segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A Ilha dos Pinheiros


Por muitos anos, viveu perto da cidade de Gallipolis, em Ohio, um velho chamado Herman Deluse. Pouco se sabia de sua vida porque, além de não falar de si próprio, não permitia que os outros o fizessem. Havia entre a vizinhança a crença de que fora um pirata — crença que, ao que se sabe, baseava-se apenas em sua coleção de lanças de abordagem, espadas e velhas pistolas de pederneira. 

Vivia completamente só numa pequena casa de quatro aposentos, caindo aos pedaços e que nunca recebia reparos, a não ser quando as intempéries o exigiam. Ficava numa pequena elevação, no meio de um campo imenso e pedregoso onde cresciam espinheiros, com alguns canteiros cultivados, mas de forma bem primitiva. Aparentemente, era sua única propriedade, mas dificilmente poderia dar-lhe sustento, por mais simples e poucos que fossem seus desejos.

Ele parecia sempre ter dinheiro à mão, pagando à vista pelo que obtinha nas lojas das redondezas e raramente comprando mais de duas ou três vezes no mesmo lugar, a não ser após um intervalo considerável de tempo. Mas não recebia elogios por essa distribuição igualitária de sua freguesia. As pessoas estavam mais propensas a encarar aquilo como uma tentativa infrutífera de esconder que possuía muito dinheiro. Nenhuma alma honesta, ciente dos fatos da tradição local e possuindo um mínimo de bom senso, seria capaz de duvidar que ele tinha montanhas de ouro roubado enterrado em algum ponto de sua propriedade decadente.

No dia 9 de novembro de 1867, o velho morreu. Ou pelo menos seu corpo foi encontrado no dia 10, tendo os médicos atestado que a morte ocorrera cerca de 24 horas antes. Como ocorreu, não souberam dizer. Porque os exames post-mortem mostraram que todos os órgãos estavam perfeitamente saudáveis, sem qualquer indício de doença ou violência. Segundo eles, a morte teria ocorrido por volta do meio-dia, embora o corpo tivesse sido encontrado na cama. O veredicto do júri foi o de que "ele morreu pela vontade de Deus".

O corpo foi enterrado e a administração pública assumiu a propriedade. Uma investigação minuciosa não descobriu nada que já não se soubesse a respeito do morto e as pacientes escavações feitas em vários pontos da casa por vizinhos sonhadores e parcimoniosos resultaram infrutíferas. Os administradores trancaram a casa a fim de evitar que ficasse exposta ao tempo, enquanto a propriedade, imóvel e bens, era posta legalmente à venda para cobrir, ao menos em parte, as despesas da transação.

A noite de 20 de novembro foi de tempestade. Ventos furiosos varreram os campos, açoitando-os com pancadas de chuva de granizo. Árvores imensas foram arrancadas do chão, interrompendo estradas. Nunca se vira na região uma noite tão terrível quanto aquela, mas na manhã seguinte a tempestade perdera o fôlego e o dia nasceu claro e limpo.

Às oito da manhã, o reverendo Henry Galbraith, pastor luterano muito conhecido e estimado, chegou a pé à sua casa, que ficava a pouco mais de dois quilômetros da propriedade de Deluse. O Sr. Galbraith estivera fora, em Cincinnati, por um mês. Subira o rio num barco a vapor e, ao chegar em Gallipolis na noite anterior, arranjara um cavalo e uma carroça, tomando o caminho de casa. Mas a violência da tormenta retivera-o durante a noite e, já de manhã, com tantas árvores caídas, acabara por abandonar cavalo e carroça, continuando a jornada a pé.

"Mas onde você passou a noite?", perguntou a mulher, assim que ele acabou de contar sua aventura.

"Com o velho Deluse na Ilha dos Pinheiros(*)", respondeu rindo. "Mas passei um mau pedaço. Ele não se importou de me deixar ficar lá, mas sequer me dirigiu a palavra.”

Felizmente, no interesse da verdade, estava presente a essa conversa o Sr. Robert Mosely Maren, advogado e literato de Columbus, o mesmo que escreveu os deliciosos Documentos da arte do humor. Percebendo, embora aparentemente sem compartilhá-la, a surpresa causada pela resposta do Sr. Galbraith, o sarcástico Sr. Maren sustou com um gesto as exclamações de espanto que naturalmente se seguiriam e, com toda tranquilidade, perguntou:

"E como foi que o senhor conseguiu entrar lá?”

