segunda-feira, 1 de agosto de 2016

No Limiar do Irreal


I

Ao longo de certo trecho entre Aubum e Newcastle, a estrada — primeiro de um lado do rio e depois do outro — ocupa todo o fundo de uma ravina, sendo parcialmente cortada na escarpa íngreme e parcialmente formada pelas pedras removidas do leito do rio pelos mineradores. As escarpas são cobertas de vegetação e o curso da ravina é sinuoso. Nas noites escuras, é preciso andar com cuidado para não se cair dentro d'água. A noite que tenho na memória era escura e o rio, uma torrente, engrossada por um recente temporal. Eu viera de Newscastle e estava a caminho, a menos de dois quilômetros de Auburn, cruzando o trecho mais escuro e mais estreito da ravina, olhando com toda a atenção a estrada à frente de meu cavalo.

De repente, vi um homem quase embaixo do focinho do animal. Puxei a rédea com tanta força que o cavalo por pouco não empinou.

"Perdão", disse. "Mas não o vi.”

"Você dificilmente poderia esperar ver-me", respondeu o homem, com civilidade, vindo para a lateral da carruagem. "E o barulho do rio impediu que eu o ouvisse.”

Reconheci a voz imediatamente, embora cinco anos se tivessem passado desde que a ouvira pela última vez. E não estava particularmente feliz em ouvila.

"Você é o Dr. Dorrimore, não é?”

"Sou. E você é meu bom amigo Sr. Manrich. Estou mais do que feliz em vê-lo... demais", acrescentou com um sorriso, "até porque estou indo na sua direção e, claro, espero receber uma oferta de carona.”

"Que eu faço, com muito prazer.”

O que não era exatamente verdade.

O Dr. Dorrimore agradeceu ao sentar-se a meu lado e eu segui em frente, com a mesma cautela de antes. Deve ser fantasia, mas hoje tenho a impressão de que, durante o resto da viagem, fomos envolvidos por uma neblina gelada. E que eu estava morrendo de frio. Que o caminho parecia mais longo do que antes, e que a cidade, quando lá chegamos, parecia triste, inóspita e desolada.

Devia ser cedo ainda, mas não me lembro de ter visto uma luz sequer nas casas, nem vivalma nas ruas. Num dado momento, Dorrimore explicara-me por que estava ali, e onde estivera durante todos os anos em que desaparecera desde nosso último encontro. Lembro-me que ele fez essa narrativa, mas não me recordo dos fatos narrados. Ele estivera em países estranhos e voltara — é tudo o que minha memória retém, mas isso eu já sabia antes. Quanto a mim, não me recordo de ter dito uma só palavra, embora com certeza o tenha feito. Mas de uma coisa tenho perfeita consciência: a presença daquele homem a meu lado era estranhamente inquietante, desagradável. A ponto de, ao chegarmos à entrada iluminada da Pensão Putnam, eu ter tido a nítida sensação de haver escapado de um perigo espiritual, de natureza peculiar e assustadora. Mas a sensação se transformou assim que fiquei sabendo que o Dr. Dorrimore também se hospedaria lá.

II 

Para explicar, pelo menos em parte, meus sentimentos em relação ao Dr. Dorrimore, vou falar das circunstâncias nas quais o conhecera, alguns anos antes. Certa noite, meia dúzia de homens, entre os quais eu, encontrava-se na biblioteca do Clube Boêmio de São Francisco. A conversa era acerca de prestidigitação e as façanhas dos prestidigitadores, um dos quais se apresentava naquela ocasião no teatro local.

"Esses sujeitos são farsantes no duplo sentido", disse um dos amigos. "São incapazes de fazer alguma coisa pela qual valha a pena passar por bobo. O mais humilde dos saltimbancos da Índia seria capaz de enganá-los a ponto de pensarem que estão loucos.”

"Mas como?", perguntou outro, acendendo um charuto.

