara de chegar ao terminal e parara. A viagem recém terminada era a primeira do dia e a conversa dos dois passageiros madrugadores não fora interrompida. As ruas ainda estavam vazias, silenciosas. Os telhados das casas apenas começavam a receber a luz do sol. Assim que saltaram e começaram a caminhar juntos, Marsh observou seu companheiro, do qual se dizia, como aliás da maioria dos homens com rara habilidade literária, ser chegado a vários vícios destrutivos. É essa a vingança das mentes simples contra aquelas mais brilhantes, por se ressentirem de sua superioridade. O Sr. Colston era conhecido como um homem de gênio. Há almas honestas que acreditam serem os gênios uma espécie de excesso. Sabia-se que Colston não era de beber, mas muitos comentavam que ele usava ópio. Alguma coisa em sua aparência naquela manhã — um certo olhar selvagem, a estranha palidez, a maneira de falar, rápida e rouca — parecia ao Sr. Marsh confirmar tais comentários. Mas ele não abandonaria um assunto que achava interessante, por mais que isso deixasse seu amigo agitado.

"Você quer dizer", falou, "que se eu me desse ao trabalho de seguir seus conselhos — criando as condições pedidas: solidão, noite, um toco de vela —, você e sua história assombrada seriam capazes de provocar em mim a sensação desconfortável do sobrenatural, como você chama? Você acha que seria capaz de acelerar meu pulso, de me fazer levantar de um pulo ao ouvir um ruído, de sentir um arrepio nervoso percorrer minha espinha, fazendo meu cabelo arrepiar-se?”

Colston virou-se de repente, encarando o outro, à medida que andavam.

"Você não ousaria. Não teria coragem", disse. Enfatizou a frase com um gesto de desdém. "Você é corajoso o suficiente para me ler num bonde, mas numa casa abandonada, sozinho, no meio da floresta, e à noite? Ah! Tenho aqui no bolso um manuscrito que seria capaz de matá-lo!”

Marsh zangou-se. Considerava-se corajoso e aquelas palavras mexeram com ele.

"Se você conhece um lugar assim", disse, "leve-me até lá hoje à noite e deixe-me com sua história e um toco de vela. Vá me procurar quando achar que já deu tempo de ler o texto, que vou lhe contar o enredo todo — e botar você para correr!”

E foi assim que o jovem fazendeiro, olhando através do vão da janela da casa Breede, viu um homem sentado sob a luz de uma vela.

III

O dia seguinte 

Na tarde seguinte, três homens e um rapaz se aproximaram da casa Breede pelo mesmo local de onde, na noite anterior, viera o jovem fazendeiro. Os homens estavam alegres. Falavam alto e riam. Faziam piadas e comentários irônicos sobre a história que o rapaz contara, na qual evidentemente não acreditavam. O garoto aceitava a provocação sério, sem responder. Tinha uma noção apropriada das coisas e sabia muito bem que quando alguém conta que viu um homem morto levantar-se de sua cadeira e apagar uma vela ninguém acredita nele.

Ao chegarem, e encontrando a porta destrancada, os investigadores entraram sem qualquer cerimônia. No corredor junto à entrada havia duas outras portas, uma à direita e uma à esquerda. Penetraram no aposento da esquerda — aquele que tinha a janela dando para a frente. E encontraram o cadáver de um homem. Estava caído meio de lado, com o braço esticado sob o corpo e o rosto contra o chão. Os olhos estavam arregalados. E o olhar que tinha não era um espetáculo agradável. Com a mandíbula caída, escorria de sua boca um fio de saliva, formando uma pequena poça.

Uma mesa derrubada, um toco de vela, uma cadeira e algumas folhas de papel manuscritas eram os únicos outros objetos do aposento. Os homens observaram o corpo, tocando-lhe o rosto. O rapaz olhava tudo com gravidade, quase com um olhar de posse. Nunca na vida se sentira tão orgulhoso. Um dos homens virou-se para ele.

"Você é dos bons" — comentário que foi recebido pelos outros dois com sinais de concordância. Era o Ceticismo pedindo desculpas à Verdade.

Em seguida, um dos homens apanhou do chão os papéis manuscritos e encaminhou-se até a janela, porque as sombras da noite já começavam a descer sobre a floresta. O som do bacurau já se fazia ouvir a distância e um besouro gigantesco voejou junto à janela com suas asas ruidosas, desaparecendo em seguida. E o homem leu.

IV

O manuscrito 

"Antes de cometer o ato sobre o qual, certo ou errado, estou decidido, e de apresentar-me diante de meu Criador para julgamento, eu, James R. Colston, na qualidade de jornalista, sinto-me no dever de dar um testemunho a meu público. Meu nome é, ao que sei, razoavelmente conhecido como escritor de contos trágicos, mas nem a imaginação mais sombria seria capaz de conceber algo mais terrível do que a história de minha própria vida. Não pelo que tenha acontecido: minha vida tem sido destituída de aventuras ou ação. Mas minha carreira mental tem sido ensombrecida por assassinatos e maldições. Não vou contá-los aqui — alguns deles já estão escritos e prontos para publicação em outro lugar. O objetivo destas linhas é explicar a quem interessar possa que minha morte é voluntária — resultado de minha própria vontade. Deverei morrer à meia-noite do dia 15 de julho — uma data significativa para mim, já que foi nesse dia, e nessa hora, que meu amigo, no tempo e na eternidade, Charles Breede, fez a mim seu juramento, cometendo o mesmo ato ao qual, por sua fidelidade a nosso pacto, sinto-me agora obrigado. Ele se matou em 85 sua casa na floresta de Copeton. Houve o veredicto de sempre atestando 'insanidade temporária'. Tivesse eu testemunhado naquele inquérito — tivesse eu contado tudo o que sabia, e eles me teriam classificado de louco.”

Seguia-se uma passagem evidentemente longa que o homem com o manuscrito leu para si. O restante, leu em voz alta:

"Ainda tenho uma semana de vida para tomar todas as providências e preparar-me para a grande transformação. É o bastante, pois tenho poucos negócios e já faz quatro anos que a morte se tornou para mim uma obrigação imperativa. Deixarei este manuscrito ao lado de meu corpo. Quem o encontrar, por favor, leve-o ao juiz.”

James R. Colston.

"P. S.—Willard Marsh: neste dia fatal de julho, passo a suas mãos o manuscrito, para ser aberto e lido nas condições acordadas, bem como no local por mim designado. Desisto de deixar este manuscrito junto a meu corpo para explicar as circunstâncias de minha morte, já que isso não tem importância. Ele servirá para explicar as circunstâncias da sua. Vou ter com você durante a noite para me assegurar de que leu o texto. Você me conhece bem e sabe que o farei. Mas, meu caro amigo, eu o farei depois da meia-noite. Que Deus tenha piedade de nossas almas!”

J. R. C.

Enquanto o homem lia o manuscrito, a vela havia sido apanhada do chão e acesa. Quando a leitura terminou, ele calmamente levou o papel em direção à chama e, apesar dos protestos dos outros, manteve-o ali até que se transformasse em cinzas. O homem que fez isso, e que mais tarde receberia sem reagir uma severa reprimenda do juiz, era genro do finado Charles Breede. Durante o inquérito, não foi possível esclarecer o que havia escrito naquele papel.

V

Do Times 

"Ontem, a Delegacia de Insanidade recolheu ao asilo o Sr. James R. Colston, um conhecido escritor local que colaborava com o Messenger. Deve ser lembrado que na noite do dia 15 passado, o Sr. Colston foi entregue à polícia por um de seus companheiros de quarto na Pensão Baine, segundo o qual ele agia de forma muito suspeita, desnudando o pescoço e molhando uma lâmina — depois de testar se estava afiada —, passando-a na pele do braço etc. Ao ser entregue à polícia, o infeliz opôs forte resistência e desde então tem estado tão violento que foi preciso encerrá-lo numa camisa-de-força. Nossos outros estimados escritores da atualidade continuam, na maioria, à solta.”


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas; ilustrações Mozart Couto. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Diagnóstico da Morte


"Sou menos supersticioso do que alguns de vocês, médicos — homens da ciência, como gostam de ser chamados", disse Hawver, respondendo a uma acusação que sequer fora formulada.

