domingo, 10 de julho de 2016

Naufrágio Virtual


No verão de 1874 eu estava em Liverpool, para onde fora em missão de negócios da empresa mercantil Bronson & Jarrett, de Nova York. Eu sou William Jarrett. Meu sócio era Zenas Bronson. A firma faliu no ano passado, e ele, incapaz de suportar a transição da riqueza para a pobreza, faleceu. Tendo concluído os negócios que fazia, e sentindo a lassitude e o cansaço provocados pelo despacho das mercadorias, senti que uma viagem mais prolongada seria agradável e benéfica.

Assim sendo, em vez de embarcar de volta num dos muitos e elegantes vapores de passageiros, fiz reserva para Nova York no veleiro Morrow, no qual embarcara boa e valiosa parte das mercadorias que comprara. O Morrow era um navio inglês com, é claro, poucas acomodações para passageiros, que em verdade éramos apenas três: eu, uma jovem e sua criada, uma negra de meia-idade.

Achei estranho que uma moça inglesa tivesse uma criadagem daquele tipo, mas ela própria me explicaria depois que a mulher havia sido deixada em sua família por um homem e uma mulher da Carolina do Sul, que tinham morrido, ambos e no mesmo dia, na casa do pai dela, em Devonshire — circunstância que por si só já era suficientemente estranha para ficar retida em minha mente, tanto mais porque em conversas posteriores fiquei sabendo, pela jovem, que o tal senhor chamava-se William Jarrett, tendo o mesmo nome que eu. Eu sabia que um ramo de minha família se fixara na Carolina do Sul, mas não conhecia nada sobre eles ou sobre sua história.

O Morrow deixou a foz do Mersey no dia 15 de junho e navegou por muitas semanas com brisa suave e céu sem nuvens. O capitão, que era um admirável homem do mar mas nada mais do que isso, nos fazia pouca companhia, apenas nas refeições. E a jovem, Srta. Janette Harford, e eu nos tornamos amigos. Estávamos, na verdade, quase todo o tempo juntos e, sendo muito introspectivo, eu me perguntava que novo sentimento era aquele que ela me inspirava — uma atração secreta, sutil mas poderosa, que me fazia a todo instante procurar saber onde Janette estava. Mas não conseguia entender o que pudesse ser. Só sabia que não era amor.

Com essa certeza, e percebendo que a jovem era tão sincera quanto eu, certa noite arrisquei-me a perguntar-lhe (lembro-me que a data era 3 de julho), rindo, enquanto estávamos sentados no deque, se ela poderia me ajudar a resolver aquela charada. Por um instante, ela ficou em silêncio, com o rosto virado para o outro lado, e cheguei a temer que tivesse sido rude e indelicado. Mas logo, muito séria, fixou os olhos em mim. Num segundo, fui invadido pela mais estranha fantasia que já pode ter passado pela mente humana. Era como se ela estivesse olhando-me não com aqueles olhos, mas através deles — desde uma distância imensurável — e como se muitas outras pessoas, homens, mulheres e crianças, em cujos rostos eu captava expressões vaga e estranhamente familiares, a cercassem, lutando na ânsia de também enxergar através daquelas órbitas.

O navio, o mar, o céu — tudo desaparecera. Eu já não tinha consciência de nada exceto daquelas figuras, daquele cenário extraordinário e fantástico. E então, de repente, tudo foi escuridão, e logo, fui saindo aos poucos do negror para a luz, como se me acostumasse às diferentes gradações de luminosidade, até que tudo o que antes me cercava, o deque, o mastro, a cordoagem do navio, lentamente, voltou a foco.

A Srta. Harford fechara os olhos e se recostara na cadeira, aparentemente adormecida, com o livro que estivera lendo aberto no colo. Impelido por não sei que motivo, dei uma espiada no alto da página. Era um exemplar de um livro raro e curioso, as Meditações, de Denneker. E o dedo indicador da moça estava pousado sobre a seguinte passagem:

"A todos é dado ser tragado para longe e permanecer fora do corpo por um tempo. Pois, assim como acontece com os rios cujas águas se encontram, fazendo com que o mais fraco seja tragado pelo mais forte, também ocorre um tipo de relação na qual os caminhos se interceptam e as almas se fazem companhia, enquanto os corpos vão em direções opostas, sem nada saber."

A Srta. Harford levantou-se, estremecendo. O sol se pusera no horizonte, mas não fazia frio. Não havia uma brisa sequer. Nem nuvens no céu. E contudo tampouco havia estrelas visíveis. Ouvimos uma correria pelo tombadilho. O capitão subiu e dirigiu-se ao primeiro-oficial, que, de pé, observava o barômetro. "Meu Deus!", ouvi-o exclamar.