"Como? Com qualquer uma de suas performances mais simples, mais comuns. Lançando para o ar objetos que nunca vão cair. Fazendo plantas brotarem, crescerem e se abrirem em flor, isso em qualquer superfície nua, escolhida pelo espectador. Colocando um homem dentro de uma cesta de vime, espetando-o por todos os lados com uma espada enquanto ele grita e sangra, para depois abrir a cesta e mostrar que está vazia. Ou então jogando para o alto a ponta de um fio de seda e subindo por ele até desaparecer.”

"Bobagem!", retruquei, temo que com certa indelicadeza. "Não vá me dizer que você acredita nessas coisas.”

"Claro que não. Já as presenciei vezes demais para acreditar nelas.”

"Mas eu acredito", disse um jornalista local muito conhecido por suas matérias pitorescas. "Já relatei esse tipo de coisa tantas vezes que nada, a não ser a observação, seria capaz de abalar minha convicção. Cavalheiros, vocês têm minha palavra.”

Mas ninguém riu — todos estavam com os olhos fixos em alguma coisa atrás dele. Virando-me na cadeira, vi um homem com roupa de gala, que acabara de entrar na sala. Era de pele muito escura, quase trigueiro, com um rosto fino, barba negra que lhe ia até junto da boca, uma vasta cabeleira preta, áspera e em desalinho, nariz adunco e olhos que brilhavam com uma expressão cruel, como os de uma cobra. Um dos integrantes do grupo levantou-se e apresentou-o como sendo o Dr. Dorrimore, de Calcutá.

A cada um que era apresentado ele cumprimentava com uma profunda reverência à maneira oriental, embora sem a gravidade comum no Oriente. Seu sorriso pareceu-me cínico e levemente insolente. Todo seu comportamento só pode ser descrito como desagradavelmente sedutor. Sua presença conduziu a conversa para outros assuntos. Ele falou pouco — não consigo lembrar-me de nada do que chegou a dizer. Notei que sua voz era particularmente rica e melodiosa, embora tenha produzido em mim um efeito semelhante ao provocado pelo olhar e pelo sorriso. Logo, eu me levantava para ir embora. Mas ele também ergueu-se, começando a vestir o sobretudo.

"Manrich", disse, "estou indo na mesma direção que você.”

Está droga nenhuma!, pensei. E como é que você sabe em que direção vou? Mas limitei-me a dizer:

"Ficarei encantado com sua companhia.”

Saímos do prédio juntos. Não havia táxis à vista, os bondes já tinham sido recolhidos e a lua cheia, na noite fresca, estava uma beleza. Subimos a ladeira da Califórnia Street, Peguei aquela direção pensando que ele naturalmente optaria por outra, para o lado dos hotéis.

"Você não acredita no que se fala a respeito dos prestidigitadores indianos", afirmou ele, de repente.

"E como é que o senhor sabe?", perguntei.

Sem me responder, ele pôs de leve a mão em meu braço e com a outra apontou para a calçada à nossa frente. Ali, quase a nossos pés, jazia o corpo de um homem morto, com o rosto voltado para cima, pálido à luz da lua! Uma espada, cujo cabo cintilava com pedrarias, estava enfiada em seu peito. Uma poça de sangue se formara nas pedras da calçada. Fiquei espantado e aterrorizado. Não apenas com o que via, mas pelas circunstâncias em que o fazia. Diversas vezes, enquanto subíamos a ladeira, meus olhos tinham observado, eu podia jurar, toda a extensão daquela calçada, de uma transversal à outra. Como podiam ter deixado de ver aquela cena horrível, agora tão nitidamente visível sob a luz da lua?

Enquanto recuperava-me do choque, observei que o corpo vestia traje de gala. O sobretudo, aberto, revelava a casaca, a gravata branca, a parte da frente da camisa trespassada pela espada. E então — terrível revelação! — vi que o rosto, exceto pela palidez, era o de meu companheiro! Em cada detalhe, das roupas à aparência física, era o próprio Dr. Dorrimore.