"Alguns de vocês — poucos, é verdade — acreditam na imortalidade da alma e em aparições que não têm a honestidade de chamar de fantasmas. Eu tenho apenas a convicção de que os seres vivos às vezes são vistos onde não estão, mas onde já estiveram — em lugares onde viveram por muito tempo, ou talvez tão intensamente, que deixaram sua marca no ambiente.

Sei, na verdade, que o ambiente onde uma pessoa vive pode ser afetado por sua personalidade, a ponto de emitir, muito tempo depois, a imagem dessa pessoa ante os olhos dos outros. Sem dúvida, não é qualquer personalidade que é assim tão marcante, assim como os olhos que percebem também têm de ser de um tipo especial — como os meus, por exemplo.”

"Sim, o tipo certo de olhos, mas enviando sensações para o tipo errado de cérebro", disse o Dr. Frayley, sorrindo.

"Obrigado. É bom quando nossas expectativas são atendidas. É exatamente essa a resposta que se espera ouvir em nome da civilidade.”

"Perdoe-me. Mas você diz que sabe. Isso é muita coisa, não acha? Talvez não se incomodasse em me contar como foi que aprendeu tudo isso.”

"Você vai dizer que é alucinação", respondeu Hawver, "mas não me importo.”

E foi assim que ele contou a história.

"No verão passado, eu fui, como você sabe, passar a temporada quente na cidade de Meridian. O parente em cuja casa pretendia hospedar-me ficou doente, por isso procurei outro local para ficar. Com muita dificuldade, consegui alugar uma casa que estava vazia, tendo sido antes ocupada por um médico excêntrico de nome Mannering, que se fora muitos anos antes. Para onde, ninguém sabia, nem mesmo seu agente. Ele próprio construíra a casa e nela vivera com uma velha criada durante cerca de dez anos. Após algum tempo, renunciara à prática da medicina, à qual já pouco se dedicava. Não apenas isso: na verdade, tornara-se um recluso, abrindo mão de qualquer tipo de vida social.

O médico local, única pessoa com a qual mantinha algum contato, contou-me que durante o período de reclusão ele se dedicara inteiramente a uma determinada pesquisa, cujo resultado expusera em um livro. Este fora desaprovado por seus pares, que na verdade consideravam-no meio louco. Não tive oportunidade de ler o livro, de cujo título sequer me recordo, mas sei que abordava uma teoria muito surpreendente. Ele assegurava ser possível a qualquer pessoa, desfrutando de boas condições de saúde, prever a própria morte com toda a precisão, com muitos meses de antecedência. O limite, creio, era de dezoito meses. Corriam histórias de que o médico exercera essa sua capacidade de fazer prognósticos — ou diagnósticos, como você chamaria. E dizem também que em todos os casos a pessoa, cujos amigos haviam sido avisados, morrera de repente na hora exata apontada por ele, sem qualquer razão aparente. Nada disso, porém, tem a ver com o que quero contar. Só achei que um médico se divertiria ouvindo isso."

"A casa era mobiliada, com os mesmos móveis do tempo em que ele lá vivera. Era na verdade uma casa sombria para alguém como eu, que não era nem recluso nem pesquisador, e acho que talvez me tenha transmitido um pouco dessa sua característica — ou talvez um pouco do caráter de seu ocupante anterior. Porque eu sentia nela uma constante melancolia que não fazia parte do meu temperamento, nem mesmo como consequência da solidão. Nenhum criado dormia na casa, mas eu sempre me senti muito bem em minha própria companhia, como você sabe, gostando muito de ler, embora não de estudar. Fosse qual fosse a causa, o efeito era de desalento, como se alguma coisa maléfica pairasse no ar. A sensação era especialmente forte no gabinete do Dr. Mannering, embora o aposento fosse o mais claro e arejado da casa.

O retrato a óleo do médico, em tamanho natural, ficava pendurado na parede, parecendo dominar toda a sala. Não havia nada de estranho na pintura. O homem tinha bom aspecto, aparentava cerca de cinquenta anos, cabelos grisalhos, rosto bem escanhoado e olhos graves e escuros. Mas algo naquele quadro sempre chamava e prendia minha atenção. A aparência do homem tornou-se familiar para mim e era quase como se me assombrasse."

"Certa noite atravessei a sala em direção a meu quarto, levando nas mãos uma lamparina — não há gás em Meridian. Como sempre fazia, parei diante do retrato que, à luz da lamparina, parecia ganhar uma expressão nova, de difícil definição, mas sem dúvida alguma sobrenatural. Fiquei interessado, mas não perturbado. Movi a lamparina de um lado para o outro, observando os efeitos provocados pelas nuances de luz. Quando o fazia, tive um impulso de virar-me. E, ao fazê-lo, vi que um homem atravessava a sala em minha direção! Assim que chegou perto o suficiente para que a luz lhe iluminasse o rosto, vi que era o Dr. Mannering. Era como se o retrato estivesse vivo."

"'Perdão', falei, com certa frieza, 'mas se o senhor bateu, eu não ouvi.'"

"Ele passou por mim, a um metro de distância, ergueu o dedo indicador da mão direita, como se quisesse fazer-me uma advertência, e sem dizer palavra saiu da sala, embora eu não o visse sair — da mesma forma como não o vira entrar. Claro, nem preciso dizer-lhe que aquilo era o que você chamaria de alucinação e eu de aparição. Aquela sala tinha apenas duas portas, sendo que uma estava trancada. A outra dava para um quarto de dormir, que não tinha outra saída. O que eu senti ao dar-me conta disso não tem real importância para o meu relato."

"Para você, sem dúvida, tudo isso deve ser uma 'história de assombração' das mais comuns — construída com os elementos regulares usados pelos velhos mestres da arte. Se assim fosse, não a teria contado, mesmo sendo verdadeira. O homem não estava morto. Eu o encontrei hoje na Union Street. Passou por mim em meio à multidão.”

Hawver tinha terminado sua história e os dois estavam em silêncio. O Dr. Frayley tamborilava os dedos sobre a mesa, com ar ausente.

"E hoje ele falou alguma coisa?", perguntou. "Alguma coisa que o levasse a crer que não está morto?”

Hawver olhou-o sem responder.

"Talvez", continuou o Dr. Frayley, "tenha feito um sinal um gesto. Erguido o dedo, como se em advertência. É um tique que ele tinha — um hábito, sempre que dizia alguma coisa séria — quando anunciava o resultado de um diagnóstico, por exemplo.”

"De fato, ele fez isso, sim — exatamente como a aparição havia feito. Mas... Deus do céu! Você o conhecia?”

Hawver parecia cada vez mais nervoso.

"Conhecia, sim. Li seus livros, como todos os médicos acabam fazendo um dia. É uma das contribuições mais importantes e fundamentais para a ciência médica deste século. Sim, eu o conhecia. E o atendi quando estava doente, há três anos. Ele está morto.”

Hawver ergueu-se da poltrona, visivelmente perturbado. Começou a andar de um lado para o outro da sala. Depois aproximou-se do amigo e, com a voz trêmula, disse:

"Doutor, o senhor tem alguma coisa a me dizer... como médico?”

"Não, Hawver. Você é a pessoa mais saudável que conheço. Como amigo, aconselho-o a ir para seu quarto. Você toca violino como um anjo. Toque. Toque alguma coisa leve e alegre. E tire essa maldita história da cabeça.”

No dia seguinte, Hawver foi encontrado morto em seu quarto, com o violino em posição, o arco sobre as cordas partitura, à sua frente, aberta na marcha fúnebre de Chopin.


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas; ilustrações Mozart Couto. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

A Alucinação de Staley Fleming

De dois homens que conversavam, um era médico. 

"Mandei buscá-lo, doutor", disse o outro, "mas não acredito que possa ajudar-me. Talvez o senhor pudesse recomendar um especialista em problemas mentais. Acho que estou perdendo a razão.”

"Você parece tão bem", retrucou o médico.

"O senhor é que vai julgar. Estou tendo alucinações. Acordo todas as noites e vejo em meu quarto, olhando-me intensamente, um imenso cão terranova negro, com as patas da frente brancas.”

"Você diz que acorda. Tem certeza? Às vezes, aquilo que chamamos 'alucinações' não passa de sonhos.”