Esta é a versão do Sr. Maren para a resposta do Sr. Galbraith:

"Vi uma luz se movendo dentro da casa e, completamente cego pela tormenta, além de estar quase congelando, entrei pelo portão e amarrei o cavalo na cerca do velho estábulo, onde ele está até agora. Em seguida bati na porta. Como ninguém atendeu, resolvi entrar. A sala estava escura, mas eu tinha fósforos e acabei achando uma vela, que acendi. Tentei entrar no aposento ao lado, só que a porta estava trancada e, embora ouvisse os passos pesados do velho lá dentro, ele não respondeu a meu chamado. Como não havia lareira acesa, fiz um fogo e me deitei [sic] diante dele, fazendo do casaco travesseiro e preparando-me para dormir. Mas logo a porta que eu forçara abriu-se silenciosamente e o velho entrou, carregando uma vela. Dirigi-me a ele com toda a gentileza, pedindo perdão pela invasão, mas ele não pareceu notar-me. Dava a impressão de procurar algo, embora seus olhos estivessem fixos nas órbitas. Acho que ele é sonâmbulo. Deu uma meia-volta pela sala e saiu pela mesma porta por onde entrara. Ainda voltou duas vezes antes que eu adormecesse, agindo exatamente da mesma forma e desaparecendo como antes. Nos intervalos, eu o ouvia perambulando pela casa, seus passos perfeitamente audíveis nas pausas da tormenta. E, quando acordei na manhã seguinte, ele já havia saído.”

O Sr. Maren ainda tentou fazer mais perguntas, mas foi contido pelas exclamações da família.

A história da morte e do enterro de Deluse veio à tona, para grande espanto do bom pastor.

"A explicação para a aventura do senhor é muito simples", disse o Sr. Maren. "Não acredito que o Sr. Deluse possa caminhar durante o sono — não nesse em que está mergulhado agora. Mas o senhor, com toda certeza, tem um sono cheio de sonhos."

E, diante dessa versão para os fatos, o Sr. Galbraith foi obrigado a aceitá-la, embora relutante. Porém, tarde da noite do dia seguinte, lá estavam os dois cavalheiros, acompanhados pelo filho do pastor, na estrada diante da casa do velho Deluse. Havia luz lá dentro. Às vezes numa janela, às vezes noutra. E os três homens avançaram até junto à porta.

Assim que lá chegaram, veio do interior da casa uma profusão de sons estarrecedores — ruído de espadas, aço chocando-se contra aço, explosões violentas como se armas de fogo, gritos de mulheres, grunhidos e imprecações de homens em combate! Os três ficaram ali por um instante, amedrontados, sem saber o que fazer. E então o Sr. Galbraith tentou abrir a porta. Estava trancada. Mas o pastor era um homem de coragem e, acima de tudo, um homem de força hercúlea. Deu um ou dois passos para trás e atirou contra a porta o ombro direito, arrancando-a das dobradiças com um estrondo. No segundo seguinte os três estavam lá dentro.

Tudo era escuridão e silêncio! O único som era a batida de seus corações. O Sr. Maren trouxera consigo fósforos e uma vela. Com dificuldade, devido à agitação em que se encontrava, conseguiu acendê-la, e os três homens começaram a explorar a casa, passando de um a outro aposento. Tudo estava em perfeita ordem, como fora deixado pelo xerife. Nada fora remexido. Uma fina camada de poeira recobria tudo. Uma porta, nos fundos, encontrava-se entreaberta, como se por descuido, e a primeira coisa que passou pela cabeça deles foi que os autores da gritaria talvez tivessem escapado.

Escancararam a porta e iluminaram o chão com a vela. Com os últimos sopros da tormenta noturna caíra um pouco de neve. Mas não havia pegadas. A superfície branca estava intacta. Eles fecharam a porta e entraram no último dos quatro aposentos da casa — o que ficava mais distante da entrada, num canto da construção. Foi lá que a vela do Sr. Maren se apagou de repente, como se atingida por uma lufada de ar.

No instante seguinte, ouviram um baque pesado. E quando reacenderam a vela às pressas encontraram o jovem Galbraith, filho do pastor, caído no chão a pouca distância dos dois. Estava morto. Uma das mãos crispara-se em torno de um pesado saco de moedas, que exames posteriores provariam ser velhos dobrões espanhóis. Bem junto ao lugar onde jazia o corpo uma ripa de madeira tinha sido arrancada da parede e, pela abertura que ficara, via-se que fora de lá que o saco fora retirado.

Outra investigação foi realizada. Outro exame post-mortem feito sem que se conseguisse descobrir a causa da morte. Mais um veredicto de que ela se dera "pela vontade de Deus" deixou a todos a liberdade de tirar suas próprias conclusões. O Sr. Maren chegou à conclusão de que o jovem morrera de pura excitação.

(*) A "Ilha dos Pinheiros" é um conhecido local de encontro de piratas. (N. do A.)


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas; ilustrações Mozart Couto. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

Nenhum comentário: