Geralmente, o demônio sertanejo, como o de todos os povos, é criado à sua imagem e semelhança. Anda, por isso, encourado como os vaqueiros, monta a cavalo, é especialista em velhacadas de cigano e alquilador, gosta de cachaça, come picadinho de bode com gerimum, dança nos sambas, campeia o gado, faz a corte às moças, e desaparece sempre com um estouro e um fedor terrível de enxofre ou de chifre queimado. Às vezes, se apresenta como um cantor de desafio a quem ninguém vence. De outras, se encarna no couro dos cantadores célebres, ou faz pactos com eles, tornando-os invencíveis. O cantador Manuel do O Bernardo, não podendo vencer num desafio célebre seu rival Rio-Preto, gritou no meio da sala onde se achavam, rodeados de muita gente:
Senhora dona da casa,
Abra a porta, acenda a luz:
Estamos c’o Cão em casa,
Rezemos o credo em cruz!
Outro famoso cantador, Manuel das Cabeceiras, afirmava ter cantado desafio uma vez com o demônio em figura de moleque.
Corre pelo sertão uma versalhada sobre a disputa do diabo com São Miguel a propósito da alma de certo ricaço inimigo dos pobres, que estava sendo julgada no outro mundo. Quando o arcanjo começou a pesar as boas e más obras do morto na sua balança, este pediu a intercessão em seu favor de Nossa Senhora, da qual fora sempre devoto. Satanás esperava com prazer apoderar-se da alma do infeliz. Nossa Senhora, porém, movida da piedade de seu amantíssimo coração, conseguiu salvá-la. Ao avistá-lo, o Fute falou assim:
Lá vem a compadecida!
Mulher com tudo se importa!
Todos fazem seus negócios,
Mas a mim fecham a porta.
No fim de todas as coisas,
Eu é que levo a taboca!
Não foi possível obter os outros versos do poemeto sobre esse milagre da Virgem Mãe.
O suplício mais terrível que existe no inferno para aqueles que cometem impurezas nesta vida é, no dizer dos matutos, o chamado da cama do compadre com a comadre. A decência não permite se faça sua descrição. Para mostrar quanto é terrível, basta a seguinte lenda sertaneja:
Um dia, o diabo coxo revoltou-se contra o maioral do inferno e pintou o sete lá dentro. Quebrou os móveis e deu pancada a torto e a direito. Todos os demônios o cercaram armados de espetos em brasa. Continuou a lutar. O maioral ameaçou-o se não se rendesse, de passá-lo pelas moendas onde se supliciam as almas mais pecadoras. Soltou uma gargalhada. Ameaçou-o com a grande caldeira de azeite fervente. Tornou a zombar. Ameaçou-o com a cama do. compadre com a comadre. O diabo coxo empalideceu, pôs-se a tremer e entregou-se, pedindo perdão.
Na opinião sertaneja, o demônio tem horror aos meninos, porque já o fizeram perder duas vasas. A primeira, numa igreja. Todo vestido de preto, debo estava tomando nota de quem se portava mal durante a missa, quando um menino puxou a saia da mãe.
- Que é isso, menino? disse ela.
- Mamãe, olhe ali aquele homem! Ele tem os pés de pato!
A mulher voltou-se, viu e fez o sinal da cruz. O bicho estourou, fedendo.
A segunda foi numa festa. O diabo, que andava apaixonado por uma moça muito bonita, compareceu a um baile em casa do pai dela, bem vestido e bonito, mas sem poder esconder os pés de pato. Quando mais aceso ia o seu namoro, um menino gritou no meio da sala:
- Aquele homem tem os pés de pato!
Houve grande reboliço. A moça fez o sinal da cruz. Ouviu-se logo o estouro e sentiu-se a fedentina de chifre queimado.
No sertão, o diabo faz pactos ou pautas, como dizem os nordestinos, com indivíduos que o logram a maior parte das vezes. Para mútua segurança nesses contratos, quase sempre realizados alta noite, numa encruzilhada deserta, o homem deve dar ao Maligno em caução alguma gotas de seu sangue.
Conta-se que um fazendeiro fez com o Capeta o seguinte acordo: Este faria tudo quanto aquele mandasse e somente o poderia levar para o inferno, quando tivesse esgotado suas ordens. É quase a condição imposta pelo demônio aos desejos do doutor, no Segundo Fausto de Goethe.
O homem fez o que bem quis com o auxílio do diabo até que um dia já não sabia mais o que ordenar. Ia ser carregado para o inferno, quando lhe ocorreu um ardil salvador: mandou o Tinhoso encher um cesto de água e ele, desesperado, estourou e foi-se.
Tendo morrido numa cidade sertaneja um homem, cuja riqueza era de origem duvidosa, verificou-se que a tinha obtido com um pacto infernal, pois que, no dia do enterro, quando todos os parentes e amigos enchiam a casa do defunto vestidos de preto, nela entrou um vaqueiro alto e moreno, todo encourado, que, sem tirar da cabeça, com escândalo dos presentes, o seu chapeu de couro, deu em silêncio algumas voltas em torno do esquife e foi embora. Quando se abriu o caixão, antes de ser levado para o cemitério, a fim da viúva se despedir de seu marido, verificou-se que estava vazio. O demônio levara o morto em corpo e alma!