"Acordo, sim. Às vezes fico parado, por muito tempo, olhando para aquele cachorro, com o mesmo olhar intenso com que o animal me fita. E a luz está sempre acesa. Quando já não posso suportar, sento-me na cama... e então vejo que não há nada ali!”

"Hum... qual é a expressão do cão?”

"Parece sinistra. Eu sei que, exceto quando se trata de arte, a face de um animal em repouso tem sempre a mesma expressão. Mas esse não é um animal de verdade. Os terra-novas têm um olhar manso, o senhor sabe. O que será que há com esse?"

"Bem, quanto a isso, meu diagnóstico não teria importância. Não é do cachorro que vou tratar.”

O médico riu do próprio gracejo, mas ao mesmo tempo observava o paciente com o canto do olho. Até que falou:

"Fleming, a descrição desse animal combina com a do cachorro do falecido Atwell Barton.”

Fleming ameaçou levantar-se da cadeira, sentou-se de novo e, querendo mostrar indiferença, falou:

"Eu me lembro do Barton. Acho que ele... dizem que... não houve alguma coisa de suspeito em torno de sua morte?”

Olhando diretamente nos olhos do paciente, o médico disse:

"Há três anos o corpo de Atwell Barton, seu velho inimigo, foi encontrado na floresta, perto da casa dele e da sua. Ele fora esfaqueado e morto. Mas ninguém foi preso. Não havia provas. Algumas pessoas tinham 'teorias'. Eu tinha uma. E você?”

 "Eu? Bem, eu... Deus do céu, o que eu poderia saber do assunto? O senhor sabe muito bem que viajei para a Europa logo depois... quer dizer, algum tempo depois. Nas poucas semanas desde que voltei, não seria capaz de construir uma 'teoria', o senhor não acha? Na verdade, não pensei no assunto. Mas o que tem o cachorro dele?”

"Foi quem encontrou o corpo. E depois ficou montando guarda no túmulo, até morrer de fome.”


Nada sabemos sobre as leis inexoráveis das coincidências. Pelo menos Staley Fleming nada sabia, caso contrário não se teria erguido de um salto quando, através da janela, o vento da noite trouxe consigo o longo ganido de um cão, a distância. Andou de um lado para o outro na sala, sob o olhar fixo do médico. Até que, abruptamente e quase gritando, dirigiu-se a este:

"E o que tudo isso tem a ver com meu problema, Dr. Halderman? O senhor esqueceu a razão pela qual foi chamado?”

Levantando-se, o médico segurou o braço do paciente e, delicadamente, falou:

"Perdão. Não posso diagnosticar seu problema de antemão. Amanhã, talvez. Por favor, vá deitar-se e deixe á porta do quarto destrancada. Vou passar a noite aqui com seus livros. Pode me chamar sem levantar-se?"

"Posso. Tenho uma campainha.”

"Ótimo. Se vir alguma coisa, aperte o botão sem se sentar. Boa noite.”

Confortavelmente instalado numa poltrona, o médico ficou olhando as brasas brilharem enquanto se deixava levar por pensamentos profundos, mas aparentemente sem importância, já que por vezes levantava-se, abria a porta que dava para as escadas e ficava escutando atentamente. E em seguida voltava a sentar-se. Até que acabou adormecendo e quando acordou já passava da meia-noite.

Remexeu o fogo, apanhou um livro que estava na mesinha a seu lado e leu o título. Eram as Meditações, de Denneker. Abriu-o ao acaso e começou a ler:

"Porque embora tenha sido determinado por Deus que toda carne tenha espírito e, consequentemente, poderes espirituais, assim também o espírito tem o poder da carne, mesmo quando dela se desprendeu e vive como algo à parte, como muitas violências perpetradas por fantasmas e espectros têm comprovado. E há quem diga que isso não ocorre somente com o homem, mas que também os animais são movidos por tais propósitos maléficos, e que ..."

A leitura foi interrompida por um estrondo que sacudiu a casa, como a queda de um objeto muito pesado. O médico fechou o livro e saiu correndo, subindo as escadas em direção ao quarto de Fleming. Tentou abrir a porta, mas esta, contrariando suas instruções, estava trancada. Bateu-lhe com o ombro com tal força que a porta cedeu.

No chão, junto à cama em desalinho, vestido com a roupa de dormir, jazia Fleming, à morte.

O médico ergueu do chão a cabeça do moribundo, observando o ferimento em sua garganta.

"Devia ter previsto isto", disse, acreditando tratar-se de suicídio.

Quando o homem, depois de morto, foi examinado, notou-se que havia marcas visíveis das presas de um animal que se tinham cravado fundo na veia jugular. Só que não havia animal algum.


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas; ilustrações Mozart Couto. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Prisão


Tendo assassinado o cunhado, Orrin Brower, de Kentucky, era um foragido da justiça. Escapara da prisão local, onde aguardava julgamento, batendo no vigia com uma barra de ferro e roubando-lhe as chaves, com as quais abrira a porta externa, desaparecendo na noite. 

Como o vigia estivesse desarmado, Brower fugira sem qualquer arma com a qual pudesse defender a recém-recuperada liberdade. Assim que se viu longe da cidade, cometeu a asneira de embrenhar-se por uma floresta. Isso aconteceu há muitos anos, quando aquela região era bem mais despovoada do que é hoje.

A noite estava muito escura, não havendo lua ou estrelas, e como Brower nunca andara por aquelas redondezas, desconhecendo a região, claro que logo estava perdido. Já não conseguiria dizer se estava caminhando para longe da cidade ou se retornava — o que era de suma importância para Orrin Brower. Sabia que, em qualquer uma das circunstâncias, um bando de homens com seus cães de caça logo estaria em seu encalço e suas chances de escapar seriam pequenas. Mas não ia facilitar as coisas. Por uma hora de liberdade que fosse, valeria a pena lutar.

De repente, saiu da floresta e deu numa velha estrada, na qual viu, indistintamente, a silhueta de um homem, imóvel na penumbra. Era tarde para tentar fugir. O fugitivo sabia que, ao primeiro movimento que fizesse tentando embrenhar-se de novo na floresta, seria, como diria depois, "crivado de balas". E assim os dois permaneceram ali parados como se fossem árvores, Brower quase sentindo-se sufocar com as batidas do próprio coração. O outro — bem, nada se sabe sobre as emoções do outro.

Um segundo depois — ou talvez tenha sido uma hora — a lua surgiu por entre as nuvens e o homem caçado viu nitidamente quando o policial ergueu o braço, apontando de forma significativa numa determinada direção. Compreendeu. Virando as costas para seu captor, caminhou submisso na direção indicada, sem olhar para os lados, mal ousando respirar, a cabeça e as costas já sofrendo com a profecia de uma bala.

Brower era o mais corajoso dos bandidos que sobreviveram para ser enforcados. Isso ficara patente pela maneira com que se expusera ao perigo ao assassinar friamente o cunhado. Não vamos relatá-la aqui. Tudo isso veio à tona em seu julgamento e a revelação de sua calma diante da situação quase salvou-lhe o pescoço. Mas o que vocês querem? Quando um bravo é vencido, ele se submete.

E, assim, eles seguiram em direção à prisão pela velha estrada, através da floresta. Somente uma vez Brower teve coragem de olhar para trás. Só uma vez, quando estava imerso na sombra e sabia que o outro estava sob a luz do luar, virou-se e espiou. Seu captor era Burton Duff, o vigia, pálido como a morte, trazendo ainda na fronte a marca vívida da barra de ferro. Orrin Brower não quis saber de mais nada.

Afinal, chegaram à cidade, onde tudo estava iluminado, embora deserto. Apenas mulheres e crianças tinham ficado na cidade, mas não estavam nas ruas. E o criminoso seguiu em frente, direto para a prisão. Dirigiu-se à entrada principal, tocou a maçaneta da pesada porta de ferro, empurrou-a sem que ninguém lhe mandasse, entrou e se viu na presença de meia dúzia de homens armados. Só então se virou. Ninguém mais entrou.

Sobre a mesa, no corredor, jazia o corpo morto de Burton Duff.


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

Mensagem sem Fio


No verão de 1896, o Sr. William Holt, um empresário bem-sucedido de Chicago, estava vivendo temporariamente numa cidadezinha no centro do estado de Nova York, de cujo nome este escritor não se lembra. O Sr. Holt tinha "tido problemas com a mulher", de quem se separara no ano anterior. 