Como que hipnotizado pelo horror, virei-me para olhar o homem vivo a meu lado. Ele desaparecera. E assim, ante mais esse terror, saí dali, descendo a ladeira pelo mesmo caminho de onde viera. Tinha dado poucos passos quando senti um forte puxão no ombro, que me fez parar.

Quase gritei de pavor: o homem morto, com a espada ainda enfiada no peito, estava de pé a meu lado! Agarrando a espada com a mão livre, ele arrancou-a, enquanto o luar banhava as pedrarias do cabo e a própria lâmina de aço, imaculadamente limpa. A espada caiu na calçada diante de mim e... desapareceu. O homem, a pele novamente escura, afrouxou a mão que me apertava o ombro, voltando a olhar-me com o mesmo olhar cínico que eu vira em nosso primeiro encontro.

Os mortos não têm um olhar assim. Recobrando parcialmente o controle, virei-me para trás e vi a sombra branca da calçada, limpa de uma transversal à outra.

"O que significa isso, seu demônio?", perguntei, enfático, embora me sentisse fraco e tremesse da cabeça aos pés.

"Foi aquilo que alguns se divertem chamando de prestidigitação", respondeu ele, com um rápido porém incisivo sorriso.

Em seguida virou na Dupont Street e eu jamais voltei a vê-lo, até o dia de nosso encontro na ravina de Auburn.

III  

No dia seguinte ao meu segundo encontro com o Dr. Dorrimore, não voltei a vê-lo. O recepcionista da Pensão Putnam explicou-me que estava trancado no quarto, adoentado. Naquela tarde, na estação de trem, tive uma agradável surpresa com a chegada inesperada da Srta. Margaret Corray, juntamente com sua mãe, procedentes de Oakland.

Esta não é uma história de amor. Tampouco sou um contador de histórias, e o amor, do jeito que é, não pode ser descrito numa literatura dominada e circunscrita à tirania aviltante que obriga a escrever bonito em nome das adolescentes. Sob o jugo doentio das adolescentes — ou, por outra, sob o mando dos falsos censores que se investiram do direito de cuidar do bem-estar delas —

 o amor apaga sua sagrada pira, E, sem que o saiba, a Moralidade expira

morreu de fome ante a comida insossa e a água destilada fornecidas pelos puritanos. O que quero dizer é que a Srta. Corray e eu estávamos noivos. Ela e a mãe foram para o hotel onde eu me hospedava e, ao longo de duas semanas, vi-a diariamente. Desnecessário dizer que eu estava feliz. O único obstáculo à minha felicidade plena naqueles dias maravilhosos era a presença do Dr. Dorrimore, o qual eu me sentira na obrigação de apresentar às senhoras. A essa altura, ele já caíra no agrado delas. E o que eu podia dizer? Não sabia de nada que o desmerecesse. Seu comportamento era o de um cavalheiro bem-educado e gentil. E, para as mulheres, o comportamento é o que faz o homem. Em uma ou duas ocasiões, ao ver a Srta. Corray caminhando lado a lado com ele, fiquei furioso, e uma vez cheguei mesmo à indiscrição de protestar.

Indagado sobre minhas razões, não tive o que dizer e pensei ter visto na expressão dela uma sombra de desprezo diante das tolices de uma mente ciumenta. Com o tempo, fui ficando cada vez mais taciturno e irritadiço, até que, num gesto intempestivo, decidi voltar a São Francisco no dia seguinte. Mas nada comentei sobre isso.

IV 

Havia em Auburn um velho cemitério, abandonado. Era quase no coração da cidade, mas, mesmo assim, à noite era um lugar tão sombrio quanto poderia desejar um ser humano em seu momento mais lúgubre. As grades das sepulturas estavam caídas, arrebentadas e muitas já não existiam. De vários túmulos só restavam ruínas e de alguns haviam brotado imensos pinheiros, cujas raízes tinham cometido um pecado inominável. As lápides estavam caídas ou rachadas ao meio e o terreno coberto de espinheiros. O muro fora quase todo desfeito e vacas e porcos andavam por ali. O lugar era uma desonra para os vivos, uma ofensa para os mortos, uma blasfêmia contra Deus.

