domingo, 10 de junho de 2018

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A VÉSPERA DE seu aniversário de oito anos, Rafael ganhou do pai um par de walkie-talkies. Importados do Paraguai, enormes peças de plástico de cor bege, longas antenas e um dial capaz de captar uma infinita variedade de chiados de estática, conversas entre taxistas, uma melodia engasgada que talvez fosse de uma rádio, mas absolutamente incapazes de se comunicar um com o outro.

Seu pai ficou chateado, era natural, considerando todo o trabalho que tivera em trazê-los de Rivera por sete horas de viagem de ônibus, mas Rafael não se importou com o defeito. Filho único, não teria mesmo com quem brincar, e sabia se virar sozinho: disse que adorou o brinquedo e não o largou o dia todo, correndo pela casa e pelo jardim, sempre em contato direto com agentes secretos e super-heróis.

À noite, subiu para seu quarto. Moravam em uma casa de dois pisos, de telhado triangular, construção típica das cidades de colonização italiana da serra gaúcha. Ali, sozinho em seu quarto, sentou-se sobre a cama, de frente para uma grande janela redonda com pesadas esquadrias metálicas na forma de uma flor (mas, na sua imaginação, eram as hélices de uma turbina). Ali, geralmente dormia olhando o céu, na esperança de conseguir ver alguma estrela cadente (no último Natal, ganhou uma luneta de presente dos pais, mas não tinha paciência para decorar nomes de constelações e logo perdeu o interesse).

Naquela noite, com o walkie-talkie na mão, fingiu que conversava com seus amigos da escola, com os primos que moravam na capital e com astronautas imaginários, em missão secreta na lua, de cuja existência só ele tinha conhecimento.

Amanhã é meu aniversário, disse ao rádio. Vai ter bolo de chocolate, vai ter doces, branquinho e negrinho. Cachorro-quente com salsicha fatiada em pão massinha. Vai ter bala de coco. Coca-Cola, Guaraná e Fanta. A festa vai ser de palhaços. Tudo vai ter palhaços. Os copos e os pratos e a decoração e o bolo, tudo. Vai ser bem legal. Vai vir um monte de gente. O Gabriel, o Márcio e os amigos da turma do colégio. As meninas também. Até a Vanuza, eu não gosto dela, mas a mãe disse que tem que convidar por educação, mas tudo bem, porque daí vem mais presente. E os primos vão vir de Porto Alegre. Vai ser muito legal. Câmbio, desligo.

Choveu.

A água começou a cair de madrugada e se prolongou pela manhã. Ao meio-dia, o mundo ao redor da casa era puro barro, um charco. O céu parecia feito com o algodão sujo de um travesseiro velho. Mesmo assim, prepararam as mesas de plástico no jardim dos fundos da casa, que ficava ao lado de um descampado onde, por sua vez, um escorregador de plástico jazia encharcado.

Na cozinha, sua mãe o observava, apreensiva, através da janela que lhe dava visão privilegiada dos fundos e do descampado. Rafael, sentado lá fora, com o queixo sobre os braços cruzados, observava o vento frio que fazia um copo plástico rolar de um lado a outro da mesa, batendo e voltando entre dois pratinhos de papel que o impediam de cair ao chão.

Súbito, o telefone tocou. Rafael ergueu a cabeça, apreensivo, e olhou para dentro de casa. Sua mãe correu a atender. Era a irmã, avisando que o tempo ruim e a neblina na estrada a deixavam com medo de subir a serra num carro cheio de crianças. Meia hora depois, a mãe de Márcio ligou para avisar que ele estava gripado e não iria.

Às cinco horas, o sol começou a se pôr. Rafael continuava sentado, sozinho no jardim, enquanto sua mãe permanecia na cozinha, procurando qualquer coisa para fazer, que a mantivesse ali, volta e meia precisando encarar o bolo não-cortado, em forma de cara de palhaço, sorriso de merengues, olhos de bombom e nariz de morango, e as caixas cheias de docinhos para repor os que nunca chegaram a ser comidos.

O marido, sentado na sala, mãos nos bolsos, sem saber o que fazer. Por que não ia lá fora e conversava com o menino? Por que ficava ali sentado, sempre esperando que ela tomasse a decisão de fazer algo? O clima entre os dois não andava dos melhores já fazia algum tempo. O silêncio e o vazio daquela festa que não houve só ampliavam o desconforto.

– Que tal alugar um filme? – disse ela, enfim. – Talvez isso alegre o Rafa um pouco.

Ele a encarou por algum tempo, até enfim concordar com um aceno, levantar-se do sofá e sair de casa.

Rafael entrou em casa – ouvira o som do carro, perguntou o que havia acontecido.

– O pai foi pegar um filme pra gente ver – disse-lhe a mãe, e saiu para o jardim para recolher os pratinhos de doces.

Rafael pediu-lhe que não. O convite dizia das três às seis, e ainda não eram seis horas. Ela mordeu o lábio, incapaz de dizer ao filho o óbvio, que ninguém viria, como se prolongando o suspense pudesse evitar o momento inevitável em que não teria nada para dizer que pudesse consolá-lo. Concordou, acendeu as luzes do jardim e foi para a cozinha, ocupar-se do jantar, pensar em outra coisa.

Rafael ficou sentado nas cadeiras de plástico. O momento em que comesse algo seria o momento em que precisaria reconhecer que ninguém viria; seu estômago já roncava de fome, cedeu a dar uma mordida em um cachorro-quente já frio, jogou no chão com raiva, cruzou os braços sobre a mesa e afundou o rosto neles, chorando. Ficou uns bons cinco minutos em silêncio, meio sonolento.

Ouviu passos na grama, que julgou serem da mãe, vindo retirar a comida fria. Não levantou o rosto, não iria protestar dessa vez. Também não queria ter que encará-la. Os passos, entretanto, não pareceram seguir para dentro da casa, mas em direção ao descampado. Ergueu o rosto, curioso, e viu que os doces ainda estavam todos lá, exceto por um pratinho. Na grama, um brigadeiro solitário estava caído, envolto no papel crepom que simulava uma gola de palhaço.

Levantou-se da cadeira e caminhou para fora do jardim. Atravessou o descampado, e o vento soprou outra rodela de papel crepom azul-claro, vinda de um matagal de árvores altas e emaranhadas ali perto. O sol já havia se posto, mas a noite ainda não surgira, a claridade do dia ainda suspensa por alguns minutos numa indefinição entre o claro e o escuro. Rafael entrou no mato fechado, onde havia um vulto escuro agachado, comendo.

− Quem é você? – perguntou.

Em casa, a mãe colocava a comida no forno. Apertou o botão do acendedor elétrico, mas nada aconteceu. Foi quando se deu conta de que havia faltado luz. Bateu a porta do forno com raiva, xingou a si mesma, buscando algo que a fizesse sentir-se culpada. Mesmo que, conscientemente, soubesse que não era sua a responsabilidade da chuva ou da neblina, o pensamento de que poderia ter se esforçado mais, ligado para as pessoas, insistido, a importunava. No fundo, sentia-se culpada pelo casamento que caminhava para um fim melancólico – e temia que Rafael pudesse sentir o clima ruim dentro de casa.

Achou os fósforos. Abriu o forno e abaixou-se para acender o fogo. Ao se erguer de volta, teve a sensação de ver, pelo canto da janela, alguém de pé do lado de fora da casa, parado, a observando. Virou o rosto rápido, mas não havia ninguém. Logo em seguida, o marido entrou em casa, resmungando do carro que tinha apagado na metade do caminho, do tanto que teve que caminhar afundando os sapatos na terra enlameada e saltando de poça em poça. Tinha na mão duas caixas de fitas VHS alugadas. Uma, de desenho animado, para o garoto. Como ele próprio não tinha paciência para assistir desenhos mesmo com o filho, pegara outro filme, algo mais família, para assistirem juntos.

– Bambi? – disse ela, desconfiada, olhando a caixa da fita.

– Ele gosta, não? Já viu várias vezes.

– É algum tipo de ideia sua? De preparar o Rafa pra alguma coisa?

– Como assim? Do quê você está falando?

– Se você está pensando em ficar com a guarda...

– Meu Deus, é só uma droga de um filme! – resmungou ele. – Será que temos que discutir sobre isso o tempo todo? É só uma droga de um desenho animado! Não vou discutir isso com você, não hoje.

A luz voltou, e foi quando perceberam o quanto já havia escurecido lá fora.

– Cadê o Rafa? Não era melhor ele entrar? – perguntou o pai.

Ela o encarou em silêncio, largou a fita de vídeo sobre a mesa da cozinha e saiu para o quintal. Não percebeu o menino à vista, mas notou que um pratinho de doces havia sido tirado da mesa. Sorriu, de alguma forma a confortava saber que ele parara com a birra e comera alguma coisa. Recolheu a comida e olhou para o alto: o tempo começara a abrir num céu estrelado. Ao menos, teriam uma noite bonita.

Terminou de guardar a comida e deu uma olhada no assado. Estava quase pronto. Chegou à beira da escada e gritou por Rafael, que descesse para jantar. O menino não respondeu. Ela começou a ficar preocupada. Subiu até o quarto, mas estava vazio. Por algum motivo, acreditava que o garoto havia subido e estava no quarto havia um bom tempo. Sentiu um calafrio. Desceu as escadas e gritou outra vez.

− Rafael!