Se fora alguma coisa mais grave do que "incompatibilidade de gênios", ele é talvez a única pessoa que poderia dizer, já que não cultivava o hábito de fazer confidências. Mesmo assim, contou os incidentes que relatarei aqui a pelo menos uma pessoa, sem que pedisse segredo. Hoje ele vive na Europa.

Certa noite, Holt havia saído da casa do irmão, que acabara de visitar, para um passeio pelos campos. Pode-se supor — seja qual for o valor dessa suposição, diante do que se diz ter acontecido — que ele tivesse a mente ocupada por reflexões sobre sua infelicidade doméstica e sobre as mudanças ocorridas em sua vida.

Fossem quais fossem seus pensamentos, o fato é que o absorveram de tal forma que ele não sentiu nem a passagem do tempo nem para onde seus pés o levavam. Sabia apenas que ultrapassara em muito os limites urbanos e que agora atravessava uma região deserta, por uma estrada que não se parecia em nada com a que tinha trilhado ao deixar a cidade. Em resumo, estava perdido.

Percebendo a má sorte, sorriu. A região central do estado de Nova York não era perigosa, nem ninguém é capaz de ficar perdido ali por muito tempo. Virou-se e recomeçou a andar pelo mesmo caminho por onde viera.

Antes que fosse muito longe, notou que a região em torno ficava cada vez mais estranha — e clara. Tudo estava envolto num halo de luz suave e avermelhada, na qual via sua própria sombra projetar-se sobre a estrada. "A lua está nascendo", disse a si mesmo. Mas em seguida lembrou-se que era tempo de lua nova e que, mesmo se o astro enganoso estivesse num de seus estágios visíveis, com certeza já teria desaparecido no horizonte.

Parou e olhou em volta, procurando a fonte daquela luminosidade, que se espalhava rapidamente. Ao fazê-lo, viu a própria sombra projetar-se à sua frente na estrada, da mesma forma como quando estivera virado para o outro lado. A luz continuava vindo de trás dele. Era surpreendente.

Não podia compreender. Voltou-se outra vez, e mais outra, virando-se para todos os pontos do horizonte. A sombra continuava à sua frente — e a luz atrás, "aquela vermelhidão estranha, quieta".

Holt ficou assombrado — "bestificado" é a palavra que usaria depois, ao relatar o caso —, mas ainda assim manteve uma certa curiosidade racional.

Para testar a intensidade daquela luz, cuja causa e natureza não podia determinar, tirou o relógio para ver se conseguia enxergar-lhe os ponteiros. Estavam perfeitamente visíveis, mostrando que eram 11 horas e 25 minutos. Naquele instante, a misteriosa luminosidade de repente explodiu num esplendor intenso, quase capaz de cegar, tomando todo o céu e fazendo desaparecerem as estrelas, enquanto projetava para a frente a sombra agora descomunal de Holt.

Foi sob aquela luz assombrada que ele viu, a pouca distância mas a uma certa altura, como se flutuasse, a figura de sua mulher, vestida com roupas de dormir e segurando junto ao seio o filho deles. Os olhos dela encaravam-no com uma expressão que Holt mais tarde se diria incapaz de definir ou descrever, embora ressaltasse que "não era deste mundo".

A luz intensa foi momentânea e logo tudo escureceu, embora a aparição ainda permanecesse visível, pálida e imóvel. Em seguida, foi aos poucos morrendo até desaparecer de todo, como a imagem de uma luz forte que fica na retina depois que fechamos os olhos. Uma peculiaridade daquela aparição, a princípio não notada, mas que ele mais tarde recordaria, é que ele vira apenas a parte superior da figura da mulher: nada havia da cintura para baixo.

A escuridão repentina não foi absoluta e logo ele pôde discernir tudo à sua volta.

Na penumbra da manhã, deu por si entrando na cidade, pelo lado oposto ao qual havia saído. Pouco depois chegou à casa do irmão, que mal o reconheceu. Tinha os olhos injetados e, desvairado, estava da cor do pelo de um rato. De forma quase incoerente, Holt relatou o que se passara.

"Vá para a cama, meu rapaz", disse-lhe o irmão, "e espere. Vamos acabar descobrindo mais sobre isso.”

Horas depois, chegava o telegrama predestinado. A casa de Holt, num dos subúrbios de Chicago, fora destruída pelo fogo. Acuada pelas chamas, sua mulher aparecera na janela, com o filho nos braços. Ali ficara, imóvel, aparentemente em choque.

No momento exato em que os bombeiros chegavam com uma escada, o chão desabara, e ela não fora mais vista. O momento culminante do horror fora às 11 horas e 25 minutos.


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

Testemunha de um Enforcamento


Um velho de nome Daniel Baker, que vivia em Lebanon, Iowa, era suspeito, segundo os vizinhos, de ter assassinado um mascate que obtivera permissão para pernoitar em sua casa. Isso aconteceu em 1853, quando vendedores ambulantes eram coisa mais comum no Oeste do que são hoje, e quando os perigos eram maiores. 

O mascate, com sua maleta, atravessava os campos por todo tipo de estrada deserta e tinha de contar com a hospitalidade dos camponeses. Isso colocava-o em contato com tipos estranhos, alguns não muito escrupulosos em seus métodos de ganhar a vida, sendo o assassinato um meio aceitável para alcançar tal objetivo. Às vezes acontecia de um mascate, com a maleta já vazia e a bolsa de dinheiro cheia, ir até a moradia solitária de algum mau-caráter e depois nunca mais se ter notícias dele.

Foi assim o caso envolvendo o "velho Baker", que era como o chamavam. (Nos povoados do Oeste, esse tipo de apelido só é dado a pessoas que não são muito benquistas; àquele que é malvisto pela sociedade aplica-se a referência reprovadora à idade.) Um mascate apareceu na casa dele e nunca mais foi visto — era só o que se sabia.

Sete anos depois, o reverendo Cummings, pastor batista muito conhecido naquela região, ia passando certa noite perto da fazenda de Baker. Não estava muito escuro: havia um pedaço de lua em algum lugar acima da bruma leve que encobria os campos. O Sr. Cummings, sempre bem-humorado, assobiava uma canção, que interrompia de vez em quando para dizer uma palavra de encorajamento a seu cavalo.

Ao se aproximar de uma pequena ponte que cruzava uma ravina seca, viu a figura de um homem de pé, claramente delineado sobre o fundo cinza e enevoado da floresta. O homem trazia alguma coisa atada às costas e levava um grosso cajado — obviamente, um vendedor ambulante. Havia em suas maneiras um certo alheamento, como nos sonâmbulos. O Sr. Cummings puxou as rédeas do cavalo quando chegou diante dele e saudou-o com simpatia, convidando-o a subir na carroça — "se estiver indo na minha direção", acrescentou.

O homem ergueu o rosto, encarou-o, mas nem respondeu nem saiu do lugar. O pastor, com seu persistente bom humor, repetiu o convite. Então o homem esticou a mão direita e apontou para baixo, enquanto continuava de pé na beirada da ponte.

O Sr. Cummings olhou para onde ele apontava, em direção à ravina, mas, não vendo nada demais, virou-se para olhar de novo para o homem. Ele havia desaparecido. O cavalo, que durante todo o tempo estivera estranhamente inquieto, soltou no mesmo instante um relincho de terror e disparou.

Quando conseguiu recuperar o controle do animal, o pastor já estava no alto da montanha, centenas de metros adiante. Olhou para trás e viu a figura do homem outra vez, no mesmo lugar e com a mesma atitude que observara. E então, pela primeira vez, foi invadido pela sensação do sobrenatural e partiu para casa a toda velocidade, como o cavalo queria.

Em casa, contou sua aventura à família e, no dia seguinte cedo, acompanhado por dois vizinhos, John White Corwell e Abner Raiser, voltou ao tal lugar.

Lá encontraram o corpo do velho Baker pendurado pelo pescoço numa das vigas da ponte, bem embaixo do lugar onde a aparição estivera de pé. Uma fina camada de poeira, levemente umedecida pela bruma, cobria o chão da ponte, mas apenas as pegadas do cavalo do Sr. Cummings eram visíveis.

Ao retirar o corpo, os homens revolveram o chão de terra fofa, esboroada, da encosta, acabando por desenterrar ossos humanos que estavam quase descobertos graças à ação da água e das geadas. Os ossos foram identificados como sendo do mascate desaparecido.

No duplo inquérito aberto pelo júri local, ficou comprovado que Daniel Baker havia sido morto pelas próprias mãos, num momento de temporária insanidade, e que Samuel Morritz fora assassinado — por quem, o júri não sabia.


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

domingo, 10 de julho de 2016

Naufrágio Virtual


No verão de 1874 eu estava em Liverpool, para onde fora em missão de negócios da empresa mercantil Bronson & Jarrett, de Nova York. Eu sou William Jarrett. Meu sócio era Zenas Bronson. A firma faliu no ano passado, e ele, incapaz de suportar a transição da riqueza para a pobreza, faleceu. Tendo concluído os negócios que fazia, e sentindo a lassitude e o cansaço provocados pelo despacho das mercadorias, senti que uma viagem mais prolongada seria agradável e benéfica.

Assim sendo, em vez de embarcar de volta num dos muitos e elegantes vapores de passageiros, fiz reserva para Nova York no veleiro Morrow, no qual embarcara boa e valiosa parte das mercadorias que comprara. O Morrow era um navio inglês com, é claro, poucas acomodações para passageiros, que em verdade éramos apenas três: eu, uma jovem e sua criada, uma negra de meia-idade.

Achei estranho que uma moça inglesa tivesse uma criadagem daquele tipo, mas ela própria me explicaria depois que a mulher havia sido deixada em sua família por um homem e uma mulher da Carolina do Sul, que tinham morrido, ambos e no mesmo dia, na casa do pai dela, em Devonshire — circunstância que por si só já era suficientemente estranha para ficar retida em minha mente, tanto mais porque em conversas posteriores fiquei sabendo, pela jovem, que o tal senhor chamava-se William Jarrett, tendo o mesmo nome que eu. Eu sabia que um ramo de minha família se fixara na Carolina do Sul, mas não conhecia nada sobre eles ou sobre sua história.

O Morrow deixou a foz do Mersey no dia 15 de junho e navegou por muitas semanas com brisa suave e céu sem nuvens. O capitão, que era um admirável homem do mar mas nada mais do que isso, nos fazia pouca companhia, apenas nas refeições. E a jovem, Srta. Janette Harford, e eu nos tornamos amigos. Estávamos, na verdade, quase todo o tempo juntos e, sendo muito introspectivo, eu me perguntava que novo sentimento era aquele que ela me inspirava — uma atração secreta, sutil mas poderosa, que me fazia a todo instante procurar saber onde Janette estava. Mas não conseguia entender o que pudesse ser. Só sabia que não era amor.

Com essa certeza, e percebendo que a jovem era tão sincera quanto eu, certa noite arrisquei-me a perguntar-lhe (lembro-me que a data era 3 de julho), rindo, enquanto estávamos sentados no deque, se ela poderia me ajudar a resolver aquela charada. Por um instante, ela ficou em silêncio, com o rosto virado para o outro lado, e cheguei a temer que tivesse sido rude e indelicado. Mas logo, muito séria, fixou os olhos em mim. Num segundo, fui invadido pela mais estranha fantasia que já pode ter passado pela mente humana. Era como se ela estivesse olhando-me não com aqueles olhos, mas através deles — desde uma distância imensurável — e como se muitas outras pessoas, homens, mulheres e crianças, em cujos rostos eu captava expressões vaga e estranhamente familiares, a cercassem, lutando na ânsia de também enxergar através daquelas órbitas.

O navio, o mar, o céu — tudo desaparecera. Eu já não tinha consciência de nada exceto daquelas figuras, daquele cenário extraordinário e fantástico. E então, de repente, tudo foi escuridão, e logo, fui saindo aos poucos do negror para a luz, como se me acostumasse às diferentes gradações de luminosidade, até que tudo o que antes me cercava, o deque, o mastro, a cordoagem do navio, lentamente, voltou a foco.

A Srta. Harford fechara os olhos e se recostara na cadeira, aparentemente adormecida, com o livro que estivera lendo aberto no colo. Impelido por não sei que motivo, dei uma espiada no alto da página. Era um exemplar de um livro raro e curioso, as Meditações, de Denneker. E o dedo indicador da moça estava pousado sobre a seguinte passagem:

"A todos é dado ser tragado para longe e permanecer fora do corpo por um tempo. Pois, assim como acontece com os rios cujas águas se encontram, fazendo com que o mais fraco seja tragado pelo mais forte, também ocorre um tipo de relação na qual os caminhos se interceptam e as almas se fazem companhia, enquanto os corpos vão em direções opostas, sem nada saber."

A Srta. Harford levantou-se, estremecendo. O sol se pusera no horizonte, mas não fazia frio. Não havia uma brisa sequer. Nem nuvens no céu. E contudo tampouco havia estrelas visíveis. Ouvimos uma correria pelo tombadilho. O capitão subiu e dirigiu-se ao primeiro-oficial, que, de pé, observava o barômetro. "Meu Deus!", ouvi-o exclamar.

Uma hora depois, Janette Harford, que eu mal enxergava em meio à escuridão e aos jatos d'água, foi-me arrancada dos braços pelo rodamoinho cruel do navio que afundava. E eu desmaiei embrenhado nas cordas do mastro que flutuava e ao qual me atara.

Acordei sob a luz de uma lâmpada. Estava deitado num beliche em meio ao ambiente familiar de um camarote de navio a vapor. Num sofá, junto à cama, estava sentado um homem, com roupas de dormir, lendo um livro. Reconheci o rosto de meu amigo Gordon Doyle, o qual conhecera em Liverpool no dia de meu embarque, quando ele próprio se preparava para embarcar no City of Prague, tendo insistido para que eu o acompanhasse. Alguns minutos depois, falei seu nome. E ele disse apenas "Sim?" e virou mais uma página do livro sem tirar os olhos dele.

"Doyle", repeti, "eles conseguiram salvá-la?” Ele agora se dignava a me olhar e sorria, divertido.

Evidentemente pensava que eu ainda estava meio adormecido. "Salvar quem? O que você está dizendo?”

"Janette Harford.”

Seu ar divertido transfigurou-se em estranheza. Ele agora me olhava fixamente, sem nada dizer.

"Você vai acabar me contando", continuei, "vai acabar me contando.”

Pouco depois, perguntei:

"Que navio é este?”

Doyle voltou a olhar-me.

"É o vapor City of Prague, que está indo de Liverpool para Nova York. Três semanas no mar e um mastro quebrado. Passageiro da primeira, Sr. Gordon Doyle; idem, só que lunático, Sr. William Jarrett. Os dois distintos viajantes embarcaram juntos, mas deverão separar-se a qualquer momento em razão da intenção do primeiro de atirar o último ao mar.”

Num impulso, sentei-me.

"Você quer dizer que há três semanas sou passageiro deste vapor?”

"É, mais ou menos isso. Hoje é dia 3 de julho.”

"Eu estive doente?”

"Você nunca esteve tão bem. E com excelente apetite.”

"Deus do céu! Doyle, isso é um mistério. Pelo amor de Deus, fale sério. Então eu não fui resgatado dos escombros do naufrágio do veleiro Morrow?”

Doyle empalideceu e, aproximando-se, segurou-me pelo pulso. Um segundo depois, perguntou, falando devagar:

"O que você sabe sobre Janette Harford?”

"Primeiro diga-me o que você sabe sobre ela.”

Doyle olhou-me por um instante como se pensasse no que ia fazer. Em seguida, sentando-se outra vez no sofá, disse:

"E por que não? Estou noivo de Janette Harford, que conheci em Londres há um ano, e com ela vou-me casar. A família dela, uma das mais ricas de Devonshire, é contra o casamento e nós decidimos fugir juntos — já estamos fugindo, para dizer a verdade, porque no dia em que eu e você atravessamos a rampa para subir a bordo deste vapor, ela e sua fiel criada, uma negra, passaram por nós, para tomar o veleiro Morrow. Ela não concordou em viajar no mesmo navio que eu e achamos melhor que tomasse um veleiro de carga, evitando assim que fosse notada ou até mesmo detida. Agora estou alarmado porque se o maldito defeito não for consertado logo e nos atrasarmos muito, o Morrow vai chegar a Nova York antes de nós e a pobrezinha não terá para onde ir.”