Na noite daquele dia em que eu tomara a estouvada decisão de ir embora, furioso, para longe daquilo que mais amava, fui dar naquele local, bem a propósito.

A luz de uma meia-lua filtrada através das folhagens formava desenhos e nódoas que deixavam entrever o invisível. E as sombras escuras pareciam conspirar para, no momento exato, revelar negrores ainda mais terríveis. Passando junto do que fora a calçada de um túmulo, vi emergir das sombras a figura do Dr. Dorrimore. Eu próprio, estando encoberto pela penumbra, fiquei imóvel, com as mãos crispadas e os dentes trincados, tentando controlar o impulso de atirar-me sobre ele e estrangulá-lo. Um momento depois, uma segunda figura juntou-se a ele, segurando-o pelo braço. Era Margaret Corray!

Não sei bem contar o que aconteceu. Só sei que pulei para a frente, com pensamentos de morte. Sei que fui encontrado na manhã cinzenta, ferido e sangrando, com marcas de dedos na garganta. Fui levado à Pensão Putnam, onde, por vários dias, delirei. Tudo isso só sei porque me foi contado. E de minha parte lembro apenas que, ao recobrar a consciência, já convalescente, mandei chamar imediatamente o recepcionista do hotel.

"A Sra. Corray e a filha dela ainda estão hospedadas aqui?", perguntei.

"Qual foi o nome que o senhor disse?”

"Corray.”

"Não tivemos ninguém com esse nome aqui, senhor.”

"Não zombe de mim, eu lhe peço", disse eu, altivo. "Você está vendo que já estou melhor. Diga-me a verdade.”

"Dou-lhe minha palavra, senhor", insistiu ele com evidente sinceridade. "Não tivemos nenhum hóspede aqui com esse sobrenome.”

Suas palavras me deixaram estupefato. Permaneci em silêncio por um instante. Em seguida, perguntei:

"E onde está o Dr. Dorrimore?”

"Ele foi embora na manhã seguinte à briga e, desde então, não ouvimos mais falar dele. Foi um trabalho e tanto que ele deu ao senhor.”

V

Tais são os fatos neste caso. Margaret Corray hoje é minha esposa. Ela jamais esteve em Auburn e durante as semanas em que toda a história que acabei de contar se formou em minha mente ela estava em casa, em Oakland, perguntando-se onde eu estaria e por que não lhe escrevia.

Outro dia, li no jornal Sun, de Baltimore, a seguinte nota:

"O professor Valentine Dorrimore, hipnotizador, teve enorme audiência ontem à noite. O palestrante, que viveu a maior parte de sua vida na Índia, fez uma fantástica exibição de seus poderes, hipnotizando, com um simples olhar, qualquer um que concordasse em submeter-se à experiência. Na verdade, hipnotizou a platéia inteira por duas vezes (só os repórteres foram poupados), fazendo com que todos tivessem as mais extraordinárias ilusões. A melhor coisa da palestra foi a exposição sobre os métodos dos prestidigitadores indianos em suas famosas performances, relatadas por muitos viajantes. O professor declara que esses taumaturgos chegaram a tal refinamento na arte que aprendeu com eles que são capazes de fazer milagres, apenas mergulhando os 'espectadores' num estado de hipnose e dizendo-lhes o que devem ver e ouvir. E chega a ser inquietante sua afirmação de que algumas pessoas, especialmente suscetíveis, podem ser mantidas no limiar do irreal durante semanas, meses e até mesmo anos, dominadas por qualquer ilusão ou alucinação que o prestidigitador queira eventualmente sugerir.”


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas; ilustrações Mozart Couto. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

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