− O que aconteceu? − perguntou o pai.

− Não encontro esse menino.

− Não está lá fora?

− Não.

− Rafael! – gritou o pai.

− Tô aqui – respondeu ele, entrando na sala.

− Onde você estava, meu filho? − perguntou a mãe.

− Falando com um amigo.

− Onde?

− Já foi embora.

Os pais se entreolharam. Sabiam que o menino estava inventando aquilo, mas, se aquela era sua forma de lidar com a festa malsucedida, não tirariam isso dele.

A mãe ficou um pouco aliviada por saber que, pelo menos, alguém aparecera na festa. Rafael parecia tranquilo, ainda que um pouco cabisbaixo com as outras ausências. O menino colocou as mãos nos bolsos e baixou a cabeça, falando e balançando o corpo como fazia quando se preparava para pedir algo que achava que não seria permitido.

− Ele perguntou se posso visitar a casa dele.

− Onde ele mora?

− Não sei...

− Como se chama?

− Também não sei...

− Como assim, não sabe? Não era um amigo?

− É um amigo novo. Pra trocar pelos outros que são tudo merda.

− Não diga palavrão!

− Desculpe...

Ficaram os três em silêncio por alguns instantes. Ela se abaixou e pediu que ele a olhasse nos olhos. O menino obedeceu. Ela perguntou se estava tudo bem, e Rafael respondeu que sim, só estava chateado porque os amigos antigos não tinham aparecido, mas tudo bem, trocava todos pelo amigo novo. A mãe perguntou sobre o que ele e o amigo conversaram.

− Nada. Ele não falava muito. Acho que é mudo.

− Como assim? Como sabe que ele convidou você pra ir à casa dele?

O menino ergueu os braços. Eu só sei que ele convidou, disse. Ela colocou a mão em sua cabeça para verificar se estava com febre, mas não estava. Creditaram tudo à imaginação de Rafael, que tendia a aumentar quanto mais sozinho ficava.

Os três jantaram o assado, e cada um comeu uma fatia do bolo como sobremesa. Nenhum dos dois estranhou que Rafael resolvesse jantar com um dos walkie-talkies ao lado, tampouco perguntaram onde fora parar o outro. Não quis assistir filme nenhum, preferia ir direto para o quarto.

O pai anunciou que iria buscar o carro, ver se agora o motor pegava, e saiu de casa, enquanto a mãe o colocava para dormir. Com um beijo de boa-noite na testa, saiu do quarto aliviada que, afinal de contas, o menino não estava tão tristonho quanto temia.

No meio do caminho, enquanto descia as escadas, faltou luz outra vez. Resignada, tateou o caminho até a cozinha à procura de velas. Encontrou-as jogadas no fundo de uma gaveta e buscou a caixa de fósforos deixada sobre o fogão.

Riscou um fósforo, e o quintal inteiro se iluminou com uma luz branca, intensa e leitosa. A casa toda chacoalhou, o som de vento uivando ensurdecedor por todas as frestas, como se uma turbina de avião estivesse batendo à porta. Não pensou no que podia estar acontecendo, ou como estava acontecendo; a única coisa que pensou foi no filho, e subiu as escadas correndo, saltando os degraus de dois em dois, atirou-se para a porta do quarto de Rafael, mas estava trancada – e ela não a havia trancado.

A maçaneta sequer girava. Bateu com os punhos, gritou. O desespero lhe deu forças que não imaginava ter, atirou-se de ombro contra a porta de madeira, fazendo-a rachar, a intensa luz branca vazando pela fresta. Olhou em volta, pegou a coisa mais pesada ao seu alcance – a base de metal de um abajur na cômoda do corredor – e golpeou a porta com força. Quanto mais rachaduras surgiam, mas jatos de luz branca vazavam, o som de vento ondulando em ciclos, pouco a pouco se dando conta de que não era simplesmente vento que produzia aquele som.

Súbito, a luz se apagou, e a porta cedeu. Ela entrou no quarto desesperada, tropeçando em brinquedos e gritando o nome do filho. O som cíclico de vento agora estava distante e se afastava cada vez mais. A janela redonda, com suas pesadas esquadrias em forma de flor, estava aberta. E Rafael não estava mais no quarto.

Quando o marido entrou na casa, ficou apavorado. Da estrada, não tinha bem certeza do que vira, e encontrar a casa revirada como que por um terremoto o deixou em pânico. Subiu a escada aos tropeços.

Encontrou a esposa sentada na cama de Rafael, em silêncio, imóvel, observando o céu estrelado através da janela aberta. Segurava firmemente entre as mãos o walkie-talkie paraguaio.

Ele perguntou onde estava Rafael. Ela, por algum motivo, sorria. Disse que estava tudo bem. Mas que precisavam conversar.

por Samir Machado de Machado


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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