Eu continuava deitado, imóvel — tão imóvel que mal respirava. Mas o assunto evidentemente empolgara Doyle, que depois de uma pausa continuou:

"Por falar nisso, ela é filha adotiva dos Harfords. A mãe dela morreu onde moravam, ao cair de um cavalo durante uma caçada, e o pai, louco de dor, matou-se no mesmo dia. Nenhum parente apareceu para reclamar a criança e assim, depois de um período razoável os Harfords a adotaram. Ela cresceu acreditando que era filha deles.”

"Doyle, que livro é esse que você está lendo?”

"Ah, são as Meditações, de Denneker. É um negócio esquisito que Janette deu para mim. Por acaso ela possuía dois exemplares. Quer dar uma olhada?”

Atirou-me o volume, que se abriu ao cair. Numa das páginas abertas, um trecho estava sublinhado:

"A todos é dado ser tragado para longe e permanecer fora do corpo por um tempo. Pois, assim como acontece com os rios cujas águas se encontram, fazendo com que o mais fraco seja tragado pelo mais forte, também ocorre um tipo de relação na qual os caminhos se interceptam e as almas se fazem companhia, enquanto os corpos vão em direções opostas, sem nada saber."

"Janette tinha... tem... um gosto curioso para leitura", consegui balbuciar, dominando minha agitação.

"É. E agora você vai me fazer o favor de explicar como foi que descobriu o nome dela e do navio em que está.”

"Você falou durante o sono", respondi.

Uma semana depois, atracávamos no porto de Nova York.

Mas do Morrow, nunca mais se teve notícia.


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas; ilustrações Mozart Couto. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

Um Incidente na Ponte de Owl Creek


I

Um homem estava de pé sobre uma ponte férrea no Norte do Alabama, olhando para as águas que corriam ligeiras seis metros abaixo. Tinha as mãos às costas, os pulsos atados por uma corda. Outra corda fora enrolada em seu pescoço. Esta última estava amarrada a uma estaca sólida acima de sua cabeça e a ponta caía-lhe até a altura dos joelhos. 

Algumas tábuas soltas, colocadas sobre os dormentes que suportavam os trilhos da via férrea, sustentavam os pés do homem, assim como os de seus executores — dois paramilitares do Exército Confederado, liderados por um sargento que na vida civil talvez tivesse sido um subxerife.

Sobre a mesma plataforma provisória, mas a uma certa distância, estava um oficial armado, com seu uniforme de graduado. Era um capitão. Em cada extremidade da ponte havia um sentinela segurando seu rifle em posição de "apoio", o que significa na vertical à frente do ombro esquerdo e com o cão apoiado ao antebraço atravessando o peito em diagonal — uma posição rígida e pouco natural, obrigando os soldados a permanecer numa postura muito ereta. Aparentemente, os dois não tinham obrigação de saber o que se passava no meio da ponte. Eles se limitavam a bloquear a passagem nas duas extremidades do caminho de pedestres que ladeava o pontilhão.

Para além de um dos sentinelas, não havia ninguém à vista. A linha férrea cruzava a floresta numa reta por quase cem metros, para em seguida desaparecer, numa curva. Com certeza havia um posto avançado mais adiante. A outra margem do rio era um campo aberto — uma colina suave, no alto da qual havia uma barricada feita com troncos de árvores, com seteiras para os rifles e um único canhoneiro do qual surgia a extremidade de um canhão de bronze, apontado para a ponte. Na metade da colina, entre a ponte e a fortaleza, estavam os espectadores — uma única companhia de infantaria perfilada, em posição de "descansar", a base dos rifles tocando o chão, os canos levemente inclinados para trás e apoiados ao ombro direito, as mãos cruzadas à frente das coronhas.

Um tenente encontrava-se de pé à direita da fila, com a ponta de sua espada no chão e a mão esquerda repousando sobre a direita. Com exceção do grupo de quatro pessoas no centro do pontilhão, ninguém se movia. A companhia estava de frente para a ponte, observando-a na mais absoluta imobilidade. Os sentinelas, voltados para as margens do rio, poderiam ser confundidos com estátuas que adornassem o lugar. O capitão estava de braços cruzados, em silêncio, observando o trabalho de seus dois subordinados, mas sem fazer qualquer sinal. A morte é um dignitário que, ao ser anunciado, deve ser recebido com manifestações formais de respeito, mesmo entre aqueles que lhe são mais familiares. No código da etiqueta militar, o silêncio e a imobilidade eram formas de deferência. O homem que estava para ser enforcado aparentava cerca de 35 anos.

Era um civil, a julgar por suas roupas, que pareciam as de um fazendeiro. Tinha boa aparência — o nariz reto, a boca firme e uma testa larga de onde surgia o cabelo comprido e escuro, penteado para trás, passando por trás das orelhas e indo até o colarinho do casaco de trabalho, que lhe caía bem. Usava bigode e uma barba pontuda, mas sem costeletas. Os olhos eram grandes, cinza-escuros, com uma expressão gentil que dificilmente se poderia esperar de um homem cujo pescoço estivesse no laço de uma corda. Com toda certeza não era um assassino vulgar. O código militar, liberal, permite o enforcamento de toda sorte de indivíduos, e os cavalheiros não estão excluídos. Assim que tudo estava pronto, os dois paramilitares, dando um passo para o lado, tiraram a tábua sobre a qual caminhavam.

O sargento virou-se para o capitão, fez continência e colocou-se imediatamente atrás do oficial, que por sua vez afastou-se um passo. Tais movimentos deixaram o condenado e o sargento sozinhos de pé sobre as duas extremidades da mesma tábua, que se estendia por cima de três dos dormentes da linha férrea. A extremidade sobre a qual se encontrava o civil quase alcançava, mas não chegava a fazê-lo, um quarto dormente. Essa tábua estivera sendo mantida ali pelo peso do capitão. Agora, o que a mantinha ali era o peso do sargento. A um sinal do primeiro, este último daria um passo para o lado, a tábua daria um salto e o condenado despencaria pelo espaço entre os dormentes.

O arranjo, por simples e efetivo, parecia confiável. O rosto do homem não estava encoberto, nem seus olhos vendados. Por um instante, ele olhou para o chão instável onde pisava e em seguida deixou que o olhar se perdesse na corrente d'água que passava lá embaixo, a toda velocidade. Uma tora de madeira boiando chamou sua atenção e seus olhos seguiram-na, rio abaixo. Parecia mover-se tão devagar, como se levada por águas indolentes...

Fechou os olhos tentando fixar os últimos pensamentos na mulher e nos filhos. A água, tingida de ouro pelos primeiros raios de sol, a bruma melancólica que recobria as margens rio abaixo, a fortaleza, os soldados, a tora de madeira — tudo distraía sua atenção. E agora ele se dava conta de alguma coisa nova, que surgia para perturbá-lo. Chocando-se com o pensamento de seus entes queridos, vinha um som que ele não conseguia nem identificar nem ignorar, um ruído agudo, nítido, metálico, como o som do martelo do ferreiro contra a bigorna. A ressonância era a mesma. O homem se perguntou o que seria aquilo e de onde vinha tal som, se de longe ou de perto — pois parecia as duas coisas ao mesmo tempo. Batia a intervalos regulares, mas num ritmo lento, como o dobrar dos sinos de Finados. Ele aguardava cada batida com impaciência e — sem que soubesse por quê — com apreensão. Os intervalos de silêncio pareciam cada vez maiores. E esses momentos de suspensão começavam a enlouquecê-lo. Embora cada vez mais espaçados, os sons cresciam em força e agudez. Feriam-lhe os ouvidos como a estocada de um punhal. Estava a ponto de gritar. O que ele ouvia era o tique-taque de seu relógio.

Abriu os olhos e viu novamente a água a seus pés. "Se eu pudesse soltar as mãos", pensou, "poderia afrouxar o laço e pular na água. Afundando, fugiria das balas e, nadando a toda velocidade, conseguiria chegar à margem, embrenhar-me na floresta e fugir para casa. Minha casa, graças a Deus, fica para além das linhas deles. Minha mulher e meus filhos estão na região que ainda não foi tomada pelos invasores.” Enquanto esses pensamentos, aqui descritos em palavras, passavam pela cabeça do condenado, e mal acabavam de ser formulados, o capitão fez um sinal para o sargento. E o sargento deu um passo para o lado.