Conta, afinal, o sertanejo que o diabo é casado e tem uma filha muito bonita. Por ela se apaixonou um rapaz de grande virtude e valor. Seu anjo da guarda não conseguiu afastá-lo de tão perigosa paixão. A moça não foi indiferente a esse amor, mandou-lhe recados carinhosos, e até falou ao pai em abandonar o inferno e ir morar na fazenda do namorado. O diabo enraiveceu-se com esses desejos e, para evitar que os realizasse, trancafiou-a a sete chaves numa torre de ferro, ao meio de seu reino.
Ao saber disso, o rapaz montou no seu cavalo de campo castanho escuro, fechado ou, melhor, cacete, sem sinal descoberto nem encoberto de espécie alguma, o animal de maior fama da ribeira, e dirigiu-se ao inferno, decidido a tudo. Chegou lá na hora em que os diabos dormiam, abriu as portas da torre com chaves falsas, pôs a moça na garupa e fugiu a todo galope.
Quando acordou e soube, pela mulher, do audacioso rapto, o diabo teve violentíssimo acesso de fúria. Depois, mandou selar um de seus melhores cavalos e lançou-se em perseguição dos fugitivos. A moça, que ia sentada à garupa do namorado e podia voltar-se para trás, avistou ao longe o vulto do pai. Preveniu-o e ele esporeou a cavalgadura, perguntando:
- Em que cavalo vem teu pai?
- Num gáseo.
Ele respondeu, rindo:
- Cavalo gáseo-sarará não presta nem prestará.
As rimas dos rifões sobre os pêlos dos cavalos são simples meios mnemônicos para não esquecê-los. O cavalo gáseo-sarará é o albino, o ruço ou branco de pele rósea. Chama-se comumente só gáseo. Sarará se diz do indivíduo rusalgar. A combinação dos dois termos dá mais força à idéia da cor do animal.
Sentindo escapar-lhe a cobiçada presa, o demônio muda de cavalo e a moça previne ao rapaz, que indaga:
- Em que cavalo vem teu pai?
- Num alazão.
- Trazes o freio na mão, onde deixaste teu alazão?
Seguem-se contínuas mudanças, sempre acompanhadas da pergunta - em que cavalo vem teu pai? - e de respostas que indicam as qualidades ou defeitos atribuídos às cores dos animais.
- Em que cavalo vem teu pai?
- Num bebe-em-branco.
- Quem monta em bebe-em-branco, monta em cavalo manco.
O bebe-em-branco é o cavalo escuro de narinas e queixo brancos.
- Em que cavalo vem teu pai?
- Num cardão rodado.
- Cavalo cardão rodado melhor andando que parado...
O cardão rodado é o tordilho escuro com manchas apatacadas que o francês chama grís pommelé.
- Em que cavalo vem teu pai?
- Num cardão pedrez.
- Cavalo cardão pedrez para carga Deus o fez.
O cardão pedrez é o tordilho pintadinho.
- Em que cavalo vem teu pai?
- Num ruço-pombo.
- Cavalo ruço-pombo traz pisadura no lombo.
- Em que cavalo vem teu pai?
- Num melado-caxito.
- Cavalo melado-caxito tanto é bom como é bonito.
O melado-caxito é o baio dourado de crinas e canos pretos.
A excelência do animal não adiantava mais nada ao demônio, porque os dois amantes chegavam à face da terra e se refugiavam numa igreja, onde casaram. O diabo voltou ao seu reino, aborrecido e fatigado. Ao entrar em casa, sua mulher indagou:
- Alcançou-os?
- Não. Foi impossível!
- Por que?
- Porque montavam um cavalo castanho escuro que pisa no mole e no duro, e leva o dono seguro.
O sertanejo aproveita essa lenda dum Orfeu bárbaro para enumerar seus conceitos sobre as cores dos cavalos, desmentindo o velho aforismo dos maquignons de França; à tout poil bonne bête. Mas, em todos os pêlos, mesmo nos mais desacreditados, há exceções. Essa a verdade.
De todas as lendas sobre o diabo que correm pelos sertões do Nordeste brasileiro parece que esta é a mais peculiar, a mais característica.
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Gustavo Barroso (Gustavo Dodt Barroso), historiador e folclorista, nasceu em Fortaleza, CE, em 29/12/1888, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 3/12/1959. Publicou, entre outras obras, Terra de sol, Rio de Janeiro, 1912; Heróis e bandidos, Rio de Janeiro, 1917; Casa de marimbondos, São Paulo, 1921; Ao som da viola, Rio de Janeiro, 1921 (2 ed. aumentada, Rio de Janeiro, 1949); O sertão e o mundo, Rio de Janeiro, 1923; Através dos folclores, São Paulo, 1927; Almas de lama e de aço, São Paulo, 1930; Mythes, contes et légendes des indiens, Paris, 1930; Aquém da Atlântida, São Paulo, 1931; As colunas do templo, Rio de Janeiro, 1932.
Fonte: Jangada Brasil - (Barroso, Gustavo. Ao som da viola, p.574-579)