Uma hora depois, Janette Harford, que eu mal enxergava em meio à escuridão e aos jatos d'água, foi-me arrancada dos braços pelo rodamoinho cruel do navio que afundava. E eu desmaiei embrenhado nas cordas do mastro que flutuava e ao qual me atara.

Acordei sob a luz de uma lâmpada. Estava deitado num beliche em meio ao ambiente familiar de um camarote de navio a vapor. Num sofá, junto à cama, estava sentado um homem, com roupas de dormir, lendo um livro. Reconheci o rosto de meu amigo Gordon Doyle, o qual conhecera em Liverpool no dia de meu embarque, quando ele próprio se preparava para embarcar no City of Prague, tendo insistido para que eu o acompanhasse. Alguns minutos depois, falei seu nome. E ele disse apenas "Sim?" e virou mais uma página do livro sem tirar os olhos dele.

"Doyle", repeti, "eles conseguiram salvá-la?” Ele agora se dignava a me olhar e sorria, divertido.

Evidentemente pensava que eu ainda estava meio adormecido. "Salvar quem? O que você está dizendo?”

"Janette Harford.”

Seu ar divertido transfigurou-se em estranheza. Ele agora me olhava fixamente, sem nada dizer.

"Você vai acabar me contando", continuei, "vai acabar me contando.”

Pouco depois, perguntei:

"Que navio é este?”

Doyle voltou a olhar-me.

"É o vapor City of Prague, que está indo de Liverpool para Nova York. Três semanas no mar e um mastro quebrado. Passageiro da primeira, Sr. Gordon Doyle; idem, só que lunático, Sr. William Jarrett. Os dois distintos viajantes embarcaram juntos, mas deverão separar-se a qualquer momento em razão da intenção do primeiro de atirar o último ao mar.”

Num impulso, sentei-me.

"Você quer dizer que há três semanas sou passageiro deste vapor?”

"É, mais ou menos isso. Hoje é dia 3 de julho.”

"Eu estive doente?”

"Você nunca esteve tão bem. E com excelente apetite.”

"Deus do céu! Doyle, isso é um mistério. Pelo amor de Deus, fale sério. Então eu não fui resgatado dos escombros do naufrágio do veleiro Morrow?”

Doyle empalideceu e, aproximando-se, segurou-me pelo pulso. Um segundo depois, perguntou, falando devagar:

"O que você sabe sobre Janette Harford?”

"Primeiro diga-me o que você sabe sobre ela.”

Doyle olhou-me por um instante como se pensasse no que ia fazer. Em seguida, sentando-se outra vez no sofá, disse:

"E por que não? Estou noivo de Janette Harford, que conheci em Londres há um ano, e com ela vou-me casar. A família dela, uma das mais ricas de Devonshire, é contra o casamento e nós decidimos fugir juntos — já estamos fugindo, para dizer a verdade, porque no dia em que eu e você atravessamos a rampa para subir a bordo deste vapor, ela e sua fiel criada, uma negra, passaram por nós, para tomar o veleiro Morrow. Ela não concordou em viajar no mesmo navio que eu e achamos melhor que tomasse um veleiro de carga, evitando assim que fosse notada ou até mesmo detida. Agora estou alarmado porque se o maldito defeito não for consertado logo e nos atrasarmos muito, o Morrow vai chegar a Nova York antes de nós e a pobrezinha não terá para onde ir.”

Eu continuava deitado, imóvel — tão imóvel que mal respirava. Mas o assunto evidentemente empolgara Doyle, que depois de uma pausa continuou:

"Por falar nisso, ela é filha adotiva dos Harfords. A mãe dela morreu onde moravam, ao cair de um cavalo durante uma caçada, e o pai, louco de dor, matou-se no mesmo dia. Nenhum parente apareceu para reclamar a criança e assim, depois de um período razoável os Harfords a adotaram. Ela cresceu acreditando que era filha deles.”

"Doyle, que livro é esse que você está lendo?”

"Ah, são as Meditações, de Denneker. É um negócio esquisito que Janette deu para mim. Por acaso ela possuía dois exemplares. Quer dar uma olhada?”

Atirou-me o volume, que se abriu ao cair. Numa das páginas abertas, um trecho estava sublinhado:

"A todos é dado ser tragado para longe e permanecer fora do corpo por um tempo. Pois, assim como acontece com os rios cujas águas se encontram, fazendo com que o mais fraco seja tragado pelo mais forte, também ocorre um tipo de relação na qual os caminhos se interceptam e as almas se fazem companhia, enquanto os corpos vão em direções opostas, sem nada saber."

"Janette tinha... tem... um gosto curioso para leitura", consegui balbuciar, dominando minha agitação.

"É. E agora você vai me fazer o favor de explicar como foi que descobriu o nome dela e do navio em que está.”

"Você falou durante o sono", respondi.

Uma semana depois, atracávamos no porto de Nova York.

Mas do Morrow, nunca mais se teve notícia.


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas; ilustrações Mozart Couto. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

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