II

Peyton Farquhar era um próspero fazendeiro, de uma família antiga e altamente respeitada no Alabama. Sendo dono de escravos e, como todo dono de escravos, um político, era naturalmente a favor da Guerra Civil e ardorosamente devotado à causa do Sul. Por motivos de força maior, que não cabe aqui relatar, não pudera servir ao galante exército que lutaria nas desastrosas campanhas culminando com a queda de Corinto, e se irritava com isso, ansiando por externar suas energias, por viver a vida mais expansiva dos soldados, pela oportunidade de se destacar. Essa oportunidade, sentia, acabaria chegando, porque chega para todos durante a guerra. Enquanto isso, ia fazendo o que podia. Não se importava de desempenhar a mais humilde tarefa, desde que fosse para ajudar a causa dos sulistas, nem de se meter na mais perigosa das aventuras, desde que fosse coerente com o papel de um civil cujo coração era de soldado e que, de boa-fé, mesmo não sendo muito qualificado, concordava, ao menos em parte, com o ditado sabidamente infame segundo o qual na guerra e no amor tudo vale.

Certa noite, quando Farquhar e sua mulher estavam sentados no banco rústico junto à entrada do jardim, surgiu no portão um soldado de uniforme cinza que pediu um copo d'água. Foi com satisfação que a Sra. Farquhar foi buscá-lo com suas próprias mãos, muito brancas. O marido se aproximou do cavaleiro empoeirado e, ansioso, pediu notícias do front. "Os ianques estão consertando as estradas", respondeu o homem," e estão prontos para um novo avanço. Já chegaram à ponte de Owl Creek, fizeram reparos e construíram uma barricada na margem norte. O comandante mandou espalhar cartazes dizendo que qualquer civil que bloquear estradas, pontes, túneis ou trens será sumariamente enforcado. Eu vi a ordem.”

"A ponte de Owl Creek é muito longe?", quis saber Farquhar. "Uns cinquenta quilômetros.” "E há soldados deste lado do rio?” "Só um posto avançado menos de um quilômetro à frente, na estrada, além de um sentinela na ponta de cá da ponte.” "E se um homem — um civil, especialista em enforcamentos — conseguisse passar pelo posto avançado e enganar o sentinela", disse Farquhar, rindo, "o que será que ele conseguiria? “ O soldado parou para pensar. "Há um mês eu estava lá", respondeu. "E notei que a correnteza do último inverno tinha deixado muitas toras encalhadas no píer de madeira, na extremidade da ponte. Agora está tudo seco e poderia queimar como uma tocha.”

A mulher já se encaminhava com a água, que o soldado bebeu. Em seguida agradeceu, cerimonioso, fez uma mesura para o marido e se foi. Uma hora depois, quando a noite já havia caído, ele voltou a cruzar a fazenda em direção ao Norte, de onde viera. Era um espião dos Confederados.

III

Assim que despencou da ponte, Peyton Farquhar perdeu os sentidos, como se já estivesse morto. Mas foi despertado desse estado — após o que lhe pareceu um tempo enorme — por uma dor fina na garganta, seguida de uma sensação de sufocamento. Uma agonia aguda, mortal, parecia espraiar-se do pescoço, tocando cada fibra de seu corpo e membros, Tais dores aparentemente corriam por linhas de ramificações bem definidas, martelando a uma velocidade inconcebível. Eram como rios de fogo pulsante que o queimassem inteiro. Quanto à cabeça, parecia-lhe completamente tomada — por uma congestão. Essas sensações não vinham acompanhadas de pensamentos. A parte intelectual de sua natureza se esvanecera. Tinha poder apenas para sentir, e o que sentia era tormento. Percebia um movimento. Envolto por uma nuvem luminosa, da qual ele agora era apenas o núcleo em brasa, oscilava sobre um arco imponderável, como se fosse imenso pêndulo. E então, de repente, de forma terrivelmente súbita, a luz que o cercava disparou para cima, com um gigantesco estrondo d'água. Um troar ameaçador atingiu-lhe os ouvidos e tudo foi escuridão e gelo. O poder do pensamento foi restaurado.

Agora ele sabia que a corda se rompera e que ele caíra na correnteza. Mas não sufocava mais do que antes. A corda em torno de seu pescoço já o estrangulava, mantendo a água fora de seus pulmões. Morrer enforcado no fundo de um rio! A idéia lhe parecia ridícula. Abriu os olhos na escuridão e viu acima uma luminosidade, embora muito longe, inacessível. Continuava afundando, pois a luz tornava-se mais e mais fraca, até virar apenas um lampejo. Mas logo começou a crescer e a tornar-se mais brilhante, até que ele percebeu que retornava à superfície — e relutava em admitir isso, pois já sentia um certo conforto em estar no fundo. "Ser enforcado e afogado", pensou, "não é tão mau assim. Mas não quero levar um tiro. Não quero e não vou. Não é justo.”

Não tinha consciência do esforço que fazia, mas uma dor fina no pulso lhe dizia que estava tentando soltar as mãos. Concentrou-se naquela luta, como um errante admirando a proeza de um malabarista, sem muito interesse no resultado. Que esforço sensacional! Que força magnífica, sobre-humana! O empenho era impressionante. Muito bem! A corda soltou-se. Seus braços separaram-se, flutuando em direção à tona, as mãos como sombras de um lado e outro, que mal podia enxergar na luminosidade crescente. Ele as olhou com interesse renovado à medida que, primeiro uma, depois a outra, elas buscaram o nó que apertava seu pescoço. Afrouxaram-no, abrindo-o, as ondulações da corda lembrando as de uma cobra d'água.

"Ponham-na de volta!", gritou para as mãos em pensamento, pois assim que o nó se desfez ele foi assaltado pela dor mais cruciante que jamais experimentara. O pescoço lhe doía horrivelmente. Seu cérebro estava em fogo. E o coração que antes batia manso de repente deu um salto, parecendo a ponto de sair-lhe pela boca. Todo seu corpo foi varrido e sacudido por uma angústia insuportável. Mas as mãos desobedientes não atenderam a seu comando. Batiam na água com vigor, em movimentos rápidos, para baixo, forçando-o rumo à superfície. Até que sentiu a cabeça emergir. A luz do sol cegou-o. Sentiu o peito expandir-se em convulsões e, em suprema agonia, seus pulmões sorveram uma enorme golfada de ar, que ele expeliu no mesmo instante, com um grito agudo. Agora tinha total controle dos sentidos físicos. Na verdade, eles estavam extraordinariamente aguçados e em alerta.

Diante da brutal agressão ao organismo, algo acentuara e refinara seus sentidos a ponto de eles lhe mostrarem coisas que antes não era capaz de perceber. Observava as ondas do rio junto a seu rosto, ouvindo o bater de cada uma delas. Olhava para a floresta além da margem e via árvore por árvore com suas folhas, assim como os veios em cada uma dessas folhas. Via até mesmo os insetos sobre elas: as cigarras, as moscas com seus corpos brilhantes, as aranhas cinzentas espalhando suas teias de um ramo a outro. Notava o prisma das cores nas gotas de orvalho sobre um milhão de lâminas de relva. E o zumbido dos mosquitos que dançavam sobre a tona, o bater das asas das libélulas, o choque das patas das aranhas-d'água, como remos que impulsionassem seus barcos — e tudo isso lhe soava claro como música. Lá se ia um peixe deslizando no fundo e ele podia ouvir o ruído de seu corpo fendendo as águas.

Chegara à superfície de frente para a correnteza. Por um instante, o mundo visível parecera girar a uma velocidade muito lenta, sendo ele seu ponto central. E ele via a ponte, a fortaleza, os soldados sobre a ponte, o capitão, o sargento, os dois paramilitares, seus executores. Via apenas suas silhuetas contra o céu. Gritavam e gesticulavam, apontando para ele. O capitão tinha empunhado a pistola, mas não atirara. Os outros estavam desarmados. Seus movimentos eram grotescos, terríveis, suas formas gigantescas. De repente, ouviu um estampido agudo e um projétil atingiu a água a poucos centímetros de sua cabeça, borrifando-lhe o rosto. Veio um segundo estampido e ele viu um dos sentinelas com o rifle ao ombro, enquanto uma nuvem de fumaça azulada subia do cano da arma.

