Onze horas da noite.
Não há luar e a velha cidade de Bartolomeu Bueno é na época iluminada a lampeões de querosene, colocados sobre postes de madeira lavrada, distantes quarenta, cinquenta metros uns dos outros.
Na última casa da rua da Abadia jogam o trinta-e-um, na sala de frente, em torno de mesa redonda, alumiada por castiçais com velas de sebo.
Circundam a mesa o Brito Queirós, o Seixas, o Emílio Bandeira, Pinheiro de Paiva, José Soares e o Seis-e-Meia, apelido por que era conhecido o Antônio da Luz.
Àquela hora uma partida de sensação prende os olhares dos jogadores às mãos do "pé’, o Seixas, que distribui as cartas.
Há um empate carregado e estão sobre a mesa quatrocentos e tantos mil réis. Jogam.
Uns pedem cartas, empalidecem e "passam"; outros pedem-nas também, "filam-nas" e "ficam". Seixas, o último a pedi-las, conta os pontos e "chama" o pessoal. Trinta pontos! Os outros ficaram de 27, 28 e 29; ganha o Seixas.
— Arre! diabo! — exclama, — saí de um buraco com um saldo de duzentos e cinquenta mil réis. Dou metade àquele que tiver a coragem de ir agora ao Cemitério e me trazer uma caveira.
— "Pronto" grita o Bandeira, "bata o cobre que a caveira vem já".
— "Dou-te mais cinquenta", diz Seis-e-Meia.
— "E mais cinquenta meus", acode Pinheiro de Paiva.
— "Pois é já’. "Não saiam daqui que não demoro quinze minutos", retruca o Bandeira, erguendo-se da mesa. Tomou o chapéu e partiu. Mas antes de êle sair, rumou para o lado do Cemitério o Zé Mamão que, do lado de fora, encostado à janela, ouvira toda a conversação.
* * *
Meia-noite. Emílio Bandeira levanta o aldravãe da porta do cemitério de São Miguel e caminha para o monte de caveiras que está ao pé do cruzeiro grande da Metrópole dos mortos de Goiás; agarra uma e, quando se dispõe a partir, rouquenha voz, que parece vir de vetusto mausoléu, diz: "Larga, essa é minha!"
Bandeira sente que se lhe eriçam os cabelos ao ponto de derribar o chapéu; um frio que nunca havia experimentado se avoluma em sua coluna vertebral. Para um momento, indeciso, deixa a caveira no monte e agarra outra. "Larga, essa é minha!" diz outra voz fanhosamente.
Bandeira já não está em si, lança mão de outra… "Larga, essa é minha…"
Transido de medo, ainda raciocina: "se eu for procurar caveira sem dono, estou arranjado; até as mais antigas devem ter os seus proprietários; portanto, o que tenho a fazer é isto — pega na que está mais à mão e dispara…
E a voz fanhosa também dispara a repetir: Larga, essa é minha! Larga essa é minha!…
O nosso herói passa o portão da necrópole e vem pela estrada a baixo como uma bala.
"Larga, essa é minha; larga, essa é minha!…"
A jogatina continua na casa da rua da Abadia. Seixas acaba de ganhar mais uma bolada; mete no bolso o dinheiro, não sem tirar antes uma cédula de cem mil réis, que deixa" sobre a mesa.
"Esta", diz, "será do Bandeira, se entrar aqui com a caveira".
Pinheiro de Paiva e Seis-e-Meia deixam também junto ao dinheiro a quantia que prometeram dar.
Brito Queirós dá cartas, e outra jogada vai começar.
Nisto a porta da sala se abre com estalo.
Como um furacão, entra Emílio Bandeira, que atira sobre a mesa do jogo uma caveira e exclama: "Cá está a caveira e o dono ai vem atrás".
E mete-se para o interior da casa a derribar tudo o que lhe impede a disparada. Os outros deixam a mesa, dinheiro, baralho e tratam de acompanhá-lo casa a dentro.
Zé Mamão aparece à porta; não vê na sala nenhuma pessoa; enfia num dos bolsos a dinheirama que está sobre a mesa, acende um cigarro na vela de sebo mais próxima e sai.
E desce a rua da Abadia a assobiar a Palomita…
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Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Ed. Literat. 1962
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