Da água, pôde ver os olhos do homem na ponte encarando-o, por trás da mira. Notou que ele tinha olhos cinzentos e lembrou-se de já ter ouvido falar que olhos assim são os mais espertos e que homens de grande pontaria costumam ter olhos dessa cor. E, no entanto, aquele acabara de errar. Um rodamoinho envolvera Farquhar e ele agora estava de lado para a ponte. De frente para a floresta que ficava na margem oposta à fortaleza. E o som claro, alto, de uma voz entoando uma melodia monocórdia, chegava a seus ouvidos vindo de trás, cruzando a água com tanta nitidez que sobrepujava todos os outros sons, até mesmo a batida das ondas em seu rosto.

Embora não fosse soldado, ele já frequentara os acampamentos e conhecia o terrível significado daquele canto arrastado, entoado com força e deliberação. O tenente, na margem, fazia sua parte no trabalho da manhã. Ditas com toda a frieza, sem piedade — com uma entonação que era calma, serena, agourenta, mas que infundia tranquilidade na tropa —, a intervalos bem medidos, ele ouviu aquelas palavras cruéis: "Atenção, companhia!... Preparar!... Apontar!... Fogo!”

E Farquhar mergulhou. Mergulhou o mais fundo que pôde. A água borbulhava em seus ouvidos como as vozes do Niágara e ainda assim ele ouvia o ruído surdo das rajadas. Ao retornar à superfície, pôde ver as cápsulas de metal, significativamente achatadas, que, brilhantes, desciam correnteza abaixo. Algumas chegaram a tocar-lhe o rosto e as mãos, depois se foram, seguindo seu curso. Uma delas alojou-se entre seu pescoço e a gola da camisa. Sentindo, com um arrepio, que ainda estava quente, atirou-a longe.

No instante em que chegou à tona, em busca de ar, notou que ficara muito tempo debaixo d'água. Encontrava-se muito longe rio abaixo — onde era mais seguro. Os soldados estavam quase acabando de recarregar as armas. Viu as varetas todas brilhando ao sol à medida que eram retiradas dos barris, viradas no ar e introduzidas nos soquetes. Os dois sentinelas dispararam de novo, por conta própria, mas sem sucesso. O homem caçado observava tudo isso por cima do ombro. Nadava agora com todo o vigor, correnteza abaixo. Seu cérebro estava tão aguçado quanto seus braços e pernas.

Raciocinava na velocidade da luz. "O oficial", pensou, "não vai cometer um erro outra vez por excesso de zelo. Dá na mesma esquivar-se de uma rajada de tiros ou de um tiro só. Com certeza ele já deu ordens para que cada um atire à vontade. Deus me ajude, pois não vou conseguir escapar de todos eles!” Foi sacudido por um choque na água a menos de dois metros de onde estava, seguido de um estrondo violento, que foi decrescendo como se ricocheteasse e cruzasse o ar de volta em direção à fortaleza, até morrer com uma explosão que fez todo o rio estremecer. Uma coluna d'água ergueu-se, encobrindo-o, e depois despencou sobre ele, cegando-o, sufocando-o. O canhão entrara no jogo.

Ao sacudir a água que lhe encharcava a cabeça ouviu o zumbido da bala rompendo o ar acima dele, e em seguida seu impacto contra os galhos da floresta mais além, que se despedaçaram. "Não vão fazer isso de novo", pensou. "Da próxima vez vão usar uma carga de balim. Preciso ficar de olho nesse canhão. A fumaça vai me alertar porque o estampido chega tarde demais. É posterior ao projétil. É uma arma e tanto.”

De repente, sentiu-se envolver por um rodamoinho, todo ele rodando e rodando como um pião. A água, as margens, a floresta, a ponte agora distante, a fortaleza e os soldados — tudo se confundia, num borrão. Os objetos eram perceptíveis apenas por sua cor. Traços circulares e horizontais de cor — era tudo o que via. Fora apanhado num turbilhão, girando e rodopiando a uma velocidade cada vez maior, que o deixava tonto, enjoado. Em instantes, foi atirado contra o cascalho ao pé da margem esquerda do rio — no lado sul — e atrás de uma ponta que o abrigava dos inimigos.

A súbita parada e a aspereza do cascalho na palma da mão de repente o fizeram despertar, e ele chorou de alegria. Enterrou os dedos na areia, atirando-a sobre o próprio corpo enquanto agradecia em voz alta. Aquela areia era para ele como se feita de diamantes, rubis, esmeraldas. Tudo o que era belo parecia-se com ela. As árvores sobre a margem eram um gigantesco jardim. E ele notou que as plantas ali estavam compostas como se num arranjo, ao mesmo tempo que inalava seu perfume. Uma luz estranha, rosada, brilhava no espaço entre os troncos e o vento, em seus galhos, produzia a melodia de uma harpa.

Já não queria fugir — estaria satisfeito em ficar naquele lugar encantador até ser recapturado. Um zumbido e um martelar por entre os galhos, acima de sua cabeça, despertaram-no de seu sonho. O artilheiro frustrado fazia novo disparo a esmo.

Farquhar pôs-se de pé e saiu correndo em direção à margem escarpada, penetrando na floresta. Durante todo o dia caminhou, guiando-se pelo sol. A floresta parecia interminável. Em nenhum ponto encontrou uma só clareira, uma só trilha de lenhadores. Não sabia que vivia numa região de mata tão fechada. E havia nessa revelação qualquer coisa de sobrenatural. Quando a noite caiu, estava exausto, faminto, com os pés feridos. Mas quando pensava na mulher e nos filhos, sentia-se encorajado a prosseguir.

Finalmente deu numa estrada que o levou na direção que ele sabia ser a certa. Era larga e reta como a rua de uma cidade e contudo parecia não ter sido jamais trilhada. Não havia fazendas em suas margens, nem sinal de qualquer atividade. Nem mesmo o latido de um cão sugerindo que o lugar era habitado por humanos. Apenas o corpo negro das árvores formando uma muralha, de ambos os lados, desaparecendo em algum ponto no horizonte, como o desenho de uma lição de perspectiva. No alto, quando ele olhava através das copas das árvores, via o brilho de gigantescas estrelas cor de ouro, que lhe pareciam estranhas e agrupadas em constelações desconhecidas. Tinha certeza de que formavam um padrão cujo significado era secreto e maligno. E a floresta, de um lado e outro, emitia ruídos singulares, entre os quais — uma, duas, várias vezes — pôde distinguir sussurros numa língua que jamais ouvira.

Seu pescoço doía e ao passar a mão nele viu que estava horrivelmente inchado. Sabia que tinha um círculo escuro no lugar onde a corda o ferira. Seus olhos estavam congestionados. Já não conseguia fechá-los. A língua inchara de tanta sede. Procurou aliviar a febre botando a língua para fora por entre os dentes e buscando o contato com o ar frio. A relva macia cobrira de tal forma a estrada deserta que ele já não sentia o chão sob seus pés. Com certeza, apesar de todo o sofrimento, adormeceu enquanto caminhava, pois agora via outro cenário — ou talvez tivesse acordado de um delírio.

Está de pé diante do portão de sua própria casa. Tudo continua como ele deixou, brilhando com beleza à luz do sol da manhã. Deve ter caminhado durante toda a noite. Assim que empurra o portão e atravessa a calçada larga e branca, percebe um ondear de saias femininas. É sua esposa, parecendo tão fresca, tão calma e tão doce que desce os degraus da varanda para encontrá-lo. Ao pé do degraus ela pára, esperando, com um sorriso de imensa alegria, com graça e dignidade incomparáveis. Ah, como é bela E ele corre, com os braços estendidos.

Quando está a ponto de abraçá-la sente uma violenta pancada na nuca. Uma luz branca, capaz de cegar, explode à sua volta com um som que se assemelha ao tiro de um canhão — e depois é tudo escuridão e silêncio.

Peyton Farquhar estava morto. Seu corpo, com o pescoço quebrado, balançava lentamente de um lado para outro por entre os dormentes da ponte de Owl Creek.


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas; ilustrações Mozart Couto. - Rio de Janeiro: Record